sexta-feira, 13 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10148: Notas de leitura (380): O Meu Diário, Guiné - 1964/1966, CCAÇ 674, de Inácio Maria Góis (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 22 de Maio de 2012:

Queridos amigos,
Confirmo que se trata do mais singular, detalhado diário de um combatente da Guiné.
Há uns anos atrás, o historiador René Pélissier perguntou ao blogue como podia ter acesso ao livro. Só agora é que me apercebi, depois de uma consulta ao Google. Seria bem útil que confrades como o JERO ou Belmiro Tavares, vizinhos de Binta, comentassem o diário de Inácio Maria Góis. É uma escrita singela e sem retoques, vê-se que ele ouve e escreve conforme lhe soa. Toca pela sinceridade e inocência.
Quando dou por estas pepitas de ouro, questiono quantas edições de autor andam por aí a exigir leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


O diário do soldado Inácio Maria Góis (2)

Beja Santos

O primeiro ataque vivido pela CCAÇ 674 em Fajonquito ocorreu em 24 de Agosto de 1964, pelas 9 da noite, todos pegam nas armas e vão para os abrigos improvisados. Enquanto os guerrilheiros gritam “Venham cá, seus filhos da puta”, os soldados respondem, é uma flagelação que dura várias horas, com intermitências. Mesmo quando saíram para fazer o reconhecimento, a pouco mais de 100 metros, foram emboscados. Seriam 10 da manhã quando os Fiat começaram a fazer diversas rajadas, o contingente da CCAÇ que tinha saído em reconhecimento continuou a ser alvejado pelos guerrilheiros. E termina assim o seu relato: “O combate terminou pelas 11 da manhã. Os guerrilheiros puseram-se em fuga mas mostraram que estavam ali para o que desse e viesse. Tentaram ver a nossa reação ou a nossa fraqueza, mas viram que nós não fraquejámos”. No dia seguinte um civil de etnia fula capturou um suposto guerrilheiro que o comandante de companhia submeteu a interrogatório. O soldado Inácio Góis diz ter presenciado um crime horrível: “A pouco mais de 300 metros do aquartelamento ele foi obrigado a pegar numa pá e abrir a sua própria sepultura; não compreendi a razão do que estava a fazer ao jovem guerrilheiro, já indefeso, de mãos atadas e com uma corda ao pescoço”. E depois descreve a execução do jovem guerrilheiro que tombou sobre a sua própria sepultura.

Em Fajonquito recorda festas e feiras em Porto Covo, quando escreve em 29 de Agosto o seu diário lembra-se dessas festividades e pensa que as famílias dos combatentes não esquecem os que estão longe. No final de Agosto há um patrulhamento a Sanjábará, nada encontraram. Na noite de 1 de Setembro voltam a fazer uma patrulha de reconhecimento a tabancas mais ou menos a quatro quilómetros de Fajonquito. O comandante da patrulha faz perguntas aos chefes de tabanca, de maneira sóbria eles respondem que não há presença de “bandidos”. E a 2 de Setembro temos nova flagelação, repete-se a ida para as valas, é uma nova flagelação intermitente, prolongou-se até ao amanhecer. No reconhecimento, não encontraram sinais do inimigo. A 8 de Setembro temos a terceira flagelação, também perto das 8 da noite. No seu diário, em 12 de Setembro, fala das abatises que aparecem em praticamente todos os itinerários. É no regresso que rebenta uma emboscada e ele escreve: “Quando chegámos junto dos nossos camaradas deparou-se-nos um cenário de horror, alguns deles encontravam-se feridos e estendidos na estrada. Havia sangue por todos os lados. Tentei socorrer os feridos com maior gravidade aplicando diversos pensos para o sangue estancar. Os guerrilheiros atacaram com rockets, lançaram sobre os nossos camaradas dezenas de granadas defensivas”. Há muitas lágrimas porque um furriel ficou ferido com gravidade, um alferes que fora atingido com estilhaços de granada, estavam todos muito abatidos e ele registou as expressões de alegria da força emboscada quando os viu chegar. No regresso a Fajonquito foram flagelados mas não houve feridos a lamentar.

Em Setembro, entende explicitar qual a missão da CCAÇ 674: controlar e deter a entrada dos guerrilheiros que vêm do Senegal pelas fronteiras de Cuntima, Sitató, Sare-Uale, Sare-Bacar, Dungal e Cambajú; além disso, há que fazer patrulhamentos, emboscadas até à fronteira do Senegal; a par disso, compete-lhe proteger e apoiar as populações que vivem em Fajonquito e nas imediações. É uma constante no seu diário as queixas sobre a comida. Voltam à região de Sanjabará(1) em meados de Outubro, há novamente árvores no meio da estrada, a estrada para Farim está intransitável. Todas as deslocações, incluindo a Paunca, Contuboel e Bafatá, aparecem referenciadas, não se conhece diário mais detalhado, desde os cuidados pessoais, às relações com os superiores, o estado de espírito dos camaradas. Um tema recorrente é a discrepância do que se come na mesa dos oficiais e na mesa das praças.

No final de Novembro dá-nos a saber que o soldado Guimarães fez mesas e bancos para as praças, já se come com alguma dignidade. Assim se chega ao Natal: “Hoje, dia de Natal, encontro-me deitado na minha camarata, olhando para o teto da caserna que é composto por uma dúzia de chapas de zinco. A luz que me alumia é composta por uma simples garrafa de cerveja com um pouco de petróleo e uma pequena torcida improvisada dentro da mesma, tudo parece muito triste e muito só”. As entradas referentes a Janeiro de 1965 são muito sóbrias: registos sobre a comida; ralhetes do comandante de companhia; decide casar-se e escreve à namorada. Em 6 de Fevereiro ficamos a saber que existe a Cruz do Calvário, a expressão pertence-lhe, fica a mais de 8 quilómetros de Fajonquito, frente à estrada que fazia ligação a Farim, é o nome que ele pôs à primeira serração, ali ainda existem vestígios de viaturas e numa das paredes lê-se que quem manda ali são os guerrilheiros do PAIGC. Será aí que se irá fazer um posto avançado, uma mortificação, os guerrilheiros irão tentar assaltar o posto, nunca conseguirão.

Inácio Góis faz amizades, procura estar atento aos usos e costumes da população de Fajonquito. Em Março, nova operação a Sanjábará, tudo decorreu sem incidentes. No regresso, fala do seu casamento: “No dia 15 de Fevereiro de 1959 recebi a primeira carta da jovem Maria Antónia a dizer que aceitava o nosso namoro. A seguir à resposta da aceitação do casamento, cada um de nós começou a tratar dos papéis, o que para mim me parecia um conto de fadas. Encontro-me na frente de combate e não sei o que me poderá acontecer, mas tenho fé em Deus, que sairei deste inferno com vida, se Deus me ajudar”. Depois patrulham demoradamente à volta de Cambaju. Há camaradas que lhe vão dizendo, quando o vêm escrever nos cadernos: “não te esqueças também de escrever o meu nome para que um dia nós o possamos ler em paz se tivermos a sorte de sairmos deste inferno com vida”. Dias depois, vamos vê-lo numa operação na região de Caresse. Não houve um único tiro, não encontraram traço de presença humana.

De Março para Abril, durante um mês, não há nenhum registo no diário. Mas em 16 de Abril ele informa-nos que seguiu numa patrulha de reconhecimento em direção a Sare-Uale, junto à fronteira do Senegal e voltam por Cambaju, nada a registar. A 22, dá-se o seu batismo na igreja de Bafatá, celebrou um padre franciscano que lhe disse: “Tenho a fé que tudo há de correr bem”. Em 9 de Maio vem a primeira notícia de uma mina anticarro, o 3º pelotão saiu em patrulha de reconhecimento, com destino a Sitató, foram 3 Unimogs e um jipe, vários militares ficaram feridos. E temo-lo agora a caminho de Sanjabará(1), nova mina anticarro, não houve sinistrados. Ele escreve: faz hoje um ano que cheguei à Guiné. No dia seguinte recebe uma carta da noiva a informá-lo que o casamento se vai realizar no dia 26 de Maio, na Igreja Matriz da Vila de Sines. A 27, emocionado, descreve o que se terá passado em Sines: “Quis o destino que à mesma hora em que se realizava o meu casamento eu encontrar-me a combater na região do Caresse. Nessas horas de muito sofrimento não tive tempo para pensar que a minha futura esposa se encontrava no altar da igreja, na presença do padre Joaquim Ferreira de Sousa".

Mais um mês de silêncio no diário, a 26 de Junho a CCAÇ 674 parte para uma operação em Sarinháco(2).

