sábado, 2 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20932: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (9): “Operação Confinamento II"

1. Em mensagem do dia 27 de Abril de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, dedicada ainda ao confinamento.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 8

Op Confinamento II

Aparentemente, pouca gente terá lido a minha reportagem anterior (Op. Confinamento). No entanto, logo fui alertado de que os Bandalhos mais afastados, também vivem momentos difíceis (e estranhos) no combate à pandemia. Vou tentar informar o que se passa com eles, mas sem indicar os nomes, claro. Além disso, vou informar o que alguns continuam a fazer.

O caso mais grave parece ser o do Diniz Goa da Costa que, sabendo das dificuldades dos seus amigos do norte, devido à falta do prometido material sanitário, apanhou algumas máscaras (de vários tipos), arrancou os ventiladores das suas WC e fez-se à estrada.


Porém, como exibia a bandeira da Restauração, foi detido perto de Alcoentre, onde está preso numa das celas dos 2000 criminosos que, entretanto, foram libertados. Por mais que diga que aquela bandeira não é a do FCP, ninguém acredita. Será, porventura, por obsessão de alguém fanático, avesso ao azul e branco do F. C. Porto?


Quando soube deste incidente, o vizinho Duque da Amadora avançou em seu auxílio. Depois de manifestar a sua revolta, ele que é um Homem da Paz, foi submetido a um infame e rigoroso interrogatório, até o incriminarem. Imaginem a causa da sua prisão: trazer vestida, como camisola interior, uma T-shirt dos Super Dragões, que um seu familiar lhe havia dado como prenda.


Curioso é o confinamento em Gestosa de Boticas, nas encostas da Serra do Barroso. O José Bandalho Pires, que é o Morgado e dono de quase toda a aldeia, impôs-lhe o seu total isolamento (mais rigoroso que em tempos de grande nevão). Todavia, obriga ao convívio diário de todos os seus 9 habitantes. Desde então, as lareiras têm funcionado continuamente, com as respectivas panelas de ferro ao lume, consumindo os artigos de fumeiro com que ornamentam as cozinhas.


Quando o convívio é bom,
Merece o fabrico do pão!

Desenterraram o “vinho dos mortos” para as tainadas, que têm sido contínuas, pois já ninguém trabalha (fora da cozinha…) e reina por lá uma certa desorientação em atinar com o sítio onde dormir.

Preocupante, continua a ser o comportamento dos Maiatos.

O Alberto, cavou um abrigo junto do anexo, onde se isolou. Tem um buraco tapado com o fundo de um bidão. Deixam-lhe a comida por perto, mas não aceita quaisquer contactos. Nem “telelé”, nem “net”, nem televisão. Isolamento total!
Outro, o Galã, está detido, em casa. E ainda bem, porque quando ele anda fora, é uma grande confusão com as suas admiradoras. Anda preocupado com os alarmes de guerra que um seu cunhado anda a espalhar no meio familiar.

Os primos de Crestuma foram afastados pelas mulheres que os levaram; um foi para Gaia e outro para Lever. Este vive sacrificado, pagando bem caro os custos pela conquista da sua jovem mulher. Está incumbido de tratar cuidadosa e amorosamente a sua gentil sogra.
O outro, anda sempre desenfiado. Não alinha nas “redes sociais”, nem aparece com facilidade. Por um acaso, recentemente descobrimos onde passa grande parte do seu imenso tempo livre. Se não estiver no Dragão ou no Centro de Estágio de Crestuma/Olival, deve estar a preparar uns “cachorrinhos” especiais na cozinha do café da vizinha.

Quem está mal é o Augusto de Lamego. O tal amigalhaço que vive muito dos abraços. Ganhou aquele vício quando conviveu de perto, com alguns colegas artistas, no filme da Ferreirinha, sob a orientação do Manoel de Oliveira. Com as ruas desertas de gente (e a falta de abraços), ele sente mais a nossa falta. Ainda bem, porque quando ele vem cá abaixo (poucas vezes), leva abraços para meio ano. Vá lá que o Moreno tem passado por sua casa, a dar-lhe as mesinhas necessárias, para se manter em forma.

Do Brasil, também temos notícias “abandalhadas”.
A Luci está muito feliz com a família, lá para os lados da Baía. Sempre na farra, até parece muito crédula com as orientações governamentais.

A Elci, de Goiás, mais ligada ao mundo da saúde, por profissão, não perde a oportunidade de vincar teimosamente a sua opinião. Ainda bem, porque o Brasil pode vir a sofrer um bom bocado.


Do casal Carmenzita, nem uma palavra. Pela Junta de Freguesia de Touguinhó, soubemos que se refugiaram nas margens do Rio Leste, perto dum acampamento de imigrantes subsídio-dependentes que aguardam a justa e digna habitação. Vivem à base de caracóis dos grandes, perninhas de rã, agriões, escalos fritos e grilos salteados. Moram na tenda assinalada com uma bandeira encarnada com o n.º 37.

Homem aos grilos - Foto captado por “zoom”, pelos serviços exteriores do Gabinete de Crise Covid-19, da autarquia Touguinhense.

Por intermédio da filha Andreia que, aflita, nos procurou, soubemos que o luso-brasileiro de Fornelos, enfiou o camuflado, equipou-se com armas brancas e fugiu de Gaia, atravessando ilegalmente, os concelhos de Espinho, Feira, Arouca, Castelo de Paiva e Cinfães. A Andreia quer saber, através dos “Bandalhos”, se estamos ao corrente da ingrata situação. É que as armas que transporta, além de infectadas pela matança recente de ratazanas doentes, elas estão bastante enferrujadas e podem ser perigosas, no caso de alguém se espetar nelas.


Julgo que este assunto deveria ter a maior atenção do nosso “Presidente dos Bandalhos” que, independentemente da azáfama reinante nas nossas Forças Armadas, muito preocupadas com as festividades do 25 de Abril, teria uma boa oportunidade de lhes dar alguma ocupação.

Mandaram-nos uma foto, obtida há dias, numa espreitadela ao anexo da vizinha, ali perto de Rio de Moinhos. Tudo normal e corriqueiro. Só que a senhora vincou repetidamente:
- Olhe que, quem cabritos come e cabras não tem, nem quero pensar donde aquilo vem!


A insinuação é forte e é por isso que eu nem os nomes sei dizer.

Da Quinta Srª da Graça, propriedade do famoso casal Bandalho Luísa e Zé Manel, fomos informados de que as coisas não correm lá muito bem. Ele, sempre preocupado com a linha do “corpinho Danone” (engordou 226gr), já não come os mal-empregados petiscos que a mulher lhe faz, e não trabalha, alegando… fraqueza física.



Com tais petiscos da Quinta da Senhora da Graça, quem é que ficava fraco para trabalhar?

Temos fotos chocantes da sacrificada senhora a sulfatar a vinha, enquanto ele faz “selfies” tendo como fundo a paisagem duriense. Com a mania de que é mais esquerdista que os outros 93% dos portugueses que dizem que também são, queria ir à Assembleia da República, festejar o 46.º aniversário do 25 de Abril, mas foi rejeitado porque aquilo é mais para a elite que, “heroicamente”, não foi à guerra.


Recebemos uma mensagem, com foto, dando-nos a conhecer que o Tarzan Travesso, de Medas, ocupa agora, também, os galhos do 2.º Piso da Árvore n.º 3 da Rua do Loureiro, 4515-370 Medas - Gondomar

Reina uma tristeza enorme na Rua da Alegria. O bondoso Bandalho Jotex, que era conhecido por levar restinhos de pão-de-ló, para os cãezinhos da D. Vergília, não sai da cama. Inactivo, engordou de tal forma que, só sairá de casa pela janela grande, pendurado de um forte guindaste. A família, envergonhada, já fez constar que ele sofre dos joelhos, dos joanetes e... tal… e tal… No entanto, sabemos também, que está sob forte regime de dieta, a fim de recuperar a indispensável mobilidade, aliás exigível ao detentor do mais alto cargo da nossa hierarquia “bandalhada”.

