sexta-feira, 8 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20953: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (1): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
No preâmbulo do primeiro volume do meu Diário da Guiné, publicado em 2008, contei que, para além do inopinado foi para mim ter dito ao Luís Graça que ia publicar toda a minha comissão, semana a semana no blogue, isto depois de um nosso encontro em 2006, já me tinha ocorrido no passado escrever uma obra romanceada cujo título era exatamente este: "Rua do Eclipse", um acontecimento fortuito, uma conversa com uma intérprete no decurso de uma reunião de trabalho, em Bruxelas, dera ignição a uma correspondência amorosa onde o amante português iria descrever a sua experiência de guerra nos trópicos.
Tomaram-se muitas notas, na altura, havia o correio, as fotografias, as cartas militares, havia essencialmente as feridas em figura de gente, os queridos camaradas com olhos vazos, próteses, fugitivos da praga dos fuzilamentos, gente que aproveitava mesmo uma qualquer estadia em Portugal para aqui ganhar sustento, aquele novo país parecia caminhar para o abismo. Mas a vida profissional tinha outras exigências, a Rua do Eclipse ficou em gatafunhos, mas deixou imensa saudade, era o paraninfo, a voz primigénia que iria fazer superar outras tubas, e trombetear o que a partir do Diário da Guiné se passou a escrever.
É essa saudade desses gatafunhos que aqui se põe em letra de forma. Há os livros que os autores rejeitam e há os livros não escritos que deixaram um recado para o futuro, talvez seja o caso deste malogrado "Rua do Eclipse".

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (1): A funda que arremessa para o fundo da memória

Comprei bilhete para o avião da tarde de sexta-feira, 10 de setembro de 1999. Sempre que possível, quando tenho reuniões na manhã de segunda-feira, parto na antevéspera, sempre são dois dias por minha conta, ou fico no discreto e obscuro Hotel Georges V, que conheço há 20 anos, faz parte da lista, cada vez mais minguada, de hotéis baratuchos, ou na Rue Grétry, quando venho ao serviço da Confederação Europeia dos Sindicatos. Desta feita venho em serviço oficial, discussão sobre a revisão da legislação da publicidade. Procurei fazer a agenda de coisas que tenho para trabalhar, vai em breve ter início o ano letivo, dar Sociologia do Lazer, preciso de trabalhar mais na organização das aulas de novembro e dezembro, felizmente que já produzi os conteúdos das aulas de outubro. Na véspera, telefonou-me o Carlos Cruz Oliveira, foi ele que lançou a revista Liber 25 e as Memórias da Guerra Colonial, nos anos 1980, pretende relançar as duas coleções, pediu-me colaboração, prometi para a semana enviar-lhe dois artigos diferentes. Trouxe comigo rascunhos e fotografias da Guiné. Se tudo correr bem, trabalharei afincadamente sábado à noite, e quando vier de uma exposição no Museu de Belas-Artes trago comida feita, vou mourejar até dormir. Regresso a Lisboa segunda-feira à noite, será um resto de semana ativíssimo.

Aeroporto de Zaventem, Bruxelas-Nacional

É preciso viajar no lusco-fusco no comboio entre Zaventem e o centro de Bruxelas para entender o desencanto daqueles eurocratas que passam por esta capital como cão por vinha vindimada. O comboio entra num túnel, da janela vemos de um lado fabriquetas e umas granjas a monte, do outro lado as traseiras e jardins com muito pouca graça, lá ao longe veem-se uns lugarejos e campanários de igreja, é tudo deslavado até chegar a Schaerbeek, quem vem pela primeira vez até pode tomar aquela imagem como casa fidalga, afinal é gare ferroviária, que já conheceu dias mais lustrosos, mas a imponência da arquitetura ninguém lha tira.

Gare de Schaerbeek

Passados cerca de quarenta minutos da partida de Zaventem, chega-se à gare central, está tudo muito diferente de quando aqui cheguei há cerca de vinte anos, então, mesmo à saída da porta principal havia um descampado utilizado como parque de automóveis, sobrava a Igreja da Madalena para se pensar muitos séculos antes aqui houvera vida. Hoje está tudo diferente, há um muro de hotéis, tudo a imitar o antigo, ou quase, chama-se fachadismo, não é desengraçado na invocação, mas tem um ar ainda profundamente estéril. Ponho-me ao caminho, está um anoitecer sereno, passo ao lado da ruidosa Grand-Place, ouve-se a vozearia dos turistas e veem-se os clarões dos flashes, tomo o Boulevard Anspach, caminho em direção a Anneenssens, já estou perto de casa.

Gare Central de Bruxelas

A Igreja de Notre-Dame aux Riches-Claires é bela por fora e de um estranho despovoamento no interior, interroguei-me, logo na primeira visita, se tinha havido aqui alguma grande ladroagem durante qualquer guerra, é tudo de uma enorme rusticidade e no entanto o altar barroco faz-nos sentir que houve poderosos sinais de riqueza, no passado vivia na vizinhança uma burguesia flamenga abastada. A cidade de Bruxelas deu uma grande reviravolta com a chegada em força da Comunidade Económica Europeia, da NATO, dos imensos escritórios representativos de interesses, os grandes negócios querem-se fazer ouvir regularmente na Comissão e no Parlamento Europeu, entre outros. Foram tomando insidiosamente o centro, quem aqui habitava partiu para as comunas da fímbria, com a avalanche dos imigrantes, os da Europa do Sul, do Magreb, e depois de todo o mundo, os escritórios preferiram as zonas chiques circunvizinhas das instituições europeias, hoje são preferencialmente árabes e uma pequena burguesia quem habita nestes boulevards e proximidades, há cafés para marroquinos e turcos, mas também se está a dar uma gentrificação nos bairros populares, caso de Marolles, é ali pertinho que está a Feira da Ladra, se não chover, vou lá passar a manhã, toda aquela traquitana me extasia.

Igreja de Notre-Dame aux Riches-Claires

Já conheci o Hotel Georges V com a fachada arruinada e bem degradado, a cheirar a mofo, felizmente com quartos limpos e casa-de-banho funcional. Quando faço a reserva, lembro que sou aquele português que pede uma luz que permita trabalhar na secretária, há um pendor para a luz mortiça inexplicável, como se fosse dogma de fé que o hóspede ficasse obrigado a ver televisão em exclusivo, mesmo as luzes junto às mesas de cabeceira parecem boas para alumiar velórios, gentilmente encontro sempre boa luz para trabalhar. Arrumada a tralha fui à janta, há nas redondezas pequenos restaurantes geridos por espanhóis ou italianos, desde que se tenha cuidado com o que se bebe, come-se bem e em conta. Como aconteceu. Aproveito a espera de um prato de rigatoni com tomate para ver o que oferece a agenda cultural, infelizmente a Europalia Hungria só começa em outubro, mas há uma exposição sobre o dadaísmo, sinto-me seduzido. Nada de ópera, La Monnaie ainda está em remodelações, fica para mais tarde.

Hotel Georges V, Rue T’kint nº 23

São oito da manhã de segunda-feira, tomei o pequeno-almoço muito cedo, quero ir a pé até Schumann e descer a Rue Froissart, é aqui que vai decorrer a reunião, no Centro Borschette. Sabe bem este ar frio, fujo das artérias com mais trânsito, não me sai da cabeça a ideia de construir uma história sobre a minha comissão na Guiné, graças ao Carlos Cruz Oliveira tenho publicado recordações sobre a vida no Cuor ou na região de Bambadinca. Ocorreu-me contar uma história dolorosa que vivemos na passagem do ano de 1969, coube-nos uma vigilância toda a noite num lugar chamado Bambadincazinho, bem perto da Missão do Sono, na passagem do ano quem estava no destacamento do Xime fez um foguetório imenso, naturalmente que me alarmei, perguntei ao Comando de Bambadinca se me devia pôr à estrada para ajudar esta unidade em apuros. Veio a resposta lacónica: “Não saias daí, aquilo é tudo borracheira, são munições que se perdem”. Ao amanhecer, veio o soldado condutor Xabregas com um Unimog 411, conhecido por “burrinho”, dava jeito levar aquele carregamento de munições, a nossa salvaguarda na eventualidade de aparecer um grupo do PAIGC pela frente. Sentei-me ao lado do Xabregas, por cima, num suporte metálico em L sentou-se o soldado Uam Sambu, um mansoanque já várias vezes sinistrado, homem com pouca saúde. No seu andar descompassado, apareceu Quebá Sissé, antigo cozinheiro em Missirá, pediu boleia, deu a mão esquerda a um camarada para ser alçado e inadvertidamente meteu a arma em posição de fogo e no esticão para chegar ao assento da viatura meteu o dedo no gatilho e descarregou três tiros na tábua do peito de Uam, que me caiu no regaço. Breve, foi uma correria para o posto de enfermagem, fui alvorotado pedir ajuda ao médico da unidade, Joaquim Vidal Saraiva, ele veio prestes e cedo percebeu que a evacuação com caráter de urgência era um mero proforma, Uam fora atingido em órgãos vitais, partiu moribundo e já estava morto quando aterraram no HM 241. Era à volta deste horrível acidente, da estima que eu tinha por Uam, que nas tardes de lazer se vestia com as roupas mais vistosas que alguma vez vi, e que era casado com a Binta, a minha lavadeira, Cherno Suane, o meu guarda-costas, tinha com elas discussões horríveis, a Binta esfregava as fardas em pedras, eram gestos tão violentos que desfaziam os botões, e Cherno, que sabia costurar, pedia-lhe em vão que fosse mais meiga nas lavagens, as discussões subiam de tom, foi nelas que aprendi vários palavrões em crioulo.