(Continua)

Notas:
(1) - Sare-Jambara
(2) - Sare-Nhaco
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10134: Notas de leitura (378): O Meu Diário, Guiné - 1964/1966, CCAÇ 674, de Inácio Maria Góis (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 11 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10142: Notas de leitura (379): "A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial que não se apagam", de Mário Beja Santos (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P10147: Parabéns a você (449): António Tavares, ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912 e Rogério Ferreira, ex-Fur Mil da CCAÇ 2658/BCAÇ 2905

Para aceder aos poste dos nossos camaradas António Tavares e Rogério Ferreira, clicar nos seu nomes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10143: Parabéns a você (445): António Dâmaso, Sargento-Mor Paraquedista (BCP 12) na situação de Reforma

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10146: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (36): Recordando o inesquecível amigo João, ex-1.º Cabo Mecânico da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4514/72

1. Comentário do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, deixado no poste P10119, lembrando o seu amigo João, ex-1.º Cabo Mecânico da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4514/72 (Fajonquito):

Caro Eduardo Ferreira,

Gostei de ler estas recordações das crianças de Mansambo em que me revejo inteiramente.

E lembrei-me do meu último amigo, o João, 1.º Cabo Mecânico, que pertenceu à última Companhia (BCAÇ 4514/72) que passou por Fajonquito (sector de Contuboel, região de Bafatá).

Quem o quisesse ver devia ir à sua oficina, onde passava o tempo a construir e a reconstruir os dois Unimogs, uma Berliet e uma velha GMC, herdados das anteriores Companhias.

O João fez parte do pelotão que devia entregar o aquartelamento ao PAIGC em Setembro de 1974. Muito amigo e voluntarioso tinha prometido oferecer-me a sua cama de tropa, mas era sem contar com as artimanhas dos guerrilheiros e novos senhores do país que, tão logo chegaram, puseram trancas (guardas) na porta d’armas e proibiram o acesso ao quartel.

Na véspera da sua partida, contornei a porta e os arames e enfiei-me lá dentro, o João estava à minha espera, comovido mas receoso com a minha presença. Ele sabia que eu viria, de qualquer maneira. Mandou-me subir para a viatura e pôs-se ao volante, atravessamos a porta d’armas sem parar, os guardas olharam, mas não puderam reagir, a tempo.

Ainda hoje, são visíveis as marcas deixadas nos zincos da nossa casa, pelo portal traseiro, do Unimog que manobrava para deixar na nossa varanda o espólio que trazia ao seu pequeno amigo: Um pequeno colchão de tropa, já negro de tanto uso e dois armários feitos de caixas de madeira, daquelas onde vinham batatas da metrópole.

Toda a família estava presente para assistir à despedida do nosso amigo branco. O João, homem tímido e parco em palavras, também, aproveitou para se despedir dos meus pais e da sua lavadeira que era, nem mais nem menos, a minha própria Irmã, mas que ele conhecia de longe, pois quem tratava de trazer e levar a roupa do quartel era eu e não a menina, quase adolescente.

No fim, o João, pesaroso e o nariz vermelho, disse-me:
- Olha rapaz, desculpe, não foi possível trazer a cama de ferro.

- Não era importante, amigo João, de qualquer modo, não ficaria com ela. Após a tua partida, decidiram entregar o colchão ao nosso pai maior, ou seja, ao irmão mais velho do meu pai, único local seguro contra a argúcia e malandragem dos agentes do PAIGC. Os armários serviram de lenha para cozinhar o mata bicho do dia seguinte. Era material do inimigo, muito perigoso para os tempos que corriam.

E, eu me lembro sempre desse dia, tendo guardado dentro de mim a recordação do gesto e a postura de um homem íntegro, amigo e irmão que cumpriu a sua palavra, à risca.

Certamente, também, assim sentiram as crianças de Mansambo... de Mansabá... de Cuntima... de Bajocunda... de Canjambari... e de muitos outros lugares da Guiné que, entretanto, se foram tornando homens e sobrevivem nesta terra à deriva, sem rumo nem destino.

Um dos meninos de Mansabá que frequentava a Messe de Sargentos. Apesar do tempo já passado, julgo que se chamava Braima. Que será feito dele?
Foto e Legenda de CV

Isto é nostalgia? - Sim, uma nostalgia saudável e humana e que brota de dentro do coração dos homens bons e valorosos.

Um grande abraço para si e a todos os amigos desta Tabanca.
Cherno Baldé
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano


(*) Sobre a 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4514/72:

(i) Mobilizada em Tomar no Regimento de Infantaria n.º 15;
(ii) Unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 4514/72;
(iii) Comandada pelo Capitão Miliciano de Infantaria Ramiro Filipe Raposo Pedreiro Martins
(iv) Assumiu a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 3549, em 15 de Junho de 1974
(v) Veio a iniciar o deslocamento para Bissau a partir de 30 de Agoosto de 1974,
(vi) Um pelotão efectuou a desactivação e entrega, ao PAIGC, do aquartelamento em 1 de Setembro de 1974.

Guiné 63/74 - P10145: Tabanca Grande (348): Horácio Neto Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1911 (setembro de 1967 / maio de 1969) e BCAÇ 2852 (Bambadinca, maio/dezembro de 1969), nascido Maçarico, natural de Ribamar, Lourinhã, grã-tabanqueiro nº 565...



Lourinhã > Ribamar > Praia do Porto Dinheiro >  Restaurante O Viveiro, de Henrique e Cristina Silvério > 28 de junho de 2012 > O Horácio Fernandes, nascido em Ribamar em 1935... O nosso novo grã-tabanqueiro, registado sob o nº  565...




Lourinhã > Ribamar > Praia do Porto Dinheiro >  Restaurante O Viveiro >  28 de junho de 2012 > O Horácio Fernandes e a Milita, que vivem no Porto... Ela é de Fafe. O casal têm 3 filhos, Ana , Joana e Ricardo (que vive em Inglaterra).


Lourinhã > Ribamar > Praia do Porto Dinheiro >  Restaurante O Viveiro >  28 de junho de 2012 > A Vilma e o João Crisóstomo, oficiosamente noivos (com festa de arromba prometida, para abril de 2013, em Nova Iorque)




Lourinhã > Ribamar > Praia do Porto Dinheiro >  Restaurante O Viveiro > 28 de junho de 2012 > O Luís Graça e a Vilma, falando em francês... A Vilma, que é eslovena, vive em Paris... mas conheceu o João Crisóstomo em Londres, há muitos anos...

Recorde-se que a Eslovénia (capital: Liubliana; superfície: c. 20 mil km2; população: c. 2 milhões; língua oficial: esloveno; moeda: euro) é um país balcânico, do sudeste da Europa, tendo feito parte sucessivamente de: (i) império romano, (ii) império bizantino, (iii) república de Veneza, (iv) ducado da Carantania (o actual norte esloveno), (v) sacro império romano-germânico, (vi) monarquia de Habsburgo, (vii) império austríaco (conhecido mais tarde como Áustria-Hungria), (viii) estado dos Eslovenos, Croatas e Sérvios, (ix) reino da Jugoslávia, e (x) república socialista federativa da Jugoslávia (1945-1991), até finalmente (xi) se tornar independente, em 1991, e passar a integrar a União Europeia (em 2004).




Lourinhã > Ribamar > Praia do Porto Dinheiro > 28 de junho de 2012 > Restaurante O Viveiro, de Henrique e Cristina Silvério, telef. + 261 422 197 > Uma caldeirada que enche o corpo e a alma, diria o nosso gourmet Eça de Queirós, quer dizer satisfaz os seis sentidos: gosto, tacto, olfacto, vista e ouvido (comida ao som do mar)... além do pecado da gula!... Amigos e camaradas: vão lá e digam que vêm recomendados, da parte do professor Eduardo Jorge e da Tabanca Grande...




Lourinhã > Ribamar > Praia do Porto Dinheiro > 28 de junho de 2012 > Convivio > Da esquerda para a direita, (i) em primeiro plano: o Eduardo Jorge Ferreira, nosso anfitrião, guia e cicerone  (apontando o local onde, nas arribas da praia, foram descobertos fósseis da época do Jurássico Superior - c. 150 milhões de anos - que levaram à identificação, em 1999, de uma nova espécie de dinossauro saurópode, o Dinheirosaurus lourinhanensis), e ainda o João Crisóstomo; (ii) em segundo plano, a Vilma, o Horácio Fernandes, a esposa Milita, a Alice Carneiro e a Carmo, irmã do Horácio...


