terça-feira, 18 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21265: Manuscrito(s) (Luís Graça) (189): A Alice Carneiro, Rainha do Dia e Por um Dia...


Alice Carneiro, em 2020, em plena pandemia de Covid-19...Faz hoje anos e diz... que mais vale ser a Rainha do Dia, e por um Dia, do que ... Duquesa Toda a Vida. Um"selfie" para a história... Vd. página da Maria Alice Carneiro, no Facebook.


No 75º aniversário da minha Chita / nossa Alicinha

 

D’zoito d’ agosto está no nosso coração,

Nasceu em quarenta e cinco uma Alicinha,

Não foi em berço de ouro de princesinha,

Mas em casa farta… de vinho e de pão.

 

Aventureira, veio cá para o sul,

Sendo ela do Norte, da Casa de Candoz,

E logo se afeiçoou a todos nós,

E ao seu príncipe, que não era de sangue azul.

 

Sua segunda terra fez da Lourinhã,

Adora aqui  receber os filhos e a neta,

Sempre foi uma grande amiga e anfitriã.

 

Mesmo com três quartos de século em cima,

Ainda se acha uma boa atleta,

E está grata… p’lo nosso amor e estima.


Lourinhã, 18 de agosto de 2020

75º aniversário da minha / nossa Alicinha,

Rainha do Dia e por Um Dia

(… que mais vale sê-lo, 

do que… Duquesa toda a vida!)

 

O Príncipe Com Sorte,  Luís Graça


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Aviso ao Povo:

Estes versos (um soneto escrito pelo Príncipe com Sorte) foram feitos a pensar nos convivas de um projetado almoço, plebeu, mais alargado, que poderia juntar, hoje, a família da aniversariante e alguns dos seus amigos, mais à mão, aqui da Lourinhã & arredores, incluindo o aniversariante do dia seguinte Dom Orlando Rolim, alcaide da praça forte da Praia da Areia Branca.

A DGS chumbou o plano de um repasto no restaurante "Atira-te ao Mar", no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, pertença da ilustre "Casa do Cadaval", invocando razões de higiene e segurança e sobretudo limitações da lotação da sala de comes & bebes. A lista de possíeis comensais   era enorme e não havia cadeiras para todos.

Depois, a ementa, à base de produtos "gourmet",  cá da nossa região ( batatada de peixe seco - raia, safio, sapata, cação, tamboril...). também não era do agrado da maioria... Parece que não era comida para gente de sangue azul ou. como diz o fado, não é coisa que vá à mesa de Reis & Rainhas...

Por fim, os filhos e a neta reclamaram. de viva voz, nesse dia, a presença e o usufruto, em exclusividade, da Senhora Sua Mãe e Avó... 

Dito isto, e não tendo, como Deus, o dom da ubiquidade, a Rainha do Dia ( com o consentimento informado do seu Príncipe Com Sorte, que vai atrás do real séquito ) teve que se render aos argumentos da "dentadura do proletariado"... e do "fascismo sanitário".

Fica, pois, por decreto real, adiada a batatada, esperando-se por um melhor dia do calendário, mas autorizando-se desde já, a partir da meia-noite, o início dos festejos natalícias da nossa amada Rainha Alicinha.

75 anos é muita realeza e o povo tira-lhe o barrete mas não a máscara que, essa, já faz parte do busto (, dizem que talvez até morrer...).

Há uns meses atrás ainda havia força para gritar: "Abaixo a Covid"... Agora, por detrás da máscara, espera-se que o povo ainda consiga sussurrar: "Deus Abençõe a Rainha e Lhe Dê Longa Vida Com Saúde... porque a gente quer continuar a beneficiar do seu amor, amizade, afeição e estima."

E até os poetas e os bobos da Corte gritam: "Esperemos ainda cá poder estar todos/as para o Centenário"!... 

a) Assina: P'los presentes e ausentes, e em nome do Príncipe Com Sorte, o poeta e bobo da corte ao serviço.de Sua Majestade a Rainha do Dia e do Por um Dia. 

(Assinatura ilegível)

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21264: Parabéns a você (1850): Coronel Inf Ref António Melo Carvalho, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465 (Guiné, 1969/70) e Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira


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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21261: Parabéns a você (1849): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21263: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (14): No "Chez Alice", as ostras da Lagoa de Óbidos




Lourinhã > Julho e Agosto de 2020 > "Chez Alice" e Restaurante "Atira-te ao Mar" > Ostras ao natural... (São da Lagoa de Óbidos).


Fotos (e legenda): © Alice Carneiro  (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Depois destes meses todos (e já lá vão quase seis!)  de pandemia de COVID-19,  com as todas as medidas que nos impuseram "por mor da saúde pública" (confinamento, distanciamento social, máscara, higienização das mãos e das superfícies, etc.), e  agora em pleno agosto (o nosso outrora "querido mês de agosto"...), estamos todos a recordar coisas antigas e aprender coisas novas: por exemplo, fazer "férias cá dentro",  matar saudades dos entes queridos e dos amigos,  redescobrir os nossos sabores, as nossas comidinhas).

Os nossos vagomestres da Tabanca Grande não têm dado notícias. Mas, nós, por cá, na Tabanca da Lourinhã, continuamos a deixar algumas iguarias, junto ao tronco do nosso  poilão,   porque é preciso alimentar os nossos bons irãs...que nos protegem (a saúde mental). 

Como os nossos leitores já sabem, aqui  não comemos tudo o que cozinhamos, ou melhor, o que a "Chef" cozinha no "Chez Alice"... ou que partilhamos com outros amigos, como os "Duques do Cadaval", do Restaurante "Atira-te ao Mar", no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, e outros que nos visitam como o Zé Teixeira e família, do Padrão da Légua. Matosinhos,. e que passam também a ser membros de pleno direito desta tabanca moura.

Por acaso, o petisco  de hoje não dá partilhar. Esta semana são (ou foram) ostras. Ora  as ostras nunca sobram, ficam só as cascas (, que, trituradas, sõa boas para dar às galinhas, mas a gente não criação, cá na Tabanca ). Também não sabemos se os irãs gostam de ostras. Admitindo que não, mais sobram para nós.

O único "senão" da ostra é que dá trabalho a abrir.  É preciso um abre-ostras e o ato tem a sua arte & ciência.  O "Duque do Cadaval" é o mais perito de todos... A abrir (e  a comer) ostras, não há pai para ele... Depois é só só limãozinho (e gelo, para quem gosta de as comer mais fresquinhas)...

 
Em louvor das ostras da Lagoa de Óbidos

por Luís Graça


Não, não há ostras, na festa da Atalaia, Lourinhã.
Não sei porquê,  se é um festival de marisco... 
Os portugueses não gostam de ostras,
também não sei porquê.
Mas também não importa,
este ano não haverá festa da Atalaia, Lourinhã,
nem a do Seixal, Miragaia, Marteleira ou Ribamar.
Calaram-se os santos e as santas padroeiras.
Diz o povo etem razão:
"Quando Deus não quer, mudos estão os santos".

Mas, felizmente, há ostras.
Foi preciso o confinamento
para eu voltar a comer ostras.
Há muito tempo que as não comia,
e que saudades,  deus meu!

Os franceses, ou melhor, os parisienses, 

adoravam as nossas ostras.
E acompanhavam-nas com champanhe... 
E as melhores do mundo
eram les portugaises, diziam.

Crassostrea Angulata, dizem os biólogos marinhos.

Os refugiados europeus
que encontraram um Portugal um porto de abrigo
no meio da barbárie que foi a II Guerra Mundial,
adoravam a nossa ostra
e a nossa lagosta
e a nossa amêijoa,
the  small Portuguse female clams
with garlic and coriander,

vulgo amêijoa à Bulhão Pato. 

Até que veio a industrialização, 

a siderurgia nacional, 
as químicas do Barreiro, 
a ponte,
as lisnaves, 
os superpetroleiros,

e as tintas dos barcos,
o capitalismo sem rei nem roque,
e mataram o Tejo e o Sado
e as ostras do estuário do Tejo e do Sado...