Vou a caminho da Rue Froissart e pergunto-me o que é que me deu para me lembrar desta história, venho trabalhar e recuei trinta anos, recapitulo todas estas cenas, segue-se um clique em que tudo isto se encadeia, estou no cais do Pidjiquiti, já passa das dez horas da manhã do dia 2 de setembro de 1968, trouxeram-me de Santa Luzia com duas caixas enormes que albergam os meus livros, os meus discos de vinil e um gira-discos, parece que preparei uma bagagem para turismo de longa duração, trago uma mala de roupa e um saco de artigos de higiene; quem me transportou entrega-me um garrafão de água, uma caixa de rações de combate, sou conduzido para um batelão, não sem esforço as caixas passam para o interior da embarcação, ali arrumo os outros meus tarecos, sento-me na ré, vai começar uma viagem. O que é que me terá dado para estar reviravolta nas memórias, tudo a pretexto de uns artigos que me comprometi a escrever, coisas que tenho feito na mais pura das camaradagens, tem-me feito bem até agora, mas não tenho sentido nenhuma obrigação, obrigações tenho-as eu e muitas, dão-me água pela barba, era o que faltava andar a cismar em permanência com todas essas histórias de dois anos de Guiné. Identificado à entrada do centro Borschette, subo ao segundo andar, entro na sala, cumprimento quem preside à reunião e quem secretaria, há um ou outro representante que conheço, damos dois dedos de conversa. Sento-me, tiro a documentação e então olho à volta, estou mesmo em frente das cabines de interpretação.

Centro Albert Borschette

Uma cabine de interpretação, algures numa instituição europeia

Que surpresa, quando ponho os auscultadores para francês, alguém da cabine, com voz louçã, fala em português, um português bem acentuado, para me dizer que está pronta, se eu quiser, para me traduzir para francês, outro colega traduzirá para inglês, e eu que não me preocupe com as outras línguas, o alemão, o italiano e o espanhol têm os seus intérpretes, mas só se eu quiser. Procuro a pessoa na cabine, o vidro é um tanto fosco, apercebi-me do aceno e de um rosto sorridente. E então, tudo aconteceu. Levantei-me e fui em direção à cabine, a senhora que me recebe à porta é uma quase cinquentona, as maçãs do rosto lembram a cor do pêssego, tem um olhar esverdeado, o cabelo de um castanho muito claro, onde raiam já umas ripas de branco, ténues. Apresentamo-nos, há aperto de mão, ela chama-se, percebi bem, Annette Cantinaux. E desabridamente pergunto-lhe se podemos almoçar juntos, ocorreu-me, imagine-se, a ideia de um romance, trata-se de alguém que combateu na guerra da Guiné, que ama uma belga, os dois não podem por enquanto, por razões profissionais, viver juntos, telefonam muito, sobretudo ele, que tem vindas mensais a Bruxelas, procura estar junto da mulher amada, ela também faz o possível, embora tenha por obrigação de ser intérprete e trabalhar para a comissão, não só o tempo muito ocupado, não pode dizer que não, há as conferências internacionais, pendularmente tem que ir ao Luxemburgo, interessa-lhe muito porque é melhor pago, embora o trabalho seja uma estafa, um tédio de manhã à noite, é aquela gente da estatística, mas tudo fazem estes cinquentões por cruzar as suas vidas.

Annette Cantinaux, vejo-lhe bem na face, está arrelampada com o pedido que lhe faço, mas acede, iremos almoçar juntos e falar-lhe-ei do que me está a passar pela cabeça, este estranhíssimo rompante de alguém que tem tanto que fazer e que recua trinta anos e põe na correspondência as vidas anteriores. A intérprete, pasmo, acha a ideia interessante, está pronta a ajudar-me. “Parece que me reservou um papel que me assenta bem, na vida real, sou uma mulher divorciada, com filhos a singrar na vida, até me posso dar ao luxo de me embeiçar por um português, vamos vivendo juntos à experiência, ainda com uns bons anos até chegar à reforma. No entretanto, damos um ao outro elementos para o seu romance”. A reunião prosseguiu toda a tarde, à saída despedi-me de Annette, ainda vou fazer compras, faz parte da minha rotina, trago um saco de lona que se encherá de vitualhas num supermercado Delhaize, e dali parto para o aeroporto. Annette já me deu todos os contactos telefónicos, mail e endereço postal, com surpresa, vejo que ela mora bem perto da Rue T’kint, na Rua do Eclipse. Entrámos no metro em Schumann, saio na Gare Central, já de mochila aviada, só faltam as compras para os filhos. É nisto, que antes de sair do metro eu digo a Annette, “Que bom título para um livro, Rua do Eclipse!”.

Rua do Eclipse

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20929: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (5)

Guiné 61/74 - P20952: (In)citações (147): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte II: Mais um de nós (Tony Levezinho); Parte III: O único santo que conheci em Bambadinca (Luís Graça)

Arsénio Chaves Puim, ex-alf mil capelão,
CCS/BART 2917 (maio 1970 / maio 1971)
1. Depoimento do Tony Levezinho, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, maio de 1969 / março de 1971). 

Tem 60 referências no nosso blogue. Conviveu, ele e outros militares da CCAÇ 12,    com o Arsénio Puim  durante cerca de 10 meses...

Está reformado da Petrogal, onde foi quadro superior. É casado, tem 2 filhos, 1 neto... Vive em  Martinhal, Sagres,Vila do Bispo, barlavento algarvio.



ARSÉNIO PUIM – MAIS UM DE NÓS


Não sendo eu muito dado à convivência com as memórias do período da minha vida consumido em terras da Guiné, durante a guerra colonial, recordo, no entanto, com alguma facilidade a figura do nosso alferes capelão, o Arsénio Puim.

Desde logo pelas suas qualidades humanas, as quais faziam dele, aos nossos olhos, não a figura do Capelão Militar cuja missão era encomendar a Deus almas daqueles que iam tombando em combate mas antes, a de ser apenas mais um de nós na partilha dos momentos livres (não muitos) em que a sã confraternização não tinha restrições nem tabus de qualquer ordem, nem mesmo aqueles que eram ditados pela Disciplina Militar.

A média de idades dos milicianos, alferes ou furriéis, distanciavam-nos, nesses termos, alguns anitos do Arsénio. Contudo, ele soube sempre fazer por esbater esse potencial obstáculo e nunca a convivência entre nós foi minimamente afetada por tal facto.

Resumindo, o Arsénio Puim era mesmo mais um de nós.

Via o meu querido Luís Graça, peço ao filho Miguel Puim que aproveito para também saudar, que no próximo dia 8 de Maio dê, em meu nome, um Abraço muito forte a seu pai pela celebração do seu 84º Aniversário.

Saudações fraternas.

António Levezinho

( Ex-Furriel Miliciano da CCAÇ 12, Bambadina, 1969/71)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > c. 1970 > Em frente ao edifício do comando do BART 2917 (1970/72) >  Furriéis milicianos António Levezinho e Luís Graça Henriques, à civil... "enquanto a guerra seguia dentro de momentos"... Ficaram "dois amigos para sempre"...

Foto (e legenda): © António Levezinho (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Versos do nosso editor Luís Graça, que noutra encarnação era o Henriques e foi amigo do único capelão, para mais açoriano de Santa Maria,  que conheceu no TO da Guiné:


Para o único santo que conheci em Bambadinca
o  nosso bom amigo e camarada Puim


Arsénio Puim, camarada, parabéns,
Por mais um aninho de vida, pá,
E oxalá, enxalé, inshallah!,
Seja a saúde o melhor dos teus bens.

