quarta-feira, 4 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10111: Tabanca Grande (347): António (ou Tony) Borié, ex-1º cabo cripto, Cmd Agrup nº 16, Mansoa, 1964/66, há 40 anos nos EUA... Passa a ser o nosso grã-tabanqueiro nº 564




Estados Unidos  da América > Flórida >  2012 > O António Borié, na praia, segurando uma raia...






Guiné > Região do Oio > Mansoa > Comando de Agrupamento nº 16 (1964/66) > O 1º cabo cripto António Borié,  "perto da ponte do rio Mansoa, da parte norte, por trás do clube  Os Balantas, onde funcionava um cinema".




Guiné > Região do Oio > Mansoa > Comando de Agrupamento nº 16 (1964/66) > O 1º cabp cripto António Borié,  "dentro do aquartelamento em construção"...


Fotos (e legendas): António Borié (2012). Todos os direitos reservados


1. Mensagem de ontem do nosso camaradaAntónio Borié, a viver há cerca de 40 anos nos EUA, atualmente na Florida:

Caro Luís 

Muito obrigado pela tua pronta resposta.

Como dizes, somos camaradas, andamos na mesma guerra. E agradeço o convite e vamos tratar-nos por tu. É uma grande verdade, e já agora obrigado pelos votos de saúde, espero que sim, que seja a minha quarta juventude, e às vezes digo para mim, se em pequeno não tive oportunidade de brincar na praia e com a areia, agora sobra-me tempo para fazer isso!.

Luís, aquí mando duas fotos, uma dentro do aquartelamento em construção, e outra perto da ponte do rio mansôa, da parte norte, por trás do clube " Os Balantas", onde funcionava um cinema. que dava filmes de cowboys!. A outra fotografia é aqui na Florida.

Como dizes,  tenho muitas histórias, que já não quero que sejam mais secretas. Eu relacionava-me bem com os meus camaradas, em especial do Batalhão de [Artilharia] 645, e de um pelotão de morteiros de que não me recorda o número, mas dormia na mesma camarata deles, e vivia todas as suas peripécias. 

Esse pelotão teve três mortos,  se não me engano, e eu chorei-os como se fossem meus irmãos. Eu tinha acesso a todos os reportes de toda a movimentação de tropas que se fazia na região do Oio, e é com esses que me vou lembrando, que escrevi o meu livro.

Não menciono nomes verídicos ou lugares. Mas toda a história se passou na região do Oio, e é verídica. Houve essas mortes e houve esses ataques e houve essas minas que rebentaram, e houve esses camaradas que desapareceram para sempre, embrulhados num camuflado todo roto e ensanguentado, e alguns, com um ar de crianças no rosto.
Aqui te mando uma história que se passou com tropas do pelotão de morteiros e de uma companhia do batalhão 645, que sairam de Mansôa, para um patrulhamento. Fazem parte do meu livro, onde existem muitas mais, umas tristes, outras menos tristes. Desculpa o meu português, pois já estou aqui há quarenta anos. 

Um abraço, António.


2. Comentário de L.G.:

António (ou Tony): A falar é que a gente se entende. Aprecio a tua frontalidade. E recebo-te de abraços abertos em nome dos 563 camaradas e amigos da Guiné que estão formalmente inscritos na nossa Tabanca Grande. Tu passas a ser o grã-tabanqueiro nº 564.

Deixa-me só recordar-te  as 10 regras elementares, de convívio, que estão em vigor entre nós, e que juramos respeitar, à sombra do nosso mágico, secular, grandioso, fraterno poilão... 

Neste espaço, de informação e de conhecimento, mas também de partilha e de convívio, decidimos pautar o nosso comportamento (bloguístico) de acordo com algumas regras ou valores, sobretudo de natureza ética:

(i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem);

(ii) manifestação serena mas franca dos nossos pontos de vista, mesmo quando discordamos, saudavelmente, uns dos outros (o mesmo é dizer: que evitaremos as picardias, as polémicas acaloradas, os insultos, a insinuação, a maledicência, a violência verbal, a difamação, os juízos de intenção, etc.);

(iii) socialização/partilha da informação e do conhecimento sobre a história da guerra do Ultramar, guerra colonial ou luta de libertação (como cada um preferir);

(iv) carinho e amizade pelo nossos dois povos, o povo guineense e o povo português (sem esquecer o povo cabo-verdiano!);

(v) respeito pelo inimigo de ontem, o PAIGC, por um lado, e as Forças Armadas Portuguesas, por outro;

(vi) recusa da responsabilidade colectiva (dos portugueses, dos guineenses, dos fulas, dos balantas, etc.), mas também recusa da tentação de julgar (e muito menos de criminalizar) os comportamentos dos combatentes, de um lado e de outro;

(vii) não-intromissão, por parte dos portugueses, na vida política interna da actual República da Guiné-Bissau (um jovem país em construção), salvaguardando sempre o direito de opinião de cada um de nós, como seres livres e cidadãos (portugueses, europeus e do mundo);

(viii) respeito acima de tudo pela verdade dos factos;

(ix) liberdade de expressão (entre nós não há dogmas nem tabus); mas também direito ao bom nome;

(x) respeito pela propriedade intelectual, pelosdireitos de autor... mas também pela língua (portuguesa) que nos serve de traço de união, a todos nós, lusófonos.

Dito isto, espero que comemores os 100 anos aqui connosco, e que vás colaborando connosco na medida das tuas possibilidades, da disponibilidade de tempo, dos teus bons e maus humores, enfim, sempre que te der na tua real gana. Aqui fica a história que nos mandaste, e que é uma transcrição (legível) do teu livro (inédito) com as tuas memórias da região do Oio.
 
3. UMA ALDEIA DESTRUÍDA
por António Borié


O mês era Abril, e era a uma quinta-feira, por volta das dez horas da manhã. Seguia um grupo de militares, a pé. Este grupo, era composto, por tropas de uma companhia de intervenção e de um pelotão de morteiros. Iam com o camuflado, todo molhado e colado ao corpo. Dos joelhos para baixo, iam molhados por atravessarem pântanos, alguns com arroz, e a parte de cima do corpo, estava coberta de suor, pelo clima quente, húmido e abafado.

 Para alguns, o cantil da água era tão importante como a G-3. Bebiam, bebiam, e sempre que podiam enchiam, de novo o cantil, nos pântanos, ao de cima, com gentileza, para só entrar, no cantil, água mais ou menos limpa, sem mosquitos, ou outras espécies. Traziam uma embalagem de ração de combate, mas muitos preferiam um bocado de pão, mesmo rijo, como alguns comiam na sua aldeia, em Portugal, onde nasceram.

Tinham saído do aquartelamento, manhã cedo, ao começo da luz do dia. Saíram em viaturas auto, que os deixaram ao norte, a uns vinte quilómetros do aquartelamento, aproximadamente. Na frente iam uns tantos africanos, que faziam parte das forças armadas portuguesas, e que normalmente faziam de guias e tradutores, pois por vezes, havia contacto com as populações locais. Era uma operação de rotina, inspecionavam a zona por onde passavam, principalmente se havia vestígios do inimigo. Este grupo de militares era comandado por um alferes miliciano.

O Curvas, soldado atirador, alto e refilão, pois andava sempre contrariado, e quando recebia uma ordem, sempre tinha um argumento para refilar, gostava de mandar, devia ser general!. Ia ao lado do Trinta e Seis, soldado telegrafista. O Trinta e Seis, que não sabia quem lhe tinha posto o nome, mas todos diziam que era pela estatura do corpo, pois era baixo e forte, mesmo muito baixo e forte, e diziam que era o conjunto de números, derivado de uma dúzia. Por exemplo, o corpo inteiro eram doze, metade eram seis, um quarto eram três, e no conjunto dos números, começando por baixo, dava, três mais seis, e como ele era baixo e forte, juntaram os números três mais seis, deu no bonito nome de Trinta e Seis.

Era popular, e conhecido pelo Trinta e Seis, carregava uma aparelhagem às costas, com um telefone. Tinha posto pilhas novas antes de sairem, trabalhava perfeitamente. Ambos levavam a G-3, com carregadores à cinta, e duas granadas ofensivas, que lhe tinham sido distribuídas, pela manhã, antes de saírem. As granadas eram distribuídas, antes de qualquer operação, e eram entregues no final da mesma, se não tivesse havido contacto com o inimigo. 

Quando se procedia à distribuição das granadas, alguém ficava à espera que a caixa ficasse vazia, para com a madeira da mesma, construir uma gaiola, para o seu piriquito, um banco, ou qualquer outro utensílio, portanto, quando eram entregues as granadas, no final da operação, iam para um canto da arrecadação de material de guerra. 

Normalmente a G-3, era transportada, debaixo do braço direito, pronta a disparar, mas com o cano sempre em direcção do chão. O Curvas, que era alto e refilão, levava três granadas. Duas distribuídas pela manhã, e uma que ele nunca entregou, de operações anteriores, e dizia. a alguns que sabiam, que essa granada era dele. Portanto na sua ideia, a granada não era do exército. Era dele.

O alferes miliciano dizia constantemente, ao Trinta e Seis, para ir sempre próximo dele, pois em qualquer momento podia precisar do telefone. O Trinta e Seis não acatava a ordem, pois era amigo do Curvas, que era alto e refilão. Andavam sempre lado a lado, e protegiam-se. Saíram do pântano, e iam em terreno seco, com muita vejetação. A antena do rádio, que era mais alta do que ele, tocava em tudo, e o Trinta e Seis, furioso, dizia ao Curvas, que era alto e refilão.

- Porque carga de água é que o alferes traz o pessoal  para um local destes, com tanto arvoredo, e tão difícil de avançar no terreno!? . Se fosse da parte da tarde, dizia que andava bêbado!.

Pois o alferes tinha fama de andar sobre influência [do álcool], lá no aquartelamento, mas era uma excelente pessoa.

Passado um certo tempo, deparam com uma aldeia, com umas tantas casas, circundadas por uma vedação, com estacas e ramos de árvores. Lá na frente, os soldados africanos entram na aldeia e falam alto, numa linguagem que ninguém entende. Neste momento, diz o Curvas, alto e refilão, (que acima de tudo, era rude, e sempre usava uma linguagem reles), para o Trinta e Seis.

- O que é que estes cabrões, estão a falar?. Estão a dar as boas vindas, ou a avisar a população para fugir, que os soldados estão próximos.

