quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22602: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XVIII: Montanha Wutai, província de Shanxi, China, 2002












Montanha Wutai, província de Shanxi, China, 2002



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74]. (*)


 Montanha Wutai, província de Shanxi, China, 2002

por Antóni0 Graça de Abreu

[ Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem cerca de 290 referências no blogue.]



Wutaishan, a montanha sagrada dos Cincos Terraços. No Verão, verdejante e fresca, no resto do ano, árida, fria, branca de neve. 

Hoje habitam-na quarenta e sete templos dedicados a Buda, e dois mil monges flutuantes. Praticam o budismo chan禅, o zen que só chegou ao Japão no século XII. Também reverenciam Buda, ao modo do lamaísmo tibetano.

Esta noite, os montes vestidos de espasmos de névoa, um rendilhado imenso de cascatas de brumas. Amanhece. Poeiras cinza voam e desfazem-se no rosa, depois ténue céu azul. O templo de Pusading, o pagode, agarrado à terra, coroa a crença dos homens em viagem.

Tomo uma nuvem branca, inebrio-me em perfumes de incenso. O coração quer galopar nas nuvens, no sibilar da brisa nos pinheiros. Passeio no esplendor do vazio, subo, desço escadarias, perco-me de terraço em terraço. A natureza protectora e mãe acaricia o fundo do vale, os montes verdes, húmidos de prazer, abrem os braços ao clarão do dia.

Encontro o monge Manjusri, “mão esquerda de Buda”, em meditação. Veio de longe, da Índia, no século V e viveu em Wutaishan durante mais de quarenta anos. Pergunto-lhe:

-- Em que pensa, nessa imobilidade absoluta?

-- Penso no que está para além do pensamento.

-- Como consegue pensar no que está para além do pensamento?

-- Não pensando.

Procuro limpar a mente, depurar o coração, a busca da pequena sabedoria e da iluminação. Contemplar a natureza, embalar-me nos braços serenos de Buda.

António Graça de Abreu

Texto e fotos enviafos em 18/8/2021

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terça-feira, 5 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22601: O nosso livro de visitas (214): Luís Sequeira, filho do nosso camarada Manuel Dias Sequeira, ex-1.º Cabo do Pel Mort 979 (Buba, 1964/66), falecido em 2008

Manuel Dias Sequeira, ex-1.º Cabo do Pel Mort 979


1. Através do formulário para contactos, o nosso amigo Luís Sequeira enviou-nos no dia 2 de Outubro p.p. esta mensagem:

Olá boa tarde
tenho umas fotos do meu pai no ultramar, e que gostaria de partilhar consigo! Quem sabe poderia aprender algo mais sobre a historia na Guiné.
Um abraço
Cumprimentos,
Luis Sequeira


2. No mesmo dia houve a seguinte troca de mensagens com o nosso novo amigo Luís Sequeira:

a) - Caro Luís Sequeira
Muito obrigado pelo seu contacto.
Para nos falar do seu pai, utilize este meu endereço (carlos.vinhal@gmail.com) e o do editor do Blogue, Prof Luís Graça (luis.graca.prof@gmail.com).
Envie-nos, além do nome do pai, o posto dele, especialidade, Companhia e Batalhão em que foi para a Guiné e locais onde cumpriu a comissão de serviço.
Teremos muito gosto em publicar as suas fotos.
Caso ele não seja utilizador/frequentador da internete, e se o Luís quiser ser a ponte entre ele e o Blogue, o pai poderá fazer parte da nossa tertúlia, bastando para o efeito o envio de uma foto actual e outra do tempo de Guiné.
Para outros pormenores, queira contactar-nos.
Abraço, extensivo ao pai.
Carlos Vinhal
Coeditor



b) - Boa tarde Sr Carlos,
infelizmente o meu pai já não se encontra entre nós, e o assunto sempre foi um tabu, por isso tenho algumas dificuldades em fornecer certas informações, o que sei é que pertenceu ao Regimento de morteiros entre 64 e 66 na Guiné e o nome dele é Manuel Dias Sequeira.
Luís Sequrira