Estupidamente,
como todas as mortes ecológicas por ação humana.

Só agora, lentamente,
estamos a recuperar a ostreicultura nacional, 
no Tejo, no Sado,
na ria de Aveiro,
na lagoa de Óbidos,
na ria Formosa, no rio Mira,
e por aí fora...
Temos condições excecionais
para esta fileira da atividade económica
ligada aos recursos marinhos.
Uma mina de ouro, dizem-nos.

Confesso:
aprendi a comer ostras em Bissau,
à beira do Geba,
no intervalo da guerra...
Ao natural, as ostras,
apenas com lima e piripiri.
Passei por Tavira
mas não me lembro das ostras que lá comi.
Se é que havia ostras, no último trimestre de 68,
na ria Formosa que servia de campo de tiro.
E, se as comi, eram amargas.
 
Se calhar, a maior parte de nós,
dos ex-combatentes,
aprendeu a comer ostras em Bissau...
Calhaus de ostras!...
Conglomerados!...
Com molho de lima e piripiri...
Passava-se um tarde
a matar a fome e a sede, 
à volta de uma travessa de ostras,
longe do Vietname,
que começava logo ali a partir de Nhacra.
A 20 pesos a travessa.
Não havia exercício mais anti-stressante
do que esse, de abrir e comer ostras,
nas esplanadas de Bissau,
à beira rio, com o cheiro a tarrafe,
e saudades do Tejo ou do Douro,
cada um tinha o seu rio de estimação.

Não, não  havia depuradoras,
mas nunca apanhei nenhuma diarreia.
Talvez por sorte.
Em Bambadinca, no rio Geba Estreito,
não havia ostras,
mas havia belíssimos lagostins
a 50 pesos, na tasca do Zé Maria Turra.
Entre duas saídas para o mato,
no intervalo da guerra.
Outro dos nossos exercícios anti-stressantes.

Hoje nem pensar comê-las, às ostras,
na Guiné-Bissau...
Já não há ostras em Bissau...
Há uma imensa cloaca a poluir a ria, o canal.
Talvez em Quinhamel, dizem-me...
E quando lá voltei, em 2008,
nem sequer o caldo de ostras provei,
com pena minha...
O famoso pitche-patche de ostras
da nossa querida Guiné-Bissau.

Depois do 25 de abril,
gostava de ir a Vigo,
comer ostras das rias Baixas.
Nunca fui a Vigo, antes do 25 de Abril.
Muito menos antes da tropa.
Seria logo considerado refratário.
Não tinha sequer passaporte,
Nem mo dariam,
Era um luxo só para alguns privilegiados.

Temos excelentes vinhos brancos,
a começar pelo Verde e os Espumantes,
para acompanhar as ostras ao natural...
São um manjar do pecado...
(Por que é que todas as coisas boas da vida
são pecado, meu deus ?)
Um sabor intenso, a maresia,
a sol, a sal, a azul,
como diria o meu poeta O'Neil
que tinha costela céltica...
Os portugueses são mais fálicos,
gostam mais de percebes...

O'Neil devia gostar de ostras,
que são femininas e delicadas como as amêijoas.

Temos uma gastronomia riquíssima
ligada aos frutos do mar,
de Norte a Sul do país...
Oxalá saibamos defender,
preservar e valorizar,
cada vez mais  este manjar dos deuses,
que são os crustáceos, os bivalves,
o peixe, as algas,
e todas as coisas boas que o mar nos dá...
O polvo, a navalheira,
a sapateira, a sardinha,
a cavala, a sarda, a raia,
outrora comida dos pobres da minha terra.
Mais as lapas e os ouriços e os burriés.

No céu não há disto,
os deuses e os heróis têm que vir cá baixo
comer estes petiscos...
Partindo do princípio
que têm baixo ventre 
e os mesmos baixos apetites dos humanos.

A sobrepesca, a apanha de alhas,
a pesca de arrasto, a poluição urbana e industrial,
as alterações climáticas,  o tráfego marítimo, 
a caça submarina, 
os adubos  e os pesticidas da agricultura intensiva
e muitos outros horrores
deram cabo de muita coisa boa,
ligada aos nossos sabores ancestrais
de quando éramos simples recoletores,
mariscadores, pescadores artesanais
e caçadores oportunísticos.
Ainda não éramos  os temíveis predadores de hoje.

Felizmente que há coisas 
que estão a recuperar, 
por exemplo, as ostras.
Há  ostras aqui ao lado,
da nossa bela lagoa de Óbidos,´
a maior de Portugal,
e que dá de comer
a mais de duas centenas de mariscadores.
Só é pena que a lagoa não vá banhar
as muralhas da bela vila das rainhas,
como no passado.
 
O sucesso da ostra nas nossas rias e lagoas
é um bom sinal:
são amigas do ambiente
e são capazes de filtrar 200 litros de água por dia...

Lourinhã, 15 de agosto 2020.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21262: Notas de leitura (1298): A política económica e social na Guiné-Bissau, por Carlos Sangreman, Doutor em Estudos Africanos (1974-2016) (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
O investigador Carlos Sangreman lança questões fulcrais no seu documento de trabalho onde esquematiza em escassas dezenas de páginas o que eram as políticas coloniais até 1974, como decorreram os planos de desenvolvimento até 1986, como se entrou na liberalização, os altos e baixos das diferentes governações e o que esteve em causa em três momentos nas políticas de recuperação. Há dados estruturantes que, segundo o autor, terão de ser sempre equacionados quando houver condições para uma política de arranque ao desenvolvimento que deu aos guineenses a confiança de que há um Estado a dialogar com uma nação: ultrapassar um fraco nível de instrução e qualificação da população; desarmar as demagogias étnicas, um dos maiores obstáculos à construção do país; programar e acompanhar a par e passo a execução de tais medidas, detetando oportunamente os estrangulamentos e as incompetências; encontrar uma fórmula de conciliação e concórdia entre as mais destacadas forças partidárias que se complementam a pôr termo à instabilidade, e deste modo assegurar o comportamento constitucional das forças armadas, deixando-as subordinadas ao poder político.

Um abraço do
Mário


A política económica e social na Guiné-Bissau (1974-2016) (2)

Beja Santos

O autor deste documento é Carlos Sangreman, doutor em Estudos Africanos, consultor internacional com missões em todos os PALOP. Logo no resumo, dá-nos conta do propósito essencial: “Que políticas económicas e sociais a Guiné-Bissau concebeu e executou ao longo de 42 anos? Que base colonial existia em 1974 que tenha sido um ponto de partida para a governação do PAIGC? Com governos e presidentes fortes e fracos, com uma imagem de instabilidade permanente, acusados de favorecer o tráfico de drogas para a Europa, mas com uma paz social relevante para uma região assolada por guerras civis, como se expressou a governação na escola de modelos económicos e sociais a partir de um ideário construído por Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Pedro Pires, Nino Vieira e outros?”.

No texto anterior fez-se referência ao período das políticas coloniais, até 1974 e apresentou-se um elenco de observações sobre os planos de desenvolvimento entre 1974 até 1986. Todos os anseios expressos nesta documentação culminam em fracassos, os défices acumulam-se, cada um dos ministérios faz gestão da sua área de competência desajustada às prioridades e às verbas disponíveis; o setor empresarial de Estado afunda-se, a dívida externa mais que duplica entre 1981 e 1985. Com resultados tão desastrosos, o governo decide-se substituir os planos a médio prazo por planos anuais, delega-se no PAIGC a sua aprovação. Entra-se numa fase de liberalização, é assim aprovado um programa de estabilização e ajustamento estrutural de 1987 a 1989, depois prolongado até 1993, com três componentes essenciais: alteração do papel de Estado, aumentando-se a iniciativa privada; fornecimento de infraestruturas básicas de apoio à produção e às exportações; definição de uma estratégia financeira para mobilizar os recursos externos necessários à estabilização e ao crescimento. No IV Congresso do PAIGC, realizado em Novembro de 1986, assume-se que o poder nacional deixara de ter capacidade para definir a política económica e social do desenvolvimento, passavam a ser os financiadores externos.

