Queridos amigos,
Tenho procurado fazer o inventário da documentação publicada logo em 1974 sobre a obra de Cabral. Creio que este era a antologia em falta. Quem a fez, conhecia aprofundadamente o pensamento do líder do PAIGC, escolheu com conhecimento de causa um conjunto de texto apropriados para entender o pensamento e ação de Cabral, estão aqui extratos de artigos, intervenções, discursos, entrevistas, conferências e mensagens.
Tirando Cabo Verde, onde a Fundação Amílcar Cabral é operante através da publicação da sua obra, fazendo seminário e conferências, é raríssimo estudar-se Cabral, aquele pensamento revolucionário entrou em desuso ou ficou desgastado pelas desilusões que deixaram os seus seguidores na Guiné-Bissau.
Um abraço do
Mário
Textos políticos de Amílcar Cabral
Beja Santos
Penso que com esta recensão se conclui a enumeração dos livros dedicados ao pensamento de Amílcar Cabral e editados a seguir ao 25 de Abril. Neste caso trata-se de uma seleção que inclui declarações sobre o assassinato, como se verá adiante, era toda a conveniência atribuir o assassinato ao colonialismo português.
Trata-se de uma seleção com um critério sólido, quem a ela procedeu conhecia aprofundadamente a documentação de Cabral. Encontramos aqui excertos de artigos publicados a partir de 1962, intervenções, como a que fez no Centro Frantz Fanon, de Milão, o excerto do seu discurso, a “Arma da teoria” proferido na primeira conferência de solidariedade dos povos de África, Ásia e América Latina, Janeiro de 1966, Havana. É indispensável ler este documento para perceber como esta reflexão política projetou definitivamente o nome de Amílcar Cabral para o primeiro plano do movimento revolucionário. Foi um discurso que provocou celeuma, alterava a ortodoxia do pensamento marxista quanto a luta de classes e ao papel de vanguarda do partido revolucionário. Vejamos como o líder do PAIGC observava a nova realidade das revoluções do Terceiro Mundo:
“Os que afirmam – e com razão – que a forma motora da história é a luta de classes, estariam certamente de acordo para rever esta afirmação, a fim de a precisar e de lhe dar um campo de aplicação mais vasto, se conhecessem mais profundamente as caraterísticas essenciais de certos povos colonizados. Com efeito, na evolução geral da humanidade e de cada um dos povos que a compõem, as classes não aparecem nem como fenómeno generalizado e simultâneo na totalidade destes grupos, nem como um todo acabado, perfeito, uniforme e espontâneo. A definição de classes, no seio de um ou vários grupos humanos, é uma consequência fundamental do desenvolvimento progressivo das forças produtivas e das caraterísticas da distribuição das riquezas produzidas por este grupo ou confiscadas a outros grupos. Fatores externos a um dado conjunto socioeconómico em movimento podem influenciar de maneira mais ou menos significativa o processo de desenvolvimento das classes, acelerando, travando-o, ou mesmo provocando regressões”.
E, mais adiante a sua reflexão parecia explodir como uma bomba:
“Tudo isto permite levantar a seguinte questão: será que a história só começa a partir do momento em que se desenvolve o fenómeno “classe” e por consequência a luta de classes? Responder afirmativamente seria situar fora da história todo o período de vida dos grupos humanos que vai da descoberta da caça, e posteriormente da agricultura nómada e sedentária, até à criação dos rebanhos e à apropriação privada da terra. Seria então também – o que nos recusamos a aceitar – considerar que muitos grupos humanos da África, da Ásia e da América Latina, viviam sem história no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo. Seria de considerar que a população dos nossos países, tais como os Balantas da Guiné, os Koaniamas de Angola e os Macondes de Moçambique vivem ainda hoje, se abstrairmos das ligeiras influências do colonialismo às quais foram submetidos – fora da história ou sem história.
Esta recusa, baseada aliás no conhecimento concreto da realidade socioeconómica dos nossos países e na análise do processo de desenvolvimento do fenómeno “classe”, levamos a admitir que, se a luta de classes é a força motora da história, só o é num certo período dado. Isto quer dizer que antes da luta de classes – e necessariamente após – um fator, ou fatores, foi e será o motor da história. Admitimos sem custo que este fator da história de cada grupo humano é o modo de produção – o nível das forças produtivas e o regime de propriedade – que carateriza este agrupamento. Mas ainda a definição de classe e a luta de classes são elas próprias o efeito do desenvolvimento das forças produtivas conjugadas com o regime de propriedade dos meios de produção. Parece-nos pois correto concluir que o nível das forças produtivas, elemento determinante do conteúdo e da fórmula da luta de classes, é a verdadeira e permanente força motora da história”.
Consta que a sala em que ele discursou estava completamente siderada, o pensamento ortodoxo e dogmático sofria fissuras, o conceito de luta de classes e o nível das forças produtivas eram severamente questionados.
Amílcar Cabral possuía não só um pensamento político sólido como sabia encontrar fórmulas frescas para renovar o conceito das lutas de libertação: é o caso da sua apreciação sobre o papel da cultura da luta pela independência como no conceito de que a luta contra a guerra colonial transformaria a realidade portuguesa, como termo à ditadura.
Na sua mensagem de Ano Novo de 1973, Cabral profere o seu último discurso, refere-se às eleições para a primeira Assembleia Nacional que iria aprovar a constituição da República, e a reunião dessa Assembleia levaria à proclamação do Estado da Guiné-Bissau. Dentro do balanço, recorda os apoios recebidos ao longo de 1972, a guerrilha era inicialmente apoiada pela URSS e seus aliados, e com a credibilidade internacional que o PAIGC granjeara, os países escandinavos, o Concelho Mundial das Igrejas, a Cruz Vermelha Internacional e várias agências das Nações Unidas tinham passado a dar uma cooperação a favor das populações. E acrescentou:
“… nenhum crime, nenhuma força, nenhuma manobra ou demagogia dos criminosos opressores colonialistas portugueses poderá deter a marcha da História”.
Assassinado dias depois, a 20 de Janeiro, sucedem-se as declarações de pesar e de encorajamento. Logo o PAIGC, reafirmando a sua determinação de vingar “esta traição ignóbil pela exterminação dos colonialistas e dos seus agentes corruptos”, era com esta fórmula que se procurava enredar as autoridades de Bissau ao complô de centenas de guineenses que nessa noite prenderam os quadros e funcionários cabo-verdianos. As mensagens do MPLA e da FRELIMO, por dever de ofício, atribuíam o crime ao regime colonial-fascista e exaltavam o pensamento e obra de Cabral.
Funeral de Amílcar Cabral em Conacri
Fundação Mário Soares, com a devida vénia
____________Nota do editor
Último poste da série de 18 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16732: Notas de leitura (903): “Bijagós, Património Arquitetónico", por Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade, fotografias de Francisco Nogueira, 2016 (Mário Beja Santos)