Só nos serve p’ra sermos livres e felizes,
Enquanto andamos cá por esta terra,
Com lembranças de uma antiga guerra,
Em que do mal fomos maus aprendizes.

Ah!, já não és mais o bom ‘padre-capilon’, 
Em Bambadinca, cova do lagarto,
E dos ‘cães grandes’ ficaste bem farto,
Nunca auguraram nada de bom.

Da Guiné, a todos nós, a ti e a mim, 
Uma certa memória nos ficou,
Sítios onde Cristo nunca parou,
E outros qu’ amaste, meu santo Puim.

Nhabijões, Samba Silate, Mero ou Xime,
São geografias, são emoções,
Não há rancor nos nossos corações, 
Mesmo sabendo que toda a guerra é crime.

Enterraste os mortos, e dos vivos cuidaste,
Ajudaste-nos a fazer o luto,
Exorcizaste o mal absoluto,
Mas sabemos o preço que pagaste.

Têm um preço a justiça e a liberdade,
Que nem todos nós queremos pagar,
Teu bom exemplo é de recordar,
P’la camaradagem e amizade.


Luís Graça, na Lourinhã, 
na ponta mais acidental do continente europeu,
(,aqui donde se ia a Nova Iorque a pé,
há 150 milhões de anos,)
e hoje confinado, na sequência da pandemia de COVID-19 
(de que Deus nos livre!),

Guiné 61/74 - P20951: (In)citações (146): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte I: "A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar" (Abílio Machado)


Viana do Castelo > 16 de Maio de 2009 > 3º Convívio do pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, , 1970/72). > O ex-alf mil capelão Arsénio Puim veio propositadamente dos Açores. (Aliás, voltaria no ano seguinte, para o 4º convívio, que se realizou em Corcuhe, em 27 de março de 2010.)

Há 38 anos que não via nem abraçava os seus camaradas e amigos do batalhão e subunidades adidas (**).  Para ele, o fim da comissão de serviço, no TO da Guiné. acabou abruptamente, ao cabo de 12 meses, em maio de 1971, com a sua expulsão das fileiras do exército e do CTIG.

Foto (e legenda):  © Benjamim Durães (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do Miguel Puim, economista, filho mais novo do nosso camarada Arsénio Puim, recebemos, há mais de dois meses, o seguinte pedido:

Data: domingo, 16/02, 16:54

Assunto: Guiné, Arsénio Puim


Caro Luís Graça,

Apresento-me,  referindo que sou filho de Arsénio Puim, com o qual conviveu na Guiné. No próximo dia 8 de maio, Arsénio Puim fará 84 anos. (*)

Neste contexto, encontro-me a juntar um conjunto de felicitações / depoimentos sobre o meu pai, feitos por quem o conhece e com ele conviveu em diferentes etapas da vida, com o intuito de lhe ser oferecido no seu dia de aniversário.

Neste sentido, gostaria muito de poder contar com uma mensagem sua de felicitação. Tendo em conta igualmente que conviveu com o meu pai na Guiné, gostaria ainda de lhe pedir um testemunho sobre o meu pai, destacando algo que entenda relevante relativamente à sua ação na Guiné.

Poderia igualmente indicar-me a quem acha que devo pedir um testemunho (e se possível respetivos contactos de e-mail)? 

Tendo em conta que se pretende (vamos ver se será possível!) manter a surpresa, agradeço que não lhe refira este pedido até à data do aniversário.

Muito obrigado, Miguel Puim.


2. O nosso editor Luís Graça prontificou-se, de imediato, a colaborar com o Miguel, e fez contactos com outros camaradas que conviveram com o ex-alf mil capelão Arsénio Puim, em Bambadinca, ao tempo da CCS/BART 2917 (1970/72), da CCAÇ 12 (1969/71) e de outras subunidades, como o Pel Caç Nat 52, o Pel Caç Nta 63, o Pel Rec Daimler 2206, etc.

Foi possível juntar, em tempo útil,  com discreção, e em plena pandemia de COVID-19, alguns testemunhos, que aqui reproduzimos, com a devida autorização dos próprios e do Miguel Puim.

Um dos camaradas mais próximos do Puim foi o Abílio Machado, ex-alf mil, da CCS. No mail em que mandou, em anexo, o seu depoimento, escreveu o seguinte:

 "(...) O Puim (...) está seguramente entre  as pessoas que me marcaram e com quem convivi mais estreitamente em Bambadinca (além dos furriéis  da CCAÇ 12 - ainda hoje me pergunto porque me fui juntar a tal grupo de malandros, eu, o Bilocas"... ).

O Abílio Machado  tem 15 referências no nosso blogue.   Foi alferes miliciano, com a especialidade de contabilidade e administração, pertenceu à CCS (Companhia de Comando e Serviços) / BART (Batalhão de Artilharia) 2917, sediado em Bambadinca, 1970/72.

Foi também  um dos fundadores do grupo musical "Toque de Caixa"; vive na Maia; é autor do "Diário dos Caminhos de Santiago" (Porto, 2013). 

Profissionalmente, foi quadro superior da indústria farmacêutica. É pai de filhos e avô de netos...É natural de Riba D'Ave, Vila Nova de Famalicão... A malta da CCAÇ 12 (, eu, o Tony Levezinho, o Humberto Reis, o Gabriel Gonçalves...) tratávamo-lo, com todo o respeito e ternura, por "Bilocas", o "Bilocas da Cooperativa"... Referência às suas origens, em Riba d'Ave.

O Machado era "habitué" das nossas noites loucas no bar de sargentos de Bambadinca, um "bar aberto", se bem que o Arsénio não o frequentasse, a não ser pontualmente: falávamos mal, bebíamos em excesso, ladrávamos contra os "cães grandes", invectávamos Deus e o Diabo... Havia mais alferes, como o J. L: Vacas de Carvalho, do Pel Rec Daimler 220que tocava viola, bem como  praças, por exemplo, o 1º cabo cripto da CCAÇ 12, o GG, o Gabriel Gonçalves, também outro exímio tocador de viola...O bar de sargento de Bambadinca, naquela época, era a única "ilha"  da "cova do lagarto" (nome de Bambadinca, em mandinga) onde não havia "apartheid"...


Lisboa > Centro Comercial Colombo > Loja FNAC > 12 de março de 2010 > Apresentação, ao vivo,.  do novo CD ", "Cruzes Canhoro", do grupo musical "Toque de Caixa" Edição: Ocarina. N foto, de pé, à esquerda, o porta-voz (e co-fundador) do grupo: Abílio Machado (que esteve connosco em Bambadinca, entre maio de 1970 e março de 1971; ex-Alf Mil, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72. fizemos lá uma bela amizade: ele, um periquito, um alferes de secretaria da CCS, e nós, operacionais, "pretos de 1ª classe", da CCAÇ 12, uma companhia de intervenção africana, ao serviço dos senhores da guerra de Bambadinca e de Bafatá; nós, eu, o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Zé da Ilha, o GG - Gabriel Gonçalves e outros, noctívagos, que gostávamos de cantar, beber, conviver, de preferência, pelas altas horas da noite... 
A malta de Bambadinca apareceu em força: aqui o Machado troca impressões com  ex-alf mil sapador Luis R. Moreira (DFA,  reformado como professor do ensino secundário) e Júlio Campos, ex-fur mil sapador, ambos da CCS / BART 2917... O Júlio, de rendição individual, chegará a Bambadinca em março de 1971, quando a malta da CCAÇ 12 faziam as maltas, aguardando o respectivo periquito... Menos de dis meses seria expulso das fileiras do exército e do TO da Guiné o ex-alf mil capelão Arsénio Puim.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


3. Depoimento de Abílio Machdo > Arsénio Chaves Puim:  A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar. 

Dizem-me que botas já p’ra riba de dois carros, não sei se em Sta. Maria que te deu à luz usam vocês estes ditos quando se quer dizer que alguém tem mais de 80; seremos só nós aqui no Minho a usá-los, meio galegos somos, e rurais, que até avaliamos a idade do vizinho pelos alqueires de milho que uma junta de bois carrega.

Mas vamos ao que aqui me trouxe.

Pediram-me um testemunho, testemunho darei, porque testemunha fui de tudo o que vou contar. E interveniente.

Se isto tribunal fora e juiz houvera, diria que abono em favor da vítima… e da vítima direi que, cordeiro imolado, julgada vencida, ressurgiu vencedora. Dos réus, que os há, alguns já lá estão; outros, se o não saldaram neste mundo, no outro o pagarão: é a esperança que fica a quem, incréu como eu, já não crê em outros mundos, tão assustador lhe parece este.