O autor detalha as tendências caóticas na governação em três períodos 1998-2003, 2005-2007 e 2012-2014. A primeira consideração vai para o conflito militar de 1998-1999 tudo agravou com a destruição de infraestruturas, baixa produção e a gravíssima queda da exportação. Só com o governo de Carlos Gomes Júnior em 2004-2005 se pode considerar haver uma primeira recuperação pós-conflito. A segunda consideração é que com a perda de influência do PAIGC a governação passou a depender do que o presidente quisesse. O período correspondente à presidência de Kumba Ialá foi um verdadeiro desastre, a confiança dos doadores internacionais e dos investidores estrangeiros com que se evaporou.

O que o Estado deixara de assegurar passou, ainda que tenuemente, a ser ocupado pela sociedade, cresceram as redes de solidariedade familiar, foi significativa a ação de muitas ONG na reconstrução de casas depois da guerra civil. Se é facto que a sociedade civil viera a conhecer expansão com a consagração do multipartidarismo, no dobrar do século a sociedade civil tinha um papel visível no combate à pobreza, no ensino, na saúde, no saneamento básico, na cultura.

Em Abril de 2012, quando os militares demitiram o governo, estavam-se a sentir os primeiros bons resultados depois de 1998, 1999, com o golpe militara acentuaram-se os problemas com o tráfico de drogas e com contratos, com privados nacionais e internacionais ou com países como a China, depredadores dos recursos naturais (sobretudo madeira e areias).

O autor também faz a leitura das políticas de recuperação, atende a três períodos: 2004-2005, 2008-2011 e 2014-2015. Assinale-se que no período de 2008-2011 se deu um crescimento do PIB acima dos 5% devido às exportações e à boa gestão das finanças públicas, avançaram as reformas estruturais, procedeu-se ao recenseamento biométrico dos funcionários públicos onde se identificaram 4 mil fantasmas, entre outros resultados positivos. A situação das condições de vida e de funções das forças armadas no ativo e reformadas mantinha-se deprimente: um reformado com o posto de capitão recebia 12 vezes menos que o posto seguinte e cerca de 97% dos ativos recebiam menos de 25 euros por mês.

Como observa o autor, na prática, com o golpe de Estado de Abril de 2012 só houve condições políticas para continuar o rumo prosseguido pela governação de Carlos Gomes Júnior depois as eleições de 2014. Tudo parecia encaminhar-se para uma normalização e um estuda de concórdia nacional. Mas em 2015 o presidente da República entrou em confronto com Domingos Simões Pereira, primeiro-ministro, eram diferentes conceções do exercício do poder, estava em causa a apropriação de recursos externos prometidos em Bruxelas pelos financiadores. Deste confronto houve a nomeação de quatro governos, mantinham-se de pé dois projetos, reconhecidos como credíveis pelos financiadores: Terra Ranka (o país arranca) e Sol na Iardi (o sol brilha). O presidente João Mário Ramos apresentou por iniciativa própria um outro documento em alternativa, elegendo a produção agrícola para a segurança alimentar como objetivo central, retomando uma lógica básica de política económica que se justifica pelo país não dispor de recursos de produção de bens alimentares. Mas não se avançou em direção nenhuma, a instabilidade política não deixou fazer mais.

Nas conclusões, o autor retoma a permanente falha no cumprimento nos programas pós-independência até 1998, realça as consequências da guerra civil, recorda a persistências dos problemas de governação em que os graus de liberdade de execução das políticas nacionais continuam na dependência do exterior, a todos os níveis; alega igualmente que todos estes programas e projetos de desenvolvimento esbarram com as dificuldades de execução. E procura diagnosticar tal incapacidade: “Apesar do número de técnicos ser hoje muito superior a 1974, de os jovens terem acesso a um volume de informação incomparavelmente maior via net, telemóveis e via televisão, não parece haver na sociedade política pública e gestionária privada guineense a residir no país quadros em número mínimo para assegurar o funcionamento das instituições que tem de aplicar as políticas definidas desde os ministérios ao simples posto de saúde. O que não é surpreendente dado o fraquíssimo nível de ensino desde o ensino básico ao superior e as taxas de abandono e de frequência em todos os níveis. E se nos anos iniciais da planificação entre 1974 e 1986 ainda havia expatriados em todos os ministérios, a partir das políticas de ajustamento de iniciativa do FMI e BM, a ideia que devem ser os nacionais a assumir esses postos deve ter levado à diminuição das verbas para ter esses profissionais, sem atender a que o sistema de ensino nacional não produzia nem produz quadros superiores e médios suficientes com qualidade quatro dezenas de anos depois da independência e que aqueles que estudam no exterior têm uma baixa motivação para voltar, concluída a sua formação".


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Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21245: Notas de leitura (1297): A política económica e social na Guiné-Bissau, por Carlos Sangreman, Doutor em Estudos Africanos (1974-2016) (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21261: Parabéns a você (1849): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de Agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21257: Parabéns a você (1848): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

domingo, 16 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21260: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (19): O Sousa da Ponte… de Pedra



1. Em mensagem do dia 4 de Agostoo de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, intitulada "O Sousa da Ponte... de Pedra.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 17

O SOUSA DA PONTE... DE PEDRA

Quem não se lembra da história do “Sousa da Ponte”? Sim, o Sousa tripeiro que, “numa proba de nataçon, nos primeiros 50 metros já lebaba 100 d’abanço”? Esse mesmo, o que ficou para trás “debido ao inchaço da “âncora” que tocaba no fundo do rio Daouro”?
(https://www.youtube.com/watch?v=AC3EyhWpTTI)

Pois eu encontrei o Sousa da Ponte, mas da Ponte de Pedra, aquela d’ao pé da Ponte Duarte Pacheco, sobre o Rio Tâmega, perto da Barragem do Torrão.

Após almoço frugal (mas recomendável), precisamente junto a essa ponte mandada construir por um grande Ministro de Obras Públicas do antigo regime, fomos, eu e o meu amigo e vizinho Zé Pedrosa, à Barragem do Torrão tentar quebrar o enguiço desse mau dia de pesca.
O dia estava muito quente, a hora não era a melhor e resolvemos ir até Bitetos, ali perto de Alpendorada e muito próximo da Ilha dos Amores (fomos nós, os canoístas de Crestuma, que lhe demos esse nome), outrora chamada Ilha do Pecado.


Pois por mais modernices aplicadas nestes quarenta anos, onde se destaca o cais para os grandes e pequenos barcos de turismo, a implantação da praia fluvial, com parque de estacionamento à sombra das árvores e o grande bar de apoio, eu sempre “poisei” no tasco da curva, hoje um bar moderno com ar condicionado, luzes especiais e uma chuva miudinha interior, artificial, para refrescar. Para nós continua a ser um ponto de encontro, desde os tempos em que o “soalho” era de… terra batida.
Conhecemos bem aquela zona, dos encontros e provas da canoagem, das aventuras na praia,das investidas à ilha e das subidas do Rio Paiva.

A “etnia” do Náutico de Crestuma vem ocupando parcialmente a Ilha dos Amores ao longo de quarenta anos.

- Boa tarde – dissemos para a mesa onde estavam três reformados. (Via-se bem que eram).
- Boa tarde – responderam os três ao mesmo tempo, ao mesmo tempo que nos miravam com olhos de RX.

Pensando que eles gostariam de saber mais qualquer coisa sobre os estranhos forasteiros (nós), enfrentei-os provocadoramente:
- Então, como é isso, ninguém de máscara? Não me digam que estão vacinados pela injecção de cavalo que lhes deram antes de irem para a guerra?
- Claro, respondeu o careca de bigode à Lech Walesa. Andei lá no duro, no norte de Moçambique. Era guarda-costas dos Comandantes da CCS nº. XX.
- Guarda-costas numa CCS? - observei.
- Sim, Companhia de Comando… e Serviços!

