Meus caros camaradas
O meu "menino da Guiné" Zé Manel mostrou interesse em fazer parte do mundo desta nossa Tabanca Grande. Mas também me diz que não domina o uso de computadores e que tem dificuldades na sua utilização. E tem ainda mais problemas quanto ao uso de computador. O apoio dos filhos está agora difícil porque o computador que tem em casa não está funcional e outro, de que pode servir-se pontualmente, é o da filha mais velha que já não vive com os pais. De qualquer modo agrada-lhe a ideia de se tornar membro do blogue.
Combinámos ser eu a fazer a sua apresentação, pode ser? É o que estou a fazer enviando um trabalho meu que penso poder servir para esse efeito, trabalho este que é do seu conhecimento.
Bem, o que interessa é que ele se inscreva. Os problemas informáticos resolvem-se, com maior ou menor dificuldade.
Aguardo a vossa opinião sobre este assunto se acharem por bem dar-ma.
Saudações fraternas
Manuel Joaquim
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“Nha mininu” Zé Manel
“Nha mininu”, na festa dos seus 50 anos, com os padrinhos Manuel Joaquim e Deonilde Silva
Em 10/11/2010 foi publicado neste blogue o P7261 – História de vida: Adilan, nha mininu ou como se fica com um menino nos braços, onde são narradas as circunstâncias que me levaram à decisão de trazer um menino da Guiné, de nome José Manuel Sarrico Cunté, como decorreu essa vinda e como se integrou a criança na minha vida familiar e na vivência local. Na altura apresentei-o com o seu nome original, Adilan, nome que só ficámos a conhecer, eu e ele, muitos anos mais tarde quando voltou a viver na Guiné e conseguiu encontrar os seus pais. A propósito, ver o P7267, onde se relata o acontecido.
Acompanham essa história diversas fotos mas só duas se referem aos primeiros dias vividos no seio da sua nova família. Tinha mais algumas em “slides” mas perdi-lhes o rasto quando casei e saí da casa paterna. Na altura bem procurei, mas sem resultado. Recentemente, ao tentar recuperar um móvel vindo dessa casa tive a alegre surpresa de encontrar a caixinha com esses “slides”, perdida no fundo de uma gaveta há mais de 40 anos. São essas fotos do menino Zé Manel que, para além de umas outras, agora publico.
Para ajudar a enquadrar o tema transcrevo do já referido P7261 a descrição dos momentos vividos no final de Outubro de 1966 em que me responsabilizei por um pretinho, recolhido pelo 2.º Sargento Casimiro Sarrico durante uma operação militar realizada em Janeiro daquele ano. Este militar ficou a cuidar da criança durante cerca de dois meses, até ficar gravemente queimado por uma granada de sinalização que rebentou num bolso do seu camuflado. Evacuado para Lisboa, morreu no HMP alguns anos depois. E o menino foi levado para a caserna por soldados da CCaç 1419 e com eles ficou a conviver, ficando a ser conhecido por Sarrico como é fácil de entender.
(…)
“Nas vésperas da mudança, a sociedade civil local organiza um convívio para agradecer o trabalho da Companhia durante os 12 meses que permaneceu em Bissorã. Foram convidados os oficiais, os sargentos e algumas praças. Bom ambiente, muitas bebidas, bons petiscos e, com coisas destas, pouco tempo é preciso para se esquecer a razão das despedidas. Às tantas, alguém me convoca:
– Meu furriel, há para ali pessoal que quer falar consigo. Pedem p´ra ir lá.
Estranhando o despropósito do momento e da hora, bem noturna, lá vou até à porta.
– Oh nosso furriel, um favor, veja se convence o nosso capitão a deixar levar o Sarrico c´a gente p´ra Mansabá! É que ele não autoriza, já fizemos tudo e... nada! Veja lá se o convence!
Tento dizer-lhes que o capitão lá terá as suas razões... assunto complicado... não deve ser possível levar o miúdo... Mas perante tanta insistência, não resisti:
– Está bem, estejam descansados que eu vou tentar! Esperem aí!
Pego num uísque e por ali fico bebericando, conversando e aguardando a oportunidade de cumprir o prometido. Falo com alguns camaradas sobre o assunto mas ninguém está ali para pensar nisso. O ambiente está animado, barulhento e para mim… há uma resposta a dar ao pessoal que espera lá fora. Vamos lá!