* 1

Alguém me fez chegar a notícia que algo se passava com o Pe. Puim.  Larguei o serviço. Entrei. Irrompi, diria melhor, pelo quarto dentro.

O Puim, sentado na cama, enxovalhado ( o enxovalho só deslustra quem o lança… ), mas não humilhado (só nos humilha quem nós deixamos)…

Sento-me ao seu lado, pergunto mais por gesto que palavras “que se passa?“.  Não responde…

Vasculhavam o quarto, dois ou mais serventuários…

- Nosso alferes, não pode estar aqui… - alguém me diz.

Tive de sair, expulso do quarto.  Já não fui para o gabinete, fiquei por ali, na parada, à espera do desenlace.  O tempo passou… vi passar o Puim a caminho do DO 27, mais sereno, apesar do terror que tal barcarola sempre lhe causou.

E fiquei-me por ali a pensar que negro destino lhe reservariam… e a rememorar o companheiro de tantos momentos e desabafos.

( A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar.

Já corriam, porventura trazidos pela brisa que vinda de certa Casa ribeirinha se espalhava às vezes serena, às vezes inquieta pela parada do quartel, uns ditos de que o padre Puim se desmandava nas homilias. – escrevi eu no blog Luis Graça e camaradas da Guiné).


No dia 1 de Janeiro de 1971, Dia Mundial da Paz, sobre a paz predicaste. Disseste-mo.

Eu não ia às tuas missas, como sabias: as minhas missas contigo eram grandes conversas, edificantes, pela noite fora.

( Lembro que uma das últimas missas a que assisti, à boca de ser arregimentado para Mafra, foi em Macieira da Lixa: oficiava o Padre Mário, corriam gentes dos quatro cantos do Norte a ouvi-lo, não crentes dos mistérios divinos muitos deles, mas sequiosos todos da palavra.

Só mais tarde – ironias que o Olimpo nos reserva – vim a saber que o Pe. Mário tivera, anos antes, o destino que te estava reservado.

Também despadrou, como tu… tenho comigo que é mandinga que a Guiné lança aos padres jovens e generosos, a dizer-lhes que o seu reino é deste mundo e nele devem exercer a palavra, o Verbo).

Poderá ter sido a ajuda, o desvelo com que trataste as mulheres e crianças capturadas em certa operação e abandonadas à sua sorte, sem eira nem beira, como dizemos por cá, sem

grão para comer nem palha para deitar.

Poderá… mas para mim, foi a palavra que te condenou.

Verba volant, scripta manent: as que são ditas do altar não as leva o vento, calam dentro dos espíritos como recados escritos na pedra.

Não esqueças que em certos domingos deixávamos o quartel, descíamos ambos a ladeira que levava ao Geba e ancorávamos em certa casa: Casa Gouveia.

A umas entradas de banana-pão salteada de pequenos cubos de salpicão frito, seguia-se um chabéu (que, como a Coca-Cola, primeiro se estranha e depois se entranha, como dizia o outro ) arrastado, lento pela tarde fora: os fígados jovens a deslaçar o óleo de palma.

E uma ou duas bazucas a acompanhar, que calor está hoje, santo Deus!

Varreu-se-me de todo de como surgiu o convite e criámos o hábito de tais repastos: ao invés lembro bem que o dono da casa se dava por Mesquita e que fora nado e criado em Joane, V. N. de Famalicão, a dois passos da minha terra, do outro lado do cabeço do monte.

Mal te levaram, nunca mais lá voltei… ainda veio um convite, não houve segundo.
*2

O caso do furriel Uloma, da cabeça decepada e das fotos é agora contado …

Tu eras um dos presentes, por certo. Era o fim do jantar em que passávamos ao bar para os digestivos… retomávamos o debate tido durante o repasto sobre a natureza do exército, a sua intervenção na sociedade, o problema da guerra, das guerras, com o comandante Magalhães Filipe a sustentar a controvérsia… eis senão quando, a uma observação sua sobre a ética militar, rapo do bolso duas fotos da cabeça que trazia comigo e mostro-lhas:

- Diga-me, meu comandante, como é que um exército que se pauta por esses princípios se permite actos destes?

Um silêncio de cemitério…

De imediato, reunião do comando e, com o 2.º comandante a coordenar a caçada, ordens para chamar os autores das fotos, saber a lista dos compradores e proceder à recolha de todas.

Compreenda-se o pânico do comando, o país via-se isolado no contexto internacional, devi-do à ditadura e à sua política colonial… o Papa Paulo VI, amigos, recebera os líderes dos movimentos rebeldes, a psico do Spínola caminhava o seu caminho, fotos daquelas eram fogo nas mãos do inimigo.

Quem fosse por essa altura iniciado na política – eu passara por Coimbra nos anos da brasa – sabia que documentos desse tipo dariam não pequeno desassossego ao ministro Rui Patrício.

Eu próprio - tinha comprado 6 fotos – fui com o cabo Silva, do meu departamento e um dos autores das fotos, ao local onde se depositava o lixo e, miraculosamente, consegui, de dedo no nariz, três ou quatro bocados de fotos que comprovavam o que dissera, que às minhas, agoniado, as deitara ao lixo.

Algumas chegaram à Metrópole (duas trouxe eu: estão nas mãos de um conhecido comentador político e hoje com uma obra meritória de recolha de material de interesse histórico, “efémero” ou não…). Quebremos a confidencialidade, vamos aos arcanos da memória: o citado comentador, pelos fins dos anos 60 era visita assídua da minha terra e de casa do meu futuro sogro, e, por alturas de 73, recruta-me para o CMLP( Comité Marxista-Leninista Português), passando a ser o meu controleiro.

Numa conversa sobre a guerra, falei das fotos: entreguei-lhas… pelo meticuloso que é, não duvido que as tenha ainda hoje em sua posse.

*3

Li, num dos excertos do teu diário, publicado no blog, que também andaste no barco turra.  Sim, eu fui contigo para Bissau, em missão de patacão… irias tu prestar contas ao [Major Capelão] Gamboa?

O Batalhão rejubilava quando o Machado (Machadinho, na tua versão), a cada mês, pasta na mão, rumava a Bissau ao BNU levantar manga de patacão.

Não pouco trabalho me deu a missão nos primeiros meses: as notas bem eu as acadimava, agora as moedas (traze-me moedas para pagar aos praças – pedia-me o 1.º Brito ) enchiam um saco militar de uns bons vinte quilos.

Com o tempo, conheci outros tesoureiros: sincronizávamos a ida a Bissau, ao jantar, um ficava de atalaia ao patacão de três ou quatro batalhões, dormíamos em sobressalto, por travesseiro um monte de notas como nunca mais veria em dias da minha vida…


*4

E lembro, claramente lembro a noite em que no teu quarto ouvimos (sigilosamente, como se fora a Rádio Moscovo) na Rádio Conacri as primeiras declarações do tenente Januário sobre o assalto à cidade capital da ex-Guiné francesa.

Após a passagem, certa noite, dos Comandos Africanos por Bambadinca (manga de ronco, nosso alferes!), em que a expectativa se juntava ao secretismo da missão, uma barafunda tamanha, euforia que anunciava coisa grossa, as declarações do Januário foram para nós a certeza de que o ataque fora obra nossa e nem tudo correra bem ( guardei para mim um secreto contentamento…)

O regresso dos Comandos (uma feira: kalash.s à venda, guitarras eléctricas, chapéus cubanos, alguém me presenteou com um ), mais cimentou a ideia de que todo o espalhafato, o ronco, mal escondiam o desaire da missão.


*5

Termino, em jeito de memória:

Foi mais ou menos assim
que se passou com o Puim,
padre daquela fornada
do Vaticano segundo
e capelão militar:
criticou a hierarquia
por usar e abusar
dos prisioneiros de guerra,
velhos, mulheres e crianças…

O romanceiro do Padre Puim que o Carlos Rebelo escreveu…

Carlos com quem me encontrei um dia, aqui nesta parvónia encostada à Maia: morava à distância de uma pedrada de mim. E que, malfadadamente pelo que tinha ainda para dar à vida e dela receber, a doença levou tão jovem. Vi-o bastas vezes, umas debilitado, outras como ressurgido, até que a morte o levou consigo.

Para onde um dia todos iremos.

Não tu, Arsénio Chaves Puim, que não te deixamos ir: nos nossos corações permaneces porque da tua vida fizeste exemplo que orientou a nossa, a dos que te estimam e amam.