c) - Boa noite, amigo Luís
No Blogue temos um lema (ou divisa) que filho de um nosso camarada, nosso "filho" é, pelo que lhe peço não estranhar a proximidade no tratamento que não é de modo nenhum sinónimo de falta de respeito.
Lamentamos por o pai já não estar entre nós. Faleceu há muito? Pelas minhas contas deveria ter agora entre 78 e 80 anos.
No ano de 1964 foram mobilizados para a Guiné 4 Pelotões (assim se designavam) de Morteiros, a saber o Pel Mort 942, formado na Carregueira/Lisboa, que esteve na Guiné entre Janeiro de 64 e Janeiro de 66 e os Pel Mort 978, 979 e 980, formados em Leiria, que estiveram na Guiné entre Maio de 64 e Abril de 66.
Pode mandar as fotos que quiser. Se optar por as "fotografar" com o telemóvel, por favor desligue o flash para as não queimar com o excesso de luz.
Às vezes nas costas das fotos escrevíamos o local e a data das mesmas, assim como quem está nelas. Se me puder mandar esses elementos à parte, seria óptimo para sabermos exactamente a que Pelotão pertenceu o pai. Se me mandar fotos dele podemos ver se no blogue alguém o reconhece.
Ficamos ao dispor do amigo Luís.
Abraço
Carlos


d) - Boa noite Sr Carlos
Sim infelizmente faleceu em Setembro de 2008, por esta altura estaria com 77 completados em Agosto.
Pela informação que o Sr Carlos me deu, uma das fotos que vou enviar em anexo, consta o número 979.
Luís Sequeira


Nesta foto, o camarada Manuel Dias Sequeira, na fila de trás, tocando gaita de beiços.
Em progressão algures no mato da Guiné, o camarada Manuel Dias Sequeira em primeiro plano
Nesta foto, Manuel Dias Sequeira à esquerda
Provavelmente em Buba, entre 1964/1966 > Manuel Dias Sequeira


3. Já no dia 3 houve esta troca de mensagens:

a) Bom dia amigo Luís
Se o pai pertenceu ao Pel Mort 979, formou pelotão em Leiria, no RI 7, e chegou à Guiné em 13 de Maio de 1964 no navio Uíge.
Foi para Buba (veja aqui a carta: http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/guine_guerracolonial16_mapa_Xitole.html) onde esteve até Fevereiro de 1966, passando para Nhala (na estrada Buba/Xitole) nessa data, onde esteve até às vésperas do regresso que foi em 27 de Abril de 1966, curiosamente também no Uíge.
Só falta saber a sua patente. Ele tinha que escolaridade? Naquele tempo, com a 4.ª classe, ia-se para o contingente geral para soldado ou cabo, com o chamado curso secundário incompleto (actual 9.º ano) já podia ser furriel miliciano. Finalmente, com o 7.º ano dos Liceus (ou equivalente) ia-se para o curso de oficiais. Não terá por aí uma foto ou papelada onde se possa saber?
O nosso problema é que os militares do tempo do pai, normalmente, são pessoas infoexcluídas, que não frequentam as redes sociais, salvo alguns graduados, pelo que vai ser difícil encontrar companheiros do Pel Mort 979. No nosso Blogue temos apenas duas referências. Pode ver aqui: https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Pel%20Mort%20979
Em relação às fotos que me mandou.
Naquela do grupo maior, basta que me diga qual a sua posição relativa, da esquerda para a direita, por exemplo. Estará na fila de trás, penso.
Na que aparecem 4 militares em progressão, será o primeiro?
Na que está com outro camarada, será o mais baixo?
Se tiver estas respostas, as fotos ficariam legendadas.
Obrigado
Bom domingo

b) - Bom dia sr. Carlos
Graças à sua informação já me fez o dia, é bom saber um pouco da história do meu pai. O meu pai tinha a 4ª Classe na altura, lembro de ele me dizer que era 1.º Cabo, mas sinceramente não sei, porque nunca vi nenhuma divisa, apenas tinha um emblema que usava no braço esquerdo do Pel Mort 979.
[...]
Mais uma vez muito obrigado, um bom domingo.
Luís Sequeira