Era uma incógnita, que ninguém sabia responder.

Na aldeia havia somente, uma mulher, magra, já de uma certa idade, nua da cinta para cima, com argolas em volta do pescoço, servindo de enfeite, talvez. Estava sentada, ao lado de um cesto de arroz, com casca, com as mãos ao lado da cara, falando aflita, uma linguagem incompreeensível, e de vez em quando, tirava as mãos da cara, fazia gestos para a frente, ao mesmo tempo que balançava o corpo para a frente e para trás. Na sua frente, estavam duas crianças, também magras, e nuas.

Estas três pessoas, eram no momento, os habitantes da aldeia. Os soldados africanos, chamados pelo alferes, para traduzirem as palavras da mulher, diziam.

- Ela se lastima, por os soldados lhe terem morto os seus dois filhos, e diz para se irem embora, que aqui não há mais ninguém. Também diz que tem quatro filhas, que desapareceram certo dia pela madrugada, e que a visitam de vez em quando, pois neste momento eram guerrilheiras, transportadoras de material de guerra.

O Curvas, alto e refilão, diz para o Trinta e Seis.

- Se esta gaja não se cala, meto-lhe já dois tiros nos cornos!.

O alferes repreende o Curvas, alto refilão, que continua a argumentar, dizendo.

- É uma mentirosa, filha da puta!.

Só o Trinta e Seis, é que o acalma, e manda calar.

O alferes entra em contacto com o comando, contando a situação. Recebe ordens, da captura da mulher e as duas crianças, e em seguida queimar e destruir a aldeia.

Aqui começa o saque à aldeia. Os militares encontraram algumas armas, munições, e documentos, que estavam à superfície, e os africanos encarregavam-se dos objectos com algum valor, como panelas, tachos, roupas, às vezes até encontravam dinheiro, bicicletas, enfim, tudo o que alguns, entendessem que era útil.

Depois, era só deitar o fogo a tudo, e no espaço de uma a duas horas, com fogo controlado, deixava de haver aldeia. Esta aldeia era pequena, tinha somente oito casas. Durante o fogo, ouviram-se alguns rebentamentos, sinal de que havia mais algum material explosivo, talvez enterrado.

Os prisioneiros vieram para o hospital, na capitall da província. O Curvas, alto e refilão, começou o fogo, com o lançamento da sua granada preferida, para o meio da aldeia, ao mesmo tempo que gritava em plenos pulmões.

- Filhos da puta!.

O alferes repreendeu-o. Mas isso nele não produzia qualquer efeito, era alto e refilão, não acatava ordens, e queria mandar, devia ser general!.
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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10073: Tabanca Grande (346): Fernando Sucio, ex-Condutor Auto do Pel Mort 4275 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 3 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10110: Inquérito online: "Um blogue de veteranos nostálgicos da sua juventude?" (Parte II) (A. Graça de Abreu / António Rosinha /Armando Pires / Carlos Nabeiro / J. Pardete Ferreira / Manuel Joaquim / Manuel Maia

Voltamos aos comentários dos nossos camaradas a propósito da nossa sondagem à afirmação de René Pélissier: "Um blogue de veteranos nostálgicos da sua juventude?"

1. Comentário do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70):

Discordo da opinião de René.
Considerar-nos um grupo de veteranos nostálgicos da sua juventude, além de redutor revela a grande distracção, a forma enviesada, diria mesmo incompetência, com que tem lido o nosso blog.

Sim, verdade que por aqui temos camaradas expressando nostalgia e revolta, tristeza e dor, sentimentos que são parte da alma que é só nossa, que não cabe a ninguém julgar. Mas também temos os que olham o passado como lugar de descoberta do seu eu, do lugar que ocuparam na história politica contemporânea. Mas todos, uns e outros, orgulhosos do que foram, de quem são. E cumprindo neste blog a missão que lhes foi atribuída. Não deixar que ninguém conte a história por eles, por nós.

Uns a favor, outros contra, uns nem por isso e outros, ainda, antes pelo contrário. Mas cada um emprestando o seu contributo para que a história da guerra colonial se faça, se escreva, sem embustes. Jamais alguém poderá falar, contar, escrever, sobre o que se passou em Guileje (p.ex.), sem ler aqui, este Mural, os relatos dos que aos acontecimentos assistiram, não a partir do ar, mas em terra, em dor e sofrimento, em morte e desespero.

René Pélissier, diz a sua biografia, é um leitor compulsivo, um historiador, um especialista sobre colonização portuguesa. Ao dizer o que disse de nós, comporta-se com um dos que assistiram à história a partir do ar. Que a lê no ar. Quem sabe se não é ele o nostálgico, por não ter sido, na juventude, um dos Bravos do Pelotão.

Armando Pires

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2. Comentário do nosso camarada José Pardete Ferreira, (ex-Alf Mil Médico (Teixeira Pinto e Bissau, 1969/71):

O René Pélissier é um castiço!
Conhece a fundo a etomologia das Colónias ou Províncias Ultramarinas Portuguesas, como lhes quiserem chamar, no entanto, não conhece a mística da nossa vida lá nem nas nossas posturas que se seguiram após o nosso regresso.
Que temos nostalgia... temos!
Que fomos jovens... fomos!
Que vivemos muito em pouco tempo... vivemos!
P.S. Pessoal - E O Paparratos foi uma história de Amor... foi!
Todos nós ficamos a amar a Guiné!
Sans rancune.

José Pardete Ferreira

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3. Comentário do nosso camarada Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74):

Claro que o blog evidencia um pouco de nostalgia,afinal foram dois anos de vivência numa experiência nova,num local desconhecido, sob um clima diferente, com gentes diversas,culturas desconhecidas, numa fase de juventude em que a característica fundamental era aquilo a que chamávamos "sangue na guelra".

Essa vontade de recordar, de reviver acontecimentos com quem os conheceu de igual forma, logo muito mais à vontade para compreender esse estado de alma que significou a passagem por perigos e situações adversas que nos marcaram profundamente, essa comunhão de sentimentos, e essa amizade alicerçada ali no teatro da guerra, onde todos "estávamos no mesmo barco" e que só nós somos capazes de entender...

Essa lembrança quantas vezes acicatada por um pormenor que surge de forma impensada e extemporânea que um outro faz aparecer nos convívios à mesa, agora já com famílias que no período subsequente não conseguiam aceitar as narrativas de cada um quando para isso havia força suficiente capaz de explanar sem cair em depressão, e sem gerar atritos...

René Pélissier, tem portanto alguma razão, embora a nostalgia não seja a exclusiva motivação deste nosso convívio à volta de um blog comum a que chamamos nossa casa. Este espaço tem servido também para permitir a descoberta de capacidades, até aqui escondidas, no que à criação literária diz respeito, e são já muitos os camarigos que foram capazes de passar ao papel essas vivências que todos nós conhecemos de forma mais ou menos marcante.

Voltando a Pélissier, não posso deixar de referir que a sua alfinetada sobre a colonização portuguesa, e em especial sobre José Celestino da Silva, não faz esquecer as atitudes dos seus concidadãos, neste país que tem servido para os seus estudos, onde o assassínio e a pilhagem foram a forma de estar gaulesa.
Seria interessante, por exemplo, que pensasse em fazer uma investigação a essa monstruosa tripla invasão, ao saque ocorrido e aos assassínios infligidos às populações...

Manuel Maia

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4.  Comentário do nosso camarada António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74):

"Para a história colonial portuguesa basta consultar os autores de língua inglesa. Há séculos que a maior parte a denuncia como negreira, arcaica, brutal e incapaz: a quinta essência do ultracolonialismo sob os trópicos".

René Pélissier, em entrevista a Lena Figueiredo, publicada no jornal Diário de Notícias, Artes de 02.04.07.

Aqui têm o grande historiador que manda um bitaites sobre quem nós fomos e somos, nunca foi à Guiné mas conhece-nos de gingeira. Eu acho que também conheço este tipo de sumidades, historiadores que não me merecem um mínimo de respeito. Também escreveu uma recensão sobre o meu Diário da Guiné há uns quatro anos atrás, (lembram-se?)e conseguiu a proeza de ler o que não escrevi e virar tudo ao invés. Porque ignorava a matéria sobre a qual escrevia, a Guiné 72/74. Eu respondi na altura. Pélissier tem os seus admiradores neste blogue, pessoas que acham que os seus "estudos parecem exactos e cientificamente bem fundamentados."

De facto, voltem a ler:

"Para a história colonial portuguesa basta consultar os autores de língua inglesa. Há séculos que a maior parte a denuncia como negreira, arcaica, brutal e incapaz: a quinta essência do ultracolonialismo sob os trópicos".
René Pélissier dixit.

Abraço,
António Graça de Abreu

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5. Comentário do nosso leitor e camarada Carlos Nabeiro, ex-combatente no TO de Moçambique entre 1968 e 19770:

Tanto quanto os meus modestos conhecimentos me lembram, nas devidas proporções, os países ditos colonialistas que mais "guerras" tiveram em vários TO e durante mais tempo (depois da 2.ª guerra mundial) fomos nós e a França.
Muitos de vós conheceis e lesteis certamente Jean Lartéguy (Jean P.L.Os_ ty). Lartéguy os seus personagens, uns fictícios, outros com os nomes alterados e até mesmo os Franceses em geral, viram as suas guerras coloniais de forma diferente do povo português e olham os seus Veteranos com outros olhos. Nos livros de Larteguy, encontramos esses jovens nostálgicos (ele próprio) militares de carreira, voluntários, mercenários, etc. Muitos deles com elevada formação universitária. Não gostavam de guerra mas não sabiam fazer mais nada, nem se sentiam à vontade noutros ambientes. Gostavam de cometer (barbaridades) disparates, eram competentes e muito unidos. Percorreram o império colonial francês, na "procura" do túmulo de D. Quixote.

O sr. Pélissier, bastante mais novo que o sr. Osty, confesso que não sei se foi militar mas, certamente como francês e estudioso destes assuntos, conheceu de certeza e provavelmente de muito perto Lartérguy.

Pélissier julga os bizonhos soldados portugueses embutidos do mesmo "espirito" patriótico dos heróis de Larterguy ou dos portugueses que embarcaram nas Caravelas do Gama.

Ora valha-o Deus monsieur René, se o senhor soubesse ao longo (em especial) dos últimos trinta e oito anos os actos Actos de Contrição proferidos por muitos de nós (os tais Nostálgicos) que na volta exigem respeito e memória, o Xôr René, até corava, com o nosso romantismo.

