segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20282: Controvérsias (141): o triângulo Jabicunda / Sonaco / Contuboel... Nunca foi atacado, porque tinha à volta uma série de zonas-tampão, Bafatá e a Geba, a sul e a oeste; Fajonquito, Sare Bacar, Pirada e Paunca, a norte e a leste... (Cherno Baldé)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 16 de Dezembro de 2009 > O João Graça, médico e músico, posando ao lado do dignitário Braima Sissé. Por cima deste, a foto emodulrada de Fodé Irama Sissé, um importante letrado e membro da confraria quadriyya [, islamismo sunita, seguido pela maior parte dos mandingas da Guiné; tem o seu centro de influência em Jabicunda, a sul de Contuboel; a outra confraria tidjanya, é seguida pela maior parte dos fulas].

O Braima Sissé foi apresentado ao João Graça como sendo um estudioso corânico, filho de uma importante personalidade da região, amigo dos portugueses na época colonial [, presume-se que fosse o próprio Fodé Irama Sissé].(*)

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > Jabicunda (?) > C. 1975/76 > Em primeiro plano, sentado, mais do lado esquerdo,  está Fodé Irama Sissé. Em segundo plano, de pé, à direita, O Braima Sissé está à direita, de chapéu vermelho, ainda jovem; atrás de Fodé Irama Sissé, está Sissau Sissé (já falecido) e, "vestido à civil", Malan Sissé que foi quem em Bissau mostrou a fotografia ao nosso amigo, e membro da nossa Tabanca Grande, o antropólogo Eduardo Costa Dias, e lhe me deixou tirar "fotografia da fotografia". Entre Malan e Braima está Arafan Cont+e, aluno de Irama. Fotografia de fotografia, de autor desconhecido, datada provavelmente de 1975/76. 

Foto (e legenda): © Eduardo Costa Dias (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Mapa geral da província (1961) > Escala 1/500 mil > Detalhes > Zona leste > O triàngulo Jabicunda, Sonaco e Contuboel.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)



Cherno Baldé, Bissau
1. Comentário do nosso assessor para as questões etnolinguísticas, Cherno Baldé (Bissau), ao poste P20267 (**):

Caros amigos,

Acabo de regressar de uma viagem (missão de serviço) à zona Leste, mais precisamente ao Sector de Boé, tendo visitado as localidades de Canjadude, Tchetche (Ché-Ché), Dandum e Beli onde funcionam centros de saúde para a população.

Depois, no regresso e na região de Bafatá,  visitamos Contuboel, Cambaju e Fajonquito. Todas estas localidades estão hoje irreconhecíveis, uma sombra do que foram, sem falar das cidades de Gabu e Bafatá que estão numa situação lastimosa. Entregaram o ouro aos bandidos e não se podia esperar melhor.

Sobre o tema do presente Poste (*), só tenho a dizer aliás a reiterar o que já tinha dito em tempos: Contuboel nunca foi atacada e, na minha modesta opinião, porque não fazia parte dos planos da guerrilha e porque tanto Contuboel como Sonaco estavam rodeados de postos militares que serviam de dissuasão a qualquer ataque (Geba e os seus destacamentos, Fajonquito e seus destacamentos, Saré-Bacar, Paunca, Pirada, entre outros, a servir de tampão).



Mesmo Fajonquito, a 20 km da fronteira e situado perto da região do Oio, só foi atacada em 1964
entre os meses de Agosto e Setembro e, nessa altura, foi muito pressionado com ataques prolongados e sucessivos como nos testemunhou o Diário do soldado Incio Maria Góis´,  da CCaç 674 (1964/66), mas com a resistência da companhia e a colaboração da população e autoridades tradicionais que recrutaram milicias, a guerrilha contentou-se com emboscadas e flagelações aos postos avançados. Na verdade, já tinham conseguido assegurar o isolamento do corredor de Sitató e uma vasta zona de infiltração para o Centro do país e para o  Morés.

Uma observação que queria deixar ao Luis Graça é que, para quem vem de Bambadinca e Bafatá, o trajecto para Sonaco faz-se por estrada a partir da localidade de Djabicunda, antes de Contuboel. Embora muito próximos, a ligação entre as duas localidades fazia-se via terrestre passando por Djabicunda por causa do rio Geba.

Com um abraço amigo.

Cherno Baldé

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Guiné 61/74 - P20281: Parabéns a você (1699): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) e Coronel Inf Ref Luís Marcelino, ex-Cap Mil Inf da CART 6250/72 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20259: Parabéns a você (1697): Fernando Súcio, ex-Soldado CAR do Pel Mort 4275 (Guiné, 1972/74) e Rogério Cardoso, ex-Fur Mil Art da CART 643 (Guiné, 1964/66)

domingo, 27 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20280: Blogues da nossa blogosfera (112): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (28): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

DEPOIS VEM A LUA

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Depois vem a lua
e os braços do luar
como algas de luz.
Depois vem o pensamento
recuperar os segredos
do fundo do mar.
Depois a terra
toma a forma de búzio
e os cabelos são algas
e o mar e as algas
cantam a mesma canção.
Na praia despida
ao lado do meu corpo
estendes teu corpo
de pedaços de céu
azul e luar.
Mas o mar leva-te
num lençol de espuma
e fica na areia
o meu corpo a chorar.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20210: Blogues da nossa blogosfera (111): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (27): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20279: Blogpoesia (641): "Noites bravas", "Os frascos" e "Vales sombrios", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Noites bravas

Rabanadas agrestes de vento desvairado
varrem as telhas
e sacodem as folhas prostradas no chão.

Rugem motores nas estradas molhadas.
Se amodorram nas mantas as gentes cansadas.
A jornada foi dura, na luta do pão.
Vêm à baila na mente ensonada, as partes amargas que o dia deixou.

Até que o sono, em ondas sem espuma,
mergulha na paz o corpo e a alma,
povoados de sonhos como se fosse Verão.

Berlim, 20 de Outubro de 2019
10h53m
Jlmg

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Os frascos

De mel, geleia ou marmelada.
Guardados num armário à mão.
Mitigavam nossas amarguras.
Quando a dor ou a tristeza batiam à porta, sem se lhes dar licença.

Amendoins, pinhões, figos secos e amêndoas.
Levantavam nosso moral.
Nas tardes tristes de Invernia.

Um licor melado de amarguinha.
Ninguém o fazia melhor que minha avó.
Dava vida à sombra quando tudo parecia dar torto.
Mas melhor que tudo. Uma revelação.
Os frasquinhos de goiabada que uma prima trouxe de férias a Portugal…

Berlim, 23 de Outubro de 2019
12h58m
Jlmg

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Vales sombrios

Encurralados nos montes, vegetam na sombra.
Só nesgas de sol.
Escorrem cascatas das serras.
Todas somadas, lhe dão um riacho com vida.
Arredado do mundo.
Só quem lá nasce é capaz de ficar.