Viu-me admirado e continuou:
- Como era cabo, tinha a responsabilidade de ir buscar os géneros para a Companhia. Eu é que mandava na coluna.
- Não me diga que também se “orientou” e gamou umas coroas?
- Eu não, mas os soldados que iam comigo abusavam. Traziam coisas e vendiam-nas. Mas isso era lá com eles. Eu… nem pensar!
- E andou mesmo aos tiros?
- Estávamos lá no norte, perto da fronteira. Quando vinha o avião que trazia o correio, punha-se às voltas, para irmos para a pista e às vezes demorávamos e os turras iam lá assaltar o avião. Tínhamos que disparar para eles fugirem.

E continuou:
- Mas quem deu muitos tiros, foi aqui o Afonso, que já fez oitenta anos e foi dos primeiros a ir para Angola. Não foi pá?
- Hã? Sim, sim. Mais um de maduro branco. - respondeu o Afonso dobrado sobre a mesa, enquanto levantava ligeiramente o copo vazio, com a mão direita.
O Afonso ouvia muito mal…

E voltou o Sousa (o tal de bigode à Walesa):
- Houve lá um combate em que só sobraram seis de uma Companhia! Foi por riba das Pedras Pretas, lá prós lados do “Nabugandongo”! Não foi, ó Afonso?
- Sim, já sabes. Branco fresco. Maduro.

As aventuras multiplicam-se nas proximidades da Ilha dos Amores

- É só “filmes”. – disse o Arlindo – Eu também estive lá fora, andei lá longe na de zona de Tomar. Ás vezes atacávamos no Castelo de Almourol. Mas que ricas tardes, que por lá passei!
- Então teve sorte?
- Não, eu acho que tive azar. Já não fui preciso. Mas gostava de ter ido defender a nossa Pátria. Aqueles cobardes fizeram a revolução do 25 de Abril para eles e só nos tem prejudicado.
- Olhe que não, olhe que não…
- Entregaram tudo aos movimentos comunistas, sem saberem o que lá se passava. Nem respeitaram a nossa História de 500 anos! Olhe que ainda hoje, a maioria daquela gente gostava de estar ligada com Portugal. E vivem pior.
- Não diga isso. Cada povo merece a sua independência. Veja que nunca mais houve guerra e vivemos todos em paz.
- Nós vivemos em paz, mas eles não. Foram abandonados e entregues a outros interesses, nada patrióticos. Fomos cobardes. Temos tido muito azar. Aqui também passámos mal. É só ladrões. Precisávamos de outro Salazar. Grande Homem aquele! O mal foi juntarem tanto ouro, com tanto sacrifício, para estes gajos o foderem todo.

Aí diz o Sousa:
- Sou todo vermelho por dentro; na política e no futebol. Mas o político português que eu mais admiro é o Salazar. E o outro Marcelo também não era mau. Assim como o Porto e o Pinto da Costa, também gosto muito. Grande clube e grande Homem do norte! É um bocado benenoso, mas tem toda a razão. Até parece mentira, mas é verdade: sou benfiquista porque dizem que um homem até pode mudar de mulher, mas de clube não. E como sou muito Homem, não vou virar a casaca.

E continuou:
- Tínhamos tanto ouro e tanto dinheiro mas o Passos Coelho fodeu tudo. Olhem que foi ele que deu as reformas de duzentos e tal €uros.
- Pois, e esses se calhar não deviam receber nada, porque não descontaram. Estão a tirá-lo a quem sempre trabalhou e sempre descontou.
- Ai foda-se! Eu trabalhei sempre legal e dei trabalho a dois filhos e os ciganos que não trabalham recebem mais que eu! A culpa é desse Coelho que deu tudo aos ricos e nos deixou sem ouro e sem dinheiro.

Interrompeu o Arlindo:
- Ó morcão, és tão amigo do Costa e ele não resolve nada?
- Q’ssafoda, pedi um exame médico lá em Valadares, para um apoio extra de cento e tal €uros e não mos deram. Se o Costa fosse esperto já tinha mandado fabricar mais dinheiro. Não se admite que neste governo tão grande não haja gente capaz de resolver isto. Tomo 22 comprimidos por dia, já minguei quinze centímetros e estou a ver que vou morrer à sede. Se não fosse a minha filha, estava refodido.
- Cuidado camarada, não vamos desanimar. Um militar não se deixa ir abaixo.
- Eu? Nem pensar! Fui sempre uma máquina! Casei com 19 anos e quando fui para a guerra já tinha 3 filhos. A mulher engravidou aos 15. O meu sogro queria me matar, mas, se me matasse, ia ser pior para a filha. Ou não era?
- Ah leão! Que perigo!
- Em Moçambique, dei muita foda. Com um cigarrito, já comia uma mulher. Um maço dava para vinte fodas. Até tenho saudades daquele tempo. Dava-me tão bem com o Alijó! Andávamos sempre juntos, até diziam que parecíamos um casal. Um dia, queríamos foder e fomos para o caminho onde as pessoas passavam e combinámos que eu ia com a primeira e ele com a segunda que aparecesse, fosse quem fosse. Calhou-me uma velhota com as mamas sequinhas, penduradas até aqui… abaixo da cintura. A ele calhou um gajo e a coisa não correu lá muito bem. Mas parece que se pegaram. Quando entrámos no quartel, o capitão olhou p’ra ele e disse: - Ó Alijó, que é que te aconteceu para andares assim com as pernas abertas? E eu respondi-lhe que ele se tinha pegado à porrada com um gajo.

A afluência à Praia de Bitetos, verificada na Quinta-feira, dia 06.Ago.2020, em plena crise COVID.

Uns dias depois, voltei lá a procurar o Sousa. Eu queria saber mais alguns pormenores da sua história. Em termos de provocação disse-lhe:
- Falei para Alijó e o seu amigo deu a entender que foi a ele que calhou a velhota, porque ele é que era o primeiro.
- O caralho é que foi! Ele não pode dizer isso porque sabe bem o que se passou e o que ficou combinado!

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21241: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (18): Laurindo Arriaga, o retornado (Parte II)

Guiné 61/74 - P21259: Blogpoesia (691): "Subitamente", "Nada vai com ameaças..." e "Como um rio corre meu pensamento", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


Subitamente

Já estava exangue a esperança.
A calamidade avançou por todo o mundo, furibunda, com vontade de matar.
Tombaram milhões inesperadamente. Alguns na tenra idade.
Tantos idosos que ainda tinham esperança para mais uns anitos.
Inclemente, avassalou a terra inteira. Sem olhar a quem. Rico ou pobre. Forte ou fraco.
Foi uma lição para a humanidade transviada.
Os joelhos de muita gente se dobraram, humildes e arrependidos.
Subiram aos céus preces, no segredo de cada leito.
Se encheriam os Santuários, se não fosse o confinamento,
Implorando por um milagre.
E, o facto é que parece estar a retirar-se este mar de aflição.
Cada vez morre menos em cada dia.
Diminuem os acamados.
Oxalá seja verdade e, nunca mais mereçamos outra pior…

Berlim, 12 de Agosto de 2020
8h52m
Jlmg

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Nada vai com ameaças…

Quem ameaça não está seguro.
Pode ser um aviso apenas.
Para tentar conseguir o que se quer.
Umas vezes, funciona outras, não.
A intimidação é um método que usa a imposição.
Afasta, em vez de aproximar.
Ninguém gosta de ser intimidado.
Por isso, sua eficácia está comprometida, desde logo.

