terça-feira, 27 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20099: A galeria dos meus heróis (32): o angolano que serviu duas pátrias, Portugal, como furriel miliciano do exército colonial (1973/75) e Angola, como tenente das FAPLA (1975/ c. finais de 1980) (Luís Graça)


Bandeiras de Angola & Portugal. Imagem: Foto Arte.  Cortesia de Angop (2014)



A galeria dos meus heróis > Servir duas vezes a pátria, ontem Portugal, hoje Angola...

por Luís Graça


 



1. Ilha de Luanda, Clínica X. 23/7/2013. Levanto-me às cinco e meia da manhã. É dia ou quase dia. Às seis em ponto,  o motorista de ambulâncias da clínica  já está pronto para me levar ao aeroporto, de regresso a Lisboa. É o meu motorista habitual, quando aqui venho, à ilha de Luanda em serviço... É o meu motorista das partidas.

Já o conheço há uns anos... E costumo trazer-lhe uma garrafa de vinho tinto português, comprada 
no "freeshop" do aeroporto de Lisboa.  Voltarei a encontrá-lo para a próxima semana.  Sábado, venho de novo a Luanda, para dar formação, desta vez,  a futuros médicos do trabalho. É a 1ª edição do curso de medicina do trabalho em Angola.

O meu motorista, o  C... [, não o quero identificar, nem a ele nem à empresa onde trabalha, já que não lhe pedi autorização expressa para contar a sua história de vida,]  "estava de férias", mas levantou-se para me conduzir, a tempo e horas, até ao aeroporto de Luanda.


Há um outro motorista, mais jovem, mas mora longe. Sair de casa a essa hora é arriscado, devido à insegurança nos musseques. Mesmo assim, na Clínica, há gente (incluindo médicos) que sai de casa às 4h da manhã para vir trabalhar!...A vida é dura para os luandenses que precisam de trabalhar. 

Esse outro motorista, mais jovem, que costuma ir buscar.me ao aeroporto, à noite, não é tão fiável: um dia, ficou à minha espera, à noite, devia estar cansado, adormeceu na viatura,  o avião atrasou-se... Enfim, deixou-me completamente "pendurado", sem transporte nem telemóvel: foi uma pequena aventura, chegar, à Clínica, às 11 h da noite, com um jovem "taxista" de ocasião, numa viatura, sem portas, completamente "descaracterizada" e "canibalizada", com o tabliê esventrado... 

Foi, seguramente, a viagem de "táxi" mais surrealista da minha vida: custou-me 40 euros,  todo o dinheiro trocado que tinha no bolso, nem sequer tinha cuanzas ou dólares para pagar ao mais jovial, simpático e prestável "taxista da candonga", a quem confiei a minha bolsa e talvez até a minha vida. 

Fomos todo o caminho a conversar sobre tropa, médicos e militares... Ele fizera tropa mas já não fora à guerra... Puxei dos meus galões, e falei-lhe de alguns nomes de gente da "nomencltura" que me gabava de conhecer... Acabou por ser uma relação empática e lá cheguei ao destino sem mais problemas.

2. Mas voltando ao C... É um homem afável, de 59 anos, mestiço, do Kuanza Sul (, salvo erro), província a sul, a cerca de 300 km de Luanda...  Pelas minhas contas deve ter nascido em 1953/54.


É preciso atravessar Luanda, de uma ponta à outra, até chegar ao aeroporto... Nas horas de ponta, pode ser um inferno. Daí ter que me levantar às 6 da manhã... para estar com uma certa margem de segurança, a tempo e horas, no aeroporto... É outra aventura, mesmo com "passaporte especial", até poder sentar-me no meu lugar do avião da TAP e poder, enfim, respirar fundo... 

Além disso, levo comigo, dez mil dólares, em maços de notas, limite máximo legal... E o credo na boca:  não é dinheiro meu, é da minha Escola, e vai servir para pagar viagens e ajudas de custo dos próximos formadores... Enfim, uma forma expedita, um desenrascanço, à portuguesa e à angolana, para contornar a morosidade burocrática da transferência de dinheiro entre os dois países...

O C... mora na ilha de Luanda, perto da Clínica aonde fui dar formação e onde ele trabalha, como motorista de ambulâncias... Trabalho que, diga-se de passagem, não é pêra doce: há uns largos anos atrás, talvez em finais da década de 1990, a sua ambulância foi metralhada num musseque dos arredores (, ele disse-me o nome, que não fixei), quando um "grupo de bandidos" (sic) tentava assaltar a casa de um "fulano ricaço" (sic)... 


Os "bandidos, que não sabiam ler" (sic), confundiram o "tinonim" da ambulância com o carro da polícia... Houve feridos graves, baleados dentro da ambulância; mas, mesmo com os pneus todos furados, e o assento do motorista todo crivado de balas, o meu amigo C... lá conseguiu safar-se, são e salvo... Revelou grande sangue frio e coragem, dois atributos essenciais para se poder sobreviver numa cidade como Luanda de 5 ou 6 milhões de habitantes onde só uma escassa elite privilegiada tem vida segura e  decente.

Esse sangue frio e coragem vêm-lhe do tempo da guerra. É um duplo ex-combatente. Tem muitas histórias para (e por) contar. Rapidamente criei com ele um laço de cumplicidade e uma grande empatia. Nada como dois ex-combatentes encontrarem-se.... Fez a guerra colonial, do lado português, com "muita honra" (sic), creio que por volta de 1972/74 (*) ou até talvez 1973/75 (, já não posso precisar). Era furriel miliciano. Serviu "a sua pátria de então" (sic). 

Angola > Posição relativa da privíncia de
 Kuando Kubango, 
Adapt. de Wikipedia
Quando os sul-africanos, os zairenses e outros invadem Angola, sua terra, as FAPLA, as Forças Armadas para a Libertação de Angola, convocam-no para as suas fileiras. Foi então 1º tenente de infantaria, comandando cerca de 70 homens (, se bem percebi). Participou em várias batalhas. E lá ficou na tropa e na guerra até à desmobilização, em finais de 1980, se não erro... Também se queixa, tal como nós,  de o Estado angolano ter abandonado os seus antigos combatentes...

3. Pelo que percebi, também terá estado  na província do Kuando Kubango (e, possivelmente, na batalha de Kuito Kuanavale, de trágica memória para todos os contendores de um lado e do outro, angolanos, cubanos, soviéticos, sul-
africanos)...


Mas a cena mais dramática da guerra para o meu amigo C... não foram os bombardeamentos 
maçiços  da artilharia, cavalaria e aviação dos sul-africanos no sul, foi sim uma emboscada às portas de Luanda (a cerca de 100 km, se bem percebi), a um coluna de várias viaturas guarnecidas po um grupo de combate que ele comandava, composto por cerca de 30 homens. 

Tenho dúvidas se foi na altura da batalha de Kifangondo [, em 10/11/1975], às portas de Luanda ou se foi no âmbito da batalha do Ebo...  Em qualquer dos casos, o desfecho destas duas batalhas foi fundamental para reforçar a posição do MPLA. 

Pela descrição da batalho do Ebo (no portal cubano EcuRed, que não pode todavia ser considerado uma fonte independente), inclino-me mais para a primeira hipótese, a da emboscada em que caiu a coluna comandada por C..., ter ocorrido no âmbito da batalha de Kifangondo, a escassa centena de quilómetros de Luanda, a nordeste.

Nessa altura as forças que apoiavam a FNLA já tinham tomado o Caxito, estando às portas de Luanda.  Eram constituídas pelos comandos de Santos e Castro, por forças do exército regular do Zaire, e por uma unidade de artilharia dos sul-africanos mais um grupo de mercenários.   

Sobre batalha de Kifangondo (em 10 de novembro de 1975), vd. aqui o depoimento do general António França 'Ndalu' (chefe do Estado-Maior da 9ª Brigada, uma unidade das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola,  criada uns meses antes para "defender Luanda das investidas do inimigo contra a capital, nos dias que antecederam a Independência no dia 11 de Novembro de 1975"]. 

Já agora leia-se, com atenção, também o seguinte comentário de um anónimo:

"O que o General António dos Santos França, na altura Comandante N´Dalu, não mencionou, talvez por não lhe ter sido perguntado, foi a constituição da 9ª Brigada . Estavam incluídos nela os melhores guerrilheiros das então FAPLA, e principalmente militares angolanos desmobilizados das forças portuguesas, onde se incluiram também paraquedistas e comandos portugueses. 