4. Hoje mesmo foi enviada mensagem ao Luís Sequeira a pedir autorização para inscrevermos na nossa listagem dos camaradas que já partiram o nome de seu pai, Manuel Dias Sequeira (1944-2008)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22532: O nosso livro de visitas (213): Nuno Inácio, filho do nosso camarada Gil da Silva Inácio - "O Gringo" - que foi CMDT do Pel Caç Nat 67 em 1973

Guiné 61/74 - P22600: Os nossos regressos (40): Os nossos irmãos são sempre cópias desiguais de nós próprios, os amigos podem preencher um espaço de compreensão e entendimento que nem sempre encontramos em família (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem de 4 de Outubro de 2021, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), continua a falar-nos dos tempos vividos após o seu regresso da Guiné.


O REGRESSO (2)

Os nossos irmãos são sempre cópias desiguais de nós próprios, tanto na forma como no feitio, pois na sua génese, foram buscar características que formam a sua personalidade a antepassados diferentes pelo que estão determinados a ter outras peculiaridades comportamentais que muitas vezes se chocam com as que nós recebemos. Sem sermos inimigos, o sangue comum procura impedi-lo, pela vida fora, vamos estabelecendo pontes de entendimento mas nunca nos completamos e temos tendência a desentender-nos.
Os amigos podem preencher um espaço de compreensão e entendimento que nem sempre encontramos em família.

Nesse tempo tinha amigos que a necessidade de convívio criava, amigos de café, de farras ou de ocasião. Havia ainda os amigos da terra para matar saudades de expressões idiomáticas comuns e de vivências passadas na aldeia. Faltavam-me amigos que se interessassem por assuntos, fora da rotina dos dias, que dessem outra dimensão à vida, políticos, artísticos, intelectuais.


O Barcelos Monteiro veio preencher um pouco esse vazio. Nesses anos pós 25 de Abril, em que a democracia se ia consolidando aos solavancos, ele será uma referência pessoal com quem vou interagindo, em acordo ou desacordo. Sendo muito loquaz , apesar da ideologia política que defendia tenazmente, releva as diferenças políticas, para falar com quem não queira fugir ao diálogo. Como amigo, procura também pôr-me em contacto com personalidades que vai conhecendo e que me possam interessar.

Nítida no ângulo das esquinas –
ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.


As Mãos e os Frutos
Eugénio de Andrade


Li este poema e todos os outros desse livro, na adolescência, com a sofreguidão e o entusiasmo de uma grande descoberta. Sendo um bom leitor tive desde cedo uma grande admiração por escritores e poetas, génios, cheios de talento que nunca encontrava ou porque já tinham morrido ou porque moravam longe de mim .

Eu não sabia, até que um dia o Barcelos Monteiro me disse que o Eugénio de Andrade, sem dúvida, um dos maiores poetas portugueses do século XX, também trabalhava nos nossos Serviços, onde era conhecido por José Fontinhas, o seu nome de baptismo. Era inspector dos serviços pelo que não era visto muitas vezes, na sede da instituição, por causa do seu trabalho e do seu feitio reservado. Um dia cruzámo-nos com ele e o meu amigo com o entusiasmo, que lhe era próprio, apresentou-mo, cumprimentámo-nos, ele com indiferença ou até frieza. Enfim, não conheci o Eugénio de Andrade, conheci somente o José Fontinhas, Inspector dos Serviços-Médico Sociais, insensível e exigente, segundo ouvi dizer. Senti-me bastante frustrado e consolei-me com a ideia que ele estaria ocupado a construir mais um belo poema.

Vivia dentro de si mesmo e não precisava de sair para conviver, pois sendo um artista, teria uma vida interior muito rica.

Momentos agradáveis e relaxantes tínhamos por vezes, quando um chefe de divisão nos convidava para o seu gabinete, para uma conversa amena, sem política como tema. Era um homem conservador, culto, muito educado, distinto no trajar e na fala, com tiques de ascendência nobre, real ou fictícia, casado com uma médica, o que nesse tempo dava sempre outra distinção.