Melhor método será a persuasão.
A plataforma que põe as partes no mesmo plano.
Feita com o equilíbrio entre as exigências e as concessões.
Transparência. Verdade e rectidão são as peças chave do sucesso em todos os negócios…

Berlim, 14 de Agosto de 2020
9h17m
Jlmg

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Como um rio corre meu pensamento

Como um rio corre meu pensamento.
Sigo nele mergulhado de corpo inteiro.
Nele lavo minhas mágoas e decepções.
Venho à tona respirar o ar da consolação.
Inalar o odor da esperança.
Respirar a brisa fresca da vida em paz.
Meus passos são passadas rumo ao mundo do sonho e da abundância.
Meu alimento vem na chuva da fraternidade.
Anelo um dia chegar ao mar em segurança.

Berlim, 15 de Agosto de 2020
7h47m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21240: Blogpoesia (690): "Sinceridade", "Espaços vazios" e "A mãe consciência", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21258: A galeria dos meus heróis (35): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte II (Luís Graça)


Capa do livro de Jules Roy, "La bataille de Dien Bien Phu", 
Paris, Le Livre de Poche, 1972, 538 pp. ( a 1ª edição é de 1963;
 um dos livros  que o Antoine Ben Oliel nunca leu 
mas por onde perpassa a sua sombra. Um dos maiores 
desastres militares da França colonial e dos seus bravos soldados 
da Legião Estrangeira. Juley Roy é um "pied-noir", 
nascido na Argélia em 1907. Morreu em 2000. Foi militar e resistente
na II Guerra Mundial. Deixou o exérito, em 1953,  em protesto 
contra a guerra da Indochina.

 
A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 

Parte II 

(Luís Graça) *

(Continuação)

Num outro dia, num dos nossos verões passados, apanhei a Rosemarie particularmente bem disposta, a cantarolar um dos fados da Amália, a sua musa inspiradora. Não reconheci de imediato nem a letra nem a música. 

C'est le fado de Paris.  − respondeu-me ela.

(...) O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até o Sena se queixa de pena
Que o Tejo não quis sair de Portugal.

O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até Saint-Germain-des-Prés
Já canta o fado em francês! (…)


Foi uma deixa para falarmos do bistrot do Antoine, que tinha nome português, “O Cantinho da Saudade”… lá na petite ville, a sudeste  de Paris, onde ambos viveram… Foi o seu primeiro trabalho, quando chegou a França em 1967: foi empregada de mesa e de balcão no bistrot que se tornou um local de encontro dos imigrantes portugueses da região, mas também de magrebinos, em especial de antigos combatentes da guerra de Argélia, os harkis… E a partir do momento em que começou a haver “fado ao vivo”, passou a ser também frequentado por alguns franceses, como os nossos anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos, que já eram conhecidos do Antoine, do tempo da Argélia.

Enquanto tomávamos café numa esplanada junto à praia, eu puxei a conversa para o Antoine… Queria saber como a Rosemarie conhecera o homem que a levou para França, “a salto”, em 1967,  e que iria mais tarde lançá-la na “vida artística”, como cantora de fado, e depois a dormir com ela… na cama.

É uma outra história, longa e algo rocambolesca, com muitos "claros e escuros", e alguns silêncios que eu tive de respeitar.

A Rosemarie já o conhecia de Chaves. “Vagamente”, garantiu-me ela. “Ainda antes de casar”…Já não podia precisar o ano, nem as circunstâncias, de resto “não era muito boa em datas”. Talvez nalgum baile ou nas festas da cidade. Alguém o terá apresentado à Rosemarie, na altura criada de servir, na cidade:

− Eu dava nas vistas… E ele tirou-me logo a 'fotografia'… Disse-mo dez anos mais tarde, quando me levou para França… Tinha vindo da tropa, usava o cabelo à escovinha, ainda falava um português avec accent… Não lhe achei muita piada, para mais numa terra de magalas que passavam a vida a mandar piropos parvos às raparigas, quando vinham à cidade…

A Rosemarie reparou, isso sim, na extensa cicatriz, com quatro ou cinco centímetros, que o Antoine ostentava no rosto, no maxilar direito, no enfiamento da orelha. Parecia exibi-la com orgulho, apesar do disfarce das patilhas. Vim a saber mais tarde que era a sua “medalha de guerra”, ganha com sangue na Indochina, em  março de 1954, logo no início da batalha de Dien Bien Phu.

O Antoine era de nacionalidade francesa, mas de origem portuguesa, por parte do pai. Este era flaviense e tinha integrado o corpo expedicionário português, o CEP, na I Grande Guerra, como 1º cabo ou sargento, a Rosemarie não sabia precisar o posto.

E por lá ficou, em França, o pai do Antoine, tendo-se tornado francês por casamento. Vivia na região da Île de France. Segundo percebi, foi um dos prisioneiros portugueses da batalha de La Lyz, em abril de 1918. No cativeiro contraiu a tuberculose e escapou, com sorte,  à pneumónica de 1918/19. 

Nunca mais regressou à Pátria, e fez um primeiro casamento, logo que foi libertado. Ficou com uma pequena pensão de guerra, mas cedo enviuvou, não tendo filhos. Até ao final dos anos 20 só se sabe que trabalhou como capataz ou encarregado numa grande quinta que fornecia produtos agrícolas e animais para os mercados abastecedores de Paris.

Foi lá que conheceu a segunda mulher, também francesa, mas de origem judia sefardita, com antepassados em Marrocos. Terão sido, muito provavelmente a avaliar pelo apelido, Ben Oliel, judeus expulsos de Portugal no tempo de Dom Manuel I.

A Rosemarie não sabia grandes pormenores sobre a “árvore genealógica” do Antoine, do lado da mãe, embora usasse o seu nom, o apelido de família. O seu companheiro era uma pessoa muito reservada, muito raramente falando do seu passado, e em especial do tempo da tropa e da guerra.

A Rosemarie não chegou a conhecer a família do Antoine, nem sequer a sua segunda mulher, que morrera onze antes de ela chegar a França. O pai morrera ainda mais cedo, em 1939, na véspera da II Guerra Mundial, não tendo por isso sofrido a vergonha, la honte, da derrota militar da França, cujo território ele estava convencido que era “intransponível” devido à mítica “linha Maginot”… Nem conheceu, felizmente para ele, a amargura da ocupação da sua querida França pelo exército nazi. Tinha quarenta e poucos anos, e deixou 4 filhos órfãos, dos quais três rapazes e uma rapariga.

Em junho de 1940, a família, em pânico, como milhões de outros franceses, fugiu para o sul, refugiando-se em Bordéus, onde sobreviveu, algumas semanas, com as suas escassas economias e parcos haveres.

Com a ajuda do cônsul português de Bordéus (de que a Rosemarie, imperdoavelmente, não sabia o nome, Aristides Sousa Mendes, acrescentei-lhe eu), a família Ben Oliel conseguiu obter um visto que lhe permitiu chegar a Vilar Formoso, sã e salva. O Antoine não tinha ainda 10 anos nessa época mas, ao que parece, terá ficado com recordações bem vivas dessa dramática viagem de comboio, de noite, e do alívio da chegada a Portugal, país de que ele irá gostar muito, até ao fim da vida.

Il aimait trop le Portugal! − jurava a Rosemarie.

A família é, entretanto, separada, a mãe fica com os filhos mais novos. O Antoine e outro irmão mais velho vão para um seminário ou orfanato.

−Tempos difíceis! – comentei eu. 

−Viveram da caridade. Tanto quanto sei, e pelo que o Antoine me contava, e que era muito pouco, a mãe, viúva, sem qualquer contacto com a família do marido, que era de Chaves, estava num lar de freiras, no Porto ou arredores, com o apoio discreto de uma organização judaica.

Com 15 anos, o Antoine, já rapagão, voltou a França, depois da Líberation, para ver em que pé estava o assunto da casa da família… A quinta ( e a casa onde viviam, com mais trabalhadores, franceses e estrangeiros) fora requisitada pelas autoridades militares alemãs, e havia notícias de que tinha sido  alvo de ações de sabotagem por parte da Resistência francesa ou bombardeada pelos Aliados.