Carlos Nabeiro - 67anos.
Militar desde Julho de 1967 no CISMI de Tavira, até 13 de Junho de 1970, dia da chegada ao RI 15 de Tomar, vindo de Moçambique.
Não me sinto culpado de nada, não peço desculpa, nem mendigo.

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6. Comentário do nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67):

NOSTALGIAS

"Luís Graça & Camaradas da Guiné é “um blogue de veteranos nostálgicos da sua juventude”
(R. Pélissier),

Nostalgia (dos dicionários): doce tristeza causada pelas saudades de alguma coisa, de alguma forma de existência que se deixou de ter, pelo desejo de voltar ao passado, a um lugar, a uma situação vivida.

Digo já, não me sinto um veterano nostálgico dos seus tempos de guerreiro à força. Nem de qualquer tempo da sua vida, tempo feliz ou infeliz. Recordo esses tempos, umas vezes com carinho outras vezes com revolta, mas nada de saudades nem de masoquismo adocicado pela distância dos factos. Quando recordo, em memória carinhosa, as agruras e doçuras da infância, da adolescência e da juventude não estou nostálgico mas posso ficar revoltado ou satisfeito pelas condições em que vivi esses tempos.

Quando me “vejo” menino nos dias de inverno, descalço a caminho da escola, pés arroxeados e mãos engadanhadas pelo frio, é isto nostalgia?
Quando me “vejo” menino, aos primeiros raios do dia após noite de vendaval e antes de partir para a escola, a apanhar do chão azeitona ou bolota até encher a cesta, sinto nostalgia?
Quando, nas tardes quentes de verão me “vejo” descalço, a subir aos pinheiros para derrubar pinhas, com os pés picados pelos tojos e o peito arranhado pelas carrascas do pinheiro, estou saudoso desses tempos?
Quando recordo o dia, já quase noite, em que abri o couro cabeludo numa cabeçada na oliveira que servia de poste de baliza de futebol e não havia meios de me levarem ao hospital onde demorei horas a chegar, sete quilómetros numa bicicleta a furar a noite por estrada de terra, sozinho com meu pai, encharcado de sangue, qual imagem do santo sudário que o padre mostrava no sermão da 5.ª feira Santa, pode ser isto nostalgia?

E será nostalgia recordar a aflição que senti quando, quase sem saber nadar, resolvi atravessar o rio Arunca e no meio do rio fiquei sem pé, valendo-me a corrente forte que me empurrou para uma margem?
E a carga de porrada que levei do meu pai “só” porque aprendi a escrever e resolvi mostrá-lo com a mais vibrante palavra que encontrei, “caral..o”, escrita a giz branco no bojo de um pulverizador agrícola?
Lembrar isto é nostalgia?

Quando me “vejo” a levar puxões de orelhas, reguadas e chapadas do professor primário por não satisfazer as suas exigências na aprendizagem ou mais tarde, já adolescente, a levar umas palmatoadas do director do colégio “só” porque alcei a perna e larguei um “pum” para saudar o senhor João, contínuo, é isto nostalgia?
Quando recordo, nas férias escolares, o trabalho duro no campo, de sol a sol (e até noturno) enquanto a maior parte dos meus colegas andavam a passear e a divertir-se, tenho saudades de tal?

E é para ter saudades da minha “primeira vez”, nas Caldas da Rainha, quando seis “manfiozitos” aproveitaram a viagem escolar para uma visita à “casa de p.”, fila indiana, a serem recebidos à vez por uma decrépita alma caridosa e carinhosa que, por 20$00, nos atendeu a todos?
É nostalgia recordar os dias de fome passados no colégio porque o dinheiro para o almoço era gasto em tabaco e nos jogos de cartas?
E… e… e na Guiné?

Já não falo dos momentos de combate, dos mortos e feridos, das desgraças físicas que nos atingiram. Este blogue é um extraordinário repositório das memórias desses momentos, a maior parte delas sem qualquer laivo de nostalgia, antes pelo contrário. Recordar os vómitos secos, a angústia daquela vivência dominada pelo “inesperado”, os mosquitos, as abelhas, as formigas, a sede violenta que nos obrigava a beber “merda” líquida, a “fome” de comida para gente, a suprema sensação de inutilidade daquela vida de combatente, a deliquescência daqueles dias e dias e dias em que nada acontecia mas “tudo” acontecendo naquele esforço de fazer passar o tempo e de tentar salvar o “couro”, pergunto, recordar tudo isto é sinal de nostalgia?

Que belos tempos, não foram? Não, para mim não foram! Para mim simplesmente foram tempos da 1.ª terça parte da minha vida e que deixaram marcas neste “velho veículo” de quase 71 anos.
Sinto nostalgia quando recordo aquela Guiné que conheci em condições excecionais, sujeito a violências físicas, espirituais e até morais de uma guerra para mim sem sentido?
Não. Olho para trás e vejo simplesmente factos de uma história que posso contar, a da minha participação numa guerra. Valerá alguma coisa essa minha história? Pode ser que não mas, por precaução, ficará como matéria para memória futura, principalmente para os meus netos e seus descendentes poderem encontrar nela algo que fez parte das suas raízes, sejam elas boas ou más, estejam em bom estado ou não, sirvam para os alimentar ou não. Mas que sirvam, pelo menos, para tomarem consciência de que a sua história não começou com eles.

Não, não tenho nostalgia, não tenho saudades do passado. O passado que tive é isso mesmo, passou. Os lugares que frequentei já não existem, para mim já não são eles mas outros que terão o mesmo nome e a mesma localização. Em contrapartida tenho, sim e cada vez mais, é saudades do futuro! Falo por mim. Não sou um dos veteranos referenciados por R.Pélissier.
Admito que existam por aqui mas não em quantidade suficiente para se catalogar este blogue como refúgio de velhos combatentes nostálgicos. É verdade que tento esconjurar o tempo. Sonho por vezes, feliz com o que fui e com o que passei ou pesaroso com as asneiras que cometi e as agruras que padeci.

Como poderei ser nostálgico dos meus tempos de chumbo que ensombraram alguns anos da minha juventude, anos de revolta a respirar a atmosfera violenta duma guerra? Nestas andanças de recordações é frequente ouvir-se “se soubesse o que sei hoje!”. Pois tenho a dizer que, se soubesse o que sei hoje, não entregaria “os pontos” e teria fugido para França, a exemplo do que fizeram mais de 80% dos meus conterrâneos. Não tenho vergonha de o dizer, até porque a maior parte da vida económica do meu concelho deve o seu desenvolvimento a muitos desses emigrantes que fugiram à incorporação militar e, ainda hoje, as suas pensões de reforma são o sustentáculo de muita actividade económica. E são muito queridos e louvados, veja-se isto, pelos que ideologicamente condenaram a sua atitude, sendo mesmo o seu sustentáculo de poder, há muitos anos.

Aqui ando, não nostálgico, tentando não derrapar nas esquinas da vida, numas vezes revoltado, apaziguado noutras. Já sou como uma velha árvore com alguns ramos decepados, outros algo decrépitos, mas onde ainda há alguns ramos viçosos e lá vão rebentando algumas hastes que espero tenham força para se tornarem ramos.

Nostalgias? Como diz o poeta Manuel António Pina, no seu poema “Coisas que não há que há” (O pássaro da cabeça, ed. A Regra do Jogo):

… … … 
Há tantas coisas bonitas que não há: 
… … … 
Tantas lembranças de que não me lembro, 
sítios que não sei, invenções que não invento, 
… … … 
tudo o que eu nem posso imaginar 
porque se o imaginasse já existia 
embora num sítio onde eu só ia … 

Nostalgias?
Só se for do que não vivi e do que não viverei.

Manuel Joaquim

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7. Comentário do nosso tertuliano "Mais Velho" António Rosinha:

Ele escreve sobre nós e a nossa guerra porque é escritor, nós escrevemos no blog, porque somos nostálgicos.
Não conheço o homem, apenas as referências de Beja Santos e um ou outro jornalista.

Da guerra que eu vi, que nos fizeram e que tivemos que aguentar por serviço militar obrigatório, dessa guerra ninguém, seja o Pélissier ou o Furtado, ou quem foi para a Suíça ou Paris, tem mais direito de falar, relembrar do que nós. Mas todos tentam falar daquela guerra, mais alto que nós.

Esta referência da “nostalgia” é dos tais subterfúgios com que calaram muita malta que por lá andou. Não é só ele que até é estrangeiro. Até aparecer o Luís Graça a falar alto e até parece que ensurdece alguns. Ainda hoje tenho gente mais velha das minhas relações, que como eu são “retornados”, e dizem que escondem dos vizinhos que são retornados. (Medo? Vergonha? Ignorância? Complexo da discriminação?) Gosto muito de ouvir estrangeiros falar de nós. E também ouvir alguns portugueses que só foram para as “nossas áfricas” , a seguir ao 25 de Abril “ajudar aqueles desgraçados”.

Já ouvi no Brasil, em Luanda, na Guiné-Bissau, e até turistas na Madeira falar depreciativamente de nós. E já ouvi brasileiros com pena de não terem sido colonizados por americanos em vez dos portugueses.
Já ouvi nos meus próprios ouvidos, suecos, na Guiné, julgarem-nos nazis, e transmitirem essa ideia aos guineenses. Mas uma coisa digo eu, nunca conseguem dizer tudo de nós porque lhe “custa dobrar a língua”.

Os franceses e os ingleses salvaram as fronteiras e o idioma dos seus “grandes impérios” à sua maneira, a nossa geração ajudou a salvar as frágeis fronteiras do seu “pequeno império”, dentro das nossas possibilidades, que era para tudo para desaparecer sem o mais pequeno respeito por aqueles riscos no papel daqueles mapas, algo indefinidos.

Os “PÉLISSIERES” da vida sabem isso muito bem, só não o dizem. E é principalmente por aquele período ser dos mais importantes e relevantes da vida e do futuro de Portugal, que sempre devemos lembrar aos “PELISSIERS”, e muitos nossos que não é apenas “Nostalgia”.

Devemos dizer as verdades para evitar que pedaços do império não venham ainda a desaparecer.
O que vai ser difícil evitar devido às nossas actuais fragilidades.