Existem vários outros “Bandalhos” (uns com as quotas em dia e outros não), cuja inactividade recente, não dá para perder tempo atrás deles. O seu isolamento envergonhado (ou não), leva-nos a pensar que devem ser eles a dar sinais de vida.
Entre eles, devemos enaltecer o caso de um dos primeiros “Bandalhos”, o Grandalhão, que foi atleta do FCP e que, mesmo reformado da PJ, se mudou para a capital, oferecendo os seus serviços, em “pro bono”, no intuito de arranjar maneira de salvar o Rui Pinto, o tal jovem denunciante da corrupção em Portugal.
De resto, confirmamos que os “Bandalhos” se estão a safar bem nesta luta inglória, o que nos dá grande satisfação.

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20903: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (8): “Covidando” com os meus botões ou “Covidando” com o confinamento

Guiné 61/74 - P20931: Os nossos seres, saberes e lazeres (388): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Os itinerários da semana napolitana andam um tanto aos baldões da sorte, numa folha escreveu-se o que é imprescindível ver, ou quase, quanto ao mais a ordem dos fatores é arbitrária. É o que se passa nesta digressão. Anda-se pelo casco histórico e impacta-se com o inacreditável, é bem verdade que quem não sabe é como quem não vê, e o que se está a ver não é decifrável, será um amável tipógrafo que irá mostrando paredes, pasme-se, restos do teatro romano, talvez do tempo dos Antoninos.
E prossegue-se à ligeira, entra-se no metro, tão publicitado pelos seus arrojos, o que é bem verdade. Suspira-se por ir a um grande museu, talvez à Cartuxa, está escrito que é do Castelo de Sant'Elmo que há as mais belas vistas de Nápoles, mas toma-se a decisão de apanhar comboio para visitar Caserta, há um vídeo que corre mundo com o seu esplendor, em Nápoles tem que se ser napolitano, ao menos visita-se um palácio real com mil e duzentos quartos, circundado de belos jardins.
Amanhã haverá mais, como reza a exaltação turística, Nápoles é apaixonante, confusa, histórica, vibrante e com personalidade. E é mesmo.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (2)

Beja Santos

O viandante guardou um suplemento do Diário de Notícias, do ano de 2017, dedicado a 48 horas em Nápoles, não é demérito aqui recordar algumas das sugestões entusiastas que alguém escreveu. Diz-se que Nápoles é apaixonante, confusa, histórica, vibrante. Há a pizza napolitana, recorda-se que o tenor Enrico Caruso e a atriz Sophia Loren aqui nasceram. E, pasme-se, há duas glórias futebolísticas inesquecíveis: o mítico guardião Dino Zoff e Diego Maradona. Para essas 48 horas, o pequeno guia propõe que se comece pela rua que corta a cidade, Spaccanapoli, que é na realidade uma sucessão de três ruas, a parte estreita, com dois quilómetros, atravessa o centro histórico. É recomendado que se visite o Palácio Real, hoje Museu Nacional Capodimonte, a Ópera de São Carlos (por curiosidade, o nosso Teatro Nacional de São Carlos tem impressionantes semelhanças), Pompeia, as catacumbas, as belezas do Metro, a Igreja de Gesùnuovo, que faz lembrar a Casa dos Bicos, onde hoje está a Fundação José Saramago, o Castelo Sant’Elmo, de onde se divisam panorâmicas únicas, cá em baixo, na baía, o Castel dell’Ovo. Claro está, tudo pode começar na Catedral. Pois foi aí que o viandante encetou viagem, já se apresentou a catedral, lá dentro é obrigatório visitar Santa Restituta, houve aqui basílica paleocristã, é de uma beleza impressionante, talvez as imagens seguintes falem por palavras que o viandante não possui, até chegarmos ao lindo mosaico Madonna e os Santos Gennaro e Restitua, uma obra executada em 1322 por Lello da Orvieto, que imenso tesouro artístico.



De novo no centro histórico, como quem não sabe é como quem não vê, neste caso o que se está a ver não dá para saber, fala-se num dístico que é entrada de um teatro romano, entra-se numa tipografia para perguntar onde é que está o teatro, só se veem edifícios à volta, é felizmente um napolitano paciente que vai apontando para paredes e arcos e referindo a utilidade que tinham enquanto estiveram incorporados, talvez há mais de dois mil anos, num centro de diversão e cultura que agora não se pode imaginar como funcionava e que dimensões tinha. Ora vejam.




Nápoles tem galerias a dar com um pau, numa deambulação para ir até ao Museu Arqueológico entrou-se na Galeria do Príncipe de Nápoles, construída em 1883, é a mais antiga galeria de Nápoles, faz parte de um tempo em que se pretendia ter uma área comercial luxuosa com ares apalaçados, com requinte e a segurança de um teto que resistisse às clemências de chuvas e nevões. Pelo que foi dado a perceber, a galeria já teve dias melhores, convém não esquecer que têm havido muitas revoluções comerciais, a massificação privilegia as catedrais que gozam do nome de centros comerciais, e depois há aquelas ruas que gozam do aparato do luxo, que podem dar pelo nome de Via Veneto ou New Bond Street. Procure-se intuir o que esta galeria terá tido de impressionante, há mais de 125 anos.


Os guias recomendam a todos que vêm a Nápoles que usem o metropolitano e o funicular. O viandante obedeceu, comprou um bilhete de 3,5€ que lhe deu direito às viagens do dia. Um dos guias recomendava vivamente que se visitasse a estação de Toledo, dando-a como uma das mais belas do mundo. Bela é, mas sejamos francos, nada que o viandante tenha visto rivaliza com o metro de Moscovo. Mas Toledo tem grandiosidade, sugere que caminhemos para o império celeste, em dada altura até se cria a ilusão de que podemos ser engolidos, sabe-se lá para chegar à constelação de Oríon.



Há outra grande surpresa na estação de Toledo, os painéis do artista sul-africano William Kentridge, muitíssimo originais, suscita fusões entre o passado e o quase presente, tira, cola e repõe, perceciona-se facilmente que há mensagem política nas suas montagens de manipulação cronológica. Os seus trabalhos para o Metro de Toledo são altamente sugestivos, podemos entendê-los como uma caminhada da humanidade à procura da justiça e da paz.





Agora, o viandante toma o metro até à estação de Garibaldi, transfere-se para uma linha ferroviária que tem um nome muito bonito, a Circumvesuviana, viaja-se até Caserta, onde há palácio real concebido pelo arquiteto Vanvitelli, preparem-se para o esplendor de apartamentos reais, da sala do trono, das escadarias, estamos em pleno século XVIII, os Bourbons não se coibiram a gastar fortunas num edifício gigantesco, maciço, impressionante por fora e por dentro, Caserta é tão obrigatório como Amalfi, Sorrento ou Capri.
Ora vejam.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20901: Os nossos seres, saberes e lazeres (387): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20930: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (10): Deliciosas sandochas de salmão, "curado, não fumado" (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)





As típicas sandes de salmão (...curado,  não fumado: em sueco:  "gravlax", salmão curado)


Fotos (e legenda): © José Belo (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Fotos enviadas em 24 do corrente, pelo José Belo:

(i) ex-alf mil inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70;

(ii) manteve-se no ativo, no exército português, durante uma década; 

(iii) está reformado como capitão de infantaria  do exército português:

(iv) jurista, vive entre Estocolmo, Suécia, nem como nas imediações de Abisco, Kiruna, Lapónia, no círculo polar ártico, já próximo da fronteira com a Finlândia, mas também Key-West, Florida, EUA;

(v) é o único régulo da tabanca de um homem só, a Tabanca da Lapónia  (, mas sempre bem acompanhado das suas renas, dos seus cães e dos seus ursos)

Manda-nos umas deliciosas sandochas de salmão... O José Belo, que vive na terra do salmão, faz questão de sublinhar que é "salmão curado,  não fumada"... Uma iguaria, que também não consta do cardápio do "Chef" São Pedro...