Ouvi pessoalmente oficiais cubanos a elogiarem a preparação destes militares do contingente de Angola nas forças portugueses. Foi a 9ª Brigada e os cubanos quem destroçaram as forças da FNLA/Zairenses/sul-africanos a norte, e perseguiram os sul-africanos estacionados próximos de Porto Amboim até à fronteira, no Cunene. 

Paradoxal e infelizmente, a maioria dos militares da 9ª Brigada foi fuzilada dois anos depois, nos acontecimentos do [27] de Maio [de 1977]".

É muito possível que o meu amigo C... seja um daqueles jovens, desmobilizados do exército português, que se ofereceu voluntário para a 9ª brigada... Mas tenho que admitir também a  hipótese do meu amigo C... ter participado na batalha do Ebo onde morreria o comandante cubano Raul Díaz-Argüelles (1936-1975),em 11 de dezembro de 1975 (um mês depois da proclamação da independência de Angola). 

Recorde-se que o Diaz-Argëlles também passou pelo TO da Guiné, em 1972, ao tempo da guerra colonial, tendo ajudado o PAIGC a planear a operação contra Guileje.
Angola > Província de Cuanza Sul.
Fonte: Cortesia de Wikipedia

A batalha do Ebo, a sudeste de Luanda, que teria sido travada em 23 de novembro de 1975, a par da batalha de Kifangondo (a nordeste de Luanda),  foi decisiva para suster o avanço das forças  anti-MPLA  que pretendiam impedir a proclamação da independência em Luanda pelo partido de Agostinho Neto.

É bom lembrar que, à revelia da potência colonizadora, Portugal, e do Acordo do Alvor (janeiro de 1975),  cada um dos três movimentos nacionalistas proclamou a independência de Angola em sítios e datas diferentes: a FNLA  no Uíge, a UNITA no Huambo e o MPLA em Luanda.

Não tive oportunidade, no trajeto até ao aeroporto, 
de esclarecer este e outros pormenores importantes da história... que me foi contada a título de confidência. 

Ia com um ouvido atento à conversa com o motorista e um olho no vidro da janela do meu lado... Reconstitui a nossa conversa uns dias depois de chegar a Lisboa. E posso estar a ser traído pela memória. Mas confio na boa fé do meu amigo angolano.

Essa emboscada (ou ataque de artilharia ?) poderia ter sido  quando as forças sul-africanas,  que invadiram Angola,  chegaram até ao sul do Ebo, na província do Kwanza Sul, ameaçando Luanda. Os angolanos e os cubanos destruiram as pontes e sustiveram o avanço dos invasores justamente no Ebo (município a 300 km de Luanda).

Segundo o depoimento do C..., nessa emboscada, as viaturas foram todas destruídas, as FAPLA tiveram cerca de 2/3 de baixas mortais, incluindo 7 cubanos e 12 angolanos... O C... , na altura tenente e comandante da força, nunca mais se esqueceria desse "dia pavoroso" (sic), em que viu, mais uma vez, a morte à sua frente.


Mas o nosso amigo C... diz que a emboscada ocorreu a c. de 100 km de Luanda, portanto às portas de Luanda, a nordeste da capital... Logo só poderia ser no âmbito da batalha de Kifandongo e não do Ebo (a mais de 300 km, a sudeste de Luanda)

Depois de desmobilizado, começou a trabalhar na Clínica quando esta reabriu em 1990/91. Ele já pertencia ao quadro de pessoal da Endiama (, herdeira da Diamang), proprietária da Clínica. 

Conversa puxa conversa, diz-me que "já não há bandidos na ilha de Luanda e no centro de Luanda" (sic). A polícia "limpou-os" (sic). A esta hora, 6 da manhã, há grupos de 3 e 4 brancos (presumivelmente estrangeiros, incluindo portugueses,  a trabalhar em Luanda) que andam a fazer "jogging" na marginal. 

As praias estão "limpas",  contrariamente ao que se via há uns anos atrás... A zona agora é "turística" (sic), as barracas dos pescadores desapareceram... Enfim, a cidade mudou, "para melhor"... "Bandido é no musseque onde a polícia não entra" (sic). 

Tinha-lhe prometido trazer uma garrafa de vinho de Lisboa. Deixei-lhe cuanzas para beber um copo à nossa saúde e à nossa condição de antigos combatentes, homens da mesma geração, nascidos sob a mesma bandeira, falando a mesma língua...

Percebo agora melhor porque é que os nossos amigos  angolanos, são pessoas que vivem com tanta intensidade o dia que passa e manifestam publicamente a sua felicidade, através da comida, da bebida, do sexo, da música, da dança. 

"Para ser feliz tem que ser aqui em Angola", diz um kudurista dos musseques de Luanda no filme angolano "I Love Kuduro", do realizador português Mário Patrocínio, (a cuja estreia, em Portugal, eu assisti, em novembro de 2013, no Cinema São Jorge, no âmbito do doclisboa'13)... 

4. Confesso, por outro lado, a minha grande ignorância em relação à história e à geografia de Angola, apesar de lá ir já desde 2003...  

Por exemplo, Kuando Kubango... É uma província situada no sudeste do país. Verifico que é limitada a norte pelas províncias do Bié e Moxico, a leste pela República da Zâmbia, a sul pela República da Namíbia e a oeste pelas províncias do Kunene (onde a guerrilha da SWAPO tinha bases e campos de refugiados) e Huíla. A capital da província é a cidade de Menongue e dista de Luanda mais de mil km e de Kuito menos de 350 km. Tem cerca de 140.000 habitantes e ocupa uma superfície duas vezes superior a Portugal...

É constituída pelos municípios de Kalai, Kuangar, Kuchi, Kuito Kuanavale, Dirico, Mavinga, Menongue, Nancova e Rivungo. O clima é tropical no norte da província e semi-árido no sul. Esta região de Angola é conhecida atualmente como "terras do progresso», devido ao seu grande potencial económico, praticamente por explorar.

Mas voltemos à guerra, à chamada segunda guerra da independência em que participou o nosso amigo C.... Durante muito tempo alguns municípios (como Mavinga, Dirico, Cuchi e Kuito Kuanavale) serviram como bases de apoio à guerrilha da UNITA, liderada por Jonas Savimbi, que só abandonou completamente estes territórios (a famigerada "Jamba") em finais de 2001, aquando da ofensiva das forças armadas angolanas. 


É sabido que o Movimento do Galo Negro recebeu apoio dos EUA e da África do Sul, na luta contra contra o MPLA, que por sua vez era apoiado pela União Soviética e Cuba. Estávamos em plena guerra fria. Angola era uma peça importante no tabuleiro do xadrez da geopolítica mundial, sendo cobiçada pelas potências neocloniais pelas suas riquezas (, o petróleo, os diamantes) mas também era fundamental para a sobrevivência do regime de supremacia branca na África do Sul...

A batalha de Kuito Kuanavale terá sido o maior confronto militar da guerra civil angolana. Foi um batalha sangrenta e prolongada durante mais de 4 meses, entre 15 de novembro de 1987 e 23 de março de 1988.


Foi aqui , na província de Kuando Kubango , e mais concretamente no munícipio de Kuito Kuanavale, que as FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), apoiadas pelos cubanos e com armamento soviético, se confrontaram com a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), apoiada pelo exército sul-africano.

Foi considerada a batalha mais longa travada no continente africano desde a Segunda Guerra Mundial.

Nesta batalha de Kuito Kuanavale, foi posto em cheque o mito, aos olhos dos angolanos, da invencibilidade do exército "racista" da África do Sul. 

Independentemente das duas partes terem clamado vitória, a África do Sul terá sido obrigada a reconhecer tacitamente a superioridade demonstrada pelas FAPLA (e seus aliados cubanos) no campo de batalha. 

Isso explicará a posterior assinatura dos Acordos de Nova Iorque, ponto de partida para o fim de um conflito que afinal não era apenas uma guerra civil, nem um simples conflito regional. 

Como é sabido, a implementação da resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU vai levar à independência da Namíbia e apressar o fim do regime de segregação racial, que vigorava na África do Sul.

Se eu ainda conseguir voltar a Angola em 2020, espero poder reencontrar e  abraçar o meu amigo e camarada C..., agora com 65 ou 66 anos. E continuar a nossa conversa, à mesa, com um copo de tinto português. Ele é um dos bravos que passa a figurar na "Galeria dos Meus Heróis" (**). 