Quando fui para o Porto fiquei hospedado na Pensão Mirandesa, que já conhecia, situada na Avenida Rodrigues de Freitas, numa casa antiga de dois pisos e cave. Fiquei num quarto onde dormiam mais dois hóspedes diários, que como eu trabalhavam na cidade.
Os hóspedes da Pensão Mirandesa. na sua maioria originários do Planalto de Miranda (do planalto de Miranda. fazem parte os concelhos de Miranda, Vimioso e Mogadouro), sentiam-se em casa, pois ela era tal qual uma casa transmontana. no trato. nos afectos, na cordialidade, no ambiente familiar, na alimentação, na lareira sempre acesa no tempo frio.


Alguns vinham de carro, a maioria de comboio, traziam notícias, das gentes, das sementeiras, das colheitas, da construção das Barragens no Douro Internacional. Alguns traziam couves, batatas, castanhas, garrafões de vinho, galinhas, presunto, linguiças, alheiras, etc.

Os donos da pensão eram um casal, com cerca de 40 anos, natural de uma freguesia do concelho de Miranda. Ela era uma matriarca simpática que impunha respeito, que por ser paraplégica, tinha ficado assim com o parto da filha, andava sempre numa cadeira de rodas e dava as ordens necessárias para o bom funcionamento da casa.

Ele com um passado de contrabandista, de passador de emigrantes clandestinos e de políticos, alguns comunistas, para a França, conservava ainda essa agilidade de andarilho de todo o terreno. Amigo de muita gente estava sempre na disposição de desenrascar os clientes e amigos, no que fosse necessário.

Na sede da Pide, que ficava no Largo Soares dos Reis, à vista da pensão, já tinha sido maltratado e passado alguns dias preso, por causa da sua actividade como passador. No entanto, o Ilídio, assim se chamava, era um homem sem medo, de tal forma, que nesse ano de 1973, era na cave da sua casa que os dirigentes dos sindicatos dos bancários, dos metalúrgicos do norte e mais um ou outro, se reuniam para formar a Intersindical.

Os meus colegas de quarto, um deles trabalhava na mesma rua, no Grémio dos Comerciantes como administrativo, teria mais dez anos do que eu, tinha trabalhado em Angola e estava separado ou divorciado, o outro mais novo do que eu, cerca de cinco anos estava numa escola de condução a aprender a ser instrutor.

Durante alguns meses houve um bom convívio entre os três que se foi deteriorando para mim, porque o mais velho, não sei se perturbado por problemas com a namorada, passou a deitar-se mais tarde e arrastava o mais novo para lhe fazer companhia, o que me deixava menos horas livres de descanso pois eles deitavam se a desoras
Dada a situação resolvi procurar outro alojamento, o que me custou bastante e ao Ilídio e à mulher também, já que havia uma boa relação pessoal e familiar entre nós, há anos que davam hospedagem ao meu pai que vinha com frequência ao Porto, por negócios e ao meu irmão Tomás que era camionista.

O meu irmão quando tinha lugar estacionava o camião, que era grande para transporte de cortiça, do outro lado da rua, entre duas árvores, ficando encaixado numa distância de um palmo atrás e à frente, entre elas. Era um bom condutor de carros e camiões.

Estes dois companheiros de quarto e outros dois mirandeses ainda novos que entretanto se hospedaram na pensão, e talvez outros "soldados" que contrataram, depois do 25 de Abril, querendo tirar proveito da confusão gerada pela revolução, fizeram uma operação rocambolesca para assaltar o Banco de Portugal do Porto. Eu que conhecia bem pelo menos estes quatro penso que o plano terá sido gizado pelo Laurindo (chamemos-lhe assim, o mais velho) que não tendo qualquer ideologia tinha ideias estapafúrdias e terá pensado que iria conseguir com essa acção, alguma folga financeira.

Pintaram duas ou três carrinhas de verde tropa, arranjaram umas fardas verdes do exército, umas pistolas de alarme e uns varapaus pintados a fingir espingardas e dirigiram-se para o objectivo, na Praça da Liberdade, próximo da cervejaria Sá Reis. Terão entrado no banco, a notícia do assalto veio no dia seguinte na primeira página de alguns jornais em letras gordas. Confesso que este meu relato é um pouco fantasiado pois já não recordo os pormenores. Sei que rapidamente, o falso capitão e os falsos soldados, foram todos apanhados à mão.