Mas, no Inverno, tudo muda de cor.
Deslumbramento.
Se reveste de neve e
Enche de gente.
A festa dos skys.
Ó que alegria.
Não se pode perder…

Bar dos Motocas, arredores de Berlim,
15h13m
Jlmg
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Nora do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20261: Blogpoesia (640): "Chafariz de pedra", "Começar a manhã" e "Queimou-se o estrugido...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20278: (De) Caras (138): o alf mil at art António Freire Vieira Abreu pertenceu ao 2º pelotão da CART 1648 / BART 1904 (Bissau, Nhacra, Binta, Bissau, 1967/69) (João Crisóstomo / Armindo Azevedo)



Guião do BART 1904 (Bissau e Bambadinca, jan 1967/ out 1969)



1. Mensagem, de 21 do corrente, João Crisóstomo, ex-alf
mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67),  nosso camarada da diáspora, a viver desde 1975 em Nova Iorque, recentememnte promovido a régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona (que é tão grande como o mundo):

Caro Luís Graça, e demais camaradas

Acabo de falar com o Armindo Azevedo que me deu/confirmou algumas informações ontem encontradas e ainda as seguintes.

O Vieira Abreu pertencia à Companhia de Artilharia 1648, BART  1904 [Bissau, Nhacra, Binta, Bissau, 1967/69). Era o  comandante do Segundo Pelotão. Foi para a Guiné no Uige a 11 de janeiro de 1967 e voltou no mesmo barco em novembro de 1968.

O nome completo dele é António Freire Vieira Abreu, nº mecanográfico 09758763.


Ao  2º Pelotão da CART 1648, pertenciam 3 sargentos: 2º srgt at art, Manuel Dias Duarte; fur mil at art, Tibério Augusto F. Branco; e fur mil at art, Joaquim Carvalho Justino... E pelo menos quatro primeiros cabos (, dos restantes não temos o nome): Mário Gonçalves Moreira, Joaquim Leite da Silva, Ramiro Moreira da Costa e José Gouveia Pires...

O Armindo disse ter um livro [, a história da unidade.]  com todas as informações sobre o BART 1904.  Ele ofereceu-se para mo “facilitar”; eu evidentemente que não preciso de toda essa info, mas, no caso de alguém estar interessado, pode contactar com ele. Telemóvel + 351 913 212 651..

Um abraço, João.

 2. Comentário do editor LG:

Pronto, João, está identificada a companhia (e o batalhão) a que o nosso Vieira Abreu pertencia, graças aos teus bons ofícios e à resposta pronta do camarada Armindo Azevedo que organizou o último convívio do batalhão, o 50º, este ano em maio passado, no Norte, o 50º Convívio dos Combatentes do Batalhão de Artilharia 1904 (CCS, CArt 1646, CArt 1647 e CArt 1648). Recorde-se o lema do batalhão: "Firmes e Generosos"...

Agora a questão que eu te ponho é a seguinte: faz sentido integrá-lo na Tabanca Grande, a titulo póstumo, como temos feito com outros camaradas que têm vindo a falecer, nestes últimos anos de vigência do blogue (ou, seja, desde 2004)..., sem sabermos qual era a sua (e da família) última vontade ? Possivelmente, ele até poderia querer "esquecer a Guiné", como talvez a grande maioria dos nossos camaradas... que não nos procuram, não nos lêm, não falam desse seu passado...

Que eu saiba, o António, teu condiscípulo de seminário e teu amigo (***),  nunca nos procurou, nem terá mostrado interesse por esta parte, dolorosa, do seu passado. É possível que tenha escritos sobre a Guiné... .Mas tu, João, tens a liberdade de o fazer, patrocinando a sua entrada na Tabanca Grande... Escreves dois parágrafos...Falas com a viúva. É uma pequena homenagem nossa...

De resto, não temos ninguém que represente,  mesmo a título póstumno, a CART 1648... O António seria o primeiro...  Este convite também é extensivo ao Armindo  Azevedo que, felizmente, permanece entre nós, e que nos pode ir facultando mais informação sobre a história do BART 1904. 

Aquele abraço, Luís

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Notas do editor:



sábado, 26 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20277: Os nossos seres, saberes e lazeres (361): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Finda a primeira etapa na Caldeira das Sete Cidades, impunha-se a rememoração de lugares e pessoas em Ponta Delgada, antes de partir para outro cenário edénico. Não se vive impunemente num lugar pouco menos de seis meses, aqui se deixaram raízes, amizades inquebrantáveis, esvoaçam lembranças de muito boas companhias.
Este Museu Carlos Machado é uma pérola de cultura, de zelo e de bom tratamento museológico e museográfico. Que quem visite São Miguel ou pelo menos Ponta Delgada não perca a ocasião de desfrutar este museu que fala da alma açoriana e da sua universalidade. Esta Ponta Delgada é sempre um desfruto para o viandante, é-lhe familiar, não raro toca uma campainha para espantar gente com quem conviveu há mais de cinquenta anos atrás, e experimentar assim um acolhimento sem paralelo, tão típico das gentes das ilhas.
Bastava este dia e estes reencontros para abençoar o regresso sempre tão desejado a São Miguel.

Um abraço do
Mário


A minha ilha é um cofre de Atlântidas (3)

Beja Santos

Assim findou a estada na Caldeira das Sete Cidades, o viandante vai apanhar a “carreira” para Ponta Delgada, será dia de revivências, quem ali aportou nos idos de outubro de 1967 rapidamente se procurou inserir no meio, fazendo amigos, buscando antros de cultura, indagando onde se via cinema ou se fazia teatro, e algo mais. No centro da cidade, num convento, de nome Santo André, em 1876 o Dr. Carlos Machado abriu ao público o Museu Açoreano, dele vamos falar. Antes, porém, agradecemos à potência celestial este céu enevoado onde o sol tenta expor-se irradiante, sem sucesso. Uma imagem que pode suscitar leituras imprevidentes, talvez um tornado à solta, um abismo cataclísmico, uma imaginação febril pode até antever uma erupção vulcânica. Nada disso, é uma manhã costumeira, o céu vai forrar-se, ficará plúmbeo, um céu dos Açores.


O museu hoje chama-se Museu Carlos Machado, tem ainda umas reminiscências de museu escolar, como foi concebido, o Dr. Machado pelava-se pela História Natural, comprovadamente presente, desde cachalotes e baleias até insetos. O museu foi crescendo ao longo do século XX. O viandante quando aqui chegou há meio século, achou-o estimulante mas soturno, de uma museologia convencional. Hoje está tudo diferente, as temáticas bem seriadas, a museografia a funcionar em pleno, é bem agradável o diálogo entre a arte religiosa, as marcas do mar, as belas-artes, as mensagens para a etnografia regional. O viandante ainda se lembra da primeira visita, do amplo espaço concedido aos objetos do quotidiano doméstico, às peças ligadas às atividades marítimas e agrícolas. Agora entra-se no museu e esta figura impressiona, dominava a popa de um navio, é a primeira ligação a esses Açores de longos mares.



Quem aqui vier, traga tempo e abertura para o multicultural, há muitas marcas do tempo, das espécies aquáticas, de objetos africanos, houve doadores de arte sacra e etnografia conventual. Quem aqui vier, interrompa o olhar de vez em quando, passe pelo claustro, contemple os céus, ponha os pés na igreja ou suba o coro, são visões complementares.