Cumprimentos
António Rosinha
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Nota de CV:

Vd. poste de 28 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10083: Sondagem: "Um blogue de veteranos nostálgicos da sua juventude ?" (Parte I) (A. Pinto / A. Silva / H. Cerqueira / J, Martins / M. Beja Santos / P. Raposo / R. Figueiredo)

Guiné 63/74 - P10109: Cartas do meu avô (11): Nona carta: uma família feliz, em Azurva, Aveiro (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)


A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo J. L. Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da , que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à direita, com os netos].


As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012.


B. NONA CARTA > Em Aveiro > I - Azurva


Externamente à Caixa [Geral de Depósitos], vivia-se numa incerteza política total. Os partidos disputavam, sob a tutela do MFA, o rumo que o país seguiria: se à esquerda comunista, ou à normalidade democrática. O verão de 1975 foi mesmo escaldante. Com focos de violência generalizada por todo país. Esteve-se muito perto duma guerra civil.


A vida em Lisboa atravessara crises de toda a ordem. Desde a segurança ao abastecimento de alimentos. Ficou claro que Lisboa é a cidade mais dependente do país. Vive à custa do resto. Cheguei a ver os balcões dos mercados, por exemplo, o da Ribeira, completamente vazios de géneros. Tínhamos dinheiro mas não havia onde comprar.


A falta de policiamento nas ruas era assustadora. Ninguém se aventurava a girar pelo rua, a partir do anoitecer. A vontade de fugir era muito forte. Só não se fugia, se não fosse possível. Cheguei a tentar emigrar para o Canadá. Já com três filhos. Tratamos de tudo na embaixada do Canadá. Aceitavam-nos de braços abertos. No final as autoridades portuguesas recusaram-nos a autorização.
- Porque éramos ambos quadros técnicos - disseram…


Por isso, aproveitar a descentralização de crédito era a única e oportuna saída. A classificação que tinha deu-me a liberdade de escolher a filial que eu quisesse. Estava muito difícil decidir. Por um lado, tínhamos comprado em 1970, o nosso apartamento em Almada com empréstimo da CGA. Este empréstimo era muito rigoroso e condicionado na sua alienação, antes de dez anos sobre o contrato de compra. Para além duma autorização especial, discricionária, os lucros derivados da venda reverteriam a favor da CGA.

Por outro, a saída para a província implicava a separação, minha, da minha mulher e dos filhos,  dos meus sogros. Já reformados e radicados em Lisboa. Eu, porque conhecia as duas realidades, tinha a certeza de que a vida numa cidade de província teria uma qualidade muito superior à de Lisboa ou Almada. Tudo mais barato. Tudo mais sossegado. A educação dos filhos seria mais fácil. Nasci e cresci na província.

Para a minha mulher foi um caso sério. Seria a primeira vez que saíria de Lisboa onde cresceu. Longe dos pais.  O que facilitou um pouco foi o facto de, tempos atrás, ambos termos concordado na nossa emigração para o Canadá. Por causa da precariedade e insegurança reais, sentidas em Lisboa, nos tempos de crise política.

Havia pouco tempo para resolver. O prazo de escolha da respectiva filial estava marcado. Longas horas de conversa e discussão se seguiram. A A.T. trabalhava no Instituto de Biologia Marítima, em Algés. Tínhamos de escolher um sítio que possibilitasse a sua continuação ao serviço e manutenção do emprego. Algarve, Aveiro ou Porto eram as únicas que se coadunavam. Porque tinham dependências locais daquele organismo.

Algarve e Porto não eram nada do nosso agrado. Aveiro era praticamente desconhecida de ambos. Mas reunia certas vantagens. Mais perto de Lisboa e uma zona bastante rica, economicamente. Com muitos recursos. Era preciso que a direcção do Instituto permitisse a sua transferência.

Em Aveiro, havia apenas um posto de recolha de amostras de pescado, instalado na capitania de Aveiro. De comum acordo, assentamos em que, se fosse autorizada, então, seria por lá que deveria passar a nossa vida, custasse o que custasse… Se não, ficaríamos em Almada.


Foi assim que entendemos. As sortes estavam lançadas. Quis o destino que fosse aprovada a transferência. Ficavam por resolver a consecução de casa em Aveiro e a venda, em tempo, do apartamento de Almada.

Tudo correu bem. A CGA permitiu a venda e manutenção do empréstimo, com sujeição da nova casa ao mesmo regime. Seria uma substituição da casa conservando o empréstimo, como estava.

Em princípios de Setembro de 1977, estávamos a viver em Aveiro. Em Azurva, nos arredores. À mistura com inúmeras peripécias. A primeira foi ver toda a nossa mobília ser encaixada num cam
ião da Galamas para seguir na madrugada para Aveiro. Enquanto nós seguiríamos todos os cinco, no nosso Sunbeam, encarnado, a estrear [, um modelo talvez parecido com o da foto acima: Chrysler Europe - Talbot Sunbeam, 1977-1981]

Chegados a Aveiro, a empresa construtora e vendedora, vinculada por um simples contrato-promessa, não tinha o apartamento habitável, como se comprometera.  Quando chegou o camião, todos os móveis foram encastelados e metidos pela janela, na sala comum, a divisão maior.

Tivemos de arranjar alojamento por uns dias. Onde? Informaram-nos que as” Zitas” talvez nos pudessem alojar. A superiora, quando viu a nossa situação, foi exemplar. Benditas sejam as “Zitas” para sempre. Lá ficamos muito bem, até ao culminar do apartamento. Enquanto esperávamos com os miúdos a brincar no baldio de mato e feno que havia frente à casa nova, o meu filho mais velho, com oito anos, era um ignorante sobre as coisas da vida rural. Quando viu um bando de galinhas debicando à solta pelo monte, exclamou entusiasticamente:
- Hei tantas vacas a pastar!...

Num instante ficava ali demonstrada a vantagem e acerto da nossa decisão…

A casa era um rés do chão elevado, com dois quartos,uma sala e uma garagem. O prédio tinha dois andares e duas habitações por piso. Azurva estava a começar como zona de habitação periférica para quem trabalhava em Aveiro. Tudo ali estava no começo. A centralização em Lisboa e Porto eram asfixiantes do resto do país. Por culpa central mas também por interesses de gente particular. Dali.


"Vila Africana", Ílhavo, sita na Estrada Nacional 109, nº 135... Quando a viajem de Lisboa ao Porto, levava um dia... Hoje a EN nº 109 tem motivos de interesse para o turista sem pressa e com sensiblidade estética e cuttural: tem vários exemplares de casas de "arte nova"... Como, por exemplo, esta casa tradicionalmente conhecida como a "Vila Africana"... Segundo o portal de Aveiro, "o seu interesse reside na fachada profusamente decorada com azulejos. O tratamento da fachada revela um equilíbrio entre os diversos planos e a sua decoração, como salienta Amaro Neves que destaca ainda os gradeados de ferro pela sua delicadeza"...

A distância de Aveiro ao Porto, só de comboio. Por estrada, gastava-se um dia para se ir e vir...pela sinuosa e encharcada estrada 109. A rede de auto-estradas nacional era uma miragem. O interior era mesmo interior. Tudo era longe. Para se ir a Viseu, pelo vale do Vouga, era uma aventura. Uma linda viagem, por entre escarpas e arvoredo frondoso.

Tive de me deslocar lá várias vezes em serviço. Tinha de sair de madrugada, para chegar a tempo. A alternativa seria ir na véspera e pernoitar. Este era o pobre quadro geral no intercâmbio económico do país. Por isso, proliferavam os representantes das empresas, ambulantes e as escolas públicas, superiores ou não estavam circunscritas a um curto raio de influência.

Na Caixa, quem punha e dispunha era a administração de Lisboa. Os gerentes das suas agências e filiais eram os seus representantes. Omnipotentes, melhor, prepotentes, sobre os seus empregados. Uns dóceis cordeirinhos para qualquer instrução que viesse de Lisboa. Nem que fosse dum contínuo. Era Lisboa...

Por isso, a entrada dum técnico superior, imposta por Lisboa, foi um duro golpe no reino dos gerentes. Habituados a pôr e dispôr, à sua vontade. Apenas havia que acautelar muito cuidadosamente, as vindas das brigadas de inspectores. Podiam aparecer, em qualquer dia. De preferência ao acabar do dia. Aí, tremiam as pernas dos gerentes, desfeitos em sorrisos. Mal viravam as costas, tudo voltava ao mesmo.

Quando entrei a primeira vez na filial, fui apresentar-me ao Sr. L... Já me tinha informado sobre ele. Sabia que ele era um dos tais. Um expoente de subserviência para cima e despotismo para baixo. Recebeu-me, disfarçadamente, fora do gabinete. Começou à procura duma secretária onde me colocar. Calhou num canto, atrás duns armários. Como que a esconder-me, o mais possível.
- O senhor vai ficar aqui. Vai preparar este e aquele para o serviço que vem fazer.

De material, - meteu a mão no bolso da camisa, e tirou de lá um lápis viarco, que já ia a meio...e uma esferográfica. E desapareceu.

Era o primeiro embate. Estava declarada a guerra. Ele fizera toda a sua carreira na Caixa desde grumete, aos dezassete anos em Lisboa. Tornou-se amigo do administrador- geral, naquele tempo, era quase um cargo vitalício, tudo gente da confiança do Salazar ou dos seus amigos.

Os saneamentos operados no período do vinte e cinco de abril vibraram duros goles nesse statu quo. O Sr. L... esteve mesmo para ser saneado pelos trabalhadores da filial. Valeu-lhe o facto de ali, em Aveiro, as células comunistas estarem muito rarefeitas. O resto do pessoal era cordato,  avesso a vinganças.

Escapou. Dois anos depois, quando entrei para lá, ele tinha revestido a capa do poder. Só que eu tinha ja os meus conhecimentos em Lisboa. Dum modo geral gozava dum certo respeito. Fora dos primeiros trabalhadores a guindar-me a um curso superior. A maioria se começava, desistia. Trocava tudo pela boémia de Lisboa.

A direcção das filiais e agências de quem dependia o gerente eram-me totalmente favoráveis. No primeiro encontro que tive com a direção ficaram a saber como fui recebido e tratado pelo Sr. L... Só contei a verdade.