Qual mensageiro da plebe castrense, já envolto em vapores etílicos, um bocado “leve” no andar e de fala um pouco entaramelada, lá vou eu ao encontro do capitão. De chofre, sem rodeios, em voz bem alta:
– Meu capitão, por que não deixa ir o Sarrico c´os soldados p´ra Mansabá? Estão pr´ali quase a...
Nem me deixa acabar. Com a voz ainda mais alta que a minha, atira logo:
– Meu caro Manuel Joaquim, responsabiliza-se por ele?
Pimba!!! ... que grande “martelada” na tola! Inesperadamente, em décimas de segundo, os meus neurónios excitados (anestesiados?) pelo álcool devem ter decidido eu dizer de imediato:
– Responsabilizo, pois!
O capitão, talvez surpreendido com tal resposta, engasga, pigarreia e ...
– Então está bem! Se assim é, o rapaz fica ao seu encargo a partir de agora!
– Com certeza, meu capitão! Vou já avisar o pessoal!
E não houve mais conversa! Meia volta e lá vou eu para a porta da rua ter com a malta, um pouco zonzo com o que me está a acontecer:
– Podem levar o Sarrico! A partir de agora está por vossa conta. E minha!!!
– Eh!.. bestial !!! Obrigado!!!
Caem-me em cima festejando e voltam para a caserna, rua fora festejando... eu volto à sala para festejar, digo a alguém “ já me f... ! ” e agarro mais um uísque para me ajudar a digerir o assunto.”
(…)
(Extrato do post P7261)
Logo ao alvorecer do dia seguinte ao facto acima narrado, lá segue o Sarriquito para Mansabá, integrado na CCaç 1419. Não tomei qualquer atitude para com o menino, era como se nada tivesse acontecido. Não falei com ele, nem sequer me aproximei durante os dois a três meses seguintes. Só quando decidi trazê-lo comigo é que começámos a conversar de vez em quando, mas sempre acompanhados por algum ou alguns dos soldados que se tinham comprometido a cuidar do menino.
Aproximando-se a data do fim de comissão, comecei a enfrentar um problema: Que fazer? Deixá-lo entregue “aos bichos” ou levá-lo para Portugal? A resposta está aqui neste post.
Saímos de Mansabá seis meses depois da saída de Bissorã e no dia 9 de Maio de 1967, à noite, o Zé Manel está em Portugal, perto de Pombal, e entra na minha casa paterna perante o espanto da minha mãe.
Lembro que trouxe o menino sem conhecimento da minha família nem sequer da mulher com quem eu casaria três meses depois. E só por uma razão, o ter receio de não ser capaz de enfrentar algum “NÃO” vindo das pessoas que me eram mais queridas.
Termo de compromisso e responsabilidade e autorização de viagem para Portugal.
A propósito de quando cheguei da Guiné ninguém saber nada sobre o assunto, transcrevo mais um bocadinho do P7261, na parte referente às primeiras horas vividas pelo Zé Manel no seu novo mundo, na sua nova casa de família, família de que ficou a fazer parte desde 1967. Esta transcrição começa logo a seguir a uma pergunta da minha mãe (- Então não levam o menino?), pergunta dirigida a quem me acompanhava quando cheguei a casa com o Zé Manel.
Não há entre nós, desde há muito, qualquer relação institucional de índole legal. O único documento oficial que existe é o “Termo de compromisso e de responsabilidade” acima referido, com efeitos só até à maioridade do menino.
(…)
Como que ficam assarapantados com a pergunta mas, de imediato, lhes digo: “Não lhe disse nada!” E logo para ela: “O menino fica comigo!”. A mãe fica de boca aberta, não quer acreditar. E há mais uns minutos de conversa motivada pelas circunstâncias.
Ao reentrar em casa, verifico que ele está sentado no mesmo sítio. Olha-me calmamente, agora sinto que me olha mesmo! Espantam-me a calma e a confiança que aparenta. Belo trabalho dos soldados, só pode ser.
Tentamos conversar. O seu português é tosco mas lá nos entendemos.
Vamos comer mais alguma coisa enquanto minha mãe vai recuperando da surpresa e do espanto. Depois, o sono vem depressa ao seu encontro e ele já não acordou antes de ser levado para a cama. Minha mãe quer perceber o que aconteceu para ter assim um menino em casa. E que menino! A conversa prolonga-se.