Abílio Machado (***)

________________

Notas  do editor:

(*)  Vd. poste de 8 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20950: Parabéns a você (1799): Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)

(**)  Vd. poste de 23 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4404: Convívios (136): CCS do BART 2917: a emoção do reencontro, 38 anos depois (Arsénio Puim)

Guiné 61/74 - P20950: Parabéns a você (1799): Arsénio Puim, ex-Alf Graduado Capelão da CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/71)

____________

Nota do editor:

Último poste da série: 5 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20941: Parabéns a você (1798): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317 (Guiné, 1968/69)

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20949: (De)Caras (159): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VIII: O último comerciante branco de Pirada?... Depoimento de Frutuoso Ferreira, ex-1º cabo at cav, 3ª C/BCAV 8323 (set 1973/ set 1974)


Frutuoso Ferreira, em 2009, ostentando na mão esquerda um exemplar da história da sua unidade, o BCAV 8323 (Pirada, set 1973/set 1974). Fonte: cortesia de Jornal das Caldas


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor L6 > Pirada > BCAV 8323 (1973/74) > 14 de Fevereiro de 1974, ten cor cav, cmdt do batalhão  Jorge Matias, à esquerda, de perfil, e ao centro, em primeiro plano, o célebre comerciante Mário Soares, até então uma verdadeira "eminência parda".  o seu papel de ligação das NT com o PAIGC, via autoridades senegaleses, ainda é pouco conhecido. (*)

O ten cor cav Jorge [Eduardo Rodrigues y Tenório Correia] Matias, cmdt do BCAV 8323/73, que estava sediado em Pirada (, o comando, a CCS e a 3ª C/BCAV 8323/73) faz aqui uma homenagem, emocionada aos bravos de Copá, o 4º pelotão, da 1ª C/BCAV 8323/73, comandado pelo alf mil at cav Manuel Joaquim Brás, e a que pertencia o nosso grã-tabanqueiro António Rodrigues (e que foi reforçada por uma secção do 1º pelotão, comandada pelo fur mil Carlos Eugénio A. P. Silva).(**)

Foto (e legenda): © António Rodrigues. (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Percorrendo a Net fui encontrar o depoimento de uma camarada da minha terra, Lourinhã, que esteve no TO da Guiné durante um ano (Set 73/Set 74) e que pertenceu ao BCAV 8323/73- Seu nome: Frutuoso João Ferreira. 

Esse depoimento está publicado no sítio do Jornal das Caldas (edição em linha),  um semanário da região do Oeste, que tem (ou tinha, em 2009), como diretor Jaime Costa e chefe de redação Francisco Gomes. Mantém também uma página no Facebook.

Por se revelar de grande interesse para os nossos camaradas que estiveram no leste da Guiné, no final da guerra, já tomámos em tempos a liberdade de reproduzir aqui, no nosso blogue, com a devida vénia, um excerto extenso do artigo, baseado numa longa entrevista. (***)

Na altura, tivemos ocasião de dar os parabéns ao autor do artigo, o Francisco Gomes  e ao seu jornal, bem como um alfabravo ao entrevistado, oosso camarada Frutuoso (e, no meu caso, conterrâneo). Bem gostaria que ele aceitasse, no caso de nos ler, o nosso convite para se juntar à nossa Tabanca Grande e de ter acesso à história da unidade.

Faltam-nos, infelizmente, no nosso blogue, mais depoimentos dos "últimos guerreiros do império". Por uma razão ou outra (pudor, medo de censura social, falta de tempo, de disponibilidade, de motivação, de oportunidade, etc.), muitos dos nossos camaradas que chegaram à Guiné nos último meses que antecederam o fim da guerra e o regresso a casa, ainda não passaram para o papel (ou  para o ecrã do computador) as suas memórias desse tempo, e os sentimentos contraditórios que muitos terão experimentado aquando da retração do nosso dispositivo militar, da "transferência da soberania" e, enfim,  do "regresso definitivo das naus"... Foram eles que arrearam, de vez, a bandeira portuguesa em terras da Guiné.

Por outro lado, os militares da CCS e da 3ª C/ BCAV 8323 (1973/74) foram a passar por Pirada. E sabemos que alguns dos seus oficiais foram visita da casa do comerciante Mário Soares (, que de resto só recebia oficiais...)

A crer na versão do Frutuoso Ferreira, o Mário Soares seria o único comerciante branco que restava em Pirada, onde vivia com a esposa e uma das filhas (, talvez a mais nova). Não sabemos exatamente o que lhe terá acontecido depois do 25 de Abril.

Temos a versão do ex-alf mil médico José Pratas, CCS/BCAV 3864 (Pirada, 1971/73):

(...) “Poucos dias depois, [o Mário Soares]  seria preso e enviado para Bissau. Ter-lhe-á valido a intervenção de Alpoim Calvão, que intercedendo a tempo junto do novo dono do Palácio do Governo [, Carlos Fabião], o terá arredado da mira das armas de um pelotão de fuzilamento. Deportado, chegou a Lisboa com a roupa suja que ainda trazia vestida, para ser detido de imediato no aeroporto da Portela pelo COPCON e arbitrariamente preso em Caxias sem culpa formada. Libertado sem julgamento, ultrapassou tranquilo todas as prepotências e perdoou com indiferença aos mandantes e funcionários do PREC”. (...) (****)

Também temos uma preciosa informação Domingos Pardal, chegada até nós, através do Manuel Luís Lomba, dois camaradas da CCAV 703... O Domingos, vou-o encontrando de tempos a tempos em Algés, na Tabanca da Linha... É um conceituado empresário, de Pero Pinheiro, a indústria de rochas ornamentais. Veja.se aqui o comentário do poste P20927 (*****):

(...) "O camarada Domingos Pardal, que se amesenda nas tainas da Tabanca da Linha, acaba de me dizer que o famigerado Mário Soares de Pirada veio parar a Aljezur, como retornado, o IARN financiou-lhe uma oficina de mármores nessa vila, que pouco tempo depois  entrou em falência" (...)

Isto significa que o Mário Soares não ficou na Guiné-Bissau, depois da independência, contrariamente à informação da historiadora Maria José Tríscar.


Tabanca da Linha > 35º convívio > Algés > 18 de janeiro de 2018 " Dois "homens grandes" de Buruntuma: da esquerda para a direita, o Jorge Ferreira e o Domingos Pardal, um de Oeiras, outro de Sintra.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Pirada > CCS/ BCAV 8323 (Pirada, 1973/74) > "Residência do célebre sr. Mário Soares, um dos dois comerciantes instalados em Pirada em 1973. Três dos alferes do Batalhão: Transmissões, Tesoureiro e Médico (eu, à direita)"... De pé o criado Demba. Na parede, ao fundo, uma reprodução do célebre quadro do Picasso, "Guernica" (1937). A fotografia deve ter sido tirada pelo próprio Mário Soares.... [Quanto ao "tesoureiro", não seria antes o comandante da Companhia de Comando e Serviços (CCS), o tenente SGE Francisco Costa, de Coimbra ?]

Foto (e legenda): © Manuel Valente Fernandes (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Recorde-se aqui a ficha do BCAV 8323/73:

(i) foi mobilizado pelo RC 3 (Estremoz);

(ii)  partiu para o TO da Guiné em 22/9/1973 e regressou 10/9/1974;

(iii) esteve um mês em Bolama a fazer a IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional;

(iv) de regresso a Bissau em 31/10/1973, o batalhão é colocado  em Pirada, setor L6, região de Gabu. leste da Guiné;

(v) comandante: ten cor cav Jorge Eduardo Rodrigues y Tenório Correia Matias [, natural da Ericeira, Mafra];

(vi) unidades de quadrícula: 1ª C/BCAV 8323/73: Paunca, Bajocunda; 2ª C/BCAV 8323/73: Piche, Buruntuma, Piche; 3ª C/BCAV 8323/73: Pirada;

(vii)  o facto mais saliente dessa época foi a heroica defesa do destacamento de Copá (, seguida depois  da sua  retirada, em 12/13 de fevereiro de 1974, por ordem expressa de Bissau).

Temos quatro dezenas de referências, no nosso blogue, a este batalhão, a maior parte relacionadas relacionadas com os acontecimentos de Copá, e aos bravos de Copá. Como se sabe, este destacamento acabou por ser retirado pelas NT em 14/2/1974. Pertencia à 1ª C/BCAV 8323/3, sedidada em Bajocunda.