1. O convívio já estava agendado desde 22 de maio de 2012,  altura em que conheci pessoalmente, em Lisboa, o João Crisóstomo (*). Faltou o Beja Santos a este encontro oeste-estremenho e multiétnico, sugerido por mim e entusiasticamente apoiado pelo João Crisóstomo. E faltou porque não usa telemóvel, e desencontrámo-nos na cidade grande, no Campo Grande... Fiquei de lhe dar uma boleia...

Por seu turno, o João cumpriu a promessa, feita a mim, de trazer com ele o seu grande amigo de infância Horácio Fernandes, meu parente, que eu não via há 53 anos, ou seja desde a sua missa nova, em 15 de agosto de 1959 (**)...

De quem estou a falar ? Do antigo padre franciscano e ex-alferes miliciano capelão do BART 1913 (Catió, 1967/69), autor do livro Francisco Caboz: a construção e a desconstrução de um Padre (Porto, Papiro Editora, 2009, 187 pp.).

Na realidade o encontro pretendia atingir três objetivos: (i) conhecermos a noiva do João Crisóstomo, a Vilma, e ao mesmo tempo prima... do Mário Beja Santos (uma história comprida demais para se contar aqui e agora); (ii) abraçar o meu primo Horácio e conhecer a sua esposa e companheira, a Emília (ou Milita),  mãe dos seus três filhos; e (iii) juntar o João e o Horácio, em Ribamar, terra a que os prendem muitas raízes, memórias e afetos... (O Horácio é de lá, o João passava lá férias, na "casa do Ti João Patas").

Os objetivos foram plenamente cumpridos, sob a superior e competentíssima direção do Eduardo Jorge (***), com exceção da apresentação, nesse dia, da Vilma ao primo Mário... Por outro lado, a Vilma teve de seguir para o aeroporto mais cedo - por voltas das 15h30 -  por causa da greve, entretanto, cancelada,  do pessoal da ANA...

Matei as saudades que tinha de matar, adorei falar com a minha nova amiga Vilma, conheci a Milita que é a doçura em pessoa, revi e abracei com emoção o meu primo, amigo e camarada Horácio Fernandes, revi a Carmitas, partilhei a alegria do João, do Eduardo e da Alice.

Foi um dia curto, mas memorável... Além disso, proveitoso para a nossa Tabanca Grande: o Horácio Fernandes aceitou, de bom grado, aceitar o meu convite e entrar pela porta grande da Tabanca Grande, autorizando-me além disso a publicar a parte do seu livro referente à passagem pela Guiné, como capelão militar...

A prova mais espantosa de que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, fui encontrá-la neste convívio em Porto Dinheiro... Conversa puxa conversa, vim a saber através o Horácio esta coisa espantosa: de setembro de 1967 a maio de 1969, ele está em Catió,  no BART 1913... Em maio de 1969, este batalhão acaba a sua comissão e regressa a casa... Como o Horácio é de rendição individual, e ainda lhe faltam alguns meses para terminar a sua comissão, é colocado em Bambadinca, num batalhão que não tinha capelão... Ora este batalhão não é nem nada mais nada menos o BCAÇ 2852 (1968/70)...

Em 28 de maio de 1969, Bambadinca fica ferro e fogo, o Horácio aguenta, estoicamente, o ataque... Eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 estávamos a chegar a Bissau no T/T Niassa... Em 2 de junho, passei por Bambadinca a caminho de Contuboel. Menos de dois meses depois, a minha companhia é colocada em Bambadinca, setor L1, como subunidade de intervenção. Nem eu nem o capelão Horácio Fernandes nos haveremos de encontrar nos meses em que estivemos no mesmo sítio, comendo e dormindo a escassos metros um do outro...

Eu por lá ficarei até março de 1971. O Horácio só até dezembro de 1969, altura em que foi acometido pelo paludismo e teve de ser evacuado, de heli, para o HM 241, em Bissau. Razões possíveis para o nosso desencontro em Bambnadinca: (i) eu tive um 2º semestre de 1969 de intensa atividade operacional; (ii) não ia à missa; (iii) já não via o Horácio desde 1959; (iv) o capelão passava boa parte do seu tempo das unidades de quadrícula do setor L1...

Mesmo assim, não me posso perdoar o facto de, a milhares de quilómetros de casa, nunca ter sabido da presença, em Bambadinca, de um conterrâneo meu, para mais meu parente...


O Horácio é hoje um pai estremoso e um avô babado... Tem, além disso,  um CV profissional e humano que o honra, a si e aos seus: (i) padre (franciscano) e professor dos três níveis de ensino (básico, secundário e superior); (ii) orientador pedagógico, (iii) inspetor superior coordenador na Inspeção Geral da Educação: (iv) licenciado em história (Universidade do Porto); (v) mestre em Ciências da Educação (Universidade do Porto); (vii) doutor em Ciências da Educação (Universidade de Santiago de Compostela); (viii) autor de diversos livros didáticos na área das ciências sociais e humanas...

Sinto-me particularmente feliz e honrado por poder ser eu a apresentá-lo à Tabanca Grande e batisá-lo como grã tabanqueiro, sob o nº de registo 565. Sê-bem vindo, camarada! Vamos recuperar meio século de distância...

PS - Eu e o Horácio somos parentes... Porquê ? As nossas bisavós (paternas), Maria Anunciação e Maria Augusta,  eram irmãs, nascidas na década de 1860, em Ribamar, Lourinhã... Os seus pais, nascidos por volta de 1830, eram Manuel Filipe e Maria Gertrudes... Os seus avós, nascidos no virar do séc. XVIII, eram Joaquim Filipe e Rosa Maria, pelo lado paterno, e Joaquim Antunes e Maria Rosa, pelo lado materno...

A nossa árvores genealógica (a grande família Maçarico) remonta à época dos Descobrimentos..., quando os nossos antepassados eram arrebanhados como pau para toda a obra e postos ao serviço das caravelas e das maus que demandavam os novos mundos que Portugal dava ao mundo... Incapazes de viver longe do mar, espalham-se hoje ao longo da costa 
portuguesa, em particular em dois núcleos, Ribamar-Lourinhã e em Mira, para além da diáspora (EUA, Canadá):


 (...) "Ribamar na época dos Descobrimentos era já um importante centro de construção naval, tendo ainda existido até cerca de 1930 um estaleiro que situava no local onde está hoje a escola primária. E já nesses tempos idos os Maçaricos eram reconhecidos como especialistas nessa área tendo acompanhado diversas expedições navais. E provavelmente estabeleceram-se também noutras localidades onde existiam estaleiros, possível explicação para haver outras famílias Maçarico espalhadas pelo Pais, como por exemplo em Mira". (...)

(*) Sobre este nosso primeiro encontro, em Lisboa, escreveu o João Crisóstomo, em férias, o seguinte

(...) 25 de maio de 2012


Meus caros Beja Santos e Luis Graça: Costuma-se dizer que a vida é como um copo, meio cheio/ meio vazio, e que tudo depende de cada um de nós saber e querer escolher como a encarar. No meu caso tem sido bastante fácil escolher.... : Vocês os dois são mais dois elos de ouro que a vida me presenteou a tornar a minha vida numa experiência que eu gostaria pudesse ser de todos. Não seria perfeita (que também tenho comido muitas vezes o pão que o diabo amassou) mas no seu conjunto não me posso queixar, antes pelo contrário.

Os teus livros, e  a tua amizade, meu caro Beja, têm sido como uma droga aditiva.... Leio, releio, vivo.... E quando apanho "mais um"... como este que me ofereceste agora,  "A viagem do Tangomau", não te sei explicar... mas dou muitas graças ao Senhor (eu sei que,  como eu,  tu és crente e portanto sei que compreendes) por te ter encontrado, por seres agora de alguma maneira parte importante da minha vida.

E o mesmo posso dizer de ti,  meu caro Luís Graça... O almoço no dia 22 contigo e com o Beja e as horas que se seguiram foram uma "experiência/vivência" que não vou esquecer . Já te "conhecia" um pouco pelo teu blogue. Os momentos que passei contigo vieram "esclarecer' que és exactamente o que eu gostaria de encontrar/confirmar. E estou-te duplamente grato porque através do teu blogue eu - e creio que muitos outros camaradas  sentirão o mesmo - me fazes recordar, viver e fazer sentir duma maneira tão grande esta irmandade a que a nossa experiencia na Guiné quase nos obriga.

Obrigado, muito mesmo, meus caros. Espero/gostaria - e se tal acontece isso já é recompensa grande para mim - que este seja sentimento recíproco . E não tenho dúdidas que assim sucede pois assim o têm dito e mostrado. Um abraço grande pois de gratidão e muita amizade, sincera e desinteressada do João. (...)