Uma boa receita do régulo da Tabanca da Lapónia contra o virus,  "enviada com amizade a todos os velhinhos isolados", está disponíel no blogue da Tabanca do Centro. SKÅL!
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sexta-feira, 1 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20929: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (5)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2020:

Queridos amigos,
A perda de uma grande amiga, a madrinha da minha filha mais nova, contristou-me tanto que me levou a uma romagem de saudade àqueles meses que vivi na Ilha de São Miguel, daqui embarquei para formar batalhão no RI 1, na Amadora, de onde fui expelido por ser "ideologicamente inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar Português", e por obra do destino passei para o CTIG, lançaram-me no Cuor, aqui vivi 17 meses e fui alvo de um dos maiores desafios da minha vida, Missirá completamente incendiada, houve que a reconstruir em tempo recorde, o que aconteceu.
O tempo açoriano passou veloz, cimentei amizades, as duas recrutas passaram num ápice, enamorei-me da terra, da sua cultura, da sua religiosidade tão sentida. Daí este testemunho, um penhor de gratidão a todos que me fizeram tanto bem e que me ajudaram a perceber que há um momento na vida em que saímos de casa dos pais para começar a obra nossa.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (5)

Mário Beja Santos

Nestes cerca de cinquenta anos de saudade latente, estou feliz porque quem ganhou mais foram os açorianos, não eu. Quando ali arribei, naquele ponto minúsculo do oceano havia escassíssimo turismo, uma indústria conserveira que tinha escassa difusão nacional, a indústria tabaqueira era de cunho local, tal como as cervejas e refrigerantes, o chá era mal conhecido, se mal comíamos laticínios no continente seguramente que os laticínios açorianos não apareciam no mercado continental, onde hoje estão em plena vanguarda, havia águas minerais como as Lombadas, que depois desapareceram, não me lembro de ver licores em Portugal Continental, na altura não se falava nos vinhos, era um requinte beber o Verdelho do Pico, carnes e enchidos açorianos não eram conhecidos aqui, o artesanato tinha escassa difusão como as compotas e mel, só o ananás é que aparecia nos mercados continentais, espero não estar a cometer um pecado por omissão.

Imagem da indústria conserveira açoriana

Como tudo mudou! Na Expo 98, a Região dos Açores apresentou-se garbosamente, adquiri uma caixa de brochuras sobre produtos dos Açores, como felizmente ia visitando regularmente belezas naturais que sempre me tocaram o que li só confirmava como os Açores estavam a conhecer em várias frentes um grande desenvolvimento. Logo o turismo, uma indústria que prosperara, bastava visitar São Miguel, Terceira ou Flores, e não era um turismo de alternativos, tratava-se de um compósito de visitantes com posses e turismo de massas, num doseamento que não punha em risco a identidade e a caraterização dos patrimónios. As conservas são conhecidas em vários continentes e entre nós altamente apreciadas, como altamente apreciados são os charutos de fabrico local. No meu tempo já se bebia a cerveja Melo Abreu, hoje a gama de produtos estende-se aos refrigerantes de maracujá e às águas tónicas e os chás da Gorreana e de Chá Porto Formoso asseguram infusões leves e muito aromáticas.

Plantação de chá na Ilha de S. Miguel

É desta beleza natural que vêm os gostosos laticínios açorianos

Lembro-me de ter comido queijo de S. Jorge muito antes de viver em S. Miguel. Mas a indústria de laticínios local tinha modesta dimensão. Hoje sentimos o seu peso nos escaparates dos supermercados: as manteigas, os queijos de bola e fatiados e em barra, há o queijo de S. Jorge e do Pico, predomina a denominação de origem Açores. E guardo saudade daquele tempo em que no Café Nacional, enquanto comensal, podia começar a refeição com queijo fresco acompanhado de pimenta da terra e ter à sobremesa uma rodela de ananás. E veio-me à memória o dia em que no Café Gil ouvi pedir um licor do Ezequiel, curioso pedi também para mim, nem deu para estranhar, entranhou-se logo, é digestivo de que não perco oportunidade, nos bons e maus momentos. Estes licores são feitos com ananás e maracujá sobretudo, mas também se encontram feitos à base de amora, tangerina, banana e anis, tudo feito com segredo, bem entendido. O meu “maracujá do Ezequiel” é preparado a partir de polpa fresca de maracujá roxo, é um licor de 26 graus, foi uma das maiores aquisições de bebida que importei da minha jornada micaelense.


Em 1967, vinho para mim nos Açores era o Verdelho do Pico, nada barato, o que acompanhava as refeições eram vinhos continentais de modesto valor. Pois foi precisamente em 1964 que se iniciou o plano da reconversão vitivinícola dos Açores, dava-se primazia às castas nobres Verdelho dos Açores, Arinto e Terrantez do Pico, vinte anos depois criavam-se zonas demarcadas da Graciosa, Terceira e Pico, habituei-me a acompanhar um bravo de peixe boca-negra ou filetes de abrótea com vinhos de mesa, só recordo inicialmente as marcas Basalto e Terras de Lava. Pequenas produções, é certo, mas são vinhos de estalo. Hoje há mesmo confrarias, há o Museu de Vinho dos Biscoitos, a confraria é a do vinho Verdelho dos Biscoitos.

Vinha açoriana, imagem retirada da revista Visão, com a devida vénia

Voltando a 1967, interessei-me em saber que águas minerais existiam, bebi a água das Lombadas, não quis outra. Vinha da nascente das Lombadas, a norte da Lagoa do Fogo. Quando lera Gaspar Frutuoso e as suas Saudades da Terra, encontrei referência às águas minerais. Nos meus regressos sucessivos, estranhei a falta das Lombadas, disseram-me ter havido um problema de poluição, depois bebi a água Glória Patri e Serra do Trigo mas a nostalgia pesa muito, beberia de bom grado aquela aguinha gaseificada com um gosto ligeiramente férreo, uma boa companheira.


Recordo o artesanato, os trabalhos com as escamas de peixe, a partir do osso da mandíbula do cachalote ou dos seus dentes, os trabalhos em madeira aproveitando o cedro, o jacarandá e o mogno, mas também os bordados extremosos, os bonecos de palha de milho, as colchas. Não me poupei a viver acompanhado deste artesanato. Tinha visto um belíssimo trabalho artesanal de registo do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a minha amiga Cremilde Tapia informou-me que a Graça Páscoa era possuidora de um talento único, levou-me a sua casa, e no meu escritório guardo um trabalho seu primoroso, paro várias vezes diante dele para contemplar a finura das escamas do papel recortado, do jogo de cores até chegarmos à figura central daquele Cristo sofredor indumentado em toda a sua glória.

Centro de Artes Contemporâneas, S. Miguel

Imagens do basalto açoriano

O basalto era omnipresente, dei conta dele mal desembarquei. Pegando na brochura distribuída na Expo 98, vale a pena reproduzir alguns elementos: “Nome de uma pedra de tom cinzento-claro, de origem vulcânica. Em S. Miguel, área de exploração de basalto, fica no concelho de Ribeira Grande. Os seus mantos lávicos foram originados há mais de cinco mil anos, no decurso da erupção do vulcão do complexo do Fogo. Assente na grande área de junção das placas da Europa e África, a Ilha Terceira tem como principal zona de exploração uma escarpa de 120 metros de altura e mais de um quilómetro de comprido na sua superfície, resultado do assentamento do vulcão Guilherme Moniz. O basalto é largamente utilizado na arquitectura regional, tanto na construção civil como na decoração de fachadas. A pedra trabalhada tem uma vasta gama de aplicações, como pavimentos, alvenaria, cantonaria ou decoração de interiores – mesas, lareiras ou bancos”.