Alguns camaradas deste Batalhão ("Os cavaleiros do Gabu"),  que integram a nossa Tabanca Grande, e que referenciamos numa pesquisa rápida pelo blogue:

(i) Amílcar Ventura, ex-fur mil da 1.ª C/BCAV 8323/73, Bajocunda, 1973/74, natural de (e residente em) Silves, membro da nossa Tabanca Grande desde maio de 2009;

(ii) António Rodrigues, ex-soldado condutor auto 1.ª C/BCAV 8323/73 (Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma); é o autor da notável série "Memórias de Copá" (de que se publicaram pelo menos 6 postes):

(iii) Fernando [Manuel de Oliveira] Belo, ex-soldado condutor da 3.ª CCAV/BCAV 8323/73, Pirada, 1973/74;

(iv) Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74).


3. Excertos de  Memórias da Guerra na Guiné > Frutuoso Ferreira > Jornal das Caldas, 28 de Janeiro de 2009  (Texto de Francisco Gomes)

[Adaptação, fixação e revisão de texto, para efeitos de publicação nosso blogue: LG]

Frutuoso João Ferreira, ex-1º cabo atirador  acv da 3ª C / Batalhão de Cavalaria 8323/73 (Pirada. 1973/74)

(i) nasceu em Abelheira, Lourinhã, em 1952 ou 1953 
(, tinha  56 anos, quando deu a entrevista);
(ii) antes de ir para a tropa, foi pedreiro da construção civil;
(iii) em 22 de setembro de 1973, partiu para o TO da Guiné,
no T/T Niassa,  já casado e com um filho;
(iv) depois, regressar à vida civil,  continuou a trabalhar como pedreiro, 
na sua terra natal,  por mais quatro anos;
(v) em 1978, ingressou na guarda-fiscal;:
(vi) a partir de 2005, passou à situação de reserva 
da Brigada Fiscal da GNR, estando hoje aposentado.


(...) “Quando acabou a formação [, o IAO; em Bolama], regressámos no dia 31 de Outubro [de 1973], a Bissau e deslocámo-nos para Pirada, uma pequena povoação que ficava a poucos metros da fronteira do Senegal, onde o inimigo – os guerrilheiros do PAIGC – tinha algumas das suas bases”; (...)

(...) Em Pirada estava a CCS e a 3ª companhia: “A nossa missão era proteger [a sede do batalhão,] e as populações locais – os brancos que lá havia era só um casal de comerciantes e a filha [, referência ao comerciante Mário Soares];

(...) "O comandante da Companhia de Comando e Serviços (CCS) era o tenente Francisco Costa, de Coimbra. O capitão Ângelo Cruz, da Amadora, chefiava a 1ª Companhia, enquanto que o capitão Aníbal Tapadinhas, de Lisboa, comandava a 2ª. Integrava ainda o Batalhão a Companhia de Caçadores 11, que tinha à frente o capitão Nuno Sousa, de Lisboa." (,,,)

(...) "Eu estava no 4º pelotão da 3ª companhia, comandada pelo capitão Ernesto Brito, de Lisboa. O alferes Alípio Cunha, de Vila Nova de Famalicão, comandava o meu pelotão e havia três furriéis – o Sousa, o Simão e o Esteves. Os outros comandantes de pelotão eram os alferes Manuel Gonçalves, Rodrigo Coelho e António Pereira, respectivamente do Fundão, Pinhel e Amarante",(...)

(...) "Foi numa dessas alturas que passei o primeiro susto e momento aflitivo. Quando íamos para Bajocunda, a 13 de Dezembro [de 1973], foram detetadas várias minas anticarro. Toda a gente se protegeu, ficando só o sapador da CCS – o soldado Fernando Almeida – que as levantou. Repetiu a operação quatro vezes, só que a seguinte foi-lhe fatal”. (...)

(...) “Gritava ele [, o sapador Fernando Almeida,]  para o alferes Alípio Cunha, dizendo-lhe, satisfeito, que ao levantar a quinta mina já tinha dinheiro para ir à metrópole de férias (a passagem de avião custava cerca de quatro mil escudos) [,  cerca de 845 euros; a preços de hoje]" )...)

(...) Os sapadores recebiam do Estado mil escudos" [, cerca de 211 euros, a preços de hoje...]  "por cada mina anticarro que levantassem"...

(...) Mas a mina estava armadilhada com outra antipessoal e rebentou” (...)..

(...) “O corpo ficou todo desfeito aos bocados, espalhados pelo mato. Um pé foi cair à minha frente. Juntou-se o que se pôde e ficámos muito impressionados e desmoralizados. Não estávamos assim há tanto tempo na Guiné e já havia uma baixa. A partir daí sentimos que estávamos na guerra a sério”, (...)

(...) No dia 18 de Dezembro houve um ataque inimigo a Amedalai e a 7 de Janeiro [de 1974] houve em Bajocunda uma emboscada com armas ligeiras a uma coluna que ia abastecer um pelotão que estava em Copá. Morreram dois soldados – Sebastião Dias e José Correia, da 2ª Companhia, que ficaram em cima das duas Berliet destruídas. O pelotão a que pertencia  o Frutuoso Ferreira] foi escalado para ir lá buscar os corpos e tentar trazer o que restava das viaturas, operação difícil mas conseguida.

(...) Durante o mês de Fevereiro [de 1974] registaram-se várias investidas em Copá e Bajocunda. A 1ª companhia também sofreu ataques e morreram o 1º cabo António Ribeiro e os soldados Rui Patrício, Silvano Alves e José Oliveira.

(...) “Passados uns dias fomos fazer protecção a Sissaucunda, povoação a quinze quilómetros de distância de Pirada, com meia dúzia de palhotas. Cada pelotão permanecia naquele fim do mundo durante um mês. A nossa alimentação era ao almoço arroz com marmelada e ao jantar esparguete com atum. No dia seguinte era quase a mesma e só variava com arroz com salsicha” (...)

(...)  "No dia 13 de Abril [de 1974] brindou-os [. ao Frutuoso Ferreira e seus camaradas] om um ataque de mísseis lançados desde o Senegal. O destino era Pirada" (...)

(...)  “Vi os mísseis passarem por cima de Sissaucunda e começámos todos a correr para as valas escavadas no chão para nos protegermos. Sentia os mísseis a ‘assobiarem’ por cima de nós e poucos segundos depois a caírem em Pirada. O objectivo deles era atingir o quartel, mas caíram na povoação e mataram muitos civis” (...)

(...) No dia 25 de Abril [de 1974], o PAIGC voltou a atacar Pirada e mataram civis africanos, mas “da nossa parte não houve feridos nem baixas” (...)

(...) A partir de 25 de Abril de 1974, em virtude das modificações políticas ocorridas em Portugal, “não tivemos mais problemas na Guiné, porque iniciaram-se os contactos e conversações com os chefes da zona, entre as nossas tropas, o PAIGC e a população." (...)

(...) "Ainda bem que assim foi, porque a guerra estava tão acesa naquele setor, que se tem continuado mais tempo não sei se estaria cá para contar a história”. (...)

(...) “A primeira vez que encontrámos o inimigo já como amigo, na fronteira do Senegal, houve um sentimento estranho. Mas baixaram as armas e começámos a trocar tabaco e bonés” (...).

(....)  “Passámos o resto do tempo a recolher material bélico [, das NT,] e, na companhia do PAIGC a fazer propaganda política”.

(...) A 21 de Agosto procedeu-se à entrega de Paunca ao PAIGC. No dia seguinte foi a vez de Bajocunda e a 25 de Agosto seguiu-se Pirada, com a recolha da CCS e da 3ª Companhia a Bissau.

(...) O Frutuoso Ferreira ainda prestou serviço no quartel-general em Bissau a guardar o palácio do brigadeiro Carlos Fabião, comandante-chefe das Forças Armadas na Guiné.

(...)  No dia 4 de Setembro, na parada do BCP 12, em Bissalanca, cerca de 500 homens do [BCAV] 8323 uniram-se em formatura geral, “sentindo cada homem palpitar dentro do seu peito a dignidade do soldado português, que enfrentou os perigos de uma guerra dura” (, as palavras são do entrevistado)

(...) O regresso  a Portugal foi no dia 12 de Setembro de 1974.
__________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de novembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15323: Em busca de... (262): Pessoal de Pirada ao tempo do BCAV 8323/73... Quem ouvir falar do episódio em que o ten cor cav Jorge Matias terá recebido, em janeiro de 1974, por intermédio do comissário político do PAIGC, em Velingará, um tal Biai, um pedido de Luís Cabral para entabular conversações com as autoridades portuguesas? (José Matos, historiador)

(...) Olá, Luís

Precisava de uma pequena ajuda tua, no sentido de divulgares uma situação que se passou em Pirada em janeiro de 74.

Nessa altura, o comandante do Batalhão de Cavalaria 8323/73, o ten cor Jorge Matias, recebeu uma informação do delegado político do PAIGC, em Velingará, um tipo chamado Biai, de que Luís Cabral queria falar com as autoridades portuguesas.