(**) Mail de João Crisóstomo, com data de 24 de maio último:

 (...) Caro Luís Graça: Primeiro: Um abraço grande de gratidão pelos momentos de emoção e satisfação imensa que me proporcionaste há dois dias. Como te expliquei e já sabias, não sou bom em "nets" e todas as coisas de Internet. Mas farei esforço seerio para me familiarizar melhor, especialmente com o teu/nosso blogue com o teu nome e camaradas da Guiné.


Como esperava não foi nada difícil convencer o Horácio a vir a Ribamar no dia 28 de Junho. Podes contactar o camarada  e amigo que me falaste [, o Eduardo Jorge Ferreira,] e que pode começar a organizar..... Parto para Paris dia 29 de Maio, mas estarei de volta bem a tempo para esse encontro...

Não falamos num pormenor importante:  as nossas "caras metades'... Acredito que é pergunta desnecessária, mas.... creio que como eu vocês se sentem mais completos com as nossas metades melhores presentes... Por mim, depois de tudo o que lhes contei,  creio que não duvidam que a minha Vilma vai estar comigo (...)


(***) Mail, com data de 24 de maio p.p., que enviei ao Eduardo Jorge:

Eduardo:

Tenho uma proposta (indecente) para te fazer... Nas tuas costas, propus um encontro em Ribamar, Porto Dinheiro, Valmitão ou arredores, onde  um grupo de amigos e camaradas da Guiné se pudesse juntar para "matar montes de saudades"... Marcámos um dia: 28 de junho, 5ª feira... Lá estarei nem que chova pedras e picaretas...

Tu és um "incontornável", como régulo dessas tabancas todas... Mas a surpresa é juntarmos o João Crisóstomo (que é da tua terra adotiva, e de quem seguramente já ouviste falar) e o Horácio Neto Fernandes, meu primo, que não vejo desde a sua missa  nova (1959)...

Eles os dois - como o mundo é pequeno! - são dois grandes amigos de juventude... De certo que o conheces ou conheces a família... Ele é luso-americano, nova iorquino de gema, um "português das américas", um ser de eleição, e uma figura pública por ter organizado várias campanhas em defesa de boas causas (Foz Côa, Timor, Aristides Sousa
Mendes...). Esteve na Guiné por volta de 65/66, tal como Horácio  (67/69), eu (69/71), tu (73/74) (...)  Aliás, não há ninguém que este homem não conheça no mundo (é amigo pessoal do Chanana, do Ramos Horta, só para citar gente do outro lado do mundo)...

Diz-me se alinhas, qual a tua disponibilidade para esse dia, etc. Ele depois volta para os States... Podes ler aqui tudo sobre ele, J.C.:

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Jo%C3%A3o%20Cris%C3%B3stomo

 (...) Viste o poste sobre o Horácio ?

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2012/05/guine-6374-p9941-o-mundo-e-pequeno-e.html


(****) Último poste da série > 4 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10111: Tabanca Grande (347): António Borié, ex-1º cabo cripto, Cmd Agrup nº 16, Mansoa, 1964/66, há 40 anos nos EUA... Passa a ser o nosso grã-tabanqueiro nº 564

Guiné 63/74 - P10144: In Memoriam (121): António Machado, 1.º Cabo Especialista MARME, e António Rodrigues, Capitão Pilav, que pereceram num acidente de helicóptero no dia 12 de Julho de 1969, em Bafatá (Jorge Narciso)



1. Homenagem do nosso camarada Jorge Narciso (ex-1.º Cabo Especialista MMA, Bissalanca, BA 12, 1968/69) aos seus camaradas da FAP, António Machado, 1.º Cabo Especialista MARME e António Rodrigues, Capitão Pilav, que pereceram num acidente de helicóptero no dia 12 de Julho de 1969 em Bafatá:


In Memoriam 

Cap. Pilav António Rodrigues 
1.º Cabo Especialista MARME António Machado 

Mortos em acidente com um heli canhão em 12.Jul.69 em Bafatá 

Em Fevereiro de 2010 e a propósito dum Poste da Tabanca Grande acerca da captura do Cap Peralta no corredor do Guileje, fiz um comentário posteriormente transformado em Poste (P5756) e também publicado no Blogue dos Especialistas da BA12 (VOO 1462) onde em determinada altura e por analogia com um facto relacionado com o helicanhão ali referido, escrevi:

… este voo no canhão foi para mim perturbante, pois que uns meses antes (Julho/meu 3º mês de Guiné) estive também para voar (nesse caso por experiência passiva que, para sorte minha, não concretizei) no retorno duma outra Operação em Galomaro, voo esse com um fim trágico, traduzido no despenhamento do heli (a que assisti) ocorrido em Bafatá, com a morte do meu comandante: Major (a titulo póstumo) Rodrigues (Piloto) e dum camarada de todos os dias, o Machadinho - como lhe chamávamos - , Mecânico Armamento/Apontador.

Um dia destes tentarei fazer o relato que me for possível desta outra dramática ocorrência…


E no sentido de “pagar” esta divida, por diversas vezes o tentei, de facto, mas por este ou aquele motivo o resultado sempre se me pareceu insatisfatório. Com o passar do tempo e à guisa de autodefesa, foi-se-me adensando a dúvida se tal falha se resumia a uma evidente falta de engenho e arte, ou se o registo era de tal forma profundo, complexo e pessoal que seria mesmo compreensivelmente transmissível.

Assim arrumado, que não escondido, numa gaveta da memória, eis que um clique o fez emergir e duma forma instintivamente reactiva soltou o registo que se foi escorreitamente compondo.

Concretizando:

No final do passado mês de Maio, o Virgínio Briote (co-editor da Tabanca Grande ), sabedor através do Victor Barata (editor principal do BA12), que eu poderia dar algum testemunho sobre este assunto, contactou-me referindo que a filha do Cap Rodrigues, de quem é (ou foi) aluno, por sabedora da sua relação com os assuntos relativos à Guerra da Guiné, lhe referiu o acidente que vitimou o Pai, manifestando interesse em saber mais pormenores, nomeadamente da parte de pessoas que tenham lidado de perto com ele.

E como atrás refiro, duma maneira quase automática as memórias foram fluindo, os dedos foram-nas traduzindo para o teclado e a resposta, antes tantas vezes tentada, ali estava plasmada no monitor. E assim praticamente sem revisão a enviei ao Virgínio Briote para que da forma que melhor entendesse dele desse conta à Dra. Alexandra.

Recebido o texto instou-me o Virgínio a que o propusesse para publicação, tal como estava, ao Especialistas da BA12. Ponderado o assunto revisto o que escrevi, decidi seguir o conselho e com a dilação até esta data para que o mesmo se assumisse como homenagem aqueles companheiros, recebi o assentimento não só do Victor Barata como do Carlos Vinhal da Tabanca Grande a quem coloquei a mesma proposta.

Assim e apenas com correcções no que ao português (grafia pré acordo), diz respeito e com uma melhor precisão de alguns dos factos, aqui vai o citado texto (entenda-se como de resposta à citada solicitação)

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Em ambas as fotos o Cap Pilav Rodrigues é o primeiro à direita

Fotos: © Fernando Caroto e Jorge Félix


Resumindo o relato dos factos à expressão mais simples, poderia simplesmente dizer que:

1. No regresso de uma operação com tropas paraquedistas, com base em Galomaro, os 6 helis participantes (5 de transporte + 1 canhão) dirigiram-se a Bafatá para reabastecimento, antes do regresso a Bissau,

2. Neles viajavam, como habitualmente nestes casos, para além dos 6 Pilotos, uma equipa de manutenção composta por 4 mecânicos da linha, um apontador de canhão e uma enfermeira paraquedista

3. As condições atmosféricas, que já não eram boas à saída de Galomaro, agravaram-se entretanto significativamente, nomeadamente com forte chuva.

4. Chegados a Bafatá, aterraram normalmente cinco dos helis, enquanto o do canhão, na manobra de aproximação, embateu com o rotor numa das espias de aço da antena de comunicações implantada junto à pista, tendo-se despenhado e sequentemente incendiado no embate com o solo.

5. Nele assim pereceram os:
Cap PilAv Rodrigues, comandante da Esquadra 122 (Alouette III) e o
1º Cabo Especialista MARME António Machado, apontador do canhão.


Disparada assim factualmente a "chapa" instantânea do sucedido, importa aduzir agora algumas reflexões pessoais fundadas numa memória que neste caso se mantém impressivamente nítida.

* Eu era um dos membros da equipa de manutenção, sendo talvez esta, com os meus 2 meses e meio de Guiné, a primeira operação deste tipo em que participei.

* Havendo outras modalidades de realização, nesta operação de um só dia, os helis saíram de Bissau de manhã, dirigindo-se a Galomaro, local onde estavam já colocados os elementos do BCP que a iam realizar.