Quem vem ao Museu Carlos Machado prepare-se para uma viagem fora de portas. Que quem aqui se encontra sente-se enquadrado pelo espaço conventual, uma bela museologia e uma competente museografia põem o visitante a conversar em vários tempos, espaços, entre a ciência e as belas-artes. E há muito desvelo, repare-se como tudo está restaurado. Ao tempo em que por aqui andou o viandante lhe foi recordado que tinha que ir ver a secção de Arte Sacra a um outro espaço, a igreja do Colégio dos Jesuítas. Pena era que o Núcleo de Santa Bárbara, bem pertinho do Museu Carlos Machado não estava facultado ao público, montava-se uma grande retrospetiva do maior escultor açoriano do seu tempo, Canto da Maia. O viandante nem pestanejou, voltou a subir e a descer os diferentes andares deste Convento de Santo André, a mirar e a remirar. É um grande museu, oxalá que quem visite a cidade esteja informado deste potencial da cultura açoriana, sempre a falar português.




É entre subidas e descidas, entremeando pássaros e peixes, alfaias religiosas e armários de entomologista, que o viandante se depara com este surpreendente quadro azulejar da caldeira das Sete Cidades, fica-se mesmo a pensar que estaria exposta num ponto alto, talvez no Pico do Rei, que foi restaurado, e está num lugar merecido, protegido das inclemências do tempo.




Aqui se interrompe a viagem, ainda há umas secções para visitar, mas deixa-se a recordação de um parlatório, as monjas podiam conviver com gente de fora, mas havia o limite da grade, se alguém visitava e trazia comes e bebes, estes eram inspecionados noutro local. Aqui era só para conversar, os profanos viam, ouviam, sem poder almejar a vida de orações, de trabalhos, de penitência. E por aqui ficamos, repetindo que há muito para ver, desde arte sacra a brinquedos, espécies em pedra, uma igreja gloriosa, temos aqui um modo de discernir a ciência e a cultura metodicamente zeladas no universo açoriano.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20257: Os nossos seres, saberes e lazeres (360): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20276: Notas de leitura (1230): "Retalhos das memórias de um ex-combatente", de Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012): excerto do capítulo 11, "Mina na Companhia 305", evocação, pungente, da morte do cap inf Oscar Fernando Monteiro Lopes, vítima de mina A/C, na estrada Buela-Pangala, Norte de Angola, em 10/7/1962


Angola > c. 1962/64 > Uma GMC destruída por uma mina A/C. Foto de Ângelo Ribau Teixeira, " "Retalhos das memórias de um ex-combatente" (edição de autor, 2009), p. 52. Com a devida vénia...

Do preâmbulo pp. 10/11): 

"As minas eram um terror! A estrada por onde teríamos de passar quando íamos ao abastecimento em São Salvador do Congo, numa zona de descida para o rio Luvo, era um local de terra barrenta que fazia derrapar as viaturas. Tinha sido atapetada com grainha de cobre – estávamos perto das minas do Mavoio – e esses restos do cobre evitavam a derrapagem das viaturas. Só que veio a guerra, e o inimigo aproveitando essa condição montava aí minas, onde era impossível o detector localizá-las. Ia sempre a cantar, como nós dizíamos. A única solução era a utilização de ferros afiados numa ponta com os quais picávamos a estrada.

"Para nós foi o período mais difícil. Estávamos preparados, física e psicologicamente para sofrer emboscadas e reagir a elas, para montar emboscadas e reagir à reacção do inimigo (IN). Mas como reagir ao rebentamento de uma mina anti-carro, não sabíamos! Se ao menos o IN fizesse fogo nós reagiríamos. Mas não, as minas eram armadas e colocadas durante a noite e bem dissimuladas. Que raiva…

Foi especialmente nessa zona que alguns companheiros nossos perderam a vida POR ANGOLA.
Só mais tarde descobrimos uma picada - caminho de pé posto - que passava perto desta zona e então compreendemos o que se estava a passar. Essa picada era passagem de reabastecimento do IN que, vindo do Congo, se dirigia para a região dos Dembos, aproveitando a sua passagem para nos deixarem tristes 'recordações' " (...)
.


1. Da leitura, rápida, do livro que me chegou às mãos,  em formato pdf, esta semana, da autoria do nosso camarada Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012),  ex-2º srgt mil, CCE 306 / BCAÇ 357 (Angola, 1962/64), "Retalhos das memórias de um ex-combatente" (edição de autor, 2009, 167 pp.) (*), chamou-me a atenção o capítulo 11, "Mina na Companhia 305" (pp. 62-64)...

Nesse trecho, pungente, são referidas as circunstâncias da morte do comandante da Companhia de Caçadores Especiais 305, vítima de mina A/C, no itinerário Buela - Pangala. A CCE 305 era  uma das subunidades de quadrícula do BCAÇ 357 (Angola, 1962/64).

O autor não identifica o oficial, mas sabemos que se tratava do cap inf Óscar Fernando Monteiro Lopes (Porto, 1927 - Buela, Pangala, Angola, 1962), um dos 47 oficiais da Escola do Exército / Academia Militar que morreram em combate, na guerra colonial (**).

Há uma gralha na data; não foi num domingo dia 10 de julho do ano de 1963, mas sim em 1962, numa terça feira,  dia 10 de julho.

O livro tem uma dedicatória tocante aos pais e esposa do autor, mas também "àqueles que lutaram mas, por eles, nem os sinos dobraram. Tudo à Pátria deram, e dela nada receberam, Por sua alma" (p. 1),

Também no prefácio escrito por antigo companheiro de armas, J. Eduardo Tenderio, lê-se_ ""Os que, sem serem militares de carreira, sem preparação específica, arrancados das suas vidas calmas para serem lançados na voragem de uma guerra – a guerra do Ultramar de tão triste memória – onde generosamente deram o seu melhor a despeito das muitas dúvidas que os assaltavam, como eu, certamente encontrarão na leitura destes escritos algum lenitivo."

O livro publicado já no acaso da vida do autor (, em 2009, presume-se), terá sido escrito em resposta às perguntas, persistentes e pertinentes, da sua neta Ana Rita, de 10 anos, como se percebe do preâmbulo (pp. 10/11):

"Olha, Ana Rita, és muito nova para te contar tudo o que lá se passava naquela época, mas eu prometo-te que vou escrever tudo, para tu, quando fores grande, leres e perceberes o que os 'rapazes' da minha idade lá passaram."...

E é do "terror das minas" que o autor guarda recordações mais dolorosas, como se pode ler no excerto a seguir reproduzimos, como nota de leitura (***)


Ângelo Ribau Teixeira, 2º srgt mil,
CCE 306 / BCAÇ  357 (Angola, 1962/64).
Nasceu em 1937, na Gafanha da Nazaré, 
Ílyavo, em 137,
 e faleceu em 2012)
"Retalhos das memórias de um ex-combatente" > 11. Mina na Companhia 305, pp. 62-64 

[excertos, com a devida vénia... e em homenagem ao autor, Ãngelo Ribau Teixeira,  nosso camarada,  já falecido, bem como ao infortunado cap inf Óscar Fernando Monteiro Lopes]


(...) Grande “Makas”

De repente, ouço um estrondo, muito ao longe. Parecia um trovão. “Que diabo é isto?!” Olhei em volta. Notava-se, ao longe, para os lados da Buela, uma coluna de fumo. Não era queimada! O fumo da queima do capim é cinzento, este era escuro. Era produto da queima de combustível de uma viatura. “Meu Deus - interroguei-me - outra mina?!”