Acordo, bem tarde, no dia seguinte. Estavam os dois, no quintal, a tratar das galinhas e doutra bicharada.
“Maravilha!, sucedeu química entre eles!” – penso.
E minha mãe, ao dar pela minha presença:
– Queres saber? Logo de manhãzinha fui chamar as vizinhas: “querem ver a prenda que o meu Manel me trouxe da Guiné?”
Olha, vieram a correr e abri-lhes a porta do quarto, só se via uma bola preta, assim a cara, com duas coisas mais claras, assim os olhos, e elas não sabiam o que era! Abri um pouco as cortinas da janela para verem melhor e nem imaginas como ficaram! Ele estava acordado, muito quietinho de olhos arregalados, só com a cabeça fora dos lençóis!
Bela cena! Respiro fundo e começo a sentir-me bem, verdadeiramente.” (…)
(Extracto do post P7261)
Algumas das fotos aqui publicadas foram tiradas no domingo 14 de Maio de 1967, o quinto dia após a chegada do menino Zé Manel. Os três tínhamos acabado de chegar a casa, vindos da missa na igreja paroquial. A realização da missa facilitou a apresentação do Zé Manel à “sociedade” local. Foi um sucesso.
Foto 1 - Maio de 1967 > No jardim da sua nova casa, poucos dias depois de chegar da Guiné.
©Manuel Joaquim
Cinco dias depois de serem apresentados um ao outro, o tempo de convivência do Zé Manel com minha mãe já era superior ao que ele tinha tido comigo, incluindo o tempo passada na Guiné. Na Guiné e por minha opção, nunca convivi verdadeiramente nem sequer estive alguma vez com o menino a sós. Mas ele sabia que vinha comigo para Portugal. E veio, sem medo nenhum e já a gostar de mim. Tive a certeza disso em Abrantes, quando mo entregaram e ele se me entregou sem o mínimo problema. Os soldados com quem antes tinha convivido fizeram um trabalho extraordinário, preparando-o para este acontecimento.
Felizmente que tudo correu pelo melhor. Na aldeia e outras aldeias vizinhas, o menino era acarinhado por toda a gente mas o afecto de minha mãe sobressaía. Qual avó extremamente responsável e protectora, a senhora derramava sobre ele muita dedicação e carinho que só acabaram com a sua morte, 37 anos depois.
Foto 2 - 20 de Agosto de 1967 > Um casamento e um batizado. Logo a seguir ao meu casamento, houve o batizado do menino José Manuel Sarrico Cunté sendo meu pai o padrinho e minha esposa (a noiva) a madrinha.
©Manuel Joaquim
Integrou-se rápida e perfeitamente na vida social local e viveu com minha mãe durante os anos seguintes, cerca de quatro. Sozinhos os dois em casa, excepto nas férias de meu pai que estava emigrado em França. Só acabou este convívio diário quando minha mãe também emigrou, juntando-se ao marido. E por isso fez-se a sua transferência de escola para Agualva, Sintra, onde veio completar os dois últimos períodos da sua 4.ª classe.
Foto 3 - Maio de 1967 > Puxando sons da harmónica, da qual tomou posse logo que nela me ouviu e viu tocar.
©Manuel Joaquim
Foto 4 - 14/5/1967 > Explorando a harmónica com “madrinha” preocupada (?): “Este filho faz-me cada uma! Que vou fazer com este pretinho?”
©Manuel Joaquim
Foto 5 - 14 de Maio de 1967 > Com minha mãe, acabados de chegar da missa. Cada um, à sua maneira, parece estar a digerir a situação de convivência a que se viram forçados desde há quatro dias.
©Manuel Joaquim
Foto 6 - 14/5/1967 > Com a “madrinha” Piedade à volta das flores após chegada da missa dominical. O menino veste roupas compradas em Bissau pouco tempo antes do embarque.
©Manuel Joaquim
Foto 7 - Maio de 1967 > Explorando espaços à volta da sua nova residência.
©Manuel Joaquim
Foto 8 - Maio de 1967 > Junto do poço da horta, agarrado à vara da picota para tirar água e à sua já inseparável companheira, a harmónica.
©Manuel Joaquim
Foto 9 - Maio de 1967 > Com os primeiros amigos da brincadeira, o Tino e a cadela “Tina” (de Valentina Tereshkova).