* Deixada a equipa de manutenção e a enfermeira, de imediato embarcaram os "Paras", não me recordo se numa ou duas levas, para serem largados na Zona previamente definida, acção sempre protegida pelo helicanhão.

* Regressados à base da operação, os helis mantinham-se em alerta, ou para evacuações, ou para eventuais recolocações das tropas noutros locais da zona.

* Terminada a operação e em acção inversa à inicial, foram recolhidas as tropas, salvo erro novamente para Galomaro para seguirem por via terrestre para Bafatá.

* Por não se ter registado a necessidade de evacuações os helis mantiveram-se aterrados por um período largo e o pessoal, apesar de em alerta, ia naturalmente convivendo para matar o tempo.

* Em conversa com o Machado (apontador) sugeri a hipótese de, no regresso, voar no canhão, apenas como mera experiência. E dando consistência a essa ideia, com o seu apoio, foi pedida autorização ao Cap Rodrigues, que chefiava naturalmente a missão e coincidentemente pilotava o canhão, que de imediato deu o seu consentimento.

* Terminada a operação, era necessário embarcar, para além das ferramentas e outros meios de manutenção, também uma caixa de munições do canhão, que servia de reforço em caso de necessidade.

* E assim aconteceu, tendo eu e o Machado transportado manualmente a citada caixa para o heli n.º 1 que se encontrava no extremo contrário do alinhamento relativamente ao canhão, logo a uma distância talvez superior a 50 metros.

* Ali chegados e embarcada a caixa diz-me o Machado:
- Já podes ir. - Eis quando a chuva que tinha começado a sentir-se uns momentos antes se intensificou, tendo-lhe eu respondido com um sorriso amigável mas "meio sacaninha":
 - Com esta chuva fica para a próxima vai antes tu - e entrei nesse heli, enquanto ele correndo se dirigiu ao canhão.

* Em formação mais ou menos ordenada lá seguimos até Bafatá.

* Ali já aterrados e alinhados os 5 helis de transporte na placa fronteira à antena de rádio, eu e outros tripulantes assistimos a aproximação do canhão, que voava afastado da restante formação, fazer a aproximação rodeando a antena pelo lado contrário, ao que nos encontrávamos, e... embater com o rotor numa das suas espias de sustentação, já muito próximo do solo.

* As fortíssimas sensações originadas pela visão desse momento jamais as esquecerei:

- O rotor (corpo do conjunto das 3 pás) soltou-se da estrutura, transformando abruptamente o ruído característico do voo do heli num silêncio esmagador.

- O corpo do heli rodou no sentido longitudinal enquanto, como que em desesperante câmara lenta, se despenhava junto à base da antena.

- Instintivamente alguns de nós correram para o local do impacto, saltando mesmo eu e um outro companheiro o arame farpado que protegia a área da antena.

- Fomos travados pelo quase imediato incêndio do aparelho e consequente deflagração das munições (balas de 20 mm, explosivas incendiárias) num matraquear que se prolongou por um período que parecia não ter fim.

- Quando finalmente cessou, permitindo-nos levantar a cabeça, a desgraça estava completamente consumada numa amalgama de destroços que envolviam os corpos adivinhadamente calcinados.

- Última e não menos forte sensação, a da recordação da minha última conversa com o Machado e o imaginar-me agora no seu lugar.

Passada essa terrível noite em Bafatá, regressámos na manhã seguinte para Bissau, logo após o embarque dos corpos, entretanto resgatados, no Dakota que os transportou para a Base.

O velório realizou-se nessa mesma noite na capela da BA12, nele participando por turnos toda a Esquadra 122. Lembro-me perfeitamente de durante o meu turno ter ficado de frente para a viúva do Cap Rodrigues de quem julgo ainda guardar a expressão amargurada.

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À margem do relato algumas notas de rodapé que julgo necessárias:

- Todos os acidentes possuem sempre algo de incompreensível, nomeadamente quando de meios aéreos se trata, com o conjunto de variáveis envolvidas (mecânicas, humanas, metereológicas, etc.) e a que só uma investigação e apuramento rigoroso de dados pode dar respostas mais ou menos conclusivas.

- O acima relatado não é naturalmente excepção, o testemunho que transmito, apesar da fidelidade da observação directa, não pretende de nenhuma forma retirar conclusões quanto a eventuais causas, que seguramente o inquérito realizado pela FAP e respectivo relatório (que não conheço), sistematisadamente terão feito.

- O que indelével e tragicamente fica é a perda efectiva, tão mais sentida quanto mais dramática é a forma e mais próximas nos são as vítimas.


Para eles o meu singelo preito de homenagem:



Ao Cap. Rodrigues a quem, apesar do breve tempo de convivência e voo, deu para perceber ser não só um excelente Piloto como um homem que mantinha com os que comandava uma relação de enorme cordialidade e respeito que eram aliás generalizadamente recíprocos. E que aqui quero partilhar com a Dra. Alexandra e sua família.




Ao Machadinho pela sua alegre e descomprometida camaradagem dos nossos 20 anos, que, na perda, algum insondável desígnio impediu eu tivesse tomado o funesto lugar e naturalmente à sua família independentemente de desta não tomarem conhecimento.




E finalmente alguns agradecimentos:

- Ao Virgínio Briote e à Dra. Alexandra por terem estado na base desta minha, digamos, “catarse”.
- Ao Jorge Félix e Fernando Caroto, meus companheiros e contemporâneos na Guiné, que cederam as fotos.
- Ao Edgar, co-testemunha e que comigo saltou o arame farpado da antena, com quem em troca de impressões melhor precisei alguns dados aqui transmitidos.

Jorge Narciso
Especialista MMA – BA 12 / Guiné 69/70
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10093: In Memoriam (120): Cor inf ref e escritor Joaquim Evónio Rodrigues de Vasconcelos (Funchal, 1938 - Lisboa, 2012), comandante das CCAÇ 727 (1964/66) e CCAÇ 2316 (1968/69) (António Costa / Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P10143: Parabéns a você (448): António Dâmaso, Sargento-Mor Paraquedista (BCP 12) na situação de Reforma

Para aceder aos postes do nosso camarada António Dâmaso, clicar aqui
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10132: Parabéns a você (444): Adriano Moreira, ex-Fur Mil Enf.º da CART 2412; Arménio Estorninho, ex-1.º Cabo Mec Auto da CCAÇ 2381 e Joaquim Peixoto, ex-Fur Mil da CCAÇ 3414

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10142: Notas de leitura (379): "A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial que não se apagam", de Mário Beja Santos (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 10 de Julho de 2012:

Meus amigos,
Acabei de ler há já umas semanas, a "Viagem do "Tangomau" do Mário Beja Santos.
A meu ver, é um livro de arromba, com muita força, muito vigor e, sobretudo, muito sentimento, na medida em que, sendo como é, uma obra autobiográfica, percebe-se que está ali o grande acontecimento da sua vida, o que, aliás, também o foi para quase todos nós, saídos da pacatez do Portugal dos anos 60 e atirados, sem saber como nem porquê, para uma África desconhecida, que tínhamos dificuldade em localizar no mapa-mundi, mas que alegadamente era nossa. Por outro lado, para quem conheça minimamente o Tangomau, não é novidade para ninguém que os dois anos de comissão na Guiné-Bissau foram um dos eventos mais marcantes da sua vida. Com efeito, ele ali está, de corpo e alma, da primeira à última página. A sua perspectiva própria sobre a Guiné e os guineenses é uma visão muito humana, empenhada e, porque não dizê-lo, romântica, nalguns aspectos, até, de certo modo, mitificada.

O percurso do Tangomau é o do alferes-menino, trabalhador-estudante, urbano e culto que sai de Lisboa para, depois de várias etapas em Mafra, Ponta Delgada e Amadora, enfrentar em lugares ignotos da África Ocidental, uma realidade completamente desconhecida, em contacto com outras gentes, outros povos, outras culturas e, sobretudo, confrontar-se com a duríssima realidade da guerra, transformando-se num homem, na verdadeira acepção da palavra. É uma metamorfose que se processa ao longo de 3 anos de tropa dos quais dois de Guiné. Depois, já sexagenário, são as recordações do passado e a inevitável peregrinação aos locais de outrora e ao contacto com as gentes de então, que sobreviveram à passagem do tempo.

Porquê voltar? É o tal bichinho que de vez em quando nos morde e que não controlamos. A metamorfose completa-se: de menino a homem, de homem maduro a sénior e neste processo temos um mecanismo interveniente, despoletador e omnipresente - a Guiné e as suas gentes. Acresce que o livro está muito bem escrito. O discurso final de despedida é uma peça notável de oratória que merece ser lida e relida, uma pequena jóia, todavia não é crível que tenha sido proferido dessa forma, pois seria incompreensível para o auditório a que se destinava.