A ria de Aveiro e os seus moliceiros - Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Um tradicional barco moliceiro, hoje transformado em meio de transporte de turistas... Tradicionalmente, os moliceiro têm (ou tinham...) dois paineis de proa e dois de popa, de pintura naïve... Cada painel consta de um desenho policromado, com uma cena mais ou menos pícara, relacionada com o quotidiano dos pescadores ou dos camponeses da ria, enquadrada por cercaduras de flores ou figuras geométricas. Há sempre, na base, uma legenda-comentário, escrita às vezes em mau português, e com um segundo sentido (como no caso da imagem acima: "Mete as batatas no rego"...). [, Foto de Luís Graça, 2008].

Regressado à filial, foi fácil perceber que tudo mudara. Não que ele se corrigisse, mas deixou de me fazer guerra. Pura e simplesmente ignorava. Fiquei a trabalhar livremente. Apenas dava conta à direcção e ao chefe do contencioso.

Foram uma meia dúzia de anos. Ele trabalhou até ao último dia. à quele em que fez setenta anos. A reforma levou-o para sempre.E agora? Quem virá substitui-lo? Era o problema.

Um dia, em visita à direcção de filiais e agências, fui directamente abordado por um dos sub-directores, o senhor B... Se eu estava interessado em passar para o quadro de gerentes e tomar conta da filial. Nunca tinha pensado nessa hipótese. Mas foi-me fácil responder. Eu não sentia a mais pequena necessidade e pendor para ser gerente. Era uma função que não queria. Agradeci e declinei.
- Então, de todos os gerentes das agências de Aveiro que conhece, qual escolheria?
- Aí, não tive dúvidas.
- O de Espinho. O dr. L...C....

Não que eu tivesse muita confiança com ele. Mas parecia-me a pessoa indicada. Tinha-se licenciado em Económicas, no Porto, há pouco tempo. A indicação estava dada.

Quando regressei a Aveiro, desloquei-me a Espinho, para falar com o gerente, depois de lhe ter ligado. Encontramo-nos na sua casa. Contei-lhe o que se tinha passado. Ele ficou muito surpreendido. Com a minha lembrança e com a grata hipótese que se poderia pôr, a curto prazo. E assim foi. Passados poucos dias, o Dr. C... dava entrada com gerente da filial.

E, não me enganei na pessoa dele como ele da minha. Sempre nos respeitamos um ao outro. Cada um na sua função. A partir daí, passei a sentir-me um príncipe quase perfeito...Foram cerca de vinte anos de serviço em Aveiro.

Tenho a consciência de que pude fazer muito bem a muitas pessoas do distrito. Aquelas que, obtidos os empréstimos, se viam em dificuldades para recuperar os atrasos de pagamento. Por força das frequentes subidas das taxas dos empréstimos motivadas pela instabilidade política em que se vivia. Vi correr muita lágrima no rosto de homens e mulheres no meu gabinete, à frente da minha secretária. A quantos dramas pude acudir...porque podia fazê-lo.

E os meus filhos? Esses, em Aveiro, sentiam-se nas sete quintas. Eram três, muito bem entregues ao centro social de bem-estar de São Bernardo. Uma obra pioneira na região e arredores. Óptimas condições, materiais e humanas. De excelência, à volta da pessoa dum insígne e exemplar sacerdote - o Sr. Padre Félix. [Imagem à direita, cortesia da Fundação Padre Félix].

Desde a creche ao primeiro ciclo, ali cresceram e se desenvolveram alegremente. Hoje, muito do que são, devem-no aos tempos ali vividos. São todos licenciados. Um, o Paulo Alexandre, é sacerdote jesuíta, o mais velho. Outra, a Leonor, tradutora Intérprete de Inglês e Alemão, outra, a Sandra, Engenheira Química e o quarto, que estava para nascer, o Luís Daniel, foi tirar o doutoramento de Engenharia Aero-Espacial, em Manchester.

Todos são unânimes em afirmar e testemunhar o acerto na decisão que um dia tomamos. O de vir viver em Aveiro. Nunca mais voltaram a confundir as galinhas com as vacas...

Reichelt, 30 de Março de 2012- sexta-feira

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10069: Cartas do meu avô (10): Oitava carta: finalmente, jurista da CGD (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

Guiné 63/74 - P10108: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (24): questionário de opinião sobre o seu sítio na Net (que tem 8 anos) e sobre a sua página no Facebook (que tem 2 anos)









Sítio da AD - Acção para o Desenvolvimento, ONG guineense que comemora agora oito anos de presença na Internet. Para esse efeito, está a ser realizado um inquérito por questionário, em linha, dirigido aos seus visitantes, e que conta com o apoio metodológico e logístico do Instituto Politécnico de Leiria. De entre os numerosos parceiros desta ONG, conta-se também o nosso blogue.A AD - Acção para o Desenvolvimento tem a sua sede em Bissau, Caixa Postal 606, Bairro de Quelelé, Bissau.




1. Mensagem do nosso amigo Pepito:

De: ad bissau [ adbissau.ad@gmail.com]

Data: 2 de julho de 2012 13:15

Assunto: questionário sobre o site institucional da AD

Caros amigos da AD,

Há oito anos atrás, a AD inaugurava a sua presença na Internet, através do seu site institucional. Temos procurado, aos poucos, fazer mais e melhor e, recentemente, atingimos dois objectivos há muito desejados: por um lado, conseguimos que o site já seja integralmente dinamizado e alimentado por quadros guineenses da AD; por outro, começámos a apostar nas redes sociais (Facebook) e explorado como podemos usar estas plataformas para dar voz aos nossos parceiros e colaboradores.

Chega então a altura de fazer uma primeira avaliação a este esforço e ouvir a vossa muito importante opinião. Para isso, gostariamos que respondessem a um questionário anónimo onde se procura conhecer os pontos fortes e fracos do nosso site e presença nas redes sociais. 


Pediamos, assim, que dispensassem 10 minutos do vosso tempo a responder ao questionário do seguinte endereço: http://ued.ipleiria.pt/questionarios/index.php?sid=52325 .

As vossas respostas ajudarão a definir o plano de comunicação da nossa ONG e ajudá-la-ão a ser melhor, procurando ir ao encontro das vossas opiniões.

 Obrigado.  Carlos Schwarz (Pepito) [, foto à direita,]
Director Executivo da AD






Página da AD - Acção para o Desenvolvimento no Facebook, que já existe desde 10 de agosto de 2010. Várias dezenas de grã-tabanqueiros (membros da Tabanca Grande) são amigos, no Facebook, da ONG AD...




Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > Região de Tombali > Cantanhez > 20 de junho de 2011> "Um grupo de Caltambas acompanha as mulheres Tandas na sua colheita de arroz, manifestando a sua alegria pela boa produção obtida e dando coragem para que o trabalho se faça com sucesso. O Caltamba representa a força da natureza que promove uma boa lavoura e produção, fazendo com que chova bem, haja paz e que as doenças sejam afastadas. As suas danças e especialmente as vestes baseadas na utilização de produtos da floresta como casca de árvores e folhas, são muito bonitas".


Foto (e legenda): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2011). Todos os direitos reservados



O nosso blogue,  Luís Graça & Camaradas da Guiné, encontra-se entre os parceiros institucionais da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, distinção que muito nos honra, embora porventura excessiva.  A nossa colaboração remonta já a 2005, conforme se pode ler  no relatório de atividades desse ano desta ONG: (...) "À volta da 'Iniciativa Guiledje' surgiu um grupo de colaboradores activos e muito participativos na procura e recolha de documentação histórica, formada pelo Engº António Júlio Estácio, Capitão José Neto, Coronel Hugo Guerra e Dr. Luís Graça, os quais são os grandes responsáveis pelo acervo de que a AD já dispõe" (...).

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9881: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (23): Manifesto das ONG guineenses sobre a situação atual..

Guiné 63/74 - P10107: O Nosso Livro de Visitas (141): Jaime Vieira, açoriano, a viver nos EUA há 38 anos, procura uma amigo e camarada, dado como desertor em 1972, o sold escrit Carlos Alberto Sousa Emídio, da CCAÇ 3476 (Canjambari, 1971/73)



Excerto da página do Carlos Silva, na parte relativa à história da CCAÇ 3476 (Canjambari, 1971/73) (Reproduzido com a devida vénia).




1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Jaime Vieira, açoriano, que vive nos EUA (*):

De: Jaime Vieira [52_j@live.com ]
Data: 2 de Julho de 2012 05:30
Assunto: Boas noites ou bons dias, a todos os camaradas da Guiné

Os meus parabéns por terem se lembrado de nós.

Fui soldado na companhia de caçadores 3476, estive em Canjambari, sector de Farim, nos anos de 1971 e 72 e depois estive no Chugué, antes de Mansoa. Vim para Casement [, nos EUA, ?] em 16 dezembro de 1973. 


Tínhamos o nome de Bebés de Canjambari por se tratar duma companhia muito jovem ou a mais jovem de todas. [Vd. o muito original miniguião, imagem  acima, cortesia de Carlos Silva].

Agora, meus amigos, tenho uma curiosidade: no ano de 1972 desapareceu um soldado que era escriturário, com o nome de Carlos. Penso que era de Trás os Montes. Sempre penso nele, era meu amigo, e sempre me preocupei em saber o que lhe aconteceu.

Se algum camarada sabe algo sobre este nosso amigo, diga-me alguma coisa para o meu email 52_j@live.com.

A companhia era açoriana.

Por agora é tudo, um abraço a todos
Jaime Vieira,

2. Comentário do editor:


(i) Pedi ao nosso camarada, amigo e vizinho  Carlos Silva, que eu trato carinhosamente, na brincadeira,  por "régulo de Farim", e que conhece bem toda a rapaziada que passou pelo setor, o seguinte:



Carlos Silva: Tens alguma "pista", na tua página, que possa ajudar este camarada que esteve em Canjambari, na CCAÇ 3476 ? Penso que ele vive no estrangeiro (EUA ?)... Deve ter emigrado, como muitos outros camaradas açorianos...

Não consegui localizar a cidade de Casement (em inglês, "batente", "casement windows", janelas de bater...).   Vou pedir ao nosso amigo Jaime se ele nos esclarece melhor estas duas coisas: (i) O país onde vive (presumo que desde 16 de dezembro de 1973); (ii) o apelido do amigo (Carlos... é pouco) e a companhia a que pertencia; era a mesma, a CCAÇ 3476, açoriana ? E já agora, como e quando é que ele desapareceu ? Foi em Canjambari ? Foi no Chugué ?