Chegou a hora da despedida, o rogo de minha mãe cumpriu-se, vim são e salvo. A estadia açoriana, é minha profunda convicção, foi crucial na minha preparação para lides belicosas, inseriu-se na minha identidade, visito-a quer com carinho de peregrino quer como membro da terra, aquelas atmosferas, odores, amenidade de vida, património construído, os poentes deslumbrantes, estarrecedores, tudo me pertence. Para que o adeus seja imenso, irrepetível, aqui se deixam as imagens do local onde entre 1967 e 1968 apanhava transporte para os Arrifes, belíssimo local este Largo 2 de Março, tão bem tratado, mostrando o palácio onde vivia o governador civil, o representante do Estado Novo. O troço da SCUT é a imagem de uma transformação, um dos índices do desenvolvimento, e que são muitos: na saúde e na educação, na investigação científica, nas atividades económicas. Fiz bem em ir buscar uma caixa dos produtos açorianos apresentados na Expo 98. Tenho sido observador de todas essas transformações e posso dizer sem hesitação que vim são e salvo mas se há parcela do nosso terrunho que mais se desenvolveu e beneficiou do quadro democrático foi este rincão de onde parti e cheguei são e salvo.
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Nota do editor

Último poste da série d e24 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20897: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (4)

Guiné 61/74 - P20928: 16 anos a blogar (10): Independências - Parte II (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

 

1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2020, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos um longo texto subordinado ao tema "Independências", do qual publicamos hoje a segunda parte.




(Clicar na imagem para ampliar)


INDEPENDÊNCIAS - PARTE II

(Continuação)

No cortejo de misérias o pior ainda está para vir, com a desestabilização das potências emergentes, que não conseguiram, não puderam, ou não quiseram alterar a relação do poder com os seus cidadãos, distribuindo para o bem geral as riquezas que os seus territórios são detentores.
Quando o dinheiro entrava a rodos teria sido muito mais barato criar infra-estruturas como rede de esgotos, água, habitação e emprego, sistemas de saúde, do que o custo a pagar pelas epidemias, de cólera, ébola, sarampo, guerras com milhares de mortos e estropiados para não falar na hecatombe que esta pandemia fará num continente tão desprotegido apesar de tão rico, se atentarmos no mapa da distribuição das suas riquezas.

Como já mencionei, o problema já não pode ser resolvido pelos próprios países que ficaram reféns das grandes companhias que dominam a economia mundial, que não estão nada interessadas nisso.
As moedas nacionais não contam para nada, são os dólares ou francos que encharcam as economias conforme a zona de influência. Vejamos a acusações dos ganhos que a França aufere com a sua moeda tutelar sobre as moedas nas ex-colónias em África a que até a nossa Guiné já se rendeu funcionando aí um franco oriundo do Senegal.

Dizem economistas que estudam o fenómeno da pobreza em pais ricos, enquanto esses povos são empurrados para becos sem saída. Não há solução pois os seus países são impedidos de promoverem o desenvolvimento sustentável equilibrado, porque as empresas petrolíferas e de minério, passam a explorar essas riquezas despejando milhões de dólares sobre esses países, que assim, não transformam o tecido produtivo mas passam auferir do que não produzem, não deixando as mais-valias que receberiam se o transformassem e vendessem depois da transformação.

"Não lhes dês peixe ensina-os a pescar". Assim diz o ditado.

A Noruega, quando foi descoberto petróleo na sua costa, era um país pobre de pescadores. Negociou duramente, foi chantageada, mas conseguiu não ser relegada e assim participar no bolo que lhe permitiu ser hoje o que é. E porquê? Porque era um país com uma vincada politica social para redistribuição as riquezas ali descobertas.

Outro caso paradigmático passou-se na Holanda.

A Doença Holandesa

No Norte da Holanda, a Royal Dutch Shell em parceria com Exxon junto à aldeia de Shochterem em 1959, descobre a maior jazida de gás da Europa. Seguiu-se a fartura do gás. Mas não tardou muito que os dirigentes desse país se questionassem sobre os benefícios de tal descoberta e se ela seria uma bênção. As pessoas começaram a perder os empregos e outros sectores da economia afundaram-se, criando assim um padrão que a revista The Economista chamou em 1977 como a “Doença Holandesa”. Está claro que a Holanda reverteu essa situação para seu bem e não para sua desgraça.

Mas em África dirigentes deslumbrados com tudo o que conseguem comprar, vivem numa bolha embriagados com uísque nunca menos de 18 anos, vinho importado das melhores castas e roupas compradas nas melhores capitais europeias . O dinheiro parece cair das árvores sem fim.
Os preços são alavancados, a produção cai a pique, impera o desenrasque do pequeno comércio de rua nas grandes cidades e quem tem posição de chefia começa a amealhar. O preço do petróleo tomando por exemplo Angola ($3,5 milhões dias antes da baixa desse produto) dá para tudo e como não há incentivo à produção, não se produz, importam-se até produtos de primeira necessidade, que eram produzidos antes, só pelo o luxo de dizer que é importado.

Também não há cobrança de impostos de monta, a justiça funciona na lei de extorsão do mais forte, segurança social é coisa que nem ouviram falar, o estado é assim uma cadeira do poder só para alguns e raros, são os que não acabaram nas malhas da corrupção numa rede infindável de filhos, sobrinhos e alguns amigos que esbanjam pelo o Mundo fora o dinheiro que não lhes custou a ganhar, já que a liberdade tão duramente conquistada, perde-se na falta de solidariedade e da Justiça social e duma politica e reguladora da causa pública.
Para essas fortunas existem sempre contas especiais e os offshore mal de que sofre a economia portuguesa, também onde se cruzam muitas vezes.
Em Angola por exemplo a teia não é diferente da de outros países.

Por estranho que pareça, embora seja a ideia aqui no blogue, não foram a URSS nem os seus satélites apoiantes das lutas armadas, os beneficiários das riquezas e julgo que o seu envolvimento acaba por ser deficitário, pois só a Rússia emerge como potência económica e militar. Os outros apressaram-se erigir duvidosas democracias musculadas e a recolher-se sob o manto da NATO, participando em aventuras como Iraque, Afeganistão, e em manobras que visam intimidar os antigos patronos, com resultados que espero nunca sejam funestos para eles e para nós, a julgar pelos resultados do passado.

Assim o desenvolvimento da industria petrolífera da Sonangol deve-se à BP, do Reino Unido e a Chevron e a Exxon Mobil, dos Estados Unidos e à Total francesa que extraiu mais petróleo do país do que qualquer outra empresa. As receitas do petróleo angolanas, em 2011, equiparam-se às receitas da Coca-Cola ou da Amazon em todo o Mundo. A China, maior importador de petróleo do Mundo, também reclama o seu pedaço com empresas estatais. Também Moscovo, Manhattan, Coreia do Norte e Indonésia, todos associados em offshores, a BP, a Total, mais empresas petrolíferas, mais o gigante da distribuição Glencore, sediada na Suíça, formam a Queensway Group que tem como riqueza o que sacam do subsolo africano.

Uma última palavra para a “nossa Guiné” tão maltratada pelos seus dirigentes, que lutam num pós-independência por um poder de riqueza de pouca monta. Sem riquezas no subsolo, têm deixado desbastar as suas florestas, que saem do país rumo à China e alimentam assim a fome devoradora que o pais tem pela transformação que, depois vende ao Ocidente com valor acrescentado.