Em suma, é uma leitura que seduz e prende continuamente a atenção do leitor - para mais para quem, como nós - a "geração sacrificada" e já esquecida da grande maioria dos lusitanos -, vivemos situações semelhantes. As descrições de N'banké/Tangomau da Bissau actual e do próprio país pecam, a meu ver, por defeito, porquanto a realidade ultrapassa em pinceladas mais negras qualquer descrição possível. O país na prática não existe. É virtual. E a verdade tem de ser dita doa a quem doer, mas tal tarefa pode talvez ser confiada a outros que se debrucem sobre a Guiné-Bissau actual e sobre o gigantesco embuste que representaram 38 anos de violência contínua e de consequente subdesenvolvimento.

Alguns pontos merecem ser analisados e criticados. Detecta-se uma certa "overdose" no que concerne as descrições exaustivas das armas e mecanismos das mesmas, quando da recruta e especialidade do Tangomau em Mafra. Eu sei, de conhecimento directo, que o Tangomau passou alguns fins de semana no Convento, por não conseguir dominar completamente essas matérias esotéricas, mas, com a devida vénia e sem qualquer demérito para o resultado final que é excelente, há talvez algum excesso descritivo. A profusão de nomes de pessoas e de lugares é de tal ordem que confunde um pouco o leitor (já o dr. Leopoldo Amado o tinha referenciado, de forma simpática, note-se bem, quando da apresentação da obra). O autor podia, por um lado, reduzir a identificação das pessoas e, por outro, apresentar um mapa - ou vários - para que possamos orientar-nos no meio daquele emaranhado de aldeias e povoações, rios e bolanhas, florestas e savanas do Leste da Guiné. Eu que conheci o país, antes e depois da guerra, andei um bocado à deriva com certos lugares que não conseguia de todo em todo identificar.

Como nota final, as fotografias, em extra-texto, mesmo a preto e branco, ajudariam a situar melhor os eventos e as pessoas descritas. Eu fui um dos que disse "não vás," conhecendo como conheço, a Guiné-Bissau actual e as feridas não cicatrizadas do passado, mas o Tangomau foi.

O meu juízo final é, pois, muito, mas muito, positivo. É um livro indispensável em qualquer biblioteca sobre a guerra do Ultramar, colonial ou de libertação nacional - as designações ficam ao critério das opções político-ideológicas de cada um - e eu iria, mesmo, mais longe: a obra é relevante para uma estante de destaque sobre o Portugal contemporâneo, que a memória, não pode por forma alguma, apagar.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-alf. mil., de infantaria CCAÇ 2402)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10125: Notas de leitura (377): Massacres em África, de Felícia Cabrita (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10141: Em busca de... (197): À procura de camaradas da CCS e da CCAÇ 3547 do BCAÇ 3884 (Fernando Pereira Garcia Lopes)




 1. O nosso Camarada Fernando Pereira Garcia Lopes, ex-Sold. da CCAÇ 3547 do BCAÇ 3884, Contuboel – 1971/73, enviou-nos o seguinte apelo. 



À procura de camaradas



Envio-vos duas fotos, uma com camaradas de transmissões da CCS do BCAÇ 3884, em Bafatá e outra com camaradas da CCAÇ 3547 do BCAÇ 3884 (Contuboel). 

O meu nome é Fernando Pereira Garcia Lopes, estive em CONTUBOEL entre Maio de 1971 e 1973. 

Fui em rendição individual e procuro contacto de ex-camaradas com os quais nunca tive contacto depois de regressar. 

Espero que este e-mail me ajude a encontrar algum deles. 

O meu e-mail é: fpglopes@gmail.com 

Em ambas as fotos estou à direita. 

Desde já o meu obrigado. 



Bafatá > Com camaradas de transmissões da CCS do BCAÇ 3884 

Com camaradas da CCAÇ 3547 do BCAÇ 3884 (Contuboel) 

Mini-guião da Colecção Carlos Coutinho (2012) © Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 



Vd. último poste desta série em:

10 DE JULHO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10140: Em busca de... (196): Fur Mil Rânger Peixeiro da CCS/BART 2920 (Bafatá, 1970/72)


Bom dia amigos e camaradas, 

terça-feira, 10 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10140: Em busca de... (196): Fur Mil Rânger Peixeiro da CCS/BART 2920 (Bafatá, 1970/72)

1. Mensagem de António Tavares (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), com data de 5 de Julho de 2012:

Caro Vinhal,
A pedido de um camarada, ex-Furriel Mil. Rádio TRMS, no CTIGuiné, procura o contacto do ex-Fur. Mil. Ranger PEIXEIRO, homem das Operações e Informações da CCS/BArt.2920, de Bafatá, em 1970/72.

Desde já agradeço a colaboração no pedido através da Tabanca Grande.

António Tavares
Foz do Douro, 05.Julho.2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10122: Em busca de... (195): Informação sobre o Soldado Escriturário Carlos da CCAÇ 3476, Canjambari, Chugué, 1971/73 (Jaime Vieira)

Guiné 63/774 - P10139: Ser solidário (133): Conversas - Guiné-Bissau, dia 13 de Julho de 2012, das 21 às 23 horas, na Fundação Nortecoope em S. Mamede de Infesta - Matosinhos (José Teixeira / Tiago Teixeira)

1. Recebemos, em mensagem de hoje, do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), o seguinte convite, do qual damos conhecimento à tertúlia e leitores em geral:

C O N V I T E


As inscrições devem ser feitas neste endereço: https://docs.google.com/spreadsheet/viewform?formkey=dHFyTVZkbDJhRFRjYzQyS2x6aFM2ZkE6MQ#gid=0
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Julho de 2012 > Guiné 63/774 - P10112: Ser solidário (132): Fonte de água na Escola EVA de Djufunco (José Teixeira / AD)

Guiné-Bissau - P10138: Fauna & Flora (27): A cobra cuspideira (de seu nome científico Naja nigricollis Reinhardt)

 



A cobra cuspideira, aguarela do pintor português, naturalista, [António] Silva Lino (1911-1984), autor de "Serpentes do Ultramar Português". In: Garcia da Orta - Vol.III, nº 4 (1955), pp. 547-553.


1. Em complemento do poste P10135, da autoria do nosso camarada Augusto S. Santos, 9 de julho de 2012... E para exorcizar a nossa, dos primatas, em geral, e dos hominídeos, em particular, tradicional ofiofobia (medo patológico de serpentes)...

Aqui vão algumas características da cobra cuspideira (nome científico Naja nigricollis Reinhardt, 1843):

(i) Serpente muito robusta, alongada (comprimento: até 220 cm), de cauda comprida;  


(ii) podendo alargar o pescoço, em «capelo», sob a ação das costelas cervicais;

(iii) coloração geral variável: por cima negra, castanha ou olivácea e, por baixo, negra com ou sem faixas transversais amareladas ou róseas;

(iv) dentadura proteroglifodonte: dentes inoculadores sulcados, erécteis, mas não retroversáteis e situando-se na parte anterior do maxilar, sem outros dentes neste osso; 

(v) sinais da mordedura: dois pares de perfurações dilatadas, inoculadoras, ladeando duas filas de picadas, mais finas, dos dentes normais palatino-pterigóides;

(vi) a configuração do sulco dentário e a sua abertura permitem o lançamento do veneno a distância considerável;

(vii) veneno mortal, altamente neurotóxico; quando projetado e atingindo os olhos, produz ulcerações graves;

(viii) habita as regiões de savana,  de preferência às de floresta, manifestando maior atividade noturna;

(ix) é muito perigosa pela sua agressividade, a qual se manifesta, primeiro, pelo erguer da cabeça e parte anterior do corpo, com expansão do «capelo», seguido ou não de lançamento do veneno à distância de alguns metros e, depois, pela perseguição e ataque violento;


(x) reprodução por oviparidade.

(xi) alimentação: principalmente, batráquios.

(xii) distribuição geográfiva: África Intertropical, desde a Mauritânia ao Natal; encontra-se na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique, donde foi descrita a var. mossambica.


Fonte: Cortesia do sítio Triplov > Serpentes do ultramar português: reprodução de aguarelas do pintor Silva Lino; anotações de Fernando Frade e Sara Manaças. "Garcia da Orta", Lisboa, vol.III, nº 4 (1955), pp. 547-553.  

Triplov é também o sítio da revista (digital) TriploV de Artes, Religiões e Ciências, dirigida por Maria Estela Guedes (n. 1947, Britiande, Lamego), que viveu na Guiné entre 1955 e 1966, poeta, escritora e ensaísta, sendo investigadora no Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa.