Um abração. Luis



(ii) O Carlos Silva respondeu-me de pronto, a mim e ao Jaime:


Luís e Jaime:

Aqui vai o link sobre o Carlos Emídio que desapareceu:

http://carlosilva-guine.com/index.php?option=com_content&view=article&id=57&Itemid=79&limitstart=23 
(**)

Nenhum camarada sabe dele. Espero que esteja vivo.
Estou no Algarve
Um abraço
Carlos Silva


(iii) O Jaime Vieira mandou-me um segundo email, ontem, nestes termos:

Muito obrigado por teres respondido. A minha companhia era dos Açores e fomos para Canjambari em 1971. O Carlos [Emídio] chegou mais tarde . Um pouco tinha sido cabo e foi despromovide mas antes de chegar à nossa companhia. Ele era um pouco contra o regime e tinha problemas com o capitão como eu tambem tinha. Ele desapareceu em Canjambari no ano de 1972 e nunca vi muito interesse por parte das autoridades em saber de ele. Por este motivo fiquei sempre preocupado e com ansiedade para saber o que aconteceu.

Sou emigrante nos Estados Unidos da América já há 38 anos,  era da companhia de caçadores 3476 e, como a metade da companhia era de voluntários com menos de 20 anos de idade,  deram-nos o  nome de Bebés de Canjambari. O meu capitão era chinês de Macau,  muito conhecido hoje pela televisao. O nome dele era Jorge Rangel.

Um abraço a todos, Jaime Vieira.


(iv) Comentário final de L.G.:

Obrigado, Jaime, por teres chegado até nós. Graças ao valioso contributo do nosso camarada Carlos Silva, ficamos a saber que o teu amigo, o sold escriturário Carlos Alberto Sousa Emídio, desapareceu no dia 17 de agosto de 1972 e foi dado, mais tarde como desertor, de acordo com a história da unidade.

Ninguém sabe, até agora, do seu paradeiro. Pode que ser que a tua mensagem chegue até ao seu conhecimento, se ainda for vivo, como esperamos... Como costumamos dizer, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... Oxalá possas encontrá-lo, vivo e de boa saúde. Terá, de certo, muito para te contar...

Ficas convidado, desde já, a integrar o nosso blogue. Manda-nos duas fotos tuas, uma do teu tempo de "bebé de Canjambari" e outra atual, tirada em Casement (já agora, em que Estado norte-americano fica ?).

Muita saúde e longa vida para ti e os teus.  Divulga o nosso blogue entre os nossos camaradas açorianos da diáspora!

PS - Na Internet, uma pessoa com este nome, num anúncio comercial, no portal Lisboanet... Pode ser uma pista...

CARLOS ALBERTO DE SOUSA EMÍDIO
Rua Marechal Gomes da Costa, 12 E
Famões, Odivelas, Lisboa 1685-901


Actividade: Instalação de canalizações


... Mas, como se costuma dizer, há mais Marias na terra!

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Notas do editor:

(*) Último poste da série> 2 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10104: O Nosso Livro de Visitas (140): António Rés Borié, ex-1º cabo cripto, Cmd Agr nº 16, Mansoa, 1964/66, camarada da diáspora, vive na Florida, EUA, e procura camaradas do seu tempo 

(**) Excerto da página do Carlos Silva, na parte relativa à história da CCAÇ 3476 (Canjambari, 1971/73):



(...) Caso Deserção do Sold Escrit nº 2055276 Carlos Alberto Sousa Emídio

17 – 08-1972 – Ao fim da tarde deste dia ausentou-se ilegitimamente o Sold Escriturário Carlos Alberto Sousa Emídio, constituindo-se mais tarde em desertor. Fora colocado nesta Companhia por motivo disciplinar, vindo da Sucursal do Laboratório Militar de Bissau.

18-08-1972 – Por todo este dia foram efectuadas buscas, e pelas 17H00 foram encontradas pegadas do Soldado ausente que seguiam na direcção da área da Bricama. O mesmo já fora desertor na Metrópole e o seu desaparecimento seria premeditado, em virtude de problemas de ordem pessoal e militares ainda pendentes, motivados pela sua deserção anterior.


[Fonte:] HU - História da Unidade, Cap II, pág 19

Será que este nosso camarada estará vivo? Faço votos para que sim.

Alguém saberá do seu paradeiro?

Guiné 63/74 - P10106: Parabéns a você (445): António Nobre, ex-Fur Mil da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861 (Guiné, 1969/70)

Para aceder aos postes do nosso camarada António Nobre, clicar aqui
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10096: Parabéns a você (441): Silvério Lobo, ex-Soldado Mec Auto da CCS/BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10105: Memórias de Manuel Joaquim (7): Miserere

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 28 de Junho de 2012:

Meus queridos editores:
Aqui vai mais um trecho das minhas memórias, "Miserere", sobre um momento operacional da CCaç 1419.

É a minha maneira de homenagear e recordar as vítimas da guerra. É, talvez, de cariz muito pessoal mas não poderia ser de outra maneira já que é a "minha" maneira, com toda a subjetividade que possa comportar pois cada um de nós terá o seu olhar (único) sobre a guerra e o modo como nela participámos.
Um grande abraço.
Manuel Joaquim


MISERERE

Do capim saem aromas a fazer recordar noites de verão nos campos da minha aldeia natal. Estamos deitados há largo tempo, até já sinto frio e viro de vez em quando o corpo de modo a procurar o calor que ainda brota do solo. Aguardamos o momento de voltar ao caminho a tempo de se poder atacar, ao alvorecer, uma “casa de mato” do IN na zona de Matar (“rico” nome para um combatente supersticioso).

Chegado esse momento, a coluna retoma a marcha e avança iluminada por um ténue luar de minguante, saído de uma lua em forma de C que nos permite “ver” algumas árvores dispersas. Parecem vigiar-nos, quais entes misteriosos, imóveis e ameaçadores. Sente-se o silêncio, só quebrado pelo ruído suave e descompassado dos passos a caminho da mata, uma massa negra de recorte pouco definido e que domina todo o curto horizonte. 

Ao entrarmos na mata desaparece a luz fraca da lua. Vamos agora em marcha muito lenta numa escuridão total. Apoio-me no ombro do camarada da frente, outro atrás de mim faz o mesmo comigo, olhos abertos não servem para nada, ali vamos numa marcha de cegos encostados uns aos outros, imersos na tal massa negra, como que viajando no ventre de um monstro que nos tivesse engolido.

Inesperadamente, três tiros e “Boum!” … um clarão / explosão fere violentamente a noite e o seu silêncio! Já quase deitado em reação imediata aos tiros, sou atingido por uma saraivada de pequenos projéteis, seguida de pequenas coisas que começam a cair-me em cima como se fosse uma chuva sólida! A um silêncio aterrador de alguns segundos sucedem-se alguns ais abafados e vozes ciciadas, sinais de vida na escuridão, sons que se misturam ao forte zunir dos meus ouvidos.

Levanto-me às apalpadelas, o solo que piso já não é o mesmo de antes, está irregular. Dou um ou dois passos e resvalo para um buraco, caindo em cima de alguém que solta pequenos ais. Diz-me que pensa estar bem, só se queixa de dores numa perna mas que a está a mexer sem dificuldade. Procuro-lhe a perna e ao apalpar noto que há um rasgão nas calças e uma humidade que deve ser sangue mas a ferida parece superficial.

Tateando no escuro, ajudamo-nos mutuamente a sair daquela cova. Percebo que há feridos e reconheço a voz do capitão:
- Acho que só temos um morto, o Tu” - referia-se ao guia auxiliar Tu Pongue que, naquele dia, carregava granadas de morteiro 60.

Sinto a respiração difícil, talvez devido ao pó levantado do chão, tento limpar o rosto e como que sinto um afago da Sorte na minha nuca! “Escapaste, Manel!”

Começam a ouvir-se ais de dor, contidos mas indiciadores de virem de alguém aflito, talvez com ferimentos graves. Dizem-me que são do Zé Maria…

Continuamos a funcionar às apalpadelas, tentando situar-nos naquela confusão. Entretanto surge ordem de retirada. Predomina o silêncio, poucas vozes se ouvem para além das necessárias para o “passa palavra” do Comando. Sabe-se já que, para além do Zé Maria, há mais dois feridos com gravidade, cada um deles alvejado no tronco com um tiro. Ainda na escuridão carrega-se o corpo do Tu e apoiam-se os três feridos graves; dois deslocam-se pelo próprio pé mas o Zé Maria é transportado pelos camaradas. A explosão abriu-lhe um buraco no baixo-ventre. É ele que o diz, angustiado e consciente da gravidade dos seus ferimentos.

A saída da mata coincide com o início da luz do dia. De olhos tristes e encovados olhamo-nos em silêncio, camaradas e solidários, alguns com rasgões na roupa e salpicos de sangue na face suja de pó. A visibilidade aumenta rapidamente. O Zé Maria recebe cuidados de enfermagem, tenta-se a sua estabilização e é carregado às costas de alguém mais possante. O dólman do camarada que o transporta está totalmente empapado de sangue nas costas, o seu tecido brilha com a luz matinal a incidir no sangue coalhado. Seguimos um trilho numa clareira com alguma extensão, talvez a mesma onde estivemos antes “acampados”. Afastamo-nos da orla da mata até uma distância que oferece alguma segurança. Aparece o DO-27, já temos comunicações.

Pede-se a evacuação das vítimas.

Organizada a segurança, aguarda-se a chegada do helicóptero. Procura-se acarinhar e confortar os feridos, principalmente sustentar a vida do Zé Maria já que os feridos a tiro parecem estar a aguentar bem. É assim esta guerra: três tiros na escuridão fazem três vítimas, um morto (o Tu) e dois feridos!

Entretanto, ouve-se perguntar pelo “Chaves” do 1.º Grupo de Combate. Ninguém sabe dele mas surge uma pista: o “Chaves”, só pode ter ficado no local da explosão! Era ele que levava o morteiro 60. E o morto que temos é precisamente o carregador das granadas do morteiro que, logicamente, estaria perto dele no momento da explosão. Aumenta a nossa consternação perante a verosímil suposição do que pode ter acontecido.

Perante isto, há necessidade de o procurar de imediato! Esta missão calha ao 2.º pelotão, o meu. Vinte e tal homens, agora à luz franca do dia e facilmente localizáveis pelo inimigo, voltam à mata à procura do desaparecido! Em linha, a uma distância de uns dois metros entre si, avançam pelo único caminho possível, o mesmo trilho que tinha sido usado há pouco, na retirada. Pensa-se no pior: o IN, que estranhamente não tinha dado ainda sinal de si, estaria à espera que fôssemos recuperar o nosso camarada! Seria o mais provável!