Desci rapidamente do Posto de Observação e dirigi-me ao Comando, informando o Capitão do que tinha ouvido e visto.

- Deixa lá, não há-de ser nada! – respondeu ele.

Foi fora da nossa zona. Só pode ter sido alguma viatura na Companhia 305, que tinha o acampamento não muito distante do nosso.

- O que for,  soará – foi a sua resposta. E continuou sentado onde estava.

Desiludido com tal atitude, dirigi-me à nossa caserna, contando o sucedido.

- Aqui dentro não ouvimos nada – disseram os que lá estavam.

- Mas houve “maka” – afirmei com veemência. 
–  Vão lá acima ao Posto de Observação e ainda verão os restos do fumo da explosão.

Alguns assim fizeram e, ao regressarem, conversavam entre eles:

- Houve merda, pela certa. O tipo de fumo é igual ao da explosão que houve com o nosso pelotão.

O Sargento de Transmissões dirigiu-se logo ao Posto de Rádio para fazer uma “exploração” e ver se havia alguma comunicação. Pouco depois o Sargento Tendeiro informou-nos de que possivelmente teria havido um problemazeco qualquer mas que a recepção não estava nas melhores condições. Só quando chegasse a hora das comunicações com o Batalhão, tudo ficaria esclarecido.

Estranhei a atitude do Tendeiro que, rapaz de poucos fumos, se tenha sentado à mesa, tirado um cigarro que acendeu, e puxando grandes baforadas que expelia para o ar, ficava a olhá-las até desaparecerem contra o zinco quente do telhado.

Olhei-o de frente. Ao notar que estava a ser observado, olhou-me e encolheu os ombros. A minha resposta foi também um encolher de ombros.

Perto da noite veio a informação do Batalhão - havia um morto e um ferido. O morto era o Comandante da Companhia 305, o ferido tinha sido o Cabo Condutor, a quem no acampamento da Buela o médico, à falta de melhor alfaia e para evitar a gangrena, lhe tinha amputado o braço com um serrote de cortar madeira! Um alferes e um soldado sofreram ferimentos menos graves.

Ainda hoje recordo ter recebido do meu irmão mais velho (à espera da mobilização no Colégio Militar, no qual dava aulas), um aerograma perguntando que raio de guerra era esta, em que um Capitão morre com uma mina anti-carro! O Capitão tinha também dado aulas no Colégio Militar, onde era muito estimado! (****)

O meu irmão era de Artilharia e estava longe de imaginar o sítio para onde mais tarde o iriam mandar: para o coração dos Dembos!

Sobre este caso, tão chato, só agora o Tendeiro se abriu. Não podia revelá-lo antes, por ser uma mensagem confidencial. Só o Comandante do Destacamento podia ter conhecimento dela. Disse-nos, então, que quando sintonizou o rádio na frequência usada pelos pelotões em operação, ouviu o rádio da patrulha chamando aflitivamente para a Buela. Uma viatura tinha pisado uma mina anti-carro. Dos quatro ocupantes um tinha tido morte imediata, outro, o condutor do veículo, tinha o braço direito meio decepado e os outros dois estavam só ligeiramente feridos. Pediam duas macas com urgência, pois o condutor estava a esvair-se em sangue, embora o maqueiro já lhe tivesse aplicado um garrote!

- Que raio! Será que não conseguimos pôr a vista em cima dos gajos?! Serão invisíveis? Nem com todos os cuidados conseguimos evitar as baixas no nosso Batalhão! Merda p‟ra isto!

A nossa Companhia já tinha conseguido eliminar um inimigo. E da nossa parte já quatro haviam perdido a vida nesta luta do gato e do rato!

“Tic”...
O cap inf Oscar Fernando Monteiro Lopes
(1927-1962). Foto: cortesia de
Morais da Silva (2019)



Em Cuimba encontrei companheiros da 305. Falei com o Sousa, tentando saber mais pormenores sobre a mina que eles tinham accionado. Contou-me tudo o que eu já sabia, como é que actuava uma mina. Mas contou-me mais! A esposa do Capitão estava na Buela quando se deu o acidente. Julguei que em zona de guerra isso fosse proibido! Mas afinal não era como eu pensava.

Foi o Sousa que deitou os restos mortais do Capitão na cama – eram mesmo restos – compondo-os o melhor que pode. Pôs tudo em ordem e saiu.

A esposa queria ver o marido! Deixou-a entrar. Esta ficou a olhar, imóvel. O rosto do Capitão estava intacto - este tipo de minas actua de baixo para cima. A senhora nem uma palavra balbuciou. Que pensamentos eram os seus naquela hora? Ninguém sabia!

Os presentes retiraram-se em sinal de respeito.

Pouco depois ouviu-se um “tic”. Correram para trás e encontraram a senhora com a pistola encostada à cabeça. A sorte (?!) dela foi a arma não ter balas, tiradas propositadamente pelo Sousa antes de sair do quarto. Pensou, ou foi um anjo que lhe disse, que a pistola do Capitão, mesmo carregada, já não serviria para nada.

Aquela mulher, perante a impotência de acabar com o seu sofrimento, sentou-se numa cadeira e chorou copiosamente. Perante a surpresa deste infortúnio, não fazemos uma pequena ideia do quanto sofria aquela alma!

Lágrimas que o Império tece…
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Notas do editor LG:

(*) Vd.poste de 24 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20273: O Spínola que eu conheci (34): um testemunho, de um ex-combatente, Ângelo Ribau Teixeira (Angola, 1962/64), que mostra não ter sido inspiração de circunstância o conceito de “Por uma Guiné Melhor” que o meu saudoso Comandante-Chefe materializou na Guiné anos mais tarde (1968) (Morais da Silva, cor art ref, cmdt da CCAÇ 2796, Gadamael, 1970/72)

(**) Vd poste de 26 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19441: In Memoriam: os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte X: cap inf Óscar Fernando Monteiro Lopes (Porto, 1927 - Buela, Pangala, Angola, 1962)

(***) Salvo, seria o Manuel Ribau Teixeira, meu colega da Universidade NOVA de Lisboa, mas  que eu não conheço pessoalmente:

(i) doutorado em Física pela Universidade de Lisboa em 1984; (ii) como investigador foi responsável pelo Grupo de Investigação de Desenvolvimento e Aplicações de Lasers, de 1984 a 1996, no Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial; (iii) professor convidado do Departamento de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, de 1985 a 2000,  responsável pelas disciplinas de Óptica e Optoelectrónica, da Licenciatura em Engenharia Física desta Universidade; (iv) aposentado.