Capa da separata dos Anais da Junta de Investigações Coloniais [JIC], Vol 1, Lisboa, 1946, contendo o "Relatório da missão zoológica e contribuições para o conhecimento da fauna da Guiné Portuguesa", por Fernando Frade (professor extraordinário da Faculdade de Ciências de Lisboa), com a colaboração de Amélia Bacelar (naturalista do Museu Bocage) e Bernardo Gonçalves (assistente investigador da JIC). Cortesia de Tripov > Fernando Frade > Missão zoológica da Guiné.

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4786: Fauna & Flora (26): Make Love, Not War, ou as cobras que morreram na guerra a fazer amor (Rui Silva)

Guiné 63/74 - P10137: Blogoterapia (212): Veterano, nostálgico? Sim, ai quem me dera ter outra vez vinte anos... mas saber o que sei hoje (António J. Pereira da Costa, cor art ref)


[Imagem acima: dois coronéis reformados, o pilav Miguel Pessoa, e o artilheiro António Costa. Infografia de Miguel Pessoa, a quem desejamos um rápido restabelecimento da sua saúde, depois do acidente que o levou ao hospital e à "faca"...]


1. Mensagem do nosso camarada António J. Pereira Costa, com data de 30 de junho passado, e em resposta à nossa última sondagem ("Um blogue de veteranos nostálicos da sua juventude ?"):


Assunto - Os Nostálgicos

Conheço alguns trabalhos de René Pélissier. A Biblioteca do Exército tem diversas obras suas. Identifico-me, sem dificuldade, com as ideias que expressa, especialmente no que toca aos antecedentes das “guerras de libertação” em África. Por isso resolvi responder à “sondagem”.

Creio que a minha primeira intervenção no blog versou o tema: “Quem somos nós?”. Queria “atabancar-me” bem e, por isso, considerei interessante definir o perfil do ex-combatente. Num texto de quatro páginas, procurei fazê-lo e as consequências, para mim, foram devastadoras. Felizmente, eu usava capacete…

O perfil que tracei poderá, até certo ponto, servir de contraditório à afirmação de Pélissier.

Aceito agora o desafio do Luís Graça e regresso ao tema, expondo o meu ponto de vista, depois de ter lido as considerações do historiador francês. O tempo que nos é dado e curto. Contudo, tratando-se de uma sondagem, a resposta terá de ser dada com brevidade.

Comecemos com a formação ou mentalização inicial de que fomos alvo, desde bem cedo, nos bancos das Escolas. Convém não esquecer que somos apenas o produto do meio que fomos criados, como dizia António Aleixo. Vivíamos num país desfasado dos padrões de vida europeus do tempo e cujas autoridades dificultavam o contacto com o “estrangeiro”. As diferenças que encontrávamos quando, por sorte, saíamos do país deixavam-nos admirados e invejosos.

Alimento, cada vez mais a ideia de que se tratava de um fenómeno sociológico previsível e previsto por vários visitantes (Henrique Galvão, entre outros,) e residentes naquelas terras, a quem os responsáveis não deram ouvidos e depois… As tensões entre os diferentes grupos sociais, as diferenças rácicas e as tensões acumuladas, ao longo de séculos (Ver René Pélissier) criaram as condições propícias para o sucedido. Chamo aqui a atenção para os textos antigos, que têm vindo a ser divulgados, descrevendo o Ultramar e nos quais, directa ou indirectamente, é possível descobrir as deficiências do colonialismo.

Fomos.

E sobrevivemos a dois traumas seguidos, por vezes separados por poucos dias ou horas até: o choque da chegada a uma cidade militar (e a um teatro de operações num país que, começámos a logo a perguntar se seria efectivamente nosso), e a vida diária no quartel do mato, numa localidade pequena do interior, cujos habitantes nos eram estranhos, não falavam a nossa língua e tinham hábitos e religiões de que só vagamente tínhamos ouvido falar. De que lado estariam e porquê? Perguntávamo-nos porque seria que alguns recusavam a protecção e as condições de vida que lhes dávamos e preferiam uma ligação ao “inimigo”. Mas, se todos tinham nascido e sempre vivido ali, quais seriam as razões para tal?

Amadurecíamos. Ou melhor: envelhecíamos, sem darmos por isso. O esforço diário, o trabalho de equipa, a entreajuda e as horas de incerteza mostravam-nos o lado mais genuíno da vida.

Cada vez, me restam menos dúvidas de que participámos na História do nosso país de um modo com que todos tínhamos sonhado, ao aprendermos a nossa História, nos bancos da escola, mas também nunca tínhamos pensado que pudesse acontecer.

Já defendi, numa revista militar que desde a primeira hora, a guerra estava perdida. E não saiu ninguém a contradizer-me. Tivemos de descobrir à nossa custa que era essa a realidade. Tenham em conta a grande resistência ao “ocupante” que se traduziu em continuar, ao fim de cinco séculos, a usar as línguas tradicionais e a recusar a aprendizagem do português, numa espécie de resistência passiva, que se estende a outros sectores como hábitos e, principalmente, às religiões e hábitos similares (por mais primitivos que fossem).

Mas à chegada à “Metrópole”, vinha a grande desilusão. Julgávamos ser cidadãos-patriotas ou soldados-heróis, mas não éramos mais do que um corpo estranho que lembrava aos políticos a sua incapacidade, e à sociedade um problema que ela tinha, mas que não sabia como resolver e, por isso, varria para baixo do capacho. Sentimos a frustração de não sermos ouvidos, e o desinteresse de vizinhos e conterrâneos, perante a nossa mensagem e, por fim, num fenómeno que a psicologia clínica talvez explique, tentámos esquecer o sucedido. Isso levou-nos a cumprir um período de resguardo de alguns anos durante os quais evitávamos falar “naquilo”.

Havia outras tarefas. Era necessário organizar a vida e desfrutar da luta diária, no fundo a razão de ser dos homens.

Julgo que a curiosidade de sabermos o que seria feito daqueles com quem partilhámos a nossa existência durante dois anos foi determinante. Primeiro a curiosidade, depois as saudades. Entretanto ficámos velhos. E os velhos têm mais necessidade de recordar para se sentirem gente ao contemplarem a vida. Daí aos convívios foi um passo.

Mas, afinal porque nos irmanamos à volta de uma mesa?

Porque todos temos em comum o facto de termos sido os homens que estavam na esquina errada da História. Fomos apanhados num turbilhão e não pudemos fazer nada para sair dele. Nadámos num troço de águas revoltas do rio do tempo.

Por mim não sinto nada “nostálgico” em relação à guerra ou à Guiné. Já disse num Post que, para mim a guerra, se a houve, terminou com a independência e não me sinto mais ligado àquele país do que a qualquer outro. O passado comum, que por vezes se evoca, envergonha uns e revolta os outros e não me sinto nada responsável pelo que de bom ou mau por lá se passa.

Considero, agora, que é essencial que lutemos contra o esquecimento. Não podemos deixar que nos suceda o que aconteceu a tantos outros que andaram pelas Àfricas, durante a I Guerra e especialmente nas chamadas Campanhas de Pacificação ou da Ocupação (fim do Séc. XIX – inícios do Séc. XX). A pouco e pouco vamos descobrindo “coisas”, como os sacrifícios dos nossos compatriotas e o grau de violência praticado de parte a parte. Temos de deixar a nossa assinatura na marcha do tempo.

Além disso, fizemos uma guerra pobre. Era pobre a nossa logística e os meios operacionais escassos. Os meios operacionais do inimigo evoluíam a olhos vistos e os nossos mantiveram-se perigosamente estacionários, como ultimamente temos vindo a ver. As guerras ou se perdem ou se ganham. E nós perdemos,  o que foi mais outra marca na nossa personalidade.

Como diz o Idálio [Reis]: “para quê e porquê?” Enfim, tudo terminou bem, ou menos mal, e isso foi o mais importante.

Nostalgia? Dos vinte e poucos anos? Sim! “Ai quem me dera ter outra vez vinte anos” diz o fado (*), mas saber o que sei hoje, acrescento eu. Mas da guerra e dos dois anos de sacrifícios impostos a troco de nada, não.

E o António Levezinho pergunta: “se não se deve voltar a um sítio onde se foi muito feliz, porquê voltar a um onde se foi particularmente infeliz”?

Não sou nostálgico e creio que o esquecimento é o pior que nos pode suceder, num mundo onde a ignorância é cada vez maior, embora a disponibilidade do conhecimento seja anormalmente enorme. Quero dar testemunho e evitar que aqueles 13 anos possam ser reduzidos a meia página de um compêndio de História.