Lisboa, julho de 2013. Revisto.

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Notas do editor:

(*) Quem sabe, pode ter feito parte do BCAÇ 3880 ou até da CCAÇ 3534, do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro... 

Guiné 61/74 - P20098: Parabéns a você (1673): Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor:

Último poste da série: 25 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20092: Parabéns a você (1672): Manuel Carmelita, ex-Fur Mil Radiomontador do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20097: Manuscrito(s) (Luís Graça) (170): Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares: Parte II - Extremadura(s): doce é a guerra para quem não anda nela...




Torres Vedras > União das freguesias de A dos Cunhados e Maceira > Maceira > Estrada (particular) das Termas do Vimeiro (Fonte dos Frades) até à Praia de Porto Novo; ao lado passa o  Rio Alcabrichel (, nome que presumimos ser de origem árabe: o rio nasce na Serra de Montejunto e desagua na Praia de Porto Novo, Maceira)

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

EXtremadura(s)


por Luís Graça



1. Casas caiadas, paradas, o silêncio escorrendo, liquefeito, pelas paredes; nas águas furtadas já não dormem as criadas e na antiga praça do paço da rainha, ah!, já não se ouve o frufru das sedas, corroídas pelo bicho da traça. 

2. “Esquecei o que vedes”, diz um "aviso ao povo", apregoado pelo almotacé da cidade, poeta, negro, escravo liberto, enquanto, não longe, em Porto Novo, o mar é de labaredas, e os turistas, "voyeuristas", espreitam por ruelas e veredas e pátios e vãos de escada. 


Com a globalização, veio a gentrificação, lamenta-se a menina do posto de turismo.

3. Há bonecas de porcelana, quiçá das Chinas dos mandarins, às janelas, e os dedos delas confundem-se com as rendas de bilros, as teias de aranha, as cortinas, os brocados de cetim, os deveres e os lavores femininos, as máscaras de Arlequim, as fantasias de antigos carnavais, as marcas (imateriais) do jejum e abstinência.

5. Dedos que teceram intrigas e redes, redes de pescadores, há muito perdidos nas colinas do alto mar. Ou dedos que fiaram outras redes, clientelares, sociais, clandestinas, sob os portais, os corredores e as esquinas dos paços, dos passais, das rodas e das celas conventuais, dos passos perdidos, das antecâmaras reais.

6. O silêncio não pára ou só vai parar a um metro do chão, na barra azul dos moinhos de vento, mais a sul, entre pomares e vinhedos e, agora, campos de abóboras e estufas, quentes e frias. 

Indiferentes ao filme da história ao vivo, fiadas de pequenos nepaleses encavalitam-se em caixotes para apanhar  a pêra rocha que é exportada "by air". Os Himalaias ali tão longe!

À entrada, fora das muralhas, o cemitério, cofre forte de segredos, aqui onde se acabam todos os medos. E os heróis da última batalha que não tiveram sequer honras de mortalha. E os búzios e o cavername das caravelas e naus naufragadas no Porto das Barcas do inferno. E as façanhas dos soldadinhos de chumbo das tropas coloniais que ficaram por contar, trepando a rampa da praia de Paimogo acima.


7. Valha-te a brisa do mar que te faz algum refrigério na canícula do fim de estação da tua civilização. Pedes uma moreia frita no bar da Peralta. E contornas o Montoito e a Atalaia onde o guarda-mor da saúde decretou o cordão sanitário.

8. Casas paradas, caiadas com a mesma cal viva das valas comuns da última guerra e da epidemia da cólera de Deus que se lhe seguiu.

Pelos claustros do convento, agora transformado em palácio do povo, entre suspiros, sussurros e zunzuns, esquivam-se padres e frades, cavaleiros de Deus, noctívagos, e outros trânsfugas, infiéis, pecadores, hereges, proscritos, pederastas, mulheres da vida, esbirros do intendente, iluministas e iluminados, refractários e desertores, penitentes, almas penadas, danadas, poetas de botequim malditos, taberneiros, tocadores de rabeca, quiçá bruxas e duendes e peregrinos do caminho de Santiago. 

Como é vasto e triste o zoo humano. E não há albergarias para todos. Muito menos senhas de racionamento e vitualhas.

9. A calçada, outrora portuguesa, está agora gasta pelos cascos dos cavalos dos invasores... Picam-se os brasões dos solares da mui antiga nobreza, corta-se rente a árvore genealógica dos velhos senhores e arrasados e salgados são, até às fundações, os seus doces lares.

10. Um estranho cheiro a incenso, mirra, algas, maresia e enxofre sobe pelos ares, do lado da praia de Porto Dinheiro. Arde a Extremadura, do Atlântico ao Tejo.

Violadas as filhas, raptadas as servas, acorrentados ao pelourinho os criados, que vão ser vendidos como escravos na feira do gado do Rossio, passados a fio de espada os primogénitos, fundido o ouro e a prata dos palácios e igrejas, postos os novos deuses nos altares, pergunta a jovem guia do centro interpretativo da batalha do Vimeiro, "o que é pior, se a triste e vil desonra do presente ou o silêncio premonitório do futuro".


11. Por ti, nada antevês de bom augúrio. Não sabes que lugar é este, sem memória nem glória, à beira da estrada do Atlântico Oeste da tua infância revisitada, o mar do Cerro em frente, as linhas de Torres de alta tensão. Numa tabuleta lês: "A guerra, o mal absoluto".



12. Não há mais quem cante o cante dos poetas, a doce cantilena das Naus Catrinetas, o fero cântico dos últimos guerreiros do Império, ou até a última oração, de raiva, lamento e impropério, em canto chão, que é devida aos bravos que pela Pátria deram a vida.

"Que pátria, minha querida ? Ninguém morre pela pátria, morres pelos teus, que te estão mais próximos, a família, os animais de estimação, os bois, as leiras, jeiras ou courelas,  os pomares, as vinhas, a casa, os vizinhos, os amigos, os camaradas. Sobretudo os camaradas. E matas, para não morreres".

"É doce morrer pela pátria, diz o meu capitão".

"É doce a guerra, meu amor, mas é para quem não anda nela".

"Mas tu deves cheirar a pólvora, meu soldadinho, e eu a incenso".


13. Fora de portas, num atalho ou trilho que leva ao monte das forcas, compras o último pão de centeio, puro, duro e escuro, e a última boroa, já bolorenta, de milho, à última padeira de Aljubarrota que ainda estava viva, à hora do pôr do sol. Padeira, precisa-se, dão-se alvíssaras. E artilheiros, que saibam ler e escrever, por causa do manual de instrução.

Padeira, viandeira, de peito farto, mãe coragem, altiva, que nem sempre o que parece é, a vitória ou a derrota, medindo forças no tribunal da história. Não há tropa que caminhe para o combate com o estômago vazio.

14. Águas paradas do Rio Alcabrichel, tingidas de verdete e de sangue, no fim de tarde de todas as batalhas. “Pour Monsieur Junot, c’était encore trop tôt!”, manda dizer o ajudante de campo, enquanto sobe para a carruagem do comboio que o levará ao inferno. 


"O arco de triunfo, espera-te, idiota!, para que no alto, no pau da bandeira, te enforquem os milhares de homens que tu mandaste para a morte, em fila, organizados!".

As freiras improvisaram um hospital de campanha com bandeira branca e bufê. Que quadro idílico, patriótico, humanitário, que ternura!...

Saqueada a cidade, enchem-se as tulhas, despejam-se as talhas, ainda a guerra é uma criança, e quem não viu não crê, como são Tomé, acrescenta o enviado especial da TV em apontamento de reportagem. Teve o seu momento de glória, acabando por ser vítima do fogo amigo.



15. O último terno de cornetins da fanfarra do exército dizimado toca a silêncio, enquanto te despedes na parada, em ruínas, do quartel. Uma despedida que te destroça o coração, como todas as despedidas em tempo de guerra.

Em boa verdade, nem todos os que vão à guerra são soldados. Mas em todas as guerras só os soldados mortos não falam. E o silêncio é, afinal, a única linguagem universal que tu conheces, na Torre de Babel.
[1]

Lourinhã, Vimeiro, fim de verão, agosto de 2014. Revisto

[1] Périplo pelas terras da Lourinhã, em 15 passos, entre a Praia de Paimogo e a Praia de Porto Novo, fim de verão, 2014. Aqui desembarcaram tropas luso-inglesas que derrotaram Junot, general de Napoleão, na batalha do Vimeiro, em 21 de agosto de 1807, depois da Roliça (a 17).
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Nota do editor:

Último poste da série >  23 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20088: Manuscrito(s) (Luís Graça) (169): Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares: Parte I - O rio Grande...