Fala-se pontualmente da existência de alumínio e petróleo mas a verdade é que são produtos como o caju, os únicos produtos dignos de nota numa monocultura perigosa. A Guiné é acusada de ser um narco-estado e qualquer um pode ver também que é um estado falhado. Os golpes de estado, institucionais ou armados, são uma constante, as eleições são subvertidas constantemente, a parte que perde nunca aceita o resultado e a que ganha através de chapelada eleitoral, também finca os pés num daqui não saio, daqui ninguém me tira.
Que estará guardado para aquele pais onde a sua maior riqueza será a diversidade étnica, que também pode ser o seu maior problema pois o sonho de Amílcar Cabral, de um País um povo e uma só bandeira está cada vez difícil de atingir?
Será anexada pelos vizinhos do Norte, mais bem posicionados?
Esperar para ver é o que nos resta.

Por cá, a busca do precioso ouro preto também tem tido a suas épocas de procura obstinada. Em Alcobaça furaram em vários lados, fizeram tremer zonas residenciais, perfuraram em zonas agrícolas, e por último no mar em Aljezur o que irá por em risco o nosso turismo bem como meio ambiente. Não sei se com algum ganho, pois os ganhos tirando os gastos, também reportados, o estorno para o Estado português e, uma vez que não temos condições para a própria exploração, logo os galifões mundiais assentarão arraiais de onde levarão a maior parte do lucro, de nada servindo a boa experiência Norueguesa ou da Doença Holandesa, que de má memória foi convertida a tempo e não se transformou em pandemia.

“Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome.”
Mahatma Gandhi

Um abraço caseiro para todos os camaradas
Dia 28/04/2020
45.º dia de confinamento e com muito tempo ainda pela frente.
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20925: 16 anos a blogar (9): Independências - Parte I (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

Guiné 61/74 - P20927: (De)Caras (158): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VII: mais uma achega do Carlos Geraldes: o caso do ataque (anunciado) a Pirada em 28/5/1965 e o linchamento do gila confundido com um espião,


Comunicado do PAIGC referindo um ataque a Pirada,  o dia 28 [, sem mês nem ano],,, Cruzando informação disponível no blogue, esse ataque só pode ser o dia 28 de maio de 1965, ao tempo da CCART

Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 07065.068.053
Título: Comunicado [Frente Leste]
Assunto: Comunicado sobre o ataque da Secção do Exército Popular ao quartel de Pirada.
Data: s.d. 
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos
Página(s): 1

Citação:
(s.d.), "Comunicado [Frente Leste]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40762 (2020-4-29)




Mário Soares > Pirada >
14/2/1974.
Foto: António Rodrigues 
(2015)
1. Continuamos à(s) volta(s) dessa figura algo misteriosa que foi o comerciante português Mário Soares, ou Mário Rodrigues Soares, mas também identificado com António Mário Soares (*). Dizem, justa ou injustamente, que serviu dois senhores, as NT e o PAIGC. Foi acusado de ter sido informador da PIDE/DGS tanto quanto "espião" do PAIGC. Em suma, "um "hábil agente duplo (...) durante muito tempo", condição que "acaba sempre por ter um preço amargo de pagar" (, segundo o seu amigo Carlo Geraldes). No fim da guerra, terá sido escorraçado por uns e por outros.

Esteve estabelecido em Pirada, no leste da Guiné, na fronteira com o Senegal, e diversos camaradas nossos (, nomeadamente, alferes milicianos)  conviveram com ele ao longo da guerra colonial, pelo menos desde 1963 a 1974.

Tende, por vezes, a ser confundido com o  seu homónimo,  esse, sim,  inconfundível figura pública Mário [ Alberto 
Nobre  Lopes] Soares (1924-2017), presidente da República Portuguesa (1986-1996), duas vezes primeiro ministro, fundador 
e secretário geral do Partido Socialista, opositor do regime de 
Salazar-Caetano,  etc.

A ignorância pode ser tanta que até a jovem cabo-verdiana, nascida em 1991, Kathleen Rocheteau Gomes Coutinho, troca os dois nomes, os homónimos,  num trabalho académico, defendido em provas públicas numa universidade brasileira (**).

Sabemos, por testemunhos anteriores (*), que o Mário Soares: (i) era natural de Lisboa; (ii) terá vindo para a Guiné por "dificuldades financeiras); (iii) estabeleceu-se como comerciante em Pirada; (iv) era casado (com Luísa  e tinha 3 filhos (um rapaz. José, a estudar em Lisboa,  e duas raparigas, Rosa e Eva Lúcia, esta a mais nova,  nascida em 1958); (v) deverá ter nascido na década d 1920, pelo que nos anos de1964/65 já teria mais de 40 anos; (vi) era "o branco mais africano que comheci" (, segundo a opinião de José Pratas, antigo alf mil médico, CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/73).

Sabemos ainda que: (vii) em Pirada havia mais 4 comerciantes brancos, em 1964/65; (vii) em 1971/73,  havia um agente da PIDE na vizinhança, "bom para seviciar e intimidar", o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  que "tinha farroncas mas com as flagelações tremia como varas verdes" (José Pratas).

Portanto, o Mário Soares não era o gente da PIDE/DGS de Pirada, nem nunca pertenceu ao quadro de pessoal da PIDE/DGS... o que não o impedia de colaborar com a política política, aproveitando-se das "relações especiais" que tinha com as autoridades fronteiriças do Senegal. O que também não quer dizer que não fosse "informador" da PIDE/DGS...e não pudesse também ser útil ao PAIGC. Dáí que, desde muito cedo, corresse a fama de ser um "agente duplo".


Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga delegação local da PIDE/DGS, e hoje esquadra local da polícia de segurança pública. Entre 1971 e 1973, ao tempo do alf mil médico José Pratas (CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/74),  terão passado por aqui dois agentes:  o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo senhor Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  (José Pratas). 


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga casa do comerciante Mário Soares. Ficava,  à esquerda,  na Rua principal que levava à fronteira do Senegal, 

Fotos (e legendas): cortesia da página do Facebook Pirada Guiné-Bissau (2018). [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]

No livro de Maria José Tíscar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o "patrão" da polícia política na Guiné, homem  da confiança pessoal de Spínola, o Fragoso Allas, dá a entender, abusivamente, que  o comerciante Mário Soares era "mais" agente que o "seu"agente, o Carvalho, e depois, o Pereira:  que estes, ou um deles,  viveriam na casa do comerciante, que ele é que atenderia, em 90% dos casos o rádio da DGS, e que era aceite por ele, Fragoso Allas, como "agente duplo"... Porque lhe convinha... No fundo, é menorizado o papel do Mário Soares, conforme se pode deduzir das longa conversa com a historiadora,em que ele terá aberto o seu "livro": 

(...) "Era habilidoso [, o Mário Soares], tinha boas relações com as autoridades portuguesas e tinha bons contactos, também, com as do Senegal. Teve atuações muito importantes para nós. 

(...) " Era útil como agente de contrainformação. Quando queríamos enviar informações falsas ao PAIGC dizíamos-lhe que era muito secreto e então ele ia logo transmiti-las.

/...) "As informações que ele fornecia sobre o PAIGC quase não serviam, porque nós sabíamos que ele também trabalhava para eles.


(...) "Quando cheguei à Guiné, o General Spínola estava muito zangado com ele e queria mesmo expulsá-lo da província, mas isso não seria conveniente porque o posto da PIDE estava dentro da sua casa, pelo que me interessei para que ele continuasse na sua atividade”. (...)