Fonte: Gazeta de Física vol 34  nºs 3/4 , julho de 2011, com a devida vénia...

Último poste da série de 25 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20275: Notas de leitura (1229): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (29) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20275: Notas de leitura (1229): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (29) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 entrou num torvelinho de operações e ocupa território, dá segurança às populações, faz renascer a vida. É o que Armor Pires Mota nos conta na sua passagem para Jumbembem. Há terríveis acidentes, virou-se um bote de borracha a caminho da península de Sambuiá, um pelotão de morteiros perdeu oito praças. É nisto que o acompanhante do bardo deu um salto no plinto da memória e foi até Guidage, a Guidage do cerco onde Salgueiro Maia nos deixou um relato dos mais pungentes que aquela guerra ofereceu. A história da unidade também refere uma companhia que faz parte da quadrícula, a CCAÇ 675, a companhia do Capitão do Quadrado, ele está em Binta, chega e vai metodicamente arrumando a casa, fez-se respeitar pela guerrilha, deu proteção a quem dela precisava, abriu itinerários até então intransitáveis.
Vamos contar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (29)

Beja Santos

“Na cabeça foi atingido
este amigo e companheiro
João Félix na flor da idade
foi morto por um bandoleiro.

Era um homem operacional
que de nada tinha medo
e no meio daquele arvoredo
teve este golpe fatal.
Foi evacuado para o hospital
num transporte que foi pedido;
coitado, deu muito gemido,
quando o seu sangue perdia,
pois às 5 horas do dia,
na cabeça foi atingido.

Eram muitas as rajadas
para cima da nossa gente.
Ele levantou-se de repente,
jogando algumas granadas,
quando as tinha já acabadas
pediu mais granadas de morteiro,
e houve então um bandoleiro
que um tiro no rapaz deu
e logo nessa noite morreu
este amigo e companheiro.

Pela nossa Pátria querida
este soldado lutou,
muito sangue derramou
dando a sua própria vida.
Tanta fera enraivecida,
que só tem ruindade,
foi com grande barbaridade
que este crime praticaram.
De Samora Correia mataram
João Félix na flor da idade.

As suas famílias gritavam
quando dele se despediram.
Foi a última vez que o viram,
parecia que adivinhavam,
mas maiores gritos lançavam
ao chegar-lhes junto o carteiro.
Ele acalmou-os primeiro
e leu-lhes a má comunicação:
seu filho do coração
foi morto por um bandoleiro.”

********************

A história da unidade refere efetivos, a disposição e quadrícula e as operações. Em 12 de julho de 1964 houve uma ação nas matas de Ponta Caeiro, houve fogo intenso, do lado do efetivo comandado pelo Capitão Rui Cidrais houve vários feridos evacuados e ligeiros. Em 20 de agosto houve uma operação realizada a Sanjalo, incendiaram-se casas de mato, temos aqui uma referência à CCAÇ 675, a do Capitão do Quadrado, a que mais adiante se fará referência, o relatório é assinado pelo comandante, Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, ele esclarece que na área do objetivo foram encontrados terrenos recentemente cultivados. Em 24 de setembro temos uma operação realizada à região de Farincó-Mandinga, houvera referência a um acampamento de guerrilheiros com cerca de 16 casas de mato, intervieram pelotões da CCAV 487 e 488. O relatório é também assinado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro que em dado passo escreve o seguinte:  
“A marcha para a zona do objectivo decorreu conforme o previsto. Em consequência do perfeito conhecimento que o guia tinha do terreno e das notícias referentes à localização do acampamento inimigo, a companhia conseguiu chegar a trinta metros dele sem ser detectada. O inimigo surpreendido reagiu pelo fogo, só não tendo êxito devido à acção das 2 secções da vanguarda do dispositivo, que carregaram sobre o acampamento, obrigando o inimigo a tentar escapar desorientado, abandonando material de guerra”.

No início de 1965 decorrerá a Operação Panóplia, ficará associada a um grave acidente de que falecerão oito praças. O objetivo era a região de Sambuiá. Veja-se este aspeto curioso respigado do relatório quanto às casas de mato localizadas em Simbor:
“Estão junto à margem do rio Sambuiá entre a ponte e a povoação. Neste rio estão estendidas cordas que permitem ao inimigo agarrar-se a elas mantendo-se submerso, com parte da cara fora de água para respirar, quando a região é sobrevoada pela aviação; as mulheres e as crianças escondem-se no tarrafo ou nos cemitérios dos Mandingas de Sambuiá, ocultando-se nas sepulturas. O inimigo encontra-se em força nesta região e consta que tem oito metralhadoras com suporte antiaéreo. Em Talicó, o inimigo monta diariamente um serviço de vigilância com um serviço de 37 indivíduos”.

O relatório descreve os planos estabelecidos para a ação, como a mesma se desenrolou, chegou-se a Sambuiá, onde a CCAÇ 675 entrou em força. Verificou-se entretanto o acidente sofrido pelo Pelotão de Morteiros 980[1], que era constituído por 33 homens. Entrara numa lancha, o transporte seguiu pelo rio Cacheu.
Escreve-se o seguinte no relatório do acidente que ocorreu em 5 de janeiro de 1965:  
“Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene. Aí o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que o pelotão desembarcou para o bote de borracha no qual se faria o desembarque na península de Sambuiá. Embarcaram para o barco de borracha 25 homens, entre os quais o seu comandante, bem como o material e armamento. Como seria mais seguro não embarcarem todos os homens nesse barco, que tem uma lotação aproximada de 30 homens, o comandante do navio pôs à nossa disposição um barco de borracha pertencente à Marinha, no qual embarcaram simultaneamente os restantes homens do Pelotão de Morteiros. Os dois barcos seriam rebocados pela lancha, de maneira a estarem permanentemente encobertos das vistas de possíveis sentinelas existentes na península onde se efectuaria o desembarque. Antes do navio se pôr em marcha, foi passado um cabo por baixo do barco, onde eram transportados os 25 homens, amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo. O navio recomeçou a marcha e, depois de ter navegado durante alguns minutos, o cabo que fora passado para rebocar o barco maior rebentou, pelo que o navio se afastou um pouco. Foi posto o motor do barco a funcionar e a recolagem fez-se sem qualquer incidente ou dificuldade. Foi então que se passou um cabo mais forte para dentro do barco de borracha, ficando os próprios homens que o tripulavam a agarrar nesse cabo, sendo nessa altura avisado pelo comandante da lancha, e depois por mim, que em caso de emergência o cabo devia ser largado imediatamente. Depois de se navegar alguns metros, notei que o barco de borracha deixava entrar água pela proa. Foi nesse momento que à ré do barco de borracha alguns homens se levantaram, talvez assustados pela água que saltava para dentro do barco. Mandei-os sentar imediatamente, mas o barco já se encontrava desequilibrado de um dos lados e, sem nos dar tempo para qualquer reacção, afundou-se rapidamente”.

Comunicado da imprensa de 1965
O Alferes José Pedro Cruz recomendava no seu relatório que seria de evitar nas operações em rios homens que não soubessem nadar e que nunca se devia rebocar um barco com o cabo de reboque passado por cima do barco rebocado e agarrado pelos próprios tripulantes do mesmo barco.