Guiné 61/74 - P20096: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte IV: O respeito pelos homens que comandei (pp. 33-42)


Angola > Luanda > Setembro de 2004 > Algures, em pleno centro da cidade, na Av Nkrumah,   um velho mural do MPLA,  meio escondido e já descolorido, e onde curiosamente o pintor se esqueceu das crianças, dos velhos e dos estropiados: está lá o intelectual, o guerrilheiro, o operário, a camponesa... (*)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2004). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Angola > CCAÇ 3535 (1972/74) > Portugueses e angolanos formando uma equipa de futebol



Angola > Zemba, na região dos Dembos, norte de Angola, 1973. Em Zemba não havia mais do que isto: um quartel, ao centro, e uma pequena sanzala com cerca de 100 habitantes, à esquerda. Mais nada. O fumo que se vê à esquerda resulta de uma queimada. No quartel estava instalado o comando de um batalhão, a respetiva Companhia de Comandos e Serviços (CCS) , uma das três companhias operacionais do batalhão e um pelotão de morteiros independente. No meu caso, o batalhão era o BCaç 3880, a companhia operacional era a CCaç 3535 e o pelotão de morteiros era o Pel Mort 3060, primeiro, e o Pel Mort 3029, a seguir. Por sua vez, a CCaç 3536 e a CCaç 3537, do meu batalhão, estavam destacadas em Cambamba e Mucondo, respetivamente.

Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974: esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(ix) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo; as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(x) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.




Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)


por Fernando de Sousa Ribeiro

O RESPEITO PELOS HOMENS QUE COMANDEI  (continuação) (pp. 33-42) (*)



À chegada ao quartel do Grafanil, em Luanda, fomos informados de que a companhia que íamos render.  tinha a sua partida marcada para muito brevemente e, por isso, a nossa Instrução de Aperfeiçoamento Operacional [IAO]  teria que durar apenas uma semana. «Isto começa mal», pensei.

No dia seguinte, de manhã, chegaram os camaradas angolanos que iriam fazer parte da nossa companhia, vindos diretamente da cidade de Sá da Bandeira, que agora se chama Lubango.

«Estou salvo», pensei, assim que vi todos aqueles negros e mestiços de ar desempoeirado, porte digno e olhar inteligente. «Estou salvo. Quaisquer que sejam os que ficarem comigo, serão bons com certeza».

Como já tinha acontecido na Metrópole, o capitão Lamas da Silva mandou os angolanos formar em linha e ordenou:

— Os alferes escolham os homens que querem.

— Eu não escolho — repliquei de modo displicente.

— Estás doido?! — gritou o capitão. — Tu já tens os piores dos brancos e agora queres ficar com os piores dos africanos? És suicida ou quê? Escolhe! É uma ordem!

— Não escolho — teimei, pensando: «Só agora é que ele se preocupa? Agora é tarde demais. Assim como consegui resolver o problema de uns, também hei de resolver o dos outros, que nem problema parece ser. Agora é que não escolho mesmo».

Acrescentei:

— Isto não é maneira de distribuir pessoas. Não se devem escolher homens como quem escolhe cabeças de gado. Eles são seres humanos, não são animais.

Enquanto o capitão e eu discutíamos, os outros alferes iam fazendo as suas escolhas. No fim, fiquei com os angolanos que restaram. «Nada mau», pensei ao vê-los. «Não me parecem piores do que os outros».

Os angolanos foram a seguir encaminhados para a respetiva caserna, onde já estavam os seus camaradas portugueses, para que se instalassem junto destes. Finalmente, os pelotões estavam completos.

Na caserna, enquanto os angolanos se instalavam e arrumavam as suas coisas, os portugueses observavam-nos com curiosidade e comentavam em voz baixa uns com os outros:

— Ih, que pretos que eles são! É cada tição!

— Oh, pá, os gajos são todos iguais, são todos pretos… Como é que vamos conseguir distingui-los uns dos outros?

Por sua vez, enquanto faziam as suas arrumações, os angolanos mostravam-se descontraídos e faladores, para enorme surpresa minha, pois esperava que eles se apresentassem tristes e acabrunhados, porque estavam quase a partir para a guerra. Eu ainda não conhecia a maneira de ser espontânea e extrovertida que caracteriza a maioria do povo angolano.

Assim que terminaram as suas arrumações, os angolanos dirigiram-se aos seus camaradas portugueses, de sorriso no rosto e mão estendida, dizendo-lhes:

— Parece que vamos ter que nos aturar uns aos outros durante dois anos… Então, o melhor é começarmos já a conhecer-nos. Eu sou fulano de tal, sou de tal sítio e na vida civil tinha a profissão tal. E tu? Como te chamas? De que terra és? O que é que fazias na vida civil?

Com este seu gesto, os angolanos quebraram a desconfiança e o acanhamento dos portugueses. Estabeleceu-se de imediato um relacionamento tão natural e tão intenso, que quem os visse diria que eram velhos amigos que já não se viam há muito tempo e que estavam a pôr as conversas em dia. Eu, que a tudo assisti, fiquei encantado com a facilidade com que se iniciava aquela amizade entre brancos, negros e mestiços, amizade esta que iria durar até ao fim da comissão e que iria ser uma amizade para a vida e para a morte.

Ao fim do dia, quando ficamos livres das nossas obrigações e pudemos sair do quartel, todos os angolanos da companhia saíram logo disparados a correr pela porta fora. Os que eram de Luanda foram os primeiros a sair, ansiosos por voltar a casa e reencontrar os seus familiares. Desde que tinham sido incorporados no serviço militar obrigatório e enviados para o Regimento de Infantaria 22, em Sá da Bandeira, a fim de fazerem a recruta e a especialidade, nunca mais puderam estar junto dos seus. Tendo estado colocados a quase mil quilómetros de distância, é evidente que não tinham podido vir passar os fins de semana a casa…

Os restantes angolanos também saíram cheios de pressa. Meteram-se em táxis e foram diretamente à Ilha de Luanda, para verem o mar antes que a noite caísse. A maior parte deles nunca tinha visto o mar.

O dia seguinte era para ser o dia da nossa partida para o Úcua, mesmo ao pé da zona de guerra, onde iríamos receber a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional. Era para ser, mas não foi. Partimos, sim, mas para a própria guerra…

— Vamos render imediatamente a companhia que está à nossa espera — comunicou-nos o capitão. — Não vamos receber IAO nenhuma, porque não há tempo para isso. Quem estiver preparado, está; quem não estiver, estivesse.

Avançamos para Zemba, com o coração aos saltos. «Olha se eu não tivesse dado aquela instrução toda em Santa Margarida…», pensei. «Agora estaria em maus lençóis».

Ao longo da comissão militar, todos os meus subordinados — furriéis, cabos e soldados, portugueses e angolanos sem distinção — comportaram-se de uma forma que ultrapassou tudo o que de melhor eu poderia esperar. Tudo, mesmo tudo. Eles foram verdadeiramente insuperáveis no esforço, na generosidade e na valentia.

Eles foram mais longe do que quaisquer outros militares tinham ido desde o início da guerra. Eles entraram onde as tropas ditas especiais não tinham tido coragem de entrar. Eles passaram a menos de cem metros de sentinelas inimigas sem terem sido descobertos. Eles avançaram, sem vacilar, por um trilho minado e armadilhado, sabendo antecipadamente que o trilho estava minado e depois de, numa operação anterior, já um seu camarada ter ficado sem uma perna por ter pisado uma mina. Eles conquistaram sozinhos uma base da FNLA, sem qualquer apoio e comandados pelo bravo furriel Luis Cândido Passos de Macedo (eu encontrava-me ausente de férias), desalojando a tiro e de peito descoberto os guerrilheiros entricheirados na base.