2. Quem mais escreveu sobre o comerciante Mário Soares,  aqui no blogue,  foi  ex-alf mil Carlos Geraldes, da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66), infelizmente já falecido em 2012. 

A sua foi a primeira companhia a ficar aquartelada em Pirada (, a partir de 15 de outubro de 1964). Até então Pirada era um destacamento guarnecido por um pelotão: em 1963, por exemplo, o nosso camarada e grã.tabanqueiro Jorge Ferreira disse-me, em conversa ao telefone, que esteve lá em Pirada, dois dias, e almoçou na casa do Mário Soares, ele, e outros militares, incluindo  o comandante do destacamento, o então alf inf Artur Pita Alves, hoje cor ref, que faria mais tarde uma outra comissão na Guiné, como capitão (CAÇ 1423, Bolama. Empada e Cachil, 1965/67).

O destacamento possivelmente pertencia ao BCAÇ 512 (Mansoa e Nova Lamego, 1963/65) ou então ao BCAÇ 506 (Bafatá, 1963/65), pormenor que o Jorge Ferreira já não pode precisar, mas seria o batalhão de Mansoa,

O Mário Soares recebeu, de resto,  em sua casa vários camaradas nossos, a começar pelos veteranos, o alf mil António [de Figueiredo] Pinto (BCAÇ 506 e 512, 1963/1965), o alf mil médico Luiz Goes (BCAÇ 506, Bafatá, 1963/65), e o Carlos Geraldes (CART 674, 1964/66), os dois últimos já falecidos. (Ao António Pinto, que  vive em Vila do Conde, mandamos um especial abraço.)

O Jorge Ferreira (ex-alf mil da 3ª CCAÇ,  Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63),  autor do livro de etnofotografia, "Buruntuma: 'algum dia serás grande', Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016), estava nessa altura destacado em Buruntuma. Portanto, em 1963, ele também confirma que o Mário Soares já estava estabelecido em Pirada.

No Arquivo Amílcar Cabral, disponível no portal Casa Comum, criado pela Fundação Mário Soares, há pelo menos 11 referências a Pirada, mas nenhuma referência ao nome ou à pessoa do comerciante Mário Soares...

Sabe-se que em 1963 o PAIGC tinha muitas dificuldades de implantação na região, devido à hostilidade dos fulas e à fraca lealdade dos seus simpatizantes e militantes,  de maioria mandinga,  bem como à concorrência da FLING. Por outro lado, o Senegal, de Leopoldo Senghor, impunha, na época,  sérias limitações à liberdade de movimentos do PAIGC.

Se o Mário Soares fosse militante ou simpatizante do PAIGC seria, na época, um recurso precioso: os homens do PAIGC queixavam-se, então,  de que passavam fome, não dispunham de cuidados médicos, não tinham  armamento em condições nem muitos menos explosivos para a destruição de pontes, eram combatidos pelos fulas... Em suma, o moral era baixo ou estava em baixo.



Excerto de carta (manuscrita) remetida por Areolino Cruz a Pedro Pires, data de Pirada, 17/7/1963. É referido um ataque a "quartel de Pirada", no dia 15, tendo sido incendia a casa de um "tipo da PIDE".  Resultados: (i) "morreu um soldado europeu"; (ii) " soldados europeus têm agora medo de sair à noite, e mesmo depois das 6 da tarde"... O PAIGG não teria na época um bigrupo, o Areolino Cruz diz que "fomamos de agora em diante um só grupo comandado por Chico Tê, aproximadamente 22 homens"... (Não temos noticia de que nessa data, 15/71963, tenha morrido algum militar português no TO da Guiné.)

(Fonte: Arquivo Amílcar Cabral... Com a devida vénia; Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Citação:
(1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36881 (2020-4-30)


3. O primeiro verdadeiro ataque a Pirada só acontece em 28 de maio de 1965, ao tempo da CART 676. (Talvez não por acaso, o PAIGC desencadeou mais do que um ataque ao longo da guerra, nessa efeméride, evocativa do 28 de maio de 1926,  data histórica em que triunfou, em Portugal, o golpe de Estado que deu origem à Ditadur Militar e ao Estado Novo; estou-me a lembrar, por exemplo, do ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969.) 

Estava então o Carlos Geraldes de licença de férias na Metrópole... [Há um interregno da sua correspondência para a Metrópole entre 18/4/1965 e 13/6/1965, correspondente ao período - mês de maio - em que não apenas gozou a sua licença de férias como celebrou  o seu primeiro casamento.]

A posteriori, logo a seguir, quando regressa a Pirada e a Paunca (onde o seu pelotão está destacado), reconstitui esse ataque e os acontecimentos que se lhe seguiram, o linchamento de um pobre gila (comerciante ambulante), confundido com um espião,  por ter sido encontrado transportando alguns sacos de invólucros na sua bicicleta depois do ataque do PAIGC...

Não tendo sido "testemunha ocular" nem do ataque do PAIGC  nem do linchamento do gila,  Carlos Geraldes, por uma questão de honestidade intelectual, começa a narrativa com a segyinte reserva: "Não sei se o deva contar"...Mas depois conta, e o que escreveu está  publicado no blogue, na sua série "Gavetas da Memória".

Voltamos a reproduzir essa crónica, com título e subtítulos nossos. Pode ser que, entretanto, mais algum camarada possa confirmar ou infirmar  (ou acrescentar algo mais sobre) o que aconteceu nesse dia 28 de maio de 1965, em Pirada.


O caso do  ataque (anunciado)  a Pirada em 28/5/1965 e o o linchamento do gila, confundido com um espião (**)


(i) O Primeiro Ataque a Pirada

Não sei se o deva contar, porque nem sequer fui testemunha ocular. Nesse dia, 28 de Maio de 1965, estava de férias na Metrópole junto com a família. Um mês inteiro longe da guerra, na total ignorância de como as coisas se iam passando por lá,  a milhares de quilómetros. Só quando regressei de avião a Bissau é que me contaram a novidade.

Pirada tinha sido atacada!

Ao princípio custou-me a acreditar, até porque quem mo contou também não sabia bem os pormenores. Mal pude conter a impaciência nos dias que se seguiram à espera de boleia num Dakota (o velhinho, mas muito útil DC-6) para Nova Lamego onde depois teria um jeep da Companhia para me ir buscar. O sempre sorridente alferes Pinheiro lá estava pontualíssimo para me servir de condutor de regresso a casa.

E então lá me contou como tudo se tinha passado, enquanto eu o ouvia,  embasbacado, ainda pouco crente que me estivesse a falar verdade.

O M[ário] Soares, como sempre, fora informado que um numeroso grupo de guerrilheiros se estava a juntar do outro lado da fronteira, no Senegal. Estava bem armado e tinha intenção de fazer qualquer coisa ao quartel da tropa em Pirada. E até se sabia o dia e a hora em que isso iria acontecer. 

O nosso Capitão fez aquilo que a prudência mandava, entrincheirou-se o melhor que pôde e aguardou. Aliás, tomou até uma medida que sempre me pareceu um pouco ousada e timorata. Quis contra-atacar. Planeou então uma manobra para emboscar o inimigo que supostamente viria atacar o aquartelamento do lado ocidental a coberto da povoação nativa, a cintura de palhotas que envolvia Pirada. Para isso mandou que o alferes Pinheiro e o seu Grupo de Combate se fossem colocar, muito discretamente, do lado de fora da tabanca, numa zona baixa, já perto da bolanha, onde aí, montariam uma emboscada e contra-atacariam os assaltantes encurralando-os contra o quartel. Só que as coisas nem sempre correm tão bem como se planeiam no papel. A noite estava escuríssima, conforme me ia contando o Pinheiro:

"Eu mal consegui dar com o sítio que o capitão me tinha dito onde eu e os meus homens nos deveríamos ocultar para depois apanhar os gajos. E depois quando a festa começou deu-me a impressão que afinal estávamos mais afastados do que era previsto. E pelo arraial que faziam deviam de ser mais de duzentos. Olha, eu, pelo sim pelo não, para não estar para ali a fazer fogo sem mais nem menos, resolvi que o melhor seria esperar muito caladinho e ver como as coisas se iriam passar. Se revelássemos a nossa posição até talvez ficássemos numa situação muito perigosa. Aliás poderia acabar por fazer fogo contra os nossos, não achas? Por isso, ficámos ali muito quietinhos à espera que tudo passasse. No quartel estavam mais bem protegidos pelos abrigos, eu ali não tinha protecção nenhuma!"