Inadvertidamente, vem-nos a recordação não do acidente desta gravidade mas uma situação de calamidade como aquela que se viveu no cerco de Guidage. Como se sabe, deve-se ao Capitão Salgueiro Maia um depoimento sem paralelo sobre este cerco e a sua chegada a Guidage, quadro de tragédia mais pungente não pode haver.

Salgueiro Maia
Antes porém ele conta-nos na sua “Crónica dos feitos por Guidage” um ataque com um pelotão da sua companhia que estava num destacamento.
Salgueiro Maia parte em seu auxílio:
“Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir na direcção certa, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível.
Depois de rotos pela vegetação e cansados de correr ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate. Ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação, mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estavam ainda na fase de não saber se era verdade ou não. Mando montar segurança à volta da zona e pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior do que ele; parece de cera, olha-me sem me ver e aponta com o braço. Sigo na direcção apontada e depressa vejo uma nuvem de mosquitos e moscas: já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore, estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; à volta estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado; a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele – está cor de cera e praticamente nu. Olha-me como que em prece; ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel-enfermeiro e um cabo-maqueiro. Mando-os avançar, assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave – o ferimento provém-lhe da perna. Tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue. Tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que não lhe fizeram um. Alguém me responde que o enfermeiro está ferido. 
Começo a sentir raiva".

Como o dia estava a tombar, e como era impossível recorrer a uma evacuação por helicóptero, depuseram-se os feridos nas caixas dos Unimog, entretanto o PAIGC volta a atacar com foguetões 122 mm. O ferido da perna morre.
E Salgueiro Maia escreve: “Guardo dele uns olhos assustados a brilhar numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida porque em sessenta homens ninguém sabia o mais elementar em primeiros-socorros: fazer um garrote”. O capitão por ali anda a contemplar os mortos de boca e olhos abertos, reage, tal como vai escrever: “Mecanicamente, tiro os atacadores das botas dos mortos, ato-lhes os queixos, ponho-lhes as mãos em cruz, os pés juntos. Com água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhos. Olho para a minha obra e também não entendo”.

O pesadelo maior vem depois. No dia 22 de maio de 1973, Salgueiro Maia recebe instruções para seguir para o Norte, o PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, um autêntico cerco, minara estradas, trouxera mísseis terra-ar, havia um verdadeiro campo de minas anticarro e antipessoal na estrada Guidage-Binta. O Comandante-Chefe, perante a gravidade da situação, reage com a Operação Ametista Real. No meio daquele pandemónio, Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e seguir depois com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, o objetivo era rasgar o cerco, chegar a Guidage. Deixou-nos uma descrição memorável, é uma peça espantosa, única, sobre os desastres da guerra, viaturas a acionar minas anticarro, feridos e mortos, a progressão da coluna a corta-mato, mais explosões e ao fim do dia entra-se em Guidage, assemelha-se a um panorama lunar, preside a irrealidade.
É tudo dantesco por excelência, o que parece absurdo deixa de o ser, nenhum outro relator da guerra da Guiné foi tão ao fundo da banalização do horror:
“A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento-enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifícios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense, que ficou sem uma perna, uma farda n.º 3, que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da Madeira quase cheia no meio de tudo partido. Com isto, fiz uma pequena festa com 3 ou 4 homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau, ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.
Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera 4 mortos e 3 feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 milímetros de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão e sem saber de onde ele tinha vindo”.

Não se atina como é que a memória nos faz passar de meados dos anos 60 para aquela catástrofe de 1973, mas fala-se de Binta, de Guidage, de Farim, de Sambuiá. Dera-se uma evolução fenomenal, em poucos anos, o equipamento do PAIGC suplantara o das forças portuguesas, modificara-se a condução da guerra de guerrilhas, numa mistura de guerra convencional e de ataque surpresa. Agradece-se à memória agir assim, temos muitas vezes o condão de nos fixarmos numa data e esquecer completamente que nenhuma análise pode prescindir da sequência cronológica: fomos todos protagonistas, mas em tempos diferentes, o que uns viram de uma maneira, mais adiante os outros acrescentaram novos pontos de vista.

(continua)
____________

Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 8 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5077: Fichas de Unidades (5): História do Pelotão de Morteiros N.º 980 (José Martins)

Poste anterior de 18 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20254: Notas de leitura (1227): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (28) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20274: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VII: Em Fulacunda, também havia milagres...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  A famosa "torre de vigia" que já existia no tempo dos Boinas Negras, a CCAV 2482 (1968/70)


Foto: © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > Parte VII


[ Foto acima: Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda]





Estou a viver os primeiros dias em Fulacunda e os dias irão decorrer de acordo com a normalidade corresponde às razões da nossa mobilização.

Oficiais e sargentos partilham uma messe conjunta e periodicamente faziam-se umas paródias de confraternização. Cantava-se, improvisavam-se instrumentos musicais e o "Pitchas", como era alcunhado o Zé Luís, arranhava na guitarra. O Comandante acompanhava ao xilofone e eu tinha uma bateria improvisada com os invólucros das munições do obus 10,50cm, que tinham um som estridente e ao mesmo tempo suave. Tocava com umas "baquetas" que um soldado tinha feito de forma artesanal. Havia dois ou três dos presentes que emprestavam a voz e lá íamos comendo uns camarões e bebendo umas "cervejolas".

Periodicamente, o nosso 1º Sargento trazia-nos de Bissau uns camarões que constituía sempre uma noite especial.

Com os meus soldados do 22º PEL 
ART (Pelotão de Artilharia) e a colaboração sempre imprescindível dos meus camaradas e amigos, os furriéis Jacinto e Branco, íamos construindo os espaldões para os três obuses 10,50cm que tinham sido posicionados junto à pista de aviação.

Algumas árvores foram abatidas para permitir a redução do chamado "ângulo de sítio",  sempre que se fizesse fogo com os obuses e, mais importante, podermos fazer tiro direto.



Embora estes trabalhos 
tenham sido levados a efeito pelos soldados da artilharia, não devo esquecer aqui a ajuda de soldados "Boinas Negras” [, CCAV 2482, Tite e Fulacunda, 1968/70], do qual o único que mais me marcou foi um rapaz chamado Lérias. Corpulento de físico, mas com uma disponibilidade para ajuda e uma alma grande como se ajudasse os amigos da paróquia.

Sempre atento, o Comandante [, cap cav Henrique de Carvalho Maia,] indagava-me se tudo estava bem e se precisava de alguma coisa.

Recordo que aos fins-de-semana havia futebolada. Por vezes a disputa era acesa e a luta aquecia. Era o reflexo da adrenalina que vinha ao de cima e que era necessário controlar q.b.


Um dia sou convidado para jogar. Recusei, porque não era dotado para aquela prática, ao contrário do Jacinto que era um craque e por isso sempre disputado para a equipa A, ou B. Havia também um rapazito africano, o Seco, nome de um jovem de Fulacunda que trabalhava na messe conjunta dos Oficiais e Sargentos, servindo à mesa.