[Foto à direita:] 

Primeiro-cabo Afonso Dias Nogueira, um dos bravos do meu grupo de combate, que regressou de Angola são e salvo, apesar de todos os perigos por que passou. Alguns anos mais tarde ficou sem uma perna em consequência de um acidente de trabalho


Por outro lado, nem uma só vez eles se comportaram como cães de guerra espalhando a morte à sua volta, como parecia estar expresso no repugnante lema da companhia: "A cada um a sua própria morte". Aliás, de maneira nenhuma os outros três alferes e eu próprio estávamos dispostos a permitir um tão odioso comportamento. Felizmente nunca foi precisa qualquer intervenção nossa a este respeito. O nosso pessoal nunca se deixou desumanizar, apesar de algumas situações extremas que se viveram. Nunca, em tempo algum, os nossos homens deixaram de ser sensíveis à morte e ao sofrimento humano.

Sinto um orgulho enorme nos subordinados que me coube comandar. Eles foram, verdadeiramente, os melhores. Isto mesmo foi publicamente reconhecido pelos outros camaradas que com eles comeram o pão que o diabo amassou.

— Só ao lado deles é que nos sentimos seguros — disseram, textualmente, os camaradas do 1º grupo de combate a seu respeito. — São os únicos em quem temos confiança.

Isto não aconteceu por acaso e a explicação é simples. Quando, no início, foram rejeitados pelos outros alferes, os meus cabos e soldados sentiram-se feridos na sua dignidade pessoal. Este facto levou-os a procurar provar aos outros e sobretudo a si próprios que tinham tanto valor como eles. Superaram-se e conquistaram com sangue, suor e lágrimas o respeito que lhes tinha sido negado. Posso, por isso, afirmar categoricamente que fui um privilegiado por ter tido a meu lado companheiros dotados de uma tal fibra.

 Fui ainda mais privilegiado porque entre eles havia angolanos, que foram das pessoas mais extraordinárias que conheci. Não há dinheiro no mundo que pague toda a sua sabedoria, toda a sua generosidade e toda a sua sensibilidade. Depois de os ter conhecido, nunca mais fui o mesmo. Tenho os seus nomes escritos em letras de ouro no meu coração:

Domingos Amado Neto, 
Silva Alfredo dos Santos, 
Domingos Cangúia, 
Diogo Manuel, 
Ramiro Elias da Silva, 
Domingos Jonas, 
Mateus Tchingúri, 
Jonas Vitorino, 
Lucas Quinta, 
Henrique Luneva, 
Raimundo Nunulo, 
Domingos Dala, 
Fortunato Francisco João Diogo 
e Simão João Leitão Cavaleiro. 

Nunca os esquecerei.


[Foto à direita:] Não é fácil reconhecê-lo nesta fotografa, mas este militar parece ser Diogo Manuel, um dos inesquecíveis camaradas angolanos do meu grupo de combate. Era natural de uma sanzala próxima de Malanje. No início da comissão militar, ao contrário do capitão e dos outros alferes da minha companhia, que nomearam guarda-costas para sua proteção, eu não nomeei. «Para que é que preciso de um guarda-costas?» — pensei. — «Tenho um pelotão inteiro para me guardar as costas, não preciso de guarda-costas para nada. Nós guardamos as costas uns aos outros». Tendo verificado que eu não tinha guarda-costas, este soldado, que era extremamente calado, tomou a decisão de ser ele próprio meu guarda-costas sem me dizer nada, seguindo atrás de mim sempre que era possível no decurso das operações. 

Afinal, acabei por ter também um guarda-costas, o Diogo Manuel. Ainda bem que o tive, confesso. Ele parecia adivinhar quando eu estava assustado. Nessas ocasiões, abria-me um sorriso tranquilizador e dava umas palmadinhas na sua espingarda, querendo dizer-me: «Vai descansado, que eu estou aqui pronto a defender-te». E eu ficava mesmo mais descansado. Foi muito bom ter o Diogo Manuel como guarda-costas


Os nossos camaradas angolanos eram filhos do povo. Do admirável e sofrido povo de Angola. Quer isto dizer que, para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual. Olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem. E eles foram insuperáveis no companheirismo e na dignidade com que se relacionaram connosco, os europeus da companhia.

Encontrando-se na mesma situação que nós, os nossos camaradas angolanos não se limitaram a partilhar as suas vidas connosco no seio da companhia; eles fizeram parte integrante de nós mesmos, tanto quanto isto foi possível. Eles travaram os mesmos combates que nós. Eles caíram nas mesmas emboscadas que nós. Eles desafiaram as mesmas minas que nós. Eles contornaram as mesmas "bocas-de-lobo" que nós. Eles suaram os mesmos cansaços que nós. Eles enjoaram as mesmas rações de combate que nós. Eles dormiram debaixo da mesma chuva que nós. Eles tremeram os mesmos medos que nós. Eles riram as mesmas alegrias que nós. Eles choraram as mesmas saudades que nós. Eles acalentaram as mesmas esperanças que nós. Eles foram nós. Todos fomos nós.


[Foto à esquerda:] No seio da Companhia de Caçadores 3537, a convivência entre portugueses e angolanos era também de grande harmonia. 

No Mucondo, onde esta companhia esteve aquartelada, havia uma piscina, que uma companhia anterior tinha feito e que o comandante da 3537, capitão Jardim, mandou restaurar. Apesar de a água não ser filtrada nem desinfetada, nunca ninguém apanhou alguma doença por ter nadado nela.

Durante o seu serviço militar, os nossos camaradas angolanos faziam uma vida muito frugal, porque queriam amealhar algum do dinheiro do pré que recebiam, a fim de que, quando acabassem a tropa e regressassem à condição civil, pudessem pagar o alambamento (dote que, segundo a tradição bantu, o noivo tem que pagar à família da noiva) e assim casar-se e constituir família. Esperavam igualmente poder vir a arranjar um emprego minimamente estável e razoavelmente remunerado, tanto quanto era possível a africanos vivendo na Angola colonial.

Subitamente, quase no fim do nosso serviço militar, deu-se a Revolução do 25 de Abril. A Revolução abriu novos horizontes e gerou novas esperanças no coração de todos, angolanos e portugueses, eu incluído. A partir dessa data, os nossos camaradas angolanos passaram a esperar um futuro que antes não tinham podido esperar, porque lhes estivera vedado.

Eles esperaram poder aceder a empregos que até então tinham sido tacitamente reservados a brancos, como os de motoristas de táxi ou empregados bancários. Esperaram poder ganhar tanto e ter as mesmas possibilidades de promoção e de aumento de salário que um branco que fizesse o mesmo trabalho que eles. Esperaram poder entrar nos estabelecimentos comerciais que quisessem, sem receio de serem atendidos com maus modos e enxotados e sem terem que pagar mais do que pagaria um branco pelos mesmos artigos. Esperaram ter condições que lhes permitissem viver numa casa que merecesse o nome de casa, e não numa construção precária de adobe ou de blocos de cimento ou numa cubata. Esperaram que os seus filhos viessem a ter os estudos que eles próprios não puderam ter, apesar da sua enorme vontade de aprender. Enfim, eles viram abrir-se diante de si a perspetiva de uma vida muito mais livre, próspera e feliz do que tinham tido até então, uma vida sem humilhações e sem pobreza.

Quando no fim nos separamos, as nossas vidas — as dos portugueses por um lado e as dos angolanos por outro — tomaram caminhos terrivelmente distintos. Enquanto nós, os portugueses, pudemos recomeçar as nossas vidas (melhor ou pior, consoante a condição psíquica e física em que ficamos) num Portugal em paz, os nossos camaradas angolanos mergulharam numa guerra incomparavelmente mais terrível do que a guerra de guerrilhas que eles e nós tínhamos enfrentado juntos: a guerra civil que estalou em Angola em 1975 e que só terminou definitivamente em 2002.

Muitos dos nossos camaradas angolanos eram oriundos de Nova Lisboa (atual Huambo), de Silva Porto (atual Cuito), de Malanje e de outras terras onde a guerra civil atingiu o seu paroxismo. Estes nossos camaradas apanharam em cheio com um dilúvio de fogo e de metralha que durou anos e anos a fio. Mais tarde ou mais cedo devem ter sido obrigados a abandonar tudo o que tinham e a procurar refúgio no mato ou a tomar o caminho de Luanda, Benguela, Lubango ou outro sítio onde se pudessem sentir mais seguros. Devem ter enfrentado a fome, as doenças, as minas, as bombas e sabe-se lá que mais. Quantos deles terão conseguido sobreviver a tudo isto? Tremo só de pensar. Naquela guerra houve tantos mortos! Tantos corpos despedaçados! Tantas famílias destroçadas! Todos os sonhos e todas as esperanças que a seguir ao 25 de Abril estes nossos camaradas tinham alimentado, foram varridos por uma arrasadora torrente de guerra e de morte.