Tenho medo, estou cheio dele. Sigo com um aperto na garganta e uma pressão no peito que me provocam uma espécie de agonia prenunciando vómitos. Sinto-me prisioneiro em marcha para o suplício, a caminho da “boca do lobo”, a caminho do sacrifício. Ninguém fala. O silêncio, abafante e ameaçador, aumenta a sensação de sufoco num abraço de chumbo. Mas não há alternativa, temos de seguir até ao fim.

- Meu furriel olhe ali uma cabeça! É a cabeça do Chaves! É mesmo!

À beira do caminho, aí a um metro, percebe-se uma cabeça meio encoberta pela vegetação rasteira.

- Pois é! Tem calma, vai lá ver!

Chamo o alferes que está perto. Uns momentos depois fixamos o olhar numa cabeça inteira dependurada pelos cabelos nas mãos daquele soldado, enxuta de sangue, face lívida, olhos baços e muito abertos, só com um golpe nos lábios. O choque desta visão deixa-me abstraído de tudo por que estava a passar. Aquela cabeça ocupa-me violentamente os sentidos, ali está ela, a Morte, no seu gelado e terrível esplendor! Sou assaltado pela imagem bíblica de Salomé com a cabeça de S. João Batista e vejo momentaneamente em mim o rapazito assustado com tão atemorizante imagem dos seus tempos de catequese.

Caravaggio (1573–1610): “Salomé recebendo a cabeça de S. João Batista”

Mas a situação não dá para devaneios. Volto rapidamente à realidade bruta e crua. Reunimo-nos, o alferes e furriéis, para uma análise rápida da missão, afinal já tínhamos a certeza da morte do “Chaves” e a prova dessa certeza! Interrogamo-nos sobre o que fazer:

- E o resto do corpo? Estará por aqui aos pedaços? Não se vê qualquer indício! Que fazer, sair do trilho e procurar? Mas somos tão poucos! Valerá a pena corrermos mais riscos só por tal motivo? O mais certo é o resto do seu corpo ter sido pulverizado, não seria melhor regressarmos o mais depressa possível?

Saiu rápida a decisão de seguir até ao “olho do furacão” que forçosamente estaria próximo e de enfrentar o perigo de termos o IN à nossa espera. Temos de ir, temos de voltar ao local onde tudo aconteceu, temos de tentar encontrar mais partes do corpo do “Chaves”

Medo. Medo não, terror! Cérebro fechado para os ruídos ambientais que me parecem chegar compactados num zunido persistente, os sentidos apuram-se dirigidos para qualquer ruído estranho, um ramo a partir-se, um clique metálico…

Lentamente atingimos o objectivo que não estava longe do local onde se recolheu a cabeça. Após uma curva do caminho, a uns 10 a 15 metros, notamos um monte de terra fresca e uma árvore quase sem folhas. A explosão, ao desfolhar a árvore, abriu uma estreita clareira na vertical que deixa agora entrar a luz do dia, luz que parece afagar aquele pequeno monte de terra mexida, debaixo daquela árvore desfolhada.

Um pequeno grupo avança agachado para o monte de terra e percebe que a árvore está cheia de penduricalhos nos seus ramos. Horror, só podem ser pedaços de roupa e de tecido humano, despojos do nosso “Chaves”! Há um silêncio estranho, algo sagrado, tudo parece ter adormecido à volta do local. E o IN não dá sinal! Aproximamo-nos. - Eh!... Está aqui mais alguém! - Parece o Abel do 1.º pelotão! - É ele mesmo, o Abel! – sussurra, espantada, uma outra voz.

Por esta é que ninguém esperava! Surpresa total, era mesmo o corpo do Soldado Abel! Quase todo coberto por terra, o corpo parece intacto mas não está, falta-lhe um pedaço no lado direito do peito. Junto dele está a sua G3 semienterrada e veem-se diversas granadas de morteiro 60 a alguma distância do buraco provocado pela explosão do fornilho. Percebemos agora que o Tu deve ter caído para fora da fila, fulminado (e “empurrado”) com o tiro na cabeça, tendo as granadas de morteiro que levava ficado a uns dois metros do centro da explosão, o que impediu que pudessem rebentar por “simpatia”. Todos sentimos, naquele momento, quanto mais grave poderia ter sido o resultado daquela explosão!

Recupera-se o corpo do Abel e procuram-se no local mais restos mortais do “Chaves” mas não se encontra nada que se possa recolher. Levanta-se todo o material encontrado (não me lembro de termos recuperado o tubo do morteiro, talvez tenha acontecido mas admito que a força da explosão o tenha atirado para longe dali e ter-se decidido, naquelas circunstâncias, não corrermos riscos com a sua busca). E o IN continua sem dar sinal! Vemos agora que nem sequer veio ao local da explosão! Não deve ter gente disponível, a que tem deve estar em posição de defesa da sua “casa de mato”. Ainda deve estar com mais medo que nós e o mais provável é não sermos atacados.

Sinto que o clímax da acção já foi atingido. Talvez por isso estou inesperadamente sereno, quase funciono como um autómato no olho do furacão. Tudo pode estar a rodar à volta mas ali, naquele momento, não dou por isso. Estou, sim, é aliviado por a nossa pequena força ter cumprido a missão e ter tido a sorte de não ter sido atacada.

Regressamos ao sítio onde nos espera o grosso da Companhia, carregando os restos mortais do Abel e do “Chaves”. A marcha agora é mais acelerada. À medida que nos vamos aproximando fixo-me no carreiro à minha frente, alheio à paisagem envolvente como que dissolvida num grande borrão cinzento. Somos aguardados com dolorosa espectativa. Também já tinham dado pela falta do Abel. Sou envolvido por um misto de emoções: satisfação pelos resultados obtidos, alívio do medo e da angústia anteriormente sentidos, dor pela morte dos camaradas e uma grande, grande tristeza.

Chove-me na alma!

Os meios aéreos para as necessárias evacuações estão prestes a chegar, ouço dizer. Entretanto, o IN “acordou”! Já não era sem tempo! Da mata, do lado contrário ao local de onde há pouco tínhamos regressado, vem fogo disperso de RPG (?). Má pontaria. Tem a devida resposta da nossa parte mas tudo dura pouco e nenhuma granada do IN atinge a nossa área de estacionamento.

Chegam os helicópteros. Os feridos têm “aguentado”, menos o Zé Maria que tememos não chegar vivo a Bissau. Feitas as evacuações, regressamos a Bissorã. São uns “bons” quilómetros de caminho que nos esperam.

O calor abrasa mas a alma vai gelada! Olho para os camaradas e vejo, para lá de sofrimento, muito desalento nas suas almas que agora carregam o “peso” dos nossos primeiros mortos e feridos, cinco meses depois da nossa chegada a este “campo de jogos de morte”. Não há deuses que nos valham, ao contrário do que alguns já diziam. Quebrou-se hoje o “bom feitiço” e com resultados cruéis. Penso nos mortos e na dor que irá atingir os seus entes queridos. Penso nos riscos de morte e no sofrimento a que estamos sujeitos. Tantos sacrifícios, tantas ilusões! Que triste e inglório é ficar por aqui e por esta causa!

Como de costume, em momentos como este, “aparece-me” Beethoven com os acordes da sua 5.ª Sinfonia, a chamada “Sinfonia do Destino”: tantantantan!… tantantantan!... Sei a sinfonia de cor, de tantas vezes a ter ouvido antes de adormecer. Já sei que me vem ajudar a caminhar, a esquecer a sede e a relativizar esta merda toda. Já sei que me vem preencher os vazios do cérebro de modo a poder voltar a mim e à lembrança dos meus amigos e entes queridos. A minha mãe, tão frágil, acreditará nas “balelas” que lhe conto quanto ao que se passa aqui? O meu pai acreditará quando lhe digo que o perigo é diminuto, que tudo isto é muito lindo e ainda por cima me pagam um bocado mais do que o meu ordenado de professor primário?

- Pois é, paizinhos, o que eu quero dizer-vos mas não posso é que isto aqui é difícil e perigoso, que quero voltar hoje mesmo mas não me deixam, que não sei o que ando aqui a fazer, que odeio esta guerra. 
Eu sei, eu sei que me não entenderiam, pois o que me apetecia dizer-vos seria incompreensível para vós perante o que ouvem aos nossos governantes.
Sei que não entendem como pode este vosso filho discordar do Salazar, “um senhor ungido por Deus para salvar Portugal “, assim o ouvem dizer aos importantes da nossa terra, não é? E eu sei que é-vos mais fácil acreditar neles do que em mim, eu sei.
Eu sei que vocês sofrem, que se têm sacrificado muito pelos vossos três rapazes, o mano Hilário também “anda a batê-las” em Moçambique, ele está no pior sítio, em Mueda, mas vocês não sabem, ainda bem, pensam que ainda está em Boane, um sítio que o pai conhece bem, o que vos vale é que conseguiram pôr o mano Arnaldo em França! Oh pai, desculpa, então a Pátria? Pois, eu percebo, já era demais tanta carne para canhão, ao menos que se safe o mais novo! Mas por que raio continuam vocês a acreditar no “Botas”?

Empurraram-me para dentro do campo, tenho de jogar neste campo, nem há perguntas a fazer pois já sei as respostas. Estou num jogo, há sorte e azar, mas tenho de tentar a sorte, a sobrevivência, mesmo tendo a certeza que a minha equipa sairá derrotada no fim. Como vencer o adversário se ele tem os ventos da história a seu favor, se pode usar tantas artimanhas para compensar a sua eventual fraqueza, se pode estar em qualquer lado desta terra sem se dar por isso, se pode ser até alguém que nos aperta a mão, nos dá de comer e nos mata a sede?!

- Pois é, Manel, os teus lamentos não valem nem te valem de nada! Aqui não há caridade nem compaixão, estás preso, não te deixam sair. Só o tempo, meu menino, só o tempo e a sorte te soltarão. A sorte! Está tanto calor e arrepias-te com frio?! Estás no limite quanto a sonhos de futuro, todo o futuro perde significado nesta situação, aqui nada mais interessa do que chegar ao fim. Tens os sonhos adiados para quando daqui saíres, se saíres!