De vez em quando éramos alvo de umas rajadas de "costureirinha" [ A irritante Shpagin PPSH 41, de calibre 7,62 mm Tokarev, mais conhecida por "costureirinha", de origem soviética]. Embora o aquartelamento fosse defendido segundo o método de "postos avançados" e com a artilharia sempre a postos, normalmente não se respondia ao fogo IN, por ser de fraca in
tensidade. 


Se bem me lembro, enquanto eu estive em Fulacunda, teremos respondido ao fogo uma ou duas vezes. Da que tenho mais presente, mas cuja data não menciono aqui, deu-se ao fim da tarde de um determinado dia, com morteirada forte.
Perto da hora do jantar estamos na messe.  Com o fogo intenso, o Comandante sai para subir à "torre de vigia" para tentar referenciar a origem do fogo e por analogia a posição do IN. Sigo o Capitão e,  na subida à torre pela escada exterior, passa-nos um rocket, que de raspão bate na parede da torre e não explode. É aí que sinto ficar ferido muito ligeiramente no braço esquerdo.

- Vem do lado da pista! -  grita o Comandante.

Desço da torre de vigia com a intenção de me deslocar rapidamente para os obuses.  Um dos alferes dá-me a chave de um dos jipes e vou acelerando para junto da pista onde estavam os 10,50cm.

Junto à casa do antigo Chefe de Posto, uma morteirada cai a uns 80 metros à frente do jipe. Um clarão que não impediu que o jipe se desviasse do trajeto. Sigo em frente e, já junto aos obuses, dou instrução de tiro:

- Vamos apontar para a orla da mata, rápido, rapazes, vamos lá mostrar como se faz fogo.

Os três obuses continuam a fazer fogo por cima da pista para a orla da mata. O IN, entretanto, tinha cessado o fogo.

Passados uns minutos, tudo fica em silêncio. A tensão mantém-se, o alerta é total.

Já não tenho presente o detalhe da situação, mas lembro-me de o Comandante ter chegado junto dos obuses um pouco "exaltado", por não estarmos a fazer fogo para o local que ele tinha identificado quando fez a observação da torre de vigia. Teríamos feito tiro na direção correta, mas para a orla da mata, estando o IN, entre a orla e a pista de aviação. O tiro passou por cima.

Ainda estamos nesta fase de tensão e eis que chega junto dos obuses o alferes que me tinha dado a chave do jipe. Ele estava confuso e confuso eu fiquei quando me diz que a chave que eu trouxe não era do jipe que eu tinha 
conduzido. Que teimosia se estabeleceu... Fomos experimentar.

Na verdade, a chave que eu tinha não entrava na ignição do jipe que eu tinha trazido. Experimentou-se com a chave que o alferes trazia na algibeira e foi uma "palhinha",  entrou na ignição e o jipe começou a trabalhar que nem uma máquina de costura.

Curiosidades destes aspetos da guerra. Afinal, não deve haver milagres, mas na ânsia de pôr aquele jipe a trabalhar devia ter enfiado a chave com mais pressão que a normal. Suavemente não entrava.

Mas..., ainda estávamos no rescaldo do ataque IN.

Pela manhã cedo do dia seguinte, um pelotão sai do aquartelamento e vai em reconhecimento ao local de onde se supunha ter vindo o ataque no dia anterior. Solicito autorização ao Comandante para acompanhar o pelotão de reconhecimento, que me foi concedida.

Após alguns minutos de marcha com a cautela que as condições recomendavam, lá encontrámos, em frente á pista de aviação, os vestígios do grupo terrorista atacante de véspera. Várias "camas" no chão sobre o capim vergado, com invólucros de munições espalhadas e vestígios diversos de que houve ali gente.

Passámos pela orla da mata e verificou-se a zona de fuga do IN.

De volta ao quartel, passámos pela pequena capela existente no aquartelamento onde os crentes podiam fazer as suas orações e assistir à realização da missa.

Um grupo de soldados está junto à capela,  o que revelou que algo se passava aos que se aproximavam. A Capela tinha sido construída sem a parede frontal e o telhado era de zinco. Na parede de topo da Capela, havia um nicho, estando nela colocada uma imagem de Nossa Senhora. Mas qual o espanto e a justificação de tantos à volta e dentro da capela, naquele preciso momento?

É que a capela tinha sido atingida com mais do que uma morteirada, a avaliar pela picagem das paredes e do estado das chapas de zinco que constituíam a cobertura. Perante tais morteiradas, tudo pareceria normal, não fosse o facto de o nicho e a imagem de Nossa Senhora estarem intactas. Isto é, sem o mais pequeno vestígio de estilhaço. Na prática, o telhado de zinco quase tinha ficado desfeito, as três paredes de suporte da Capela todas picadas pelos estilhaços da explosão das morteiradas.

A perplexidade de todos era, sem dúvida,  a circunstância da imagem de Nossa Senhora e o nicho onde esta se encontrava estarem incólumes.

Milagre, clamavam alguns..., mas, a vida é o que é e a crença pertence a cada um. O respeito por situações não compreensíveis ou inexplicáveis à luz da razoabilidade é o mínimo que se deve ter.

Os "Boina Negras" tinham uma relação fácil, amistosa e recíproca com grande parte da população de Fulacunda. Havia muitas crianças que, no tempo de "inverno", corriam contra o vento com uns panos passados pelos ombros acompanhando os braços, parecendo "Ícaros" a pretenderem levantar voo. 


No período em que eu estive em Fulacunda estes meninos não tinham escola. Porém, pouco tempo depois da minha saída passaram a ter aulas com a chegada de professoras primárias, naturais da Província. 

(Continua)
_________


Nota do editor:


ÚLtimo poste da série > 20 de outubro de  2019 > Guiné 61/74 - P20260: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VI: Eusébio, um preso que eu mandei tratar com dignidade e que me vai ficar reconhecido

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20273: O Spínola que eu conheci (34): um testemunho, de um ex-combatente, Ângelo Ribau Teixeira (Angola, 1962/64), que mostra não ter sido inspiração de circunstância o conceito de “Por uma Guiné Melhor” que o meu saudoso Comandante-Chefe materializou na Guiné anos mais tarde (1968) (Morais da Silva, cor art ref, cmdt da CCAÇ 2796, Gadamael, 1970/72)


Capa do livro de Ângelo Ribau Teixeira, natural da Gafanha da Nazaré , Ílhavo,onde nasceu 1937,  fur mil op esp, CCE 306 / BCAÇ 357 (Angola, 1962/64), "Retalhos das memórias de um ex-combatente", presumivelmente edição de autor (2009, 167 pp.). 
Cortesia de Morais da Silva




1. Mensagem, com data de ontem,  do cor art ref António Carlos Morais da Silva , instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972, e que também conheceu o TO de Angola:


Assunto - Por uma Guiné Melhor

Bom dia

Tenho estado a ler o que este 2º sargento miliciano vivenciou em Angola nos primeiros tempos da guerra (1962) e encontrei este pedaço de prosa [, que a seguir se transcreve[

É mais um testemunho, de 1962,  que mostra não ter sido inspiração de circunstância o conceito de “Por uma Guiné Melhor” que o meu saudoso Comandante-Chefe materializou na Guiné anos mais tarde (1968). Há muito que ele sabia que respeitar as diferentes etnias e dar espaço à colaboração da administração com as autoridades tradicionais era o caminho fundamental para reduzir/anular o apoio da POP à guerrilha.