De maneira nenhuma eu desejo diminuir o valor dos meus camaradas portugueses, que em tudo era igual ao dos angolanos, sem qualquer sombra de dúvida. Não é disso que se trata. O que apenas pretendo neste momento fazer é prestar uma homenagem muito sincera, ainda que canhestra, a pessoas que tive o enorme privilégio de conhecer, cheias de humanidade, de sensibilidade e de coragem, que me deram extraordinárias lições de vida e que eram as últimas pessoas no mundo a merecer a sorte que o destino lhes tinha reservado: os nossos antigos camaradas de armas angolanos. Faço-o com um nó na garganta.

(Continua: O que nos  fizeram foi criminoso, pp. 43-48)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de dezembro de  2006 > Guiné 63/74 - P1342: Poema: os meninos da Ilha de Luanda (... pensando nos meninos de Bolama, de Chamarra, de Mansambo ou de Saré Ganá) (Luís Graça)

(**) Vd. poste anterior da série > 25 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20094: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte III: O respeito pelos homens que comandei (pp. 27-32)

E ainda:

1 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)

12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)

Guiné 61/74 - P20095: Notas de leitura (1212): Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
A Guiné pode gabar-se de possuir, a partir de Gomes Eanes de Zurara, relatos que foram fundamentais, no seu tempo, para dar a conhecer por toda a Europa os contornos da Costa Africana, os seus povos e as potencialidades que se abriam ao comércio e à divulgação da fé cristã.
André Donelha é contemporâneo de André Álvares de Almada, um dos nomes maiores da literatura de viagens sobre a Guiné, se bem que fique um pouco atrás na comparação, é indispensável a sua leitura por razão da etnografia, etnologia e até da antropologia. Um dado curioso para o leitor de hoje, que esteja desarmado perante a essência do que eram as viagens na época, era a fluidez da descrição de todos estes territórios como se todos eles fossem conectáveis, e há mesmo quem proponha que depois das ilhas atlânticas era para aqui que a Coroa devia mandar gente, tais e tantas eram as maravilhas encontradas.

Um abraço do
Mário


Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1)

Beja Santos

Dando continuidade ao que há de melhor da literatura de viagens na Costa da Guiné, desde o século XV ao século XVII, dirigimos a atenção para um relato que, não podendo competir no brilho da observação da obra de André Álvares de Almada, complementa e enriquece muita informação anterior sobre as paragens entre o rio Senegal e a Serra Leoa. O Almirante Teixeira da Mota trabalhou arduamente neste documento e na investigação sobre o autor. Merece com elementar justiça que destaquemos as suas observações.

O pouco que se sabe acerca de vida de André Donelha é aquilo que consta ou se infere do seu escrito sobre a Guiné. Terá passado a infância em Santiago, e pelo facto pode ser considerado um escritor cabo-verdiano, tal como André Álvares de Almada. Esteve, pelo menos, três vezes na Guiné, o que deve corresponder a outras tantas viagens que fez. Encontrava-se embarcado na armada de António Velho Tinoco, Capitão da cidade da Ribeira Grande, quando da batalha que ele travou, vitoriosamente, contra os Franceses, nas proximidades da Aguada das Naus da Índia, no rio da Serra Leoa, em 1574. Na sua descrição, Donelha diz ter conhecido o rei Beca Caia em S. Domingos, o que poderia ter-se verificado nesta viagem de 1574. Em 1581, Donelha esteve no Bruco, morada do rei de Guinala, a fim de vender dois cavalos, observou então a cerca feita com ossos dos Fulas vencidos aí na grande batalha travada no século XV.

Neste tempo o distrito da Guiné estendia-se do rio Sanaga (Senegal) até à Serra Leoa. A Descrição de Donelha esteve séculos no olvido. Consta dos manuscritos reunidos em volume na Biblioteca da Ajuda: “Neste livro se contêm as primeiras relações do descobrimento da Costa da Guiné, Mina, Cacheu, Angola, Congo, Benguela e outros Reinos e Nações; seus costumes, exercício, e de muitas e admiráveis Árvores, Plantas, Animais, Peixes, Minas de Ouro, Cobre, Cristal, Sal, e outras muitas coisas”.

Donelha viajou na Guiné entre 1574 e 1585, foi contemporâneo de André Álvares de Almada. Convém recordar que a corrente da literatura de viagens esboça-se no século XV mas corre pelo leito mais impetuoso nos séculos XVI e XVII, é aqui que tem o seu auge. Está intimamente relacionada com aquilo que Jaime Cortesão definiu como o “humanismo universalista dos Portugueses”, cujas raízes, segundo ele, mergulham no franciscanismo; o nascimento e os primeiros tempos da ordem franciscana foram acompanhados de uma profunda renovação das ciências geográficas e da literatura de viagens, campos em que os franciscanos se notabilizaram.

Entre os portugueses essa corrente traduz-se já, dos fins do século XV para os começos do século XVI, na coletânea de relatos anónimos recolhidos pelo impressor Valentim Fernandes e no Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira. Contrariando o que se verifica nas restantes obras portuguesas destes tempos relativas à Guiné de Cabo Verde, em que a ordem da exposição é sempre de Norte para Sul, começando por o Senegal, Donelha inicia o seu relato com a Serra Leoa. Neste texto vamo-nos cingir aos capítulos 7, referente ao grande imperador Mandimansa e aos seus principais Farins ou reis Mandingas, no capítulo 8, em que Donelha se ocupa do rio Sanaga, ao Cabo Verde e aos Jalofos, matéria que prossegue no capítulo XIX, em que trata mais especialmente do Grão Jalofo; dá-se depois um salto para o capítulo XIV em que se trata da zona entre o rio Gâmbia e o Rio Grande e dos seus habitantes (Cassangas, Banhuns, Bramos e Beafares).

Almirante Avelino Teixeira da Mota
Teixeira da Mota procede a uma comparação entre André Álvares de Almada e Donelha e diz que Almada é marcadamente mais rico em tudo o que se refere ao comércio, sobretudo na enumeração dos produtos e mercadorias, e bem assim na informação etnográfica, que é sensivelmente mais pormenorizada e mais vasta; note-se, por exemplo, que Donelha não fala nos Felupes, e no tocante a povos tão importantes como os Balantas e os Bijagós apenas deles menciona os nomes. Quanto a animais, Donelha é mais rico pois individualiza 39, enquanto Almada só refere 11. Embora em menor grau, também Donelha leva à palma no respeitante a plantas, pois refere 35 ao passo que Almada indica 29.

No manuscrito que nos chegou de Donelha não há qualquer título, Donelha limita-se, no prólogo, a dizer que fez um “memorial” do que viu e soube no decurso das suas viagens. A palavra memorial não é de uso corrente na época: Almada usa Tratado Breve dos Rios (ou Reinos) da Guiné do Cabo Verde, o padre Manuel Álvares emprega Descrição Geográfica da Província da Serra Leoa, fórmula próxima da Descrição da Costa da Guiné, a que Lemos Coelho recorreu nos seus textos. “Inclinamo-nos, por isso, a escolher um título começado também por descrição”. Dá grande explanação à Serra Leoa. À semelhança de outros viajantes, verifica-se que a Guiné de Cabo Verde se estende entre o rio Senegal e um lugar indeterminado, é um território usualmente dividido em três regiões nos documentos da época: Costa do Jalofo, rios da Guiné e Serra Leoa. Posto este admirável elenco de comentários, demos a palavra a André Donelha.

(Continua)
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Último poste da série de 23 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20087: Notas de leitura (1211): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (20) (Mário Beja Santos)

domingo, 25 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20094: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte III: O respeito pelos homens que comandei (pp. 27-32)


Évora > Fachada do quartel do antigo Regimento de Infantaria 16, atual sede do Comando da Instrução e Doutrina do Exército


Campo Militar de Santa Margarida >  Tem cerca de quatro quilómetros de comprimento. O Batalhão de Caçadores 3880 esteve aquartelado muito aproximadamente a meio deste complexo militar



Angola > Ao centro, o capitão miliciano de infantaria João Manuel de Morais Lamas de Mendonça e Silva, que comandou a CCaç 3535 até à primeira quinzena de janeiro de 1973. Foi substituído pelo cap  mil inf José António Pouille Nobre Antunes. O cap mil inf Mendonça e Silva ingressou no QP e está hoje reformado como coronel de infantaria.


Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974: esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(ix) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(x) o ficheiro, em formato, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)(*)


por Fernando de Sousa Ribeiro



O RESPEITO PELOS HOMENS QUE COMANDEI (pp. 27-32)


O texto que se segue não é a história da minha vida militar, embora pareça. Ele é, isso sim, a explicação para o imenso respeito que me merecem os homens que tive o privilégio único de comandar. Homens que, no princípio, pareciam ser uma cambada de básicos irrecuperáveis, que ninguém quis e que eram considerados a escória da companhia, mas que acabaram por se tornar nos mais valentes, sacrificados, esforçados e generosos combatentes do mundo: o 2º grupo de combate da Companhia de Caçadores 3535.

Os factos que aqui se relatam são absolutamente verdadeiros, sem qualquer ponta de fantasia. A mim mesmo, quando agora os recordo, eles me parecem incríveis, impossíveis de ter acontecido. Mas aconteceram assim mesmo, tal e qual. Juro por tudo quanto tenho de mais sagrado.

Aquilo que viria a resultar no Batalhão de Caçadores 3880 começou por ser um batalhão de instrução no Regimento de Infantaria 16, em Évora. Nessa altura, na minha qualidade de aspirante, fui encarregado de ministrar a especialidade de apontador de metralhadora, enquanto o aspirante Araújo (que viria a ser alferes na Companhia de Caçadores 3536) deu a de apontador de morteiro médio e os restantes aspirantes operacionais deram a especialidade de atirador de Infantaria.

O pessoal ao qual o Araújo e eu demos instrução tinha como destino as mais diversas companhias mobilizadas para o então Ultramar. Terminada a especialidade, portanto, os nossos instruendos foram para as unidades que superiormente lhes foram atribuídas e nós os dois, Araújo e eu, ficamos apenas com os nossos cabos milicianos e mais ninguém.

Deste modo, no início da constituição do nosso batalhão, eu não conhecia nenhum dos soldados e cabos que vieram a integrar a minha companhia. Os outros três aspirantes da companhia, pelo contrário, conheciam quase todos aqueles homens, porque lhes tinham dado a especialidade de atiradores. Já lhes conheciam os méritos e os deméritos, as qualidades e os defeitos, mas eu não conhecia.

No momento inicial de proceder à distribuição dos homens pelos quatro grupos de combate da companhia, o comandante desta, o então tenente miliciano Lamas da Silva, mandou que o pessoal fizesse uma formatura em linha e ordenou:

— Agora os senhores aspirantes façam o favor de escolher os homens que querem.

Eu tentei objetar, procurando dizer ao Lamas que não estava em condições de fazer uma tal escolha, porque não conhecia aqueles homens, contrariamente ao que sucedia com os outros aspirantes. O Lamas da Silva não me deixou falar, interrompendo-me continuamente e insistindo repetidamente comigo:

— Escolhe! Tens de escolher os homens que queres. Os outros aspirantes já estão a escolher. Tu também tens que escolher. Olha que assim ficas com os piores!…

Quanto mais eu procurava explicar-lhe que não estava nas mesmas condições que os outros aspirantes para poder escolher, mais ele me interrompia:

— Escolhe, já disse! Tens de escolher! Sou eu que te mando!

A dado momento, os outros aspirantes deram por finda a sua escolha, sem que eu tivesse escolhido quem quer que fosse e sem que o comandante da companhia me tivesse dado ouvidos. Disse-me este:

— Estás a ver o resultado? Os outros aspirantes já escolheram e tu acabaste por ficar com os piores. Quer gostes, quer não gostes, vai ser com esses que vais ficar. Foste tu que assim quiseste. E não esperes nenhum tratamento de favor da minha parte.

Já só me limitei a responder:

— Pode ter a certeza absoluta de que nunca lhe irei pedir favor nenhum.

Olhei para os soldados e cabos que me estavam destinados e senti-me desfalecer.

Pensei: «Sou um homem morto! É com este pessoal que eu vou para a guerra? Estou morto. Eu com homens neste estado não vou durar nem uma semana em Angola! Já me estou a imaginar a regressar dentro de um caixão…»

O aspeto dos meus novos subordinados metropolitanos era arrepiante. Não admirava que aqueles homens tivessem sido rejeitados pelos outros aspirantes. Alguns deles pareciam atrasados mentais; outros pareciam sifilíticos ou coisa parecida. Todos eles pareciam completamente impróprios para servirem como combatentes numa guerra. Nem um só se aproveitava. Os meus três excelentes cabos milicianos (Silva, Macedo e Santos) pareciam tão aterrados como eu.

«Isto só a mim! Que mal é que eu fiz para merecer isto?», pensava eu e pensavam, certamente, os cabos milicianos. «O que é que vai ser de nós, na guerra, com homens assim? Isto não pode ser verdade. Eu devo estar a sonhar e isto é um pesadelo». Mas não era pesadelo nenhum. Era a realidade, que eu tinha que enfrentar custasse o que custasse.

Completado o batalhão no que à sua parte europeia dizia respeito, fomos enviados para o Campo Militar de Santa Margarida, onde iríamos aguardar o dia da nossa partida para Angola, o que deveria acontecer dentro de perto de dois meses. Achei que, durante esse tempo, talvez ainda fosse possível fazer algum esforço para melhorar a preparação dos soldados e cabos que me tinham calhado em sorte, mas as coisas não se passaram tal como eu esperava.

Naquele tempo, os batalhões e companhias que estavam aquartelados em Santa Margarida, à espera de embarque para as colónias, eram habitualmente ocupados com uma intensa atividade de preparação para a guerrilha, que era a chamada IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). Mas o nosso batalhão estava incompleto e, por isso, não podia receber a IAO em Santa Margarida; só depois, já em Angola, é que poderia recebê-la. Assim, enquanto permaneceu em Santa Margarida, o nosso batalhão não teve qualquer atividade superiormente programada, nem qualquer orçamento atribuído para esse efeito. Apenas lhe foram reservados os alojamentos que ocupou até ao dia do embarque e mais nada.

Nestas condições, ao pessoal do batalhão foi sendo dada uma instruçãozinha de meia-tigela, que tinha como única finalidade mantê-lo ocupado com alguma atividade até ao dia do embarque. Fazia-se alguma ginástica, dava-se uma ou outra lição de tática, faziam-se muitas e longas pausas e gastavam-se muitas e longas horas a fazer ordem unida. Ordem unida, imagine-se! Pôr soldados que vão para uma guerra no mato africano a marchar para a frente e para trás, um-dois-esquerdo-direito, durante horas a fio, não lembrava ao diabo! Quem nos visse, diria que íamos para Angola fazer desfiles em parada diante do inimigo! Eu estava exasperado. O tempo urgia cada vez mais e nós estávamos a desperdiçá-lo com aquelas mariquices!

Resolvi então atuar por minha conta e risco, mandar o batalhão à fava e ser eu sozinho a dar aos meus subordinados a instrução de que eles necessitavam com tanta urgência. Se eu viesse a ser punido por não seguir o programa determinado pelo comando do batalhão, pouco me importava. Eu ia para a guerra, pior não me poderia acontecer.

Foi por acaso que descobri uma maneira de levar os meus homens para fora do Campo Militar, para a charneca vizinha, onde lhes poderia ensinar tática militar sem sofrer interferências dos meus superiores hierárquicos. Descobri também que poderia usar a carreira de tiro do Campo, onde o meu pessoal poderia gastar algumas das muitas munições excedentárias que, como vim também a descobrir, havia na arrecadação de material de guerra.

Afastados assim os possíveis obstáculos à minha decisão de ministrar uma espécie de IAO privativa aos meus subordinados, passei a pôr diariamente em prática um programa de atividades, que incluía muita preparação física, muito tiro e, sobretudo, muita tática de guerrilha. Devidamente apoiado pelos meus excelentes cabos milicianos, procurei ensinar-lhes tudo quanto eu próprio tinha aprendido em Mafra.

Aquelas semanas em Santa Margarida foram muito duras para mim. Muitas e muitas vezes me senti profundamente desanimado e com vontade de desistir, pois dificilmente eu conseguia vislumbrar algum progresso na preparação militar dos meus homens. Quando vim gozar os dias de licença que era costume dar, pouco tempo antes do embarque, aos militares que estavam mobilizados para a guerra, ao abrigo das chamadas Normas de Nomeação e de Apoio às Províncias Ultramarinas (NNAPU), sentia-me profundamente deprimido, quase à beira do desespero. Todo o esforço despendido naquela corrida contra o tempo me parecia ter sido inútil.