© Manuel Joaquim
Foto 10 - Maio de 1967 > Serra da Sicó, vista do lado sul e da janela do quarto do menino Zé Manel. A primeira grande paisagem de Portugal que ele fixou e que o marcou, como também a mim quando pequeno. O meu “mundo” físico para além da Sicó era o mundo do mistério e da fantasia.
©Manuel Joaquim
Quando em Janeiro de 1971 teve de vir morar comigo e com a madrinha, já havia cá em casa uma “mana” com dois anos e meio, a Alexandra, e pouco tempo depois nasce outra, a Catarina. Como memória desses tempos, aqui vão duas fotos:
Foto 11 - Carnaval > Agualva > Com a madrinha Deonilde, passeando as maninhas Xana “Pipi das Meias Altas” e Tita.
©Manuel Joaquim
Foto 12 - Perto de Tomar com as suas “manas” Xana e Tita, numa pausa na viagem a caminho de Pombal e da “sua” aldeia, em visita aos padrinhos Zé Bispo e Piedade.
©Manuel Joaquim
Para terminar, acrescento duas fotos recentes deste “menino” nascido em Janeiro de 1961.
Numa delas, tirada por ocasião do seu último aniversário, está na companhia da sua “mana” Alexandra, minha filha mais velha.
Na outra, ele e eu estamos acompanhados por três ilustres membros desta Tabanca Grande, posando todos para a objectiva de um outro prestigiado membro da Tabanca, o Jorge Portojo.
O Zé Manel acompanha-me quase sempre no convívio anual da CCaç 1419. Em 2014 foi escolhido o restaurante Choupal dos Melros em Fânzeres, Gondomar, para essa confraternização. A data de 10 de Maio coincidiu com a da Tabanca dos Melros no seu regular e sempre animado convívio no referido local. Esta coincidência de datas permitiu termos tido (CCaç 1419) a agradável surpresa da visita dos meus queridos camaradas deste blogue: Jorge Portojo, Carlos Vinhal, Jorge Teixeira e Fernando Súcio.
Foto 13 - Janeiro 2014 > Zé Manel com a sua “mana” Alexandra.
© Manuel Joaquim
Foto 14 - Fânzeres, Gondomar > 10/5/2014 > Da esquerda para a dirteita: Fernando Súcio, Jorge Teixeira, Manuel Joaquim, Carlos Vinhal e José Manuel Sarrico Cunté.
©Jorge Portojo
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2. Comentário do editor
Era imperdoável o "nosso menino" Zé Manel não fazer parte da tertúlia. Podemos dizer que a partir de hoje o nosso Xico de Fajonquito (Cherno Baldé) não está tão só.
O primeiro radicado em Portugal desde muito novinho e o segundo a viver no seu país, são dois bons exemplos daqueles meninos que de alguma forma gravitavam à volta dos militares. Foram tantos que não haverá nenhum combatente que não se lembre de os ver a fazer pela vida nos quartéis, procurando comida ou fazendo pequenos serviços. Comiam connosco e ajudávamos-lhes nos estudos. Dou o meu testemunho, recordando os jovens Adulai e Braima, rondando os 10 anos, que nos faziam companhia na Messe. Praticamente só dormiam na Tabanca. Tivemos ainda connosco, durante algum tempo, o Salifo Seidi, um menino muito pequeno, talvez com 5 anos, que a família quis retirar do quartel e enviar para a família, ao que sabíamos, simpatizante do PAIGC.
Não é necessário acrescentar mais nada a esta apresentação porque o Padrinho Manuel Joaquim a fez muito completa, além de que no nosso Blogue foram publicados alguns postes onde está documentada a vinda do Zé Manel para Portugal, basta clicar no marcador José Manel Sarrico Cunté, e porque ele já participou em Encontros Nacionais da Tabanca Grande.
Porque o nosso novo tertuliano não se dá muito bem com estas modernices da internete, pedimos ao Manuel Joaquim que seja portador do abraço de boas-vindas que a tertúlia e os editores lhe enviam.
O nosso obrigado ao Manuel Joaquim por este belo trabalho de texto e fotos de família.
Carlos Vinhal
co-editor
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15351: Tabanca Grande (476): Carlos Valente, ex-1.º Cabo do Pel Mort 2005 (Guiné, 1968/69), 705.º Grã-Tabanqueiro