Sim, o alferes Pinheiro tinha razão, era insensato atacar às cegas um inimigo que não se sabia bem onde estava nem de onde vinha, muito superior em número e armamento. Tomou uma decisão que à primeira vista poderá ser tomada como um acto de cobardia, mas que na verdade, tratou-se apenas de evitar um mero suicídio colectivo totalmente gratuito e ineficaz.

Assim o ataque desenrolou-se durante grande parte da noite, com a população nativa aterrorizada, escondida o mais que podia para escapar às balas perdidas que voavam em todas as direcções, varando de lado a lado as palhotas e as vedações dos quintais, enquanto do quartel atiravam morteiradas em todas as direcções e abriam fogo de metralhadora à vontade numa ânsia de aniquilar um inimigo que nem conseguiam descortinar.


(ii) O enigmático Mário Soares


Segundo depois me contou o M[ário] Soares, elementos do PAIGC passearam-se mesmo pelo centro do povoado, donde, até debaixo do alpendre da sua casa, fizeram fogo na direcção do quartel. Mas a ele e à família nem num cabelo tocaram. 

Admirável cavalheirismo romântico, que não seria fácil encontrar ali no mais remoto interior da Guiné. Gesto que, no entanto, lhe acarretaria futuros problemas com as desconfianças que a tropa foi alimentando a seu respeito, esquecendo que paralelamente M. Soares sempre lhes fornecera amplas e atempadas informações das andanças dos grupos inimigos que transitavam regularmente pelo Senegal, vindos da Guiné-Conacri em direcção à região do Morés, no triângulo Mansabá-Mansoa-Bissorã.

Na verdade a imunidade de M. Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar.

Com o raiar do dia [, 28 de maio de 1965], já depois de as armas se terem silenciado,  é que, aos poucos e poucos se foram verificando os estragos. Felizmente do nosso lado não houve mortos nem feridos, apenas danos materiais. As instalações ficaram com as paredes crivadas de balas, e duas viaturas foram atingidas mas nada de grande monta. [No comunicado do PAIGC, acima reproduzido, fala-se em 3 viaturas incendiadas: 1 jipe, 1 Unimog, 1 Mercedes Benz; mais: diz-se que "incendiámos toda a Pirada"...]

Na tabanca é que tinha sido pior, tinham ardido umas dezenas de casas, devido talvez ao nosso fogo de morteiro. Quatro mortos a lamentar e bastantes feridos sem grande gravidade, pois grande parte da população tinha fugido para longe. O posto médico depressa se encheu e o pessoal de saúde não teve mãos a medir, enquanto patrulhas percorriam toda a zona de onde o inimigo teria estado a fazer o fogo, agora facilmente identificável pelo elevado número de cápsulas vazias de vários calibres 
espalhas pelo chão. 

Os rastos deixados pelo grupo dos atacantes indicavam também que deveriam ter sofrido algumas baixas pelos vestígios de sangue deixados nos percursos de fuga em direcção do Senegal [, pelo menos dois mortos, conforme comunicado do PAIGC acima reproduzido].


(iii) O linchamento do gila


Mal recuperados do susto que tinham apanhado, tanto oficiais como sargentos e praças nem tinham vontade de falar no assunto.

Mas envergonhados também pelas reacções primárias a que se entregaram, quando ainda naquela manhã, prenderam um atónito gila que, inocentemente, tinha carregado na sua bicicleta vários sacos de cartuchos vazios que fora apanhando pelo caminho que percorrera despreocupadamente (?). 

Logo ali o acusaram de espião e resolveram fazer justiça pelas próprias mãos. Enquanto o capitão e o resto dos oficiais e sargentos se fecharam na caserna, a turba,  uivando cada vez mais enfurecida, arrastou o pobre desgraçado para o meio da parada e,  no meio de insultos e pancadaria, acabou de matar o pobre do gila, regando-o em seguida com gasolina e chegando-lhe fogo.

E até me mostraram fotografias, que acabaram por depois fazer desaparecer, cientes da barbaridade cometida.

Ainda cheguei a tentar falar com o capitão sobre o acontecimento. Mas apenas me respondeu com um silencioso encolher de ombros, revelador de uma total incapacidade de impedir o linchamento. E se calhar até de algum tácito consentimento para serenar os ânimos.

Mas só na antiga Roma é que os cruéis imperadores proporcionavam ao povo espectáculos de morte, para o poder controlar a seu bel-prazer! Teria acontecido aqui o mesmo?

Porém, com o passar do tempo,  tudo foi esmorecendo e caiu no esquecimento.Mas, o gila teria deixado família? Mulher,  filhos, outros parentes? Qual teria sido a raiva e a dor deles? Como teriam encarado o futuro?

A guerra não foi só recheada de heroísmos, ou uma alegre perseguição das bajudas lavadeiras apanhadas desprevenidas no regresso da bolanha, ou uma imprevidente saída para o mato na escuridão de uma noite tenebrosa.

A guerra foi também um longo rosário de pesadelos que nos marcou profundamente, mas que teimamos em não valorizar também.

Recolhi a Paunca [, destacamento da CART 676], logo que pude, para tentar esquecer.

(iv) A guarda republicana senegalesa corre com todos os grupos armados que podem ameaçar os postos fronteiriços portugueses (****)


(...) Voltando à vaca fria, nesta guerra, como se pode ver mais uma vez, tive sorte. Pois foram logo escolher o dia do ataque para quando estava de férias. Parece que eles ainda pensaram em voltar, mas viemos a saber depois que tinham resolvido ir atacar outra zona que, se calhar, lhes seria mais favorável. Entretanto a população regressou e tudo voltou à normalidade.

O Presidente do Senegal (Senghor) enviou para esta região membros da guarda republicana senegalesa para correr com todos os grupos armados que circulam por aqui e que já o estavam a inquietar, de maneira que hoje de manhã [, 15 de junho de 1965,]tivemos a inevitável confraternização, mesmo sobre a linha de fronteira.

Confraternização essa que levámos a efeito em regime estritamente confidencial, pois mais ninguém deveria saber, para não se armarem as habituais confusões junto do poder central. De um lado, eu, o Capitão, o alferes Carvalho [, pseudónimo do Pinheiro], e o alferes médico representando a tropa. O M. Santos representando os civis. Do outro lado, três guardas senegaleses.

O ambiente foi bastante cordial e prometeram-nos nunca mais autorizar a permanência, nesta zona, de grupos de guerrilheiros armados que, pelos vistos, também já os estariam a preocupar e incomodar. (...)

[Seleção, revisão e fixação de texto, incluindo negritos, itálicos e realces a amarelo: editor LG]
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(**) Katheleen Rocheteau Gomes Coutinho - A Política Externa de Cabo Verde (1975 a 1990): uma análise da configuração e atuação da política externa de Cabo Verde durante a guerra fria. Monografia apresentada ao Instituto de Relações Internacionais como requisito parcial à obtenção do Bacharel em Relações Internacionais. Brasília, Unibversiade de Brasília, Faculdade de Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais, 2015. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/16366/1/2015_KathleenRochteauCoutinho_tcc.pdf

(...) Estes dois fatores [, a vitória da luta de Libertação Nacional levada a cabo pelo PAIGC,  e a Revolução dos Cravos ou Revolução de 25 de abril de 1974,] foram importantes e estiveram na origem do Acordo para a independência de Cabo Verde, assinado em 19 de dezembro de 1974, pelas delegações do governo de Portugal e o PAIGC, nomeadamente entre Mário Soares (representando Portugal) e Pedro Pires (representando o PAIGC). (...)