Entretanto, o Antoine encantara-se por Chaves onde descobriu, com a ajuda dos padres, alguns parentes da família do pai, incluindo um tio, que era guarda fiscal, e alguns primos, que o ajudaram a ele bem como à mãe e aos irmãos. Ia lá passar férias enquanto esteve no seminário. 

Mas em 1944 terá sido expulso pelos padres por razões que a Rosemarie nunca soube. Desconfiava, isso sim,  que terida sido pelo seu comportamento truculento e até violento, enfim, pela sua maneira de ser e de falar, que “não ficava bem num futuro representante de Deus na terra”.

Fixou-se em Chaves, "deu em malandro" (sic). Já perto do final da guerra, meteu-se numa "troupe" que fazia contrabando fronteiriço, com um dos primos, filho do tio da Guarda Fiscal. Pequeno contrabando, como café e cigarros...

Mas,  logo em finais de 1946, o Antoine  voltou a Chaves e às atividades lucrativas do contrabando. Aprendeu a conhecer aquelas serras e o caminhos dos contrabandistas. Passados uns meses, teve que fugir para França quando um dos elementos do bando foi atingido, na Galiza, pela Guardia Civil. O tio aconselhou-o a ficar por lá uns tempos.

A família Ben Oliel conseguiu reaver a casa que tinha, a sudeste de Paris. Os miúdos voltaram. E por lá cresceram e casaram. A Rosamarie só conhecia os mais novos. O mais velho já tinha, entretanto, emigrado para Buenos Aires e por lá ficou, sem nunca ter regressado a França ou a Portugal. Nem sequer ter dado notícias.

Em França, a vida da família melhorou um pouco com o apoio da Sécurité Sociale, enquanto o país ia recuperando do pesadelo da guerra, da ocupação e da resistência.

Os “30 gloriosos”, o “milagre económico francês”, fizeram também esquecer os conflitos militares nos territoires d’ outre-mer em que a IV República estave mergulhada, a começar pela sangrenta guerra da Indochina e depois a da Argélia.

Sem paradeiro certo, vivendo de biscatagem, o Antoine não resistiu a uma campanha de recrutamento da Legião Estrangeira, fazendo por volta de 1950 um contrato de seis anos. Era menos uma boca a alimentar lá em casa. Por outro lado, tinha frequentes conflitos com a mãe e os irmãos mais novos.

A Rosemarie sabia pouco deste período obscuro da vida do Antoine e não conseguia sequer localizar no mapa a Indochine … e muito menos pronunciar Dien Bien Phu. Desculpava-se que a geografia também não era o seu forte. E quando chegou a França em 1967, no tempo do De Gaulle, já não se falava dessas guerras,

Por outro lado, dizia-me que ele tinha sido paraquedista, o que não correspondia à verdade. Os nossos anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos é que me deram informação adicional, mais detalhada e precisa, sobre o passado militar do nosso homem.

Nesse aspeto eles conheciam o Antoine, légionnaire, muito melhor do que a Rosemarie. E confirmaram-me que o Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia não aos paraquedistas mas a um regimento de infantaria, um dos que foram para  Dien Bien Phu e lá seriam massacrados. De resto, o Antoine não gostava de voar, tinham vertigens, pelo que nunca teria passado sequer nos testes para paraquedista.

Em finais de 1953 estava na Indochina,  para logo, passados três meses,  em 13 ou 14 de março de 1954  ser ferido gravemente por um estilhaço de obus que lhe desfigurou o rosto.  Teve ainda a sorte de poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses, em 7 de maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressariam do doloroso cativeiro.

−Escapou da morte quase certa, em Dien Bien Phu ou no cativeiro – comentaram os nossos anfitriões, em tom lacónico.

Um ano e tal  depois da convalescença ainda passou pela Algérie. Conseguiu prorrogar o seu contrato por mais uns tempos e ficou por Argel. Aí, sim, terá estado numa base aérea, numa unidade de apoio logístico aos paraquedistas, antes de completar os seis anos de contrato com a Legião Estrangeira.

A doença, e a subsequente morte da mãe, obrigou-o a apressar o regresso a casa, em 1956. E foi, talvez um ano depois, em 1957, tinha a Rosemarie vinte anos, que ele a  conheceu em Chaves.

Os nossos amigos também eram repatriés ou retornados (pieds-noirs, era a expressão injuriosa que se usava em França para designar a população europeia, ou de origem europeia,  que fora obrigada a deixar a Argélia, depois da independência). Professores num colé
gio privado, eram de origem judia, como muitas das profissões liberais a viver e a trabalhar naquela antiga colónia francesa do Magrebe, a “joia da coroa” do império colonial francês: médicos, farmacêuticos, advogados, notários,  professores, agricultires, empresários, etc. A maior parte, de resto, eram já nascidos na Argélia,  há várias gerações. 

Os nossos amigos foram viver para a região da Ilha de França,  logo em 1962, tendo vindo na leva dos cerca de 800 mil repatriés… Por volta de 1966 começaram a frequentar o bistrot do Antoine, de quem eram vizinhos, mas ele nunca ou raramente abria o jogo sobre os seus tempos de legionário. Gostava, isso sim, de falar da Argélia e de Portugal… mas nunca da Indochina. Eram as duas coisas que os aproximavam. De resto, não falavam de política. Nenhum deles gostava de De Gaulle, mas por razões diferentes, que eu também não quis esmiuçar.

O bistrot do Antoine, na petite ville de A…, no Val-de-Marne, era muito popular nesse tempo, sendo o centro da vida social dos imigrantes portugueses que chegavam a França mas também de alguns magrebinos nascidos em França ou com muitos anos de França, incluindo ex-combatentes da guerra da Argélia…

Antigos camaradas de armas do Antoine, que viviam na banlieue  de Paris, também apareciam de vez em quando para saluer les copains, beber um copo em memória dos “bons velhos tempos” e fazer uma jogatana de cartas, refugiando-se numa das “salas reservadas” do estabelecimento.

A Rosemarie tinha uma presença discreta mas assídua no bistrot do Antoine, substituindo-o, nas funções de gerência, sempre que ele se ausentava por mais de um dia. Em boa verdade, não gostava dos amigos do Antoine, do tempo da tropa e da guerra. Sempre os achou "más companhias" do seu patrão. E, quando ele não estava, "apalpalvam-lhe o rabo, os salauds, os sacanas".

A pouco e pouco o Antoine começou a ser conhecido como o “padrinho” dos portugueses da região e ninguém sabia ao certo desde quando e como é que ele começara a sua atividade de “passador”. Levava, no mínimo,  dez contos por cabeça, para atravessar a fronteira. Por vezes a crédito, mas sempre com juros. Começou a trazer muita gente do Norte, "do rio Minho ao Mondego"... 

Respeitavam-no, para não dizer que o temiam. Aos caloteiros não estava com meias medidas: das ameaças passava aos atos e, não raramente, “andava à porrada”. Muitos foram viver para o bidonville de Champigny, e ele procurava ajudá-los a arranjar emprego e a “tratar dos papéis”. Havia redes de recrutadores de mão de obra ilegal, para o bâtiment, os chantiers, a construção e obras públicas. Enfim, tudo isto custava dinheiro, pelo que alguns desgraçados passavam um ano a trabalhar para pagar as dívidas do “salto”… 

De estatura média mas com um “tronco de touro bravo”, era exímio no jogo de pés e cabeça. A cabeçada dele chegou a mandar alguns para o hospital. Não usava armas,  a não ser em “casos extremos”.

Foi sempre bem sucedido nas suas “viagens de passador”, sem percalços de maior. Conseguiu arranjar passaporte português, já que tinha dupla nacionalidade, obtida em finais de 50. Ao que se suspeita, mais do que se sabe, tinha alguns bons contactos, na PIDE,  na Guarda Fiscal, na GNR, na Guardia Civil e na Gendarmerie, o que facilitava as suas deslocações e a passagem da “carga” nas duas fronteiras.