Mas quando regressei a Santa Margarida no fim da licença e voltei a encontrar os meus subordinados, eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Foi só após aqueles dez dias de ausência que eu me apercebi, com grande espanto meu, que eles tinham mesmo evoluído, e até de forma verdadeiramente espetacular. Pareceram-me mais aprumados do que os outros, mais rijos do que os outros e mais confiantes do que os outros. Os "sifilíticos" e os "atrasados mentais" de outrora já não existiam mais. «Tenho homens!», pensei, espantado com tão grande transformação. «Como é possível que eu não me tenha apercebido deste milagre antes? Tenho homens!»

De entre os meus subordinados, o soldado Francisco António Danado 
Vaqueirinho [, foto à direita,]  foi o que maior transformação sofreu em Santa Margarida. Ao princípio, parecia um deficiente mental irrecuperável. Depois da licença ao abrigo das normas, nem sequer o reconheci. Tinha-se tornado vivo e esperto como poucos. Ainda hoje me pergunto como foi possível não me ter apercebido da sua evolução.


Um dia, ainda em Santa Margarida, os aspirantes das três companhias operacionais do batalhão, incluindo eu próprio, tomaram em conjunto uma resolução que iria pautar a sua conduta ao longo de toda a sua estadia em Angola. Foi uma resolução tomada espontaneamente e não de forma organizada, mas que valeu como um juramento, em que cada um de nós ficou como testemunha e como futuro juiz dos restantes. Uns perante os outros, tomamos então a seguinte resolução:

«Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Não sabemos sequer se estaremos no lado certo ou no lado errado da guerra. Só em Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos ou não no lado certo, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, iremos procurar agir sempre dentro dos limites morais que a nossa consciência nos impuser. Talvez esta seja uma tarefa impossível de cumprir no meio de uma guerra, não sabemos, mas pelo menos iremos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para agir de acordo com a nossa consciência, custe o que custar. CUSTE O QUE CUSTAR».

Quando embarquei no avião da Força Aérea com destino a Angola, juntamente com a parte europeia da minha companhia, eu sentia-me fortalecido com a resolução tomada, que estava disposto a cumprir. O mesmo se passava com os outros alferes.

(Continua, "O respeito pelos homens que comandei", pp. 33-42)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]
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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

1 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)

12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)

Guiné 61/74 - P20093: Convívios (905): XVIII Encontro do pessoal do Hospital Militar de Bissau, HM 241 (1964/74): Tomar, 5 de outubro de 2019 (Manuel Freitas, ex-1.º cabo escriturário, 1968/70)




Guiné > Bissau > HM 241: facjada do edifício e crachá da unidade. 

Fotos: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)



Viseu > 5 de outubro de 2013 > XIV Encontro do Pessoal do HM 241, Bissau

Foto (e legenda): © Manuel Freitas (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Manuel Freitas (ex-1.º Cabo Escriturário do HM 241, Bissau, 1968/70; é técnico de seguros, em Espinho e Vila Nova de Gaia:

Data: 20 de agosto de 2019, 12h29


Assunto: 18.º convívio do pessoal do HM 241


Amigo Luís,

A exemplo de anos anteriores, pedia-te o favor de publicares o anuncio  do nosso encontro em Tomar.

A carta que anexo é um exemplar para aqueles que marcaram presença no  ano anterior.

Este ano, a pedido de vários que me telefonaram, vamos estender um pouco mais nos anos, ou seja, abrimos aos que cumpriram a sua comissão entre  1964 e 1974.

Agradecido pela habitual boa atenção,

Um grande abraço,

Manuel Freitas

Freitas-Mediação de Seguros, Lda

ESPINHO
Telefone: 227 31 29 86
Fax: 227 31 97 89
Telemóvel: 96 30 65 065

SÃO FÉLIX DA MARINHA
Telefone: 22 753 42 68
Fax: 22 753 00 89
Telemóvel: 96 30 65 054



18º Convívio do pessoal do HM 241, Bissau, 1964/74 

Data: 5 de outubro de 2019

Local: Cidade de Tomar

Caríssimo:

Mais um ano volvido e aqui estou para dar notícias esperando que te encontres a usufruir da saúde necessária para a tua boa qualidade de vida.

Este ano vamos para Tomar, cidade dos templários, que nos vai acolher no próximo dia 5 de Outubro.

Vamos encontrar uma cidade bonita onde os peixes do Nabão irão vergar-se à nossa passagem.

A concentração será a partir das 11 horas no bar do parque, de toldes vermelhos, com entrada, creio que única, junto a uma Mó (roda) local onde a malta se vai encontrar para aquele abraço de reencontro anual.

Iremos depois para o Restaurante AZUL TERRACE, lugar de Calçadas, situado na estrada nacional,  ali mesmo à entrada da localidade, onde juntaremos o útil ao agradável, confraternizar e alimentar-nos o que, na nossa idade, é uma necessidade e um conforto.

Como sempre acontece, gosto de ir ao local e de entre três hipóteses, optei por este por ser um espaço muito agradável, com as entradas a serem servidas num local aprazível.

Para além das entradas, boas, temos:

(i) Bacalhau à Primavera

(ii) Carne de Porco à alentejana (há alternativa no caso de não apreciarem)

(iii) Bufet de sobremesas e café

(iv) Vinhos, cerveja e sumos

(v) Bolo Alusivo ao ato e espumante.

O custo será de 22,00€.

Para a rapaziada do norte temos o autocarro, a sair, junto à Estação de S. Bento, às 08h00, sendo o custo dividido por todos.

Vou voltar a pedir... não se esqueçam de dar noticias, com tempo, para eu avisar o Restaurante do número de pessoas. Não custa nada facilitar-me a vida, vamos lá.

Os meus contactos mantém-se: 


telemóvel: 964498832 
e email: manuel.freitas@equicontas.com

Até às vossas notícias,

Grande abraço,

Manuel Freitas

Anexo - Lista de habituais convivas:

ALBERTO MARTINS PEREIRA DINIS
AMÉRICO MANUEL DA SILVA CORREIA
AMÉRICO OLIVEIRA JARRAIS

AMÍLCAR MOTA RIBEIRO PEREIRA
ANTÓNIO ABEL MATOS COLUMBANO
ANTÓNIO BRINCA JUSTINO
ANTÓNIO MALHEIRO
ANTÓNIO RAMALHO DA SILVA RODRIGUES
ANTÓNIO RIBEIRO AMORIM
ANTÓNIO SANTOS DUARTE ALMEIDA
ARMINDO ENCARNAÇÃO RODRIGUES DA SILVA
ARNALDO LEITE TEIXEIRA

CARLOS ALBERTO BRAVO PEREIRA
CASIMIRO VIEIRA DA SILVA
CELESTINO SOUSA VIEGAS RIBEIRO

DOMINGOS DA SILVA FARIA

FRANCISCO AVELINO FERREIRA
FRANCISCO ALVES COELHO RIBAS
FERNANDO FRANCISCO SANTANA
FERNANDO TAVARES ZACARIAS
FRANCISCO JOSÉ VITORINO GUALDINO

HILÁRIO RIBEIRO MOREIRA

ISRAEL MATOS DIAS

JAIME FERREIRA TAVARES
JOÃO BARROS GERTRUDES
JOAQUIM SÁ FERREIRA
JOAQUIM DOS SANTOS LAGOA
JOSÉ LUÍS NORTON DIAS SANTOS
JOSÉ MATEUS CALISTO DAS NEVES

MANUEL FERNANDO CORREIA ALMEIDA
MANUEL RESENDE SOARES
MANUEL SANTOS ALVES
MANUEL TOMAS RODRIGUES DE FREITAS
MÁRIO ENCARNAÇÃO SANTOS

NELSON MIGUEL MAGALHÃES

SERAFIM FERREIRA VAZ DA SILVA

VICTOR (LOURINHÃ)
VIRGOLINO MARTINS MADEIRA

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Guiné 61/74 - P20092: Parabéns a você (1672): Manuel Carmelita, ex-Fur Mil Radiomontador do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor:

Último poste da série de 24 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20089: Parabéns a você (1671): António Fernando Marques, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)