Já “cheira” a Bissorã. Coisa estranha, ao atingir zonas mais seguras, o corpo parece querer desistir de andar! Como está difícil este último lanço do percurso! É Janeiro, para lá do meio-dia, um calor abrasador, dei o resto da minha água a dois “desgraçados” exauridos, deixei umas gotas no cantil para molhar os lábios e assim enganar a sede.

Chego ao aquartelamento com as ideias em farrapos, náufrago daquela “tempestade”, já não sou o mesmo de ontem, já não somos os mesmos de ontem e já somos menos que antes, faltam-nos cinco camaradas. Saio, moro fora do quartel. As pernas arrastam-se a caminho de casa. Nem entro, estiro-me ao comprido no quintal, à sombra duma laranjeira … …

Já toda a gente sabia dos mortos e feridos. É dada a notícia de que o nosso “enfermeiro” Zé Maria chegou morto ao hospital. Há lamentos, lágrimas, imprecações, conversas cruzadas a contar o sucedido a quem tinha ficado no quartel. O 1.º Sargento da Companhia chora ao contar como se tinha revoltado com a atitude de “Bissau” que o tinha admoestado pelo facto de terem recebido um morto não identificado e pedindo-lhe que enviasse a respetivos elementos identificadores, ameaçando-o se o não fizesse de imediato. (Referia-se ao caso do “Chaves”. É óbvio que a sua placa identificadora não foi enviada porque tinha desaparecido. Mas que dizer de quem “exigia!” o que alguém traria ao pescoço quando o corpo foi “pulverizado”, só se encontrando a cabeça?!)

Procuro desanuviar, deitado debaixo da laranjeira. Tento encontrar, entre as folhas duma goiabeira próxima, um camaleão que por ali costuma andar à caça. É um jogo que costumo fazer, conseguir descobri-lo “desmascarando” a sua camuflagem. Mas desta vez desisto porque, inesperadamente, me dissolvo no Agnus Dei (o do “Requiem” de Verdi) que me atinge o cérebro num espasmo de angústia e de desamparo resultante do ambiente de pesar que invadiu aquela casa. Momento tão violento que nunca mais foi esquecido, até hoje. Sempre que oiço este trecho musical me lembro da madrugada e da manhã daquele dia cinco de janeiro de 1966. E é em memória desses meus camaradas e em memória de todos os outros mártires daquela guerra que, mesmo sendo agnóstico, aqui recordo o “Agnus Dei”:

- Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere nobis!
 -Agnus Dei qui tollis peccata mundi, dona nobis pacem!
(Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo, tem piedade de nós!
Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo, dá-nos a paz!).

E nós, os sobreviventes, por aqui andaremos durante mais algum tempo. Com sorte algumas das nossas memórias sobreviverão por tempos mais ou menos longos. Seremos “eternos” enquanto alguém se lembrar de nós.

A vida continuará, os meninos continuarão a rir, a cantar e a chorar, continuará a haver amor e morte, lágrimas e sorrisos, outros “soldadinhos” continuarão a ser joguetes de forças que não entendem, a natureza continuará a renovar-se ao sabor dos tempos, os nossos rostos continuarão a ser esculpidos pelo tempo até se dissolverem, com as suas memórias, no Tempo eterno e no Espaço infinito.

Para os não crentes na Divindade, a sua “imortalidade” está nos seus descendentes, na certeza de que a morte é condição para se manter a Vida.
Para os crentes haverá sempre a esperança num “Agnus Dei”, num “Miserere” para enfrentarem o “Dies Irae”, o Juízo Final.

Entretanto… procuremos, TODOS, ser felizes!
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10001: Memórias de Manuel Joaquim (6): Um acidente epistolar: "Furriel Mil Paulo Gabriel Péri Éluard"

Guiné 63/74 - P10104: O Nosso Livro de Visitas (140): António Rés Borié, ex-1º cabo cripto, Cmd Agr nº 16, Mansoa, 1964/66, camarada da diáspora, vive na Florida, EUA, e procura camaradas do seu tempo


1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) António Rés Borié, que vive nos EUA:

De: António Borié [tonisaborie@gmail.com]

Data: segunda-feira, 2 de Julho de 2012 13:52

Assunto: Comando de Agrupamento nº 16, Mansoa, Guiné, 1964/66


Caro camarada, Luis Graça:

Não calcula como fiquei comovido, por saber alguém com coragem, que fez vir ao de cima milhares de vozes de camaradas que passaram por essa guerra colonial do então ultramar português, que nos marcou para o resto das nossas vidas. 


Eu,  António, mais conhecido na guerra, no meu aquartelamento, por "O Cifra", pois era primeiro cabo cifra, fui mobilizado para a província da Guiné, no ano de 1964 onde permaneci até 1966. 

Durante a minha estadia na então provincia, andei por diversas zonas onde a guerra se começava a desenrolar, mas estacionei a maior parte do tempo na vila de Mansoa, onde iniciamos a construção do aquartelamento, que seria no futuro um forte posto avançado, para o interior da província. 

Agora com 70 anos de idade, uma das razões que me faz sobreviver, são as recordações, dessa guerra maldita, onde deixei um dos meus melhores amigos, e que me marcou para o resto dos meus dias. 

Tenho um livro escrito, mas ainda não publicado, onde conto alguns pormenores dessa guerra, que no tempo em que estive na província, estava a começar, e por isso era traiçoeira e imprevista, e nós sem muita preparação, e sem medicamentos de primeira necessidade, sofríamos emboscadas, e algumas vezes mortes, que mais tarde creio que seriam evitadas. 

Gostaria de saber se ainda existem camaradas vivos, que fizeram parte do Agrupamento 16, que esteve na Guiné de 1964 a 1966 em Mansoa. Mais uma vez o felicito pela sua coragem, e com todo o respeito, sou António Rés Borié, estou a viver os meus últimos anos de vida na Florida, nos Estados Unidos, o meu email é: tonisaborie@gmail.com, para onde me pode contactar, se o desejar.


Bem haja.





Blogue do camarada João Valentim, algarvio de Olhão, ex-casapiano, ex-1º cabo escriturário da CCS/BART 645, Mansoa, 1964/66. Este blogue merece uma visita mais demorada... De qualquer modo, trata-se de um contemporãneo do António Borié. Será que ele é capaz de o reconhecer, à distância de quase 50 anos ? O João Valetim tem mais oito (8) blogues, além deste...




Guiné > Região do Oio > BART 645 (1964/66) > "As trazeiras da Igreja. Um dos poucos edifícios de pedra e cal e talvez o mais alto."






Guiné > Região do Oio > BART 645 (1964/66) > "Mansoa , 1965. O depósito de água dentro do quartel".


Fotos (e legendas): João Valentim (2009) (Com a devida vénia...)


2. Comentário do editor:

Querido camarada Tony (julgo que é assim que te tratam na Florida): Antes de mais, tenho que te bater a pala!...Para já. entre camaradas, tratamo-nos por tu, o que simplifica muita coisa... Por outro lado, a antiguidade,  aqui, no nosso blogue,  é apreciada e respeitada. Pouca gente do teu tempo (, comparativamente com os mais novos, os piras da 1ª metade de 1970...)  se sente afoita para aparecer por estas bandas, contando as suas histórias, as suas alegrias e as suas mágoas... 

Com 70 anos e a  viver na Florida, és um jovem! Nada de discursos derrotistas ou pessimistas. Espero que tenhas muita saúde, longa vida e os dólares suficientes para viveres a tua 4ª idade com dignidade e qualidade...


Fico orgulhoso de ti e da tua ousadia de escrever um livro sobre a tua experiência de guerra na Guiné, há meio século atrás... Ficas desde já convidado a integrar a nossa Tabanca Grande: como mandam as regras, basta-te mandar duas fotos digitalizadas, uma do teu tempo de tropa (pode ser de Mansoa) e outra atual, da Florida...  Se assim o entenderes, tens o lugar nº 564 à tua espera, debaixo do frondoso e fraterno poilão da nossa Tabanca Grande. Como vês, já somos mais do que um batalhão...

Manda-nos também um a pequena história passada lá na região do Oio... O facto de teres sido cripto também significa que tivestes acesso a informação outrora classificada... Há coisas que estás muito mais à vontade para partilhar hoje, com todos os teus camaradas, quer os do teu tempo (1964/66) quer os piras que fecharam a guerra... 



Infelizmente não encontro ninguém do teu Comando de Agrupamento nº 16... Mas sobre Mansoa temos mais de 250 referências... E, em contrapartida, encontrei, por aí, o João Valentim, que foi 1º cabo escriturário da CCS/BART 645, e que portanto esteve contigo em Mansoa, na mesma época. Dá uma espreitadela ao blogue dele, onde há muitas fotos dele, nessa época. Vê se te lembras dele e dos sítios...


Por certo que vamos encontrar gente que esteve nessa época contigo, embora pertencente a outras unidades... Ficas também à vontade para publicar, no nosso blogue, alguns excertos do teu livro. Seria uma honra para nós. E vais ter aqui os teus mais entusiastas e apaixonados leitores. Isso garanto-te eu. Já saíram daqui, no nosso blogue, diversos livros e aqui nascem bons e grandes escritores... Pensa nisso. Recebe um grande abraço. E até à próxima. LG


PS 1 - O Comando de Agrupamento nº 16 foi mobilizado pelo RI 1. Partiu para o TO da Guiné em 23 de maio de 1964 e regressou a 14 de maio de 1964. Nesse tempo cumpriam-se dois anos de comissão... Esteve em Bissau e em Mansoa. Foi seu comandante o cap inf José Augusto Henriques Monteiro Torres Pinto Soares.


PS 2 - Sobre o BART 645 (´"Águias Negras") temos mais de 20 referências no nosso blogue. Sabemos que o seu pessoal há mais de trinta anos.O mais ativo dos seus representantes no nosso blogue é o Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66).


Mobilizado pelo RI 1, o BART 645 partiu para a Guiné em 4 de março de 1964 e regressou a 9 de fevereiro de 1966. Esteve em Bissau e em Mansoa. Teve dois comandantes: ten cor art António Braamcamp Sobral, e maj art Raul Pereira Baptista. Subunidades de quadrícula: CART 642 (Mansoa, Mansabá, Bissau(, CART 643 (Mansabá, Bissorã, Bissau) e CART 644 (Mansabá, Mansoa).
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Nota do editor:


Último poste da série > 15 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10034: O Nosso Livro de Visitas (139): Investigação sobre Guiledje (TCorEng José Berger)