(Continua)

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)

(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido  materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio,  como légionnaire

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor,  fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)

Guiné 61/74 - P21257: Parabéns a você (1848): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21243: Parabéns a você (1847): Alberto Nascimento, ex-Soldado CAR da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63); Américo Russa, ex-Fur Mil Alimentação do BART 3873 (Guiné, 197274) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo CAR da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)

sábado, 15 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21256: Os nossos seres, saberes e lazeres (406): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Recém-chegado, começo a sentir que o Lima é a veia cava deste povoado que se pode orgulhar de fazer parte do berço da nacionalidade. Aqui estou, em respeitosa memória de um querido amigo nonagenário que me deixou inconsolável com a sua partida. Era um homem de cultura desmesurada, nela cabiam o sebastianismo, as querelas sobre as origens de Cristóvão Colombo, o integralismo lusitano, toda a história do Estado Novo e mais recentemente o espetro das direitas radicais em Portugal, mas também a literatura contemporânea, o surrealismo literário e as suas respetivas Artes Plásticas, o fim da monarquia e toda a questão monárquica desde a morte de D. Manuel II. Foram catorze anos de leituras onde se saltava de Paiva Couceiro para a correspondência entre Mário Cesariny e Maria Helena Vieira da Silva, os jornais do Alto Minho eram um enxame de abelhas, possuo a cátedra da informação, até a necrologia se lia. Fui igualmente seu confidente, e recordo um episódio quase truculento já que o seu espetro de curiosidades abrangia a genealogia e a heráldica. Um dia, numa dessas reuniões de aficionados da genealogia, o Carlos Miguel ouvia um certo Peixoto, não sei se de Penalva do Castelo ou Paredes de Coura, gabava-se de ter familiares já identificados do século XVI, o Carlos Miguel respondeu-lhe que era descendente de D. Afonso Henriques. Embasbacado, o tal Peixoto pediu-lhe o como e o porquê. "Meu caro senhor, o nosso primeiro rei teria, se tivesse, aí uns 40 ou 50 mil portucalenses no território. Há notícia que bastardos eram pelo menos 50, não me venha dizer que não me coube uma pinga de sangue real...". O Peixoto emudeceu. Ultraconservador, não se cansava de elogiar os romances de José Saramago. Era assim que praticava a integridade, não se coibindo, por vezes, de ser truculento, mas sempre se arrependia.
Por isto e por muito mais, estou feliz por ter vindo a Ponte de Lima.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (2)

Mário Beja Santos

Em quantas leituras a Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo apareceu a Ribeira Lima? Não têm conta. Na obra Alto Minho, do professor Carlos Alberto Ferreira de Almeida, o cântico do lugar é muito poderoso, o que é geografia prevalece: “A mais bucólica e celebrada ribeira portuguesa, a do Lima, a de Diogo Bernardes e António Feijó, tem o seu coração em terras de Ponte. É na área deste concelho que as suas veigas e alvéolos se abrem mais, oferecendo-nos, entre as encostas abruptas da Serra d’Arga e os cumes do Oural, um enorme anfiteatro que o rio drena, axializa e parece não querer deixar”. De facto, há qualquer coisa de magnético, passeia-se na Avenida dos Plátanos, o olhar pode ir até ao fundo, até aos esporões da Serra de Antelas, mas é sempre o Lima a que nos fixamos. Aqui começa a caminhada do dia de hoje, deixa-se para depois o casco histórico, passou a ponte romana e medieval, as torres da Cadeia Velha e de São Paulo, há a esperança de bisbilhotar o Teatro Diogo Bernardes, será imperioso, em homenagem ao meu querido amigo recentemente partido visitar a Biblioteca Municipal e o arquivo, por ora contempla-se a fachada da Igreja de Nossa Senhora da Guia, de um barroco sóbrio, está fechada, não terei nesta viagem circunstância de admirar os seus belos azulejos. Avança-se então para o Museu dos Terceiros.




Este museu é uma referência na Arte Sacra no norte do país, reabriu em 2008, quem visite Ponte de Lima tem tudo a ganhar com a sua visita. Há o museu e há o jardim, a vila mais antiga de Portugal dá enormes sugestões para a Rota das Camélias, ainda irei encontrar muitas.


O museu encontra-se instalado em duas casas religiosas associadas à Ordem Franciscana: o extinto Convento de Santo António dos Capuchos e o edifício da Ordem Terceira de São Francisco. É indissociável da história de Ponte de Lima pois a parte remanescente do convento foi fundada em finais do século XV por D. Leonel de Lima, alcaide da vila, formada por igreja, por capela da Senhora da Graça e pela sacristia. Riqueza não falta à igreja e até pormenores que assombram. Ora vejam.


A sacristia é de uma enorme exuberância, vem na sequência da igreja da Ordem Terceira, edificada entre 1745-1747, aqui se podem contemplar riquezas em retábulos, púlpitos e sanefas de desenho rococó. É para ver e não esquecer.





O museu foi constituído na década de 1970, com a criação do Instituto Limiano – Museu dos Terceiros. O restauro foi decidido em 2002 e aqui fica uma pálida amostra deste património espetacular.





Ponte de Lima tem a fama e o proveito dos belos jardins, das camélias, azáleas e rododendros, entre outra flora maravilhosa. A Avenida dos Plátanos, oferecendo sombra no verão, contraste de folhas no outono e o seu tapete de folhas caídas ou plátanos nus, sempre majestosos, como agora os vejo, é um dos ícones este mundo florido de jardins, parques e praças, mas também de largos e casas, como iremos ver adiante na Casa de Nossa Senhora da Aurora. Este é o Jardim dos Terceiros, a beijar o Convento de Santo António e dos Terceiros, são uma recuperação, houve estudo que veio permitir uma simulação do provável traçado do antigo jardim. Os jardins conventuais não eram local por onde qualquer um deambulasse, serviam para contemplação e cultivo de plantas medicinais e de temperos. Por isso este jardim que ora percorro organiza-se em espaços de cultivo de plantas medicinais, temos também o jardim dos cheiros e o jardim dos temperos. Está na hora de almoçar, apetece-me um bom caldo verde e uns filetes com aquele arrozinho sem igual que acompanha qualquer prato, depois uma pequena volta pela vila e segue-se para Ponte da Barca.

Jardim dos Terceiros

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21235: Os nossos seres, saberes e lazeres (405): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21255: 16 anos a blogar (15): A Mãe-de-água e as Fontelas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 14 de Agosto de 2020, para nos fala mais uma vez do povo de Trás-os-Montes, seus usos e costumes:


A MÃE-DE-ÁGUA E AS FONTELAS

Francisco Baptista

São sete homens, é meio-dia, de um qualquer dia de Julho, o calor aperta nas serranias transmontanas, abrem as sacas de linho ou estopa e retiram, o pão, o chouriço, o presunto, o toucinho, o frango assado, ovos cozidos ou omeletes, tiram dos bolsos das calças as navalhas de Palaçoulo, já gastas pelo uso, o almoço de cada um que varia entre todos estes produtos, vai começar, debaixo de sobreiros altos que ensombram a "fontela" da água que brota à superfície da terra, com que matarão a sede. Há também algum vinho numa "cabaça" que passará de mão em mão e de boca em boca, para revigorar as forças..

Cinco homens feitos, já todos chefes de família, são tiradores de cortiça, enrijecidos e queimados, pelo trabalho e pela exposição solar, com as mãos calejadas e negras pelo contacto frequente com o "verde" das tábuas de cortiça. O sexto homem, forte e atlético é o patrão, que orienta e ajuda na tiragem da cortiça sempre com a preocupação de que não se estraguem as árvores. O sétimo é um dos filhos dele que tanto poderá ter treze como vinte anos e tem por missão pintar nos sobreiros descortiçados o ano da tiragem e as iniciais do proprietário e transportar às costas a cortiça para as "rodeiras" onde possam ir os carros de vacas. Se tiver energia, curiosidade e habilidade para tal, poderá também subir aos sobreiros e colaborar na tiragem, o mais velho deles tinha. A cortiça para ter uma grossura razoável para ser vendida para as fábricas de Fiães e Lourosa, por lei, tem que ter pelo menos nove anos de crescimento, que qualquer pessoa pode ler nela, pois cada ano faz uma marca.