Perguntava se algum dos camaradas que estava em Pirada nessa altura ouviu alguma coisa sobre isso e se pode contar...

Ab

José Matos (...) 


quarta-feira, 6 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20948: Historiografia da presença portuguesa em África (208): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Digamos que não se encontra aqui um relato singular de alguém que anteriormente percorrera o território com responsabilidades no levantamento topográfico, a configuração das fronteiras da Guiné Portuguesa, trabalho que, como é sabido, se prolongou até à primeira década do século XX, com vários contenciosos luso-franceses pelo caminho. É um escritor marcado pelo formalismo mas o que mais entusiasma e nos faz sorver estes parágrafos aparatosos é o fascínio africano, ilimitado, viera com medos, até de escaramuças ou de encontrar pela frente antropófagos, rende-se à paisagem, inclusive a humana, uma bela flor de 13 anos fê-lo subir ao Sétimo Céu...

Um abraço do
Mário




“Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1)

Beja Santos

No descritor reservado à Guiné-Bissau, na Biblioteca Nacional (com centenas de obras consultáveis), dá-se nota de uma obra que nunca se vira referenciada em nenhuma bibliografia. Trata-se de uma edição da Parceira António Maria Pereira, a data é 1891, tem ilustrações primorosas para os três territórios visitados, acicata-se a nossa curiosidade, a Guiné autonomizara-se recentemente de Cabo Verde, que surpresas nos reserva este autor, que se descobrirá, mais adiante, que colaborou no levantamento das fronteiras da Guiné Portuguesa?

É comprovadamente um autor culto, bom observador, de escrita clássica, como se mostra, depois de nos ter falado exaustivamente da Madeira e de como aqui se tratavam os tísicos e o feitiço que lhe provocou o arquipélago cabo-verdiano:
“Três dias depois demandávamos a Guiné; e ao aproximar-nos desta terra fantasticamente delineada pelas tradições, onde a muitas milhas de distância o prumo marca seis a oito braças no seu contar de vaticínios, ao sulcarmos estas águas turvas e eriçadas de escolhos, onde os receios parecem receber o baptismo de realidades, encarando a expressão triste do espectáculo que se alarga de fronte, essa ondulação monótona de águas correntes onde apenas se desenha alguma ilhota verdejante, respirando o ar abafado em que parece errar a exalação quente de um resfolegar cansado, arreigou-se-nos por tal modo o convencimento das terroristas narrativas, que, como em caleidoscópio gigante, começámos a divisar pela imaginação, emboscadas sem número, através de matagais sem eco, feras hercúleas em rixas de estremenho, azagaias multiformes molhadas em venenos subtis… cobras despedaçando bois… crocodilos fazendo soçobrar embarcações… E como fundo deste quadro de uma compostura dantesca, os pântanos dormentes.”

João Augusto Martins é conhecedor do que fala, não há encómios ocos nem entusiasmos convencionais. Chegam a Bissau e daqui partem para Bolama numa baleeira, diz que foram acolhidos principescamente, fizeram piqueniques, visitaram tabancas de Fulas e de Brames e de Mouros, participaram em caçadas e ficaram hospedados em Bambaya, feitoria da casa Blanchard. Escreve enfeitiçado, galvanizado: “Atravessámos ao impulso entusiástico das caçadas magníficas florestas dez vezes seculares, guarnecidas de campinas tapetadas por vegetações colossais, onde a gazela salta com o frémito da sua fuga vertiginosa, e bandos de pássaros de todos os tamanhos e de todas as espécies matizam o horizonte com as cores vivas das suas penas brilhantes”.
E alarga-se no seu êxtase:
“Uma paisagem severa, calma e selvagem, grandiosa de toda a espontaneidade de um sol virgem, onde o caminhar, por mais que se estenda, não encontra um traço de cultura, e a vista, por mais que se alongue, não enxerga vestígios da presença do homem. Por todos os lados, a distâncias que se não podem calcular, cumeadas espessas de árvores elevando-se a alturas prodigiosas, e, em seguida, sem transição, subitamente, enormes tufos de verdura dessas esplêndidas espécies tropicais; lagoas mostrando meandros infinitos; riachos arrastando arcadas de folhas e de flores… e aqui e ali, escondidos à sombra de ervas curtas e espessas, pântanos traiçoeiros, onde a sanguessuga e a rã se espreguiçam aos raios ardentíssimos de um sol abrasador”.

E se a paisagem possui este fulgor, a beleza feminina não fica atrás:
“Foi numa dessas excursões extraordinariamente impressionistas que deparámos em África, onde a mulher geralmente pelas formas nos faz pensar nos manipanços, que nos foi dado ver a mais extraordinária beleza de mulher, realçada por tudo que há de mais irresistível nas atracções do seu sexo.
Era uma Fula: tipo indiano caldeado nas forjas incandescentes da África. Tinha apenas 13 anos, e a adolescência irrompia nas indecisões do seu sexo com toda a destreza da vida com que desabrocha uma flor. Seus grandes olhos pensadores, de uma expressão meiga e inquieta, a cor cuprina metálica de suas faces, as linhas suaves da sua fisionomia, seus lábios carminados que se entreabriam em risos de uma tristeza sedutora, os longos cabelos de um negro azulado que pareciam envolvê-la em cintilações de desejos, o seu talhe esbelto, nu, de movimentos graciosamente ondulados, a harmonia das suas formas esculturais, a lubricidade das suas curvas e a têmpera vibrátil das suas carnes, tudo enfim… tudo se resumia nesta criatura como em síntese de encantos, de onde irradiava a sensação das místicas simpatias e as horripilações dos loucos desejos”.

Gravura que mostra o canal de Bolama.

O autor diz tratar-se de uma paisagem da Senegâmbia.

Legenda lacónica: Guiné Portuguesa, uma tabanca.

Quase não precisa de comentário, vê-se como o autor se assombrou com a baga-baga.

Uma bela gravura mostrando o régulo de Canhabaque e dois fiéis com longas

Descreve-nos Bissau, convém não esquecer um conjunto de documentos já aqui referenciados, alguns deles em depósito nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Vejamos o que nos diz João Augusto Martins:
“A vila de Bissau, sede do concelho, que por decreto de 4 de Julho de 1883 compreende o presídio de Geba, Fá, S. Belchior e todos os mais pontos ocupados e por ocupar nas margens do rio Geba, é uma pequena cidadela, de população limitadíssima, cercada ao norte, este e oeste por um fosso já semi-atulhado que acompanha paralelamente da banda de fora uma muralha de quatro metros de altura, a qual se liga ao centro à antiga fortaleza de S. José e termina nos flancos por pequenos torreões de estilo gótico, que fazem sentinela permanente ao rio. Essa fortaleza, construída, segundo uns, pela Companhia de Cacheu e Guiné, segundo outros pela Companhia do Grão-Pará, ampla, arejada, e altiva de toda a imponência dos poilões gigantes que lhe marcam os ângulos protegendo-a com as sombras benéficas da sua ramagem tufada, é guarnecida por peças velhíssimas de ferro, montada sobre reparos do mesmo metal que apenas servem hoje de armamento histórico e de espantalho aos gentios.
Entretanto, essas paredes arqueológicas, essa artilharia muda e esses baluartes vazios continuam a inspirar as frases sonoras com que os magnates da localidade, retórica oficial e os repórteres levianos, fazem acreditar urbi et orbi que o gentio é feroz e que nessas muralhas carcomidas pelo tempo e pelo abandono que reside ainda toda a garantia da propriedade e um esteio seguro ao comércio aí estabelecido.
A vila, pequena, acanhada, de construções raquíticas e vulgares, imunda de todo o indiferentismo das municipalidades de África, somada a todas as inalações do lodo, da catinga e do azeite de palma, adubada pelo paludismo, dizimada pelas febres, constitui ainda assim o último reduto da vitalidade da Província, o centro mais importante do comércio da Senegâmbia Portuguesa.
Existem aí casas francesas, alemãs, americanas e inglesas, além de muitos pequenos negociantes, na maior parte de Cabo Verde, e concorrem à praça todos os dias, não só os povos que a avizinham mas muitas das tribos afastadas que a abordam em grandes canoas sui generis pela construção, os quais vindo permutar por tabaco, aguardente, fazendas, etc. os produtos de agricultura e objectos originais da indústria indígena, dão um cambiante nitidamente selvagem a esse limitado quadro da vida africana, curiosíssimo pela variedade de penteados e costumes de seus personagens, interessante pela tatuagem com que se enfeita o preto, pitoresco pela diversidade dos tipos, dos penachos, das gesticulações e das vestimentas, profundamente impressionista no género grutesco, e constituindo no todo um espectáculo original pelo tumulto da selvajaria e da embriaguez, poetizado pela coloração verdejante de árvores colossais, enfeitado todo ele pelas cores vivas de habitações dissimilares que parecem banhar os pés nesse lodaçal extenso onde dezenas de canoas esguias se espreguiçam indolentemente como crocodilos gigantes fustigados pela calma.”