Interessante para o blogue?

Abraço

Morais Silva


(...) 10. HOMEM DO MONÓCULO

O homem de que vos falo chama-se António Spínola. Era, salvo o erro, Comandante do Sector em São Salvador, com o posto de tenente-coronel. Pessoa reservada, parecia estar sempre com cara de mau. Amigo dos seus soldados como poucos. Dava o exemplo seguindo sempre na frente das colunas, quer fosse motorizadas ou apeadas!

Uma vez tive a sorte de me cruzar com ele. Ele soube do acidente que tinha vitimado os nossos companheiros. Através das comunicações que havia entre as Unidades, sabia que nesse dia iríamos deslocar-nos a São Salvador. Esperava-nos à entrada da cidade, passeando de um lado para o outro, farda amarela vestida, a boina preta de cavalaria com as duas espadas cruzadas, o pingalim batendo na perneira das calças, e o indispensável monóculo. Parecia nervoso. A minha viatura era a primeira. Mandou-me parar. Parei e desci do Unimog, fazendo continência, que ele ignorou.

- Qual é o teu posto?

- Sargento miliciano!

- Quem é o Comandante deste destacamento?

- O Alferes Miliciano Miranda. Vem na segunda viatura.

Nesta altura já o Alferes se encaminhava para nós. Fez continência e perguntou ao tenente-coronel se havia problema.

- Não há problema nenhum mas sei que a vossa Companhia [, CCE 306,]  teve há dias uma chatice e queria dizer-vos que todos lamentamos o sucedido. Tem de ter paciência e fazer como nós temos feito. Só tendo as populações do nosso lado conseguirá vencer. Só a "psico" nos ajudará. Não é com tiros que ganharemos esta guerra. Informem os vossos soldados que devem respeitar os autóctones.

Soubemos, por informação dos próprios, que militares da Unidade de Spínola tinham sido castigados por faltarem ao respeito aos pretos, como eles diziam.

- E qual foi o castigo que ele vos deu? – perguntei, curioso.

- Nem imaginas! Logo que havia uma operação, e durante uma série delas, eram chamados os “voluntários à força”. E lá tínhamos de ir, mesmo que não fosse a vez do nosso pelotão. Era um grande gozo para os que ficavam no acampamento." (...)

[Excerto do livro "Retalhos das memórias de um ex-combatente", de Ângelo Ribau Teixeira, edição de autor, 2009, p. 60. O livro está reproduzido na página do AEJE - Agrupamento de Escolas José Estêvão, Aveiro]

2. Comentário do editor Luís Graça:

Caro amigo e caramada Morais da Silva:

Claro que tem todo o interesse para os leitores do nosso blogue. Vou-lhe pedir que me mande, se possível, a "ficha técnica" do livro: editora, local, ano, nº páginas, etc. Se é que se trata de um livro...Pode ser uma brochura, um documento mimeografado...

Não encontro, na PorBase - Base Nacional de Dados Bibliográficos, referência ao seu autor, Ângelo Ribau Teixeira, mas há académicos com este apelido, Ribau Teixeira... Será que é uma edição de autor ? Se sim, ele não terá feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (, costumam ser as editoras ou as tipografias a tratar desta tarefa)...

Inclino-me mais para um documento policopiado... que formal e tecnicamente não é um livro, mas de qualquer modo é "literatura cinzenta" , relevante para a história da guerra de África, como os textos que publicamos no blogue... Ou as nossas Histórias de Unidade.

Encontrei no portal UTW - Ultramar TerraWeb uma referência ao autor e ao batalhão, com transcrição de excertos... Mas pode ser de outra fonte (que não é citada).

Quanto ao nosso general Spínola, também meu comandante-chefe, vi-o umas três vezes, a última no início do ano novo de 1971, eu já com quase vinte meses de comissão... Estava enfiado num buraco, com um grupo de combate. a defender a ponte do Rio Udunduma, na estrada Xime-Bambadinca. Veio lá desejar-nos bom ano e saber se precisávamos de alguma coisa... Veio de heli, a nova estrada Xime-Bambadinca ainda estava em construção, obra da TECNIL.  Eu estava com o cabelo e a barba já grandes...Não me disse nada, mas um dos oficiais superiores que o acompanhavam, penso que um coronel,  fez-me o reparo...e uma discreta sugestão para ir ao barbeiro quando regressasse a Bambadinca... Bons tempos, em que éramos todos mais novos, eu ia fazer dentro de dias, a 29 de janeiro,  os 24 anos...e dias depois desta visita, caí/caímos, uma viatura GMC com 2 secções, da CCAÇ 12, numa mina anticarro no reordenamento de Nhabijões, ali perto, a 13 de janeiro de 1971...

Um alfabravo, Luís

3. Nota sobre o autor,  Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012)

 O Morais da Silva mandou-me, em formato pdf, uma cópia do livro ou documento em questão: na ficha técnica, há apenas referência ao título "Retalhos das memórias de um ex-combatente" e ao autor: Ângelo Ribau Teixeira, de que se publica, a seguir,  uma foto e uma nota curricular.

O autor, nascido em 1937, na Gafanha da Nazaré, Ílhavo (e, infelizmente,  já falecido em 2012),   foi fur mil op esp., pertenceu à CCE 306, um das companhias de quadrícula do BCAÇ 357 (Norte de Angola, 12/5/1962 - 22/6/1964). Não há menção a editora ou tipografia nem ao ano de edição. O livro ou documento (ou melhor o ficheiro em pdf) tem 167 páginas numeradas, e ilustradas com várias fotos.

Pormenor biográfico  curioso mas revelador do tremendo sacrifício desta 1º geração de combatentes que foi chamado para ir para Angola, "rapidamente e em força": o autor foi para a tropa em 1958 e passou à peluda, seis anos depois, em 1964, a escassos meses de fazer 27 anos... Pela leitura, na vertical, que fiz ao livro, fico com a ideia que o Ângelo Ribau Teixeira, oriundo do meio rural, terá estudado num seminário diocesano ou de algum instituto religioso... Percebe-se sobretudo pelos seus diálogos com o capelão, Arnaldo, e pelas citações bíblicas. Por outro lado, quando partiu para Angola, no T/T Quanza, era já casado, deixava a mulher com um filho na mão e outro na barriga.

Há um índice com mais de 30 pequenos capítulos, alguns muito pequenos. O que acima reproduzimos é o "10. O homem do monóculo", e corresponde à página 60.

Um dos seus companheiros de armas, do seu pelotão (o 3º), J. Eduardo Tendeiro, assinou um curto prefácio (p. 6). Local e data: Covilhão, outubro de 2009. Presume-se que o livro seja uma edição de autor, e tenha saído nesse ano,  2009.





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