Um Ab e desculpa o desenvolvimento e o atraso na resposta

António J. P. Costa (**)
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Notas do editor:

(*) O meu primeiro amor [, fado interpretado por grandes fadistas como Amália Rodrigues iou Cidália Moreira]

Letra de Nelson Barros; música de Frederico Valério (c. 1955)

Ai, quem me dera
Ter outra vez vinte anos,
Ai! como eu era,
Como te amei, Santo Deus,
Meus olhos
Pareciam dois franciscanos
A espera
Do céu que vinha dos meus.

Beijos que eu dava,
Ai! como quem morde rosas,
Ai como te esperava
Na vida que então vivi,
Podiam acabar os horizontes,
Podiam secar as fontes
Mas não vivia sem ti.

Ai! como é triste,
Eu dizer não me envergonho,
Saber que existe
Um ser tão mau e ruim
Que eras um ombro para o meu sonho,
Traíste o melhor que havia em mim.

Ai! como o tempo
Pôs neve nos teus cabelos,
Ai como o tempo
As nossas vidas desfez,
Quem me dera
Ter outra vez desenganos,
Ter outra vez vinte anos.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10136: Cartas do meu avô (12): Décima carta: a casa das Quintãs, Aveiro (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)



Região de Tombali > Catió > 2009 > Meninos de Catió... Muitos anos depois de lá estado o J. LMendes Gomes,  há uma jovem portugesa, cooperante e membro da nossa Tabanca Grande,  Marta Ceitil, que escreve o seguinte sobre a sua estadia  a Catió, em mail de 3 de setembro de 2009:


(...) "Segunda-feira viemos para Catió. A viagem foi tranquila, tinham-nos dito que ia ser horrível que as estradas estavam más... nada disso foi mesmo 'Shanti Shanti'. Catió fica no Sul da Guiné e é lindo, lindo. Aqui sim, sinto e vejo a Guiné que idealizei: paisagem verde, que contraste com o castanho das tabankas. Aqui as pessoas são bem mais calmas, parecem alentejanos. Estamos muito bem instaladas, na Missão Católica. O Padre Maurício (italiano) é uma personagem, muito bem disposto, tem 60 anos, e tirando o meu pai, é dos homens mais charmosos que alguma vez vi na vida (...). , Para além do seu aspecto físico faz umas massas óptimas. Está na Guine desde 1973 e é um espectáculo ouvir as suas histórias. A missa também é qualquer coisa…, primeiro é dada em crioulo e depois a música é tocada com djambés. Segunda-feira começamos a dar a formação aos professores. Este vai ser o nosso maior desafio, mas acredito que vamos dar conta do recado" (...)


Foto: Marta Ceitil (2009)




A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria de J.L. Mendes Gomes,  membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CART 728, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à direita, com os netos].

As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)



B. DÉCIMA CARTA > A casa das Quintãs


>O apartamento de Azurva, embora razoável, era reduzido para a família. Tínhamos três filhos e queríamos ter outro. Sem perder tempo.


Naquele tempo, o custo das casas subia a olhos vistos. Se pensávamos em mudar de casa deveria ser depressa.Punha-se então, um problema. A casa de Azurva continuava sujeita às condições fixadas pela CGA, no primeiro empréstimo. Por mais dois anos, não poderíamos aliená-la livremente.


Comecei a lutar com a tentação de descobrir a forma como poderia dar-lhe a volta, sem ter problemas. Não tinha muitas pessoas com quem me pudesse abrir. Até que ponto a letra daquele contrato,  forjado nos míopes e opressivos tempos salazarentos, sem qualquer justificação actual, consistente e razoável, ainda era tida em conta pela CGA?


À letra, estaria a violar o contrato, se vendesse secretamente e ficasse com o lucro. Obrigar-me a aplicar o lucro na compra de outra habitação, necessária, ainda se justificaria. Perdê-lo em favor da CGA, isso não. Ora eu, como jurista responsável, não podia recalcitrar. Poderia pôr em jogo o meu posto de trabalho, se o fizesse.


Um dia, enchi-me de coragem e liguei para a única pessoa que conheci na CGA, com olhos arejados e que me pareceu homem de confiança. Era um segundo director, que tinha vindo do Banco de Angola,  como retornado.Estava na direcção já havia uns anos. Sabia bem como as coisas funcionavam.




Expus-lhe a questão claramente. Eu não pretendia fazer negócio com o caso. Queria apenas mudar depressa para uma moradia, a nosso gosto. Que desse para a família toda, actual e vindoura. Ele foi claro.
- Ó Mendes Gomes, esteja à vontade. Ninguém vai sobre si. Garanto. Não será o primeiro.


Mesmo assim, tive dúvidas. Era muito arriscado. Pensei noutra saída. Um novo filho vinha já a caminho. Um rapaz. Nasceria em Dezembro de 1980.

Entretanto, calhou que o irmão da nossa mulher a dias , acabava de regressar, de vez, do Brasil, devido à grande insegurança que lá se sentia. Estava farto de ser assaltado, de dia e às claras. Precisava de arranjar uma casa. A irmã, porque sabia, falou-lhe que talvez nós a vendêssemos. Que havia uns problemas mas tudo se poderia resolver.

Ele veio falar-me. Estava disposto a comprá-la , pagando tudo a pronto, se eu quisesse.
- Mas, podemos escrever um papel, o sr. É advogado- sabe bem como. O que eu quero é seriedade. Que não me falhe…Também lhe digo já: seria capaz de lhe dar um tiro na cabeça se faltasse à sua palavra…disse-mo ele naquele jeito próprio dum brasileiro que vinha lá do Rio de Janeiro, onde era pior que viver na selva.

Fiquei a pensar. Com um contrato promessa de compra e venda, poderia satisfazer as condições básicas, sem ofender o contrato. A venda real só se efectuaria daí a dois anos. Até lá, pagar-me-ia por mês uma importância igual à que eu tinha de pagar à CGA e esta importância abateria ao preço fixado.

Todo eu tremia de pavor quando, um dia, assinamos o contrato. Terei envelhecido uns bons anos naqueles dois que se seguiram, apareceram-me os primeiros e imensos cabelos brancos nas barbas e na cabeça, passei muitas horas da noite, em claro, sempre à espera de ser chamado à responsabilidade. Sempre à espera do pior. Que houvesse uma denúncia. Principalmente, quando a Filial era visitada pela inspecção.

Ainda hoje estou para saber se a CGA na sede, teve conhecimento. Penso que sim. Haveria gente na filial bem capaz de me denunciar…e se ufanar com a minha demissão.

Fosse pelo que fosse, nunca ninguém pediu contas. A situação objectiva justificava-a bem. E, não havia ninguém que fosse capaz de me acusar de corrupção, por um único centavo ou minúsculo favor remunerado. Enquanto toda a gente sabia de muitos que o faziam… às claras.

Dum momento para o outro, apareceram carros de luxo, pagos a pronto, não se como…em quem, notoriamente, não ganhava para tanto.
A casa das Quintãs era uma moradia nova, geminada, com quatro quartos, garagem e um bom quintal.  Ficava no meio rural. Rua do Sol  [,Vd. Google > Maps]  era o nome da rua onde ficava.

Certo, na escolha. Ali, os miúdos puderam conviver com outro mundo. Seguiram, sem dar conta às sucessivas tarefas de quem tem de tirar da terra o pão para comer. Desde o lavrar dos campos com tractor, ao pestilento adubar da terra à moda antiga, ao esverdear das searas de milho e ao seu amadurecimento. As carradas de bois, a esbordar de erva ou feno para o gado, o gado a pastar, o leite quentinho a sair das tetas das vacas da vizinha, ao pequeno almoço e a manteiga que dele se tirava... O corropio nas bicicletas à solta pelas veredas, os papagaios multicores, em plástico a voar ao vento...

Enfim um sem número de novas vivências que nunca mais esqueceram. Nela podia receber a visita dos avós, sempre que o quisessem, com muita felicidade para todos nós e p’ra eles.

Ali abri o meu escritório de advogado. Fui procurado por muitas pessoas.Alarguei assim e pus em prática outras vertentes do meu curso. Com proveito material e
imaterial. Os filhos cresceram. Entraram nas universidades e foram à sua vida. J.L.

J. L. Mendes Gomes
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Ponte de Lima > 8º Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima > Jardins de Comer 7 de junho de 2012 > Algumas fotos... para se repensar os conceitos de cidade, campo, jardim... e um convite para visitar. Até outubro de 2012. "Há quem veja a árvore / e nunca descortine a floresta; há quem veja a flor / e nunca descubra o jardim" (LG)...

Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.

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