Nesse tempo, última metade do século passado, havia na aldeia cerca de quinze tiradores de cortiça, poucas aldeias de Trás-os-Montes, teriam tantos. Hoje por causa das alterações climáticas e das secas que tem provocado a morte de milhares de sobreiros, a produção de cortiça é muito menor, porém os tiradores de cortiça muitos filhos ou netos desses, continuam a ser no mesmo número.

A tiragem da cortiça é dos poucos trabalhos agrícolas que ainda não é mecanizável, tal como no passado e não o será no futuro penso eu. Trabalho humano, muito duro, mesmo para retirar as tábuas mais largas do tronco, que sai da terra, requer muita destreza e equilíbrio, quando se sobe aos canos. Usam uma machada própria, por ferramenta principal e uma panca, pau rijo e comprido, em cunha, a que alguns chamavam Vicente, (como se fosse mais um trabalhador) para ajudar. Trabalho de preferência, em grupo, por ser mais rentável e seguro. Antigamente, porque a cortiça era muita, a colheita da aldeia ocupava-lhes todo o tempo, agora que é menor, os novos corticeiros vão a aldeias próximas e percorrem ainda as Beiras e o Ribatejo enquanto o tempo o permite.

Brunhoso persiste em não ficar parado e em tentar sobreviver à desertificação. Há jovens empresários na aldeia que se esforçam tanto nesta como noutras áreas por criar trabalho e rendimento para eles e para os outros A cena do almoço, a que eles chamam merenda, (é a seco, a comida não é cozinhada ao lume) passa-se na Lagariça onde há a maior mancha de sobreiros de Brunhoso. O mais novo terá também por tarefa, transportar água da fontela sempre que os trabalhadores tenham sede.

Depois de alguns dias na Lagariça cenas semelhantes se repetirão na Hortelã, Fonte da Dona, Ferreiros, Fonte do Buraco, Fonte do Junco, Relva, Azinhal, Gaiteiro, Ribeira, Entre-Caminhos, Cova dos Lobos, Escaleiras.

Hortelã 

Lagariça

Bem perto, a um quilómetro, fica a Fonte da Dona, onde os homens almoçavam debaixo de um grande sobreiro. Tanto a água desta fonte como a da Lagariça embora fresca não era muito saborosa, talvez por causa das raízes dos sobreiros ou das folhas que caíam e que muitas vezes apodreciam lá dentro, pois a limpeza era sazonal, quando alguém aparecia.
Do outro lado no "avessedo" é a Hortelã, onde existe a mata mais densa de sobreiros, muitos quilómetros ao redor, lá não há fontes ou fontelas.

Fontela da Fonte da Dona 

Fontela da Lagariça (encoberta) 

Fontela de Juncais, com corcha de cortiça

Uma corcha, mais visivel

Descendo mais um quilómetro na direcção do Sabor existe o sobreiral dos Ferreiros com uma fontela num olival próximo onde havia também uma macieira com boas malapas (maçãs pequenas e saborosas) Quando não havia fontelas tinha que se transportar a água de longe em cabaças, cântaros ou garrafões.

Na Fonte do Junco e no Azinhal, no termo de Remondes, havia quatro sobreirais, os do Azinhal, encravados na grande área de sobreiros e oliveiras, propriedade da Aprígia uma ricaça de Mogadouro. No sobreiral de baixo, quase no limite, havia uma fonte onde a água, muito boa, manava com abundância e ia irrigar hortas e árvores de fruto dessa senhora.

As fontes ou fontelas estavam espalhadas por toda a zona camprestre para tirar a sede a tantos lavradores e trabalhadores da terra que além de grandes caminhadas, muitas vezes a pé, suportavam trabalhos cansativos e duros. Essas fontes normalmente eram pequenas nascentes de água que brotavam do solo e onde desde tempos antigos as pessoas cavavam uma pequena de poça, onde se pudesse beber, de bruços, com o auxílio de uma corcha de cortiça (no Alentejo chamada cocho ou cocharro) ou com as mãos a fazer concha. Quem bebia dumas e doutras sabia distinguir as suas águas pelo sabor, pela frescura, pela doçura, pela salinidade ou outros atributos. Não eram objecto de qualquer análise bacteriana ou outra por parte das entidades públicas. Com a sua experiência e o seu saber, os habitantes da aldeia é que as analisavam e discutiam entre eles as suas qualidades.

À beira de alguns caminhos havia fontelas muito conhecidas, como as de Juncais e Juncaínhos. A mais famosa era a de Juncaínhos pela frescura e doçura da sua água. Dela contava o Sr. João Passarinho o seguinte facto passado nos anos quarenta: Em 1940 foram para Mogadouro várias equipas dos Serviços Cartográficos do Exército para fazer o cadastro geométrico da propriedade rústica de todo o concelho, onde se demoraram durante mais de dois anos. Para Brunhoso foi uma equipa comandada por um tenente, tendo sido o Sr João, então um jovem trabalhador, já bem conhecedor dos prédios rústicos e dos caminhos, contratado para informador e guia. Disse-me ele, repetidas vezes, que o Sr. Tenente só gostava da água de Juncaínhos, e que todos os dias mandava lá o impedido buscá-la. Infelizmente hoje, essa fontela, está coberta por arbustos e silvas, espreitando pelo emaranhado que a cobre, nem água se vê, provavelmente some-se por outro sítio.

O Sr. João Passarinho já morreu há mais de trinta anos, acredito que durante a vida dele a fontela sempre teve boa água ao dispor de todos os caminhantes e que ele a terá limpado muitos vezes. Era um grande homem, de pequena estatura, humilde, trabalhador, que à jeira ou ajudando outros tão necessitados como ele, conheceu palmo a palmo toda a área agrícola da aldeia. O Sr. João Lagoa, outro bom homem, sendo o homem mais rico da aldeia, a quem ele chamava padrinho, seria dos filhos dele, e de metade dos habitante da terra, não terá sido mais feliz do que ele. Penso que ele morreu a sonhar que toda a área agrícola de Brunhoso, de vinte e um quilómetros quadrados onde ele tinha trabalhado quase 80 anos e onde ele tinha uma pequenina parcela se despedia dele.

Depois de um dia de trabalho extenuante não haveria sono mais reparador e gratificante do que o dos trabalhadores da terra. Ao deixarem a vida, no caminho para o sono eterno seriam transportado por campos de searas, hortas, prados, vinhas, freixos, olmos, sobreiros, carrascos, oliveiras, castanheiros e outras árvores, fontes, rios, ribeiros. Vidas tão cumpridas como eles somente terão tido os cientistas e artistas que se empenharam em grandes projetos criativos.

Nesse tempo toda a água que se consumia em Brunhoso, nascia dentro do seu "termo". A nascente que alimentava a aldeia a chamada "Mãe-de-Água" ficava a um quilómetro da aldeia, numa encosta , que subia para o souto dos castanheiros a nordeste. Era uma mina de água construída em tempos antigos por especialistas, que fazia confluir as águas subterrâneas da área, para um depósito, donde depois era canalizada para as quatro "bicas" da aldeia, para a Fontoz nas Fontaínhas e o tanque das Eiras de Baixo para os animais beberem e onde as pessoas podiam também colher água dos canos, antes de cair nos depósitos, nos tanques.


No limite sudoeste a cinco quilómetros da aldeia passava o rio Sabor, que criava nas suas arribas um microclima mais ameno, quase mediterrânico, propício às culturas das oliveiras, das amendoeiras e das figueiras. Criava fantasias de brincadeiras na água entre os mais novos e lindos espelhos de água com paisagens belas pintadas de azul celeste.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21169: 16 anos a blogar (14): Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)