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20919: Historiografia da presença portuguesa em África (207): Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20947: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (11): Salada de atum camuflado (Jorge Araújo, régulo da Tabanca dos Emiratos)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5

Tabanca dos Emiratos > Abu Dhabi > Uma casa portuguesa, com certeza,,, (como cantaria a Amália, no seu imortal e irónico fado...)

Fotos (e legenda): © Jorge Araújo (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Jorge Araújo:Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); um homem das Arábias... doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; vive habitualmente em Almada:  autor da série "(D)o outro lado do combate";  nosso coeditor... Foi apanhado pela pandemia de COVID-19, em Abu Dhabi, quando foi visitar a sua "bajuda"...

Data:  sexta, 24/04/2020 à(s) 21:13
Assunto: Notícias dos "Emiratos"

Caro Luís,
Boa noite. Hoje foi dia de descanso semanal. Aproveitámos para ir às compras, para repor os stocks, pois temos o vício "desgraçado" de comer todos os dias. Feito o pagamento das últimas compras, e na impossibilidade de almoçarmos fora, devido ao encerramento dos estabelecimentos de restauração (a exemplo do que está a acontecer em Portugal), a alternativa foi regressar ao local de partida, numa altura em que o termómetro indicava já 30º, no dia em que chegou aos 38º.

Sem nada preparado para o almoço, havia que "desenrascar" qualquer coisa rápida, agradável e fresca. Ao ler/ver as sugestões, de hoje, dos "vagomestres" da Tabanca Grande, por sinal muito apelativas, cada uma delas a fazerem crescer água na boca, mas sem as podermos "agarrar", logo aproveitei a ideia das conservas... e já está... vai ser ATUM?... e foi mesmo!

Foi baptizado de «Salada de Atum Camuflado" ... para dois (e meio).

Ingredientes utilizados: (foto 1)

- 8 batatas p/ assar (pequenas) .... da África do Sul
- 1 lata de atum (160 g) ................ da Indonésia (Arábia Saudita) 
- 2 ovos ........................................ origem local
- 1/2 cebola .................................. de Espanha
- salsa (qb) ................................... origem local
- azeitonas (qb) ............................ de Espanha
- azeite (qb) .................................. de Espanha
- pimenta (qb) .............................. de França
- vinho (qb) .................................. de Portugal (alentejano)

Modo de preparar:
- Cozer as batatas e os ovos
- desfiar o atum
- cortar a 1/2 cebola em rodelas finas
- picar a salsa

Modo de empratar:
Numa terrina adequada às quantidades utilizadas, colocar por esta ordem: 
1. - batatas cozidas cortadas aos cubos;
2. - atum desfiado;
3. - cebola;
4. - azeitonas fatiadas;
5. - ovos fatiados:
6. - pimenta a gosto;
7. - salsa 
8. - azeite para temperar a gosto (individual)
9. - vinho - o estritamente necessário, neste tempo de confinamento.

Resultado final (fotos 2 e 3)

Bom apetite!.

Quando quiserem... apareçam. A porta está aberta, e a mesa está posta. (fotos 4 e 5). 

Nota: Aconselha-se este prato, em especial, ao grupo dos que tenham um "perímetro abdominal" superior ao regulamentado. Os restantes também podem/devem experimentar, numa altura em que importa repensar a nossa alimentação, tornando-a mais saudável, pois pertencemos a um "grupo de risco".

Bom "25 de Abril"... Bom fim-de-semana.

Um abraço,
Jorge Araújo.
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terça-feira, 5 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20946: Os nossos seres, saberes e lazeres (390): No Dia Mundial da Língua Portuguesa, uma prenda do nosso camarada António Graça de Abreu, a sua tradução de dois poemas da poetisa chinesa Li Qingzhao 李清照 (1081-1155)


António Graça de Abreu e a esposa Wang Haiyuan (2020): na ilha da Páscoa, posando junto a um "moai"

Um representação moderna da poetisa Li Qingzhao (1081-1155)

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu  (2020) Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem comlementar: Blogue Lu+is Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada e amigo António Graça de Abreu [ ex-alf mil, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da Tabanca Grande, com mais de 250 referências no nosso blogue; poeta, escritor, tradutor, sinólogo; andou recentemente a fazer o MSC - World Cruise, está em casa, depois de ter chegado são e salvo das peripécias da viagem de volta ao mundo, que ficou a meio, devido à pandemia de COVID-19; achámos oportuno publicar hoje a sua tradução, mesmo que ainda provisória, dedois poemas da poetisa chinesa, Li Qingzhao 李清照 (1081-1155), no Dia Mundial da Língua Portuguesa (*)



Data: sexta, 24/04/2020 à(s) 16:14

Assunto: Duas chinesas

Em navegação, Oceano Índico, 10 de Abril  [, a bordo do MSC - Magnifica]

Para esta Volta ao Mundo trouxe comigo duas mulheres chinesas, ambas bonitas, prendadas e inteligentes. A primeira é a Wang Haiyuan, mãe dos meus filhos, esposa há trinta e três anos que, na Austrália, seguiu de Sidney para Xangai, quase há um mês. Escapou a situação extrema de estarmos confinados a viver fechados neste navio de cruzeiros, com a possibilidade de o tenebroso vírus cair no meio de nós mas, tão ou mais importante, foi acompanhar em Xangai o nosso pai Wang Renlun, com 91 anos, muito doente, com as enfermidades do peso dos anos, não com o covid 19. O pai melhorou assim que teve a filha junto de si.
A outra chinesa que me faz companhia chama-se Li Qingzhao 李清, nasceu em 1081 e faleceu em 1155.
É considerada a maior poetisa de toda a poesia chinesa, velha de quarenta séculos. Nascida em Jinan, província de Shandong, numa família de letrados, casou com o mandarim Zhao Mingcheng e partilhou com o marido o gosto pelo sublime encadeamento das palavras, a magnificência da arte poética numa China que, na altura em que Portugal nascia, tinha já atrás de si as figuras imortais de geniais poetas como Tao Yuanming (375-427), Li Bai (701-762), Wang Wei (701-761) ou Du Fu (711-770).
Li Qingzhao,  senhora de uma enorme sensibilidade, cantava o amor, a alegria de viver, a solidão, a dor na sua viuvez quando o marido morreu com tifo, aos 48 anos de idade.
Navegando por estes mares, Pacifico e Índico, tenho-me entretido a mexer nos seus poemas, utilizando a tradução francesa da Gallimard, de 1977, de Liang Paixin, mais a Net, com os muitos caracteres chineses que sempre tenho dificuldade em conhecer, mas no meio dos quais não me costumo perder. Na Net, tenho dialogado com outros tradutores de Li Qingzhao em língua inglesa, como Wang Jiaosheng e Ronald Egan.
Eis dois poemas desta grande mulher, companheira de viagem na Volta ao Mundo, em traduções ainda provisórias para português:

Colher fruta madura

A noite, o vento arrasta a chuva,
apaga o fogo sufocante do sol.
Fui buscar a flauta de bambu,
diante do espelho, retoco o meu rosto.
A minha carne, sob o robe de seda púrpura,
como jade ou neve, liso e perfumado.
Sorrio e digo: "Meu amor, esta noite,
por detrás das cortinas de gaze, a frescura do nosso leito."

采桑子

晚来一阵风兼雨
洗尽炎光
理罢笙簧
却对菱花淡淡妆
 绛绡缕薄冰肌莹
雪腻酥香
笑语檀郎
今夜纱幮枕簟凉

Como um sonho

Recordo o pavilhão junto às águas, ao entardecer,
e nós, embriagados, incapazes de encontrar o caminho de regresso.
longe de tudo, encharcados em prazer, 
remávamos ao acaso. entre tufos de lótus verdes.
Mais depressa, mais depressa...
Na margem, assustadas, garças e gaivotas levantaram voo.

如梦令

常记溪亭日暮
沉醉不知归路
兴尽晚回舟
误入藕花深处
争渡
争渡
惊起一滩鸥鹭
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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20942: Os nossos seres, saberes e lazeres (389): "O Saltitão", Jornal da CCAÇ 2701 (5) (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)