Em nota de rodapé, diz-se que o seguinte: 

(...) Mário Rodrigues Soares- Português, 1922. Comerciante na região de Pirada onde acabou por funcionar como “agente” ou “espião”, nos contatos entre as autoridades portuguesas, senegaleses e o PAIGC. (Lopes, 2012).(...) [LOPES, José Vicente. “Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História”. Spleen edições, Cabo Verde, Cidade da Praia, 2012.]

(...) Pedro Pires, Cabo-verdiano 1934. Oficial miliciano na Força Aérea Portuguesa. Membro do PAIGC. Formação militar em Cuba e URSS. Comandante da Região Militar do PAIGC. Lidera a delegação do PAIGC na assinatura (...)

(****) Excerto da carta datada de  Pirada, 13 de junho de 1965, reproduzida aqui;

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

Guiné 61/74 - P20926: Parabéns a você (1795): José Carlos Neves, ex-Soldado TRMS do STM/CTIG (Guiné, 1974) e Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20918: Parabéns a você (1794): Giselda Pessoa, ex-2.º Sarg Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Guiné, 1972/74)

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20925: 16 anos a blogar (9): Independências - Parte I (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

 

1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2020, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos um longo texto subordinado ao tema "Independências", do qual publicamos hoje a primeira parte.




(Clicar na imagem para ampliar)


INDEPENDÊNCIAS - PARTE I


Caros Camaradas

Começaria por pedir a especial atenção para os dados bem como mapa da existência de minérios, tanto de usos mais gerais bem como preciosos, petróleo e gás natural. Foram dados publicados pelo o Jornalista de investigação premiado do Financial Times, Tom Burgis no seu livro "A Pilhagem de África":
No mapa é referido onde estão as riquezas desse continente tão rico e talvez, por isso mesmo, tão miserável.

À medida que nos distanciamos dos anos em que a libertação das colónias foi exigida pelos respectivos movimentos, vão-se avançados como novas visões da solução dos problemas, que os países emergentes sofrem passados que são 50/60 anos da sua autodeterminação.
Pelo que me é dado a perceber, segundo as opiniões dos mais diversos comentários, é que a independência é boa para mim, que sei viver com ela. Como diria uma velhota da minha terra com ar da maior sabedoria quando via o marido chegar perdido de bêbedo a casa:
– O vinho devia ser só para alguns e para mim, que o sei beber.

A África subsariana já ia com atraso em relação aos países do Índico e Sudoeste Asiático bem como o próprio Norte de África, tinham alcançado a sua independência logo no fim da II Guerra Mundial e vai revindicar pela voz de activistas mais esclarecidos na sua maioria estudantes nacionalistas, que passam a militar clandestinamente nas cidades das potências colonizadoras.
Na altura os dirigentes coloniais fizeram leituras erradas sobre o que se estava a passar. Confundiram nacionalismo, autodeterminação e independência, com comunismo, o que levou às cruzadas do costume e ao abafamento dos direitos humanos, bem como a uma repressão brutal pouco aceitável para um Mundo que se tinha visto livre do totalitarismo nazi e fascista.

Os impérios coloniais governavam dentro de uma bolha. Usavam, exploravam mas não conheciam e não se misturavam os povos sob sua administração. Assim, quando alguma coisa acontecia debaixo do seu nariz, o preconceito e racismo só lhes indicava uma direcção, que era a repressão. Aconteceu em todo o lado e com muitas dezenas de anos de intervalo. O pretenso castigo usado de forma exagerado acaba por ser recebido como justificação para que a violência se instale por todo o lado.

Assim, não era anormal ouvir um soldado chamar filho da puta a um negro e dizer-lhe que era por causa dele que ele para ali tinha ido. Ora o que era mentira, pois os autóctones tinham pegado em armas e revoltando-se contra o poder colonial, que o soldado defendia e representava.
O que quero dizer com isto, é que quem tem o poder dificilmente aprende com isso, se tem os olhos e sentidos abertos, logo os fecha porque a ganância é mais poderosa.
Crescem assim os movimentos iniciados por minorias intelectuais, que são fortemente reprimidas e que dai passam à luta armada.

Os países que foram atingindo a autodeterminação, passaram a servir de abrigo para os activistas, que a partir dai, lançavam ataques aos territórios sobre administração colonial.
Mas a luta dos povos tem avanços e recuos e muitos desses países sofreram golpes de estado, apoiados pelas potências ex-colonizadoras e assim nasce o neocolonialismo. Esses países com atitudes mais ao menos dúbias, acabaram por escorraçar quem o anterior regime apoiou numa inversão valores e politicas, ajudam a formar grupos armados, que passam a ter um papel activo muitas vezes contra os movimentos que tinham reivindicado junto das organizações internacionais o direito à independência da sua terra. É assim o prelúdio das guerras civis, que grassam por todo o continente sem fim à vista, num cortejo de horrores miséria e morte.

Atribui-se hoje como beneficiários dessas hecatombes humanitárias as claques governantais, que em total ausência de escrúpulos rege em proveito próprio o que devia servir para o bem estar do povo. A ambição desmedida, o novo-riquismo, as purgas, infectaram para sempre os dirigentes, que na sua juventude teriam vertido o seu sangue pelo ideal. (a ler "A Geração da Utopia", de Pepetela. para ter uma ideia).
Mas quem são os responsáveis pela continuação da criação de estados falhados, pelo aproveitamento da pilhagem feita à custa de trabalho escravo nas minas de diamantes, ouro, coltan, petróleo etc? Na verdade criticamos os governos africanos, mas não os verdadeiros responsáveis. Quem lhes compra os produtos a preços de miséria e lhes vende armamento para manterem a desestabilização permanente para assim continuarem a retirar dividendos com produtos regados com sangue?

Mediante esse estado de coisas, vai germinando entre saudosistas e preconceituosos, a opinião de que os povos nativos tudo dariam para voltarem para as potências colonizadoras e que se lá continuassem, os países que antes os administravam ou melhor se tem chegado à independência com minorias brancas no poder, então sim, atingiriam o paraíso na terra e que os negros, fornecedores da mão de obra barata, salvo honrosas excepções, estariam hoje todos contentes num regime, que acabaria por ser a separação entre cidade do asfalto e cimento, a da terra batida e a palhota, entre a cidade dos néon e os bairros nativos de duvidosa salubridade, num projecto falhado como se comprovou com a África do Sul e Rodésia. Falhado porque talhado em moldes de separação da comunidade branca e os direitos das outras comunidades, que ainda assim eram divididas por castas e em escalões étnicos.

Numa palavra, sociedade onde um engenheiro negro devia serventia a um servente branco. Uma sociedade onde as crianças brancas eram criadas pelo o carinho dos seus servos negros mas quando cresciam, ficavam tão maus como os pais, rejeitando e não retribuindo o amor que tinha recebido.
Um continente dividido em tempos idos a régua e esquadro pelas potências dominantes, sem qualquer cuidado nem respeito por laços familiares e culturais. Os problemas que persistem nunca serão resolvidos em mais sessenta anos, pois a resolução desses mesmos problemas está sujeito a interesses exteriores de quem não lhes interessa nada que sejam resolvidos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20924: 16 anos a blogar (8): Outro combate (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)