Décimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Lá na Guiné, na “Mansoa City”, como o comandante Luís
gosta de lhe chamar, um certo dia de princípio de mês,
pagámos sete ou oito “pesos”, no bar dos “Balantas”, por
um copo de vinho verde.
O Curvas, alto e refilão, deu-nos um “abanão”, chamando-nos
entre outras palavras reles do seu normal
vocabulário, “bêbado”, “alcoólico”, “é só cigarros e vinho”,
depois, lá para o fim do mês, “andas à crava”, e por fim,
mal podendo abrir os olhos, pelo reflexo do luar,
colocando-nos a mão sobre o ombro, não sabendo nós,
se era num afecto de irmão ou talvez para se equilibrar,
entre dois soluços, dizia, “três cervejas, já não te
chegam”.
O vinho servido no aquartelamento era tinto e do barril,
estava a cargo do “Arroz com pão”, que era o cabo do
rancho, que para nós era um irmão, sempre nos facilitava
o seu consumo, cedendo-nos a chave do “curral”, que era
um casebre feito de latas, que existia entre outro casebre
do forno da padaria, onde entre outras coisas roubávamos
pão, quase todos os dias.
Mas voltando ao vinho verde,
daquelas garrafas ovais, era um luxo, era uma novidade,
pelo menos para nós que éramos “beirões”, e mais,
servido lá no bar dos “Balantas” era um “ronco”, bebido e
saboreado entre o aspirar do fumo dum cigarro “Três
Vintes”, sem filtro, daqueles que deixavam marcas entre os
dedos.
Lembranças de uma zona de guerra, de irmãos
combatentes, de quem nunca mais tivemos qualquer
notícia, oxalá andem por aí, fica-nos a lembrança, há que
seguir em frente, vamos contar um pouco daqui, onde
também existe vinho, que pode ser verde, tinto, branco,
do Porto, que dizem que é uma cópia, champanhe ou
qualquer outro derivado das milagrosas uvas.
Quase cinquenta anos depois, deixando a cidade de São
Francisco, no estado da Califórnia, atravessando a
“Oakland Bay Bridge”, sobre a Baía de São Francisco,
que é uma longa ponte, sobre um estuário que recebe
não só as águas do rio Sacramento e do rio São Joaquim
a partir das montanhas da Serra Nevada, como também
os rios que desaguam na baía de Suisun, a qual desagua
no estreito de Carquinez, para se unir ao rio Napa na
entrada da baía de São Paulo que se conecta com a Baía
de São Francisco, entrando finalmente no oceano
Pacífico.
Descrevendo tudo isto com alguns pormenores, talvez
faça alguma confusão, mas só assim podemos explicar a
importância do rio Napa e do seu extenso vale, que
tomando a rota de leste, um pouco para norte, nas
montanhas que circundam a estrada rápida, pode-se
admirar por uma extensão de dezenas e dezenas de
quilómetros, tanto de um lado como do outro, plantações
de vinha, organizadas, alinhadas, onde a sua
pulverização é feita por avionetas, que passam rasteiras,
assim como a sua colheita é mecanizada, fazendo-nos
entender que dali podia sair vinho ou seus derivados, que
podiam abastecer o resto do mundo.
Seguíamos em direcção à região do Napa Valley e
Sonoma Valley, que são dois extensos vales seguidos de
enorme planície, com algumas pequenas montanhas,
mesmo pequenas, mas cobertas de videiras e outras
árvores de fruto, onde nos disseram que sendo nós
europeus com toda a certeza que gostaríamos, pois
quintas, vinhas e adegas, não faltam na área.
Assim aconteceu, algum tempo depois, surgiu a placa de
sinalização anunciando “Napa Valley & Sonoma” e,
dizem-nos que tudo começou por volta da metade do
século dezoito, quando um tal H. W. Crabb, se
estabeleceu por aqui, próximo do rio Napa, e plantou 130
acres (1 acre = 4046,8564224 metros quadrados) de vinha, depois começou a dizer a toda a gente
que produzia 50.000 galões de vinho por ano, claro no
final desse mesmo século, já existiam centenas de casas
agrícolas plantando videiras, hoje existem aqui casas
agrícolas com vinhas e outras árvores de fruto por
distâncias de quilómetros, dizem que está considerada a
primeira região de vinho do mundo, existem mesmo
recordes de produção de vinho que vão desde o século
dezanove.
É uma zona de combinação de clima mediterrâneo e a
geologia na região, que fazem nascer videiras saudáveis
e as uvas com muita qualidade. Nós, lembrando o vinho
verde, dos sete ou oito “pesos”, do bar dos “Balantas”,
andámos de quinta para quinta, entrando e provando em
algumas, que sempre nos ofereciam o precioso líquido,
verificámos em algumas o modo de fabricação do vinho, a
limpeza e cuidado na preparação das pipas, o
envelhecimento e armazenamento, em túneis abertos na
rocha, por distâncias de centenas de metros, com
temperaturas controladas, com o líquido armazenado em
pipas de carvalho, que só tinham vida de cinco anos,
depois eram destruídas, ficando somente uma pequena
amostra para futura análise. Em algumas quintas também
serviam comida à base de queijos, carne curtida,
grelhados, saladas, pão de trigo ou centeio, e claro, vinho,
branco ou tinto, e com fartura, só que nesta idade, havia
controle, não como quando éramos jovens, mas mesmo
que não quiséssemos, eram amáveis, insistiam para
provar o precioso líquido, dizendo sempre que aquela
quinta produzia o melhor vinho.
Um pequeno pormenor, em algumas quintas um pouco
mais pequenas na sua dimensão, havia sempre um
jardim com plantas aromáticas, no meio das vinhas,
dizendo os responsáveis que era para atrair os insectos
ou mosquitos que por ali viviam, deixando assim as uvas
em paz, podendo crescer saudáveis.
Quando nos falaram em insectos ou mosquitos, logo nos
lembrámos das “bolanhas” de Mansoa e arredores, onde
aqueles malditos, pelo menos no começo da
comissão, nos feriam muito mais que as palavras reles do seu normal vocabulário, do saudoso amigo e
companheiro combatente, Curvas, alto e refilão.
Tony Borie, Maio de 2015
____________
Nota do editor
Último poste da série de 3 de maio de 2015 >
Guiné 63/74 - P14561: Libertando-me (Tony Borié) (15): Atravessando a Ponte Golden Gate, a pé, em S. Francisco