E assim acabou ingloriamente esta arrojada aventura, que somente por chalaça se pode comparar ao assalto ao comboio-correio do Reino Unido.

Continua...

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22566: Os nossos regressos (39): Regressei em 1972 da guerra Guiné mais queimado por dentro do que por fora (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Guiné 61/74 - P22599: Questões politicamente (in)correctas (55): Na hipótese de terem aceitado vir para Portugal os ex-comandos guineenses, pergunta-se: que tipo de país os iria receber ao aeroporto de Figo Maduro? (José Belo, jurista, Suécia)


O contexto é outro, completamente diferente... Como curiosidade aqui segue foto do Rei sueco a entregar um Guião ao regimento de tropas especiais sediado na Lapónia. Se o leitor se der ao trabalho de olhar um pouco mais atentamente, lá descobrirá a "minha rena" estampada no guião...


1. Texto e fotos enviados pelo Joseph Belo, régulo jubilado da Tabanca da Lapónia:


Data - segunda-feira, 4 out 2021, 12:26  

Assunto - O idealismo fácil fora dos contextos envolventes ou inda os Comandos Africanos como arma de arremesso para alguns

Ao procurar-se analisar a triste sorte dos Comandos Africanos da Guiné tem-se vindo a cair numa forma abstrata de análise que, artificialmente, acaba por quase isolar o sucedido de todo um contexto, tanto guinéu como... português!

A terem aceite a oferta apresentada de uma nova vida (militar!) em Portugal pergunta-se:

  • Que tipo de país os iria receber no aeroporto de Lisboa? 
  • Que jogadas político-militares se iriam desde logo suceder à volta destes militares altamente treinados e motivados? 
  • Para mais, num período em que grupos extremistas com boas economias de apoio exerciam uma influência muito acima das suas possibilidades reais, não menos junto de alguns militares?
  • Dentro das escolhas políticas que começavam a “extremar-se” dentro das Forças Armadas, e seus representantes de “cartaz”, quais seriam desde logo os debates, as acusações, os plenários, tudo numa procura de “instrumentalizar” estes militares no que significavam?
  • E, a não conseguirem usá-los para os seus fins políticos, lá viriam oportunas formas de os destruir.(**)

Neste caso, como em muitos outros, não se pode esquecer que o caos (!), mais ou menos navegado por alguns, era uma realidade subjacente a este período. A situação criada por este “desembarque” seria demasiado complicada para ser desejada por muitos.

Os com melhor memória recordarão o mais tarde(!) passado com outro contingente numerosos de tropas especiais, neste caso paraquedistas que, antes e desde o seu desembarque em Lisboa, foram de imediato envolvidos por manobras político-militares com vista à sua instrumentalização futura.

E este exemplo passou-se bem depois da independência da Guiné.

Um outro exemplo, este pontual, mas não menos representativo de toda uma “situação” envolvente, teve lugar no RALIS.

Ainda “a quente “ dos acontecimentos do 11 de Março,  o Comando Africano Marcelino da Mata, ao apresentar-se neste Regimento, acabou por aí ficar detido por um grupo de badamecos fardados.

Estes elementos agrediram e torturaram demoradamente Marcelino da Mata, figura para eles representativa de um criminoso da guerra colonial.

Não fora o facto de três Oficiais, ao terem conhecimento do que se estava a passar, de imediato se terem dirigido a este Regimento, e, depois de enormes dificuldades, terem conseguido que este Comando guineense fosse encaminhado para a autoridade competente de analisar o seu “caso”, as coisas poderiam ter terminado mal.

Voltando a salientar tratar-se de um caso pontual, mostra no entanto um “certo estado de espírito” em relação ao Comando Africano, existente no período em… alguns meios!

Um abraço do J.Belo
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:



(**) Último poste da série > 23 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22568: Questões politicamente (in)correctas (54): Heróis... e heróis: um debate necessário, quando, numa guerra, estão em causa os direitos humanos (José Belo, jurista, Suécia)

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22598: In Memoriam (409): Lissy Jarvik (née Feingold) (1924-2021): teve no seu funeral a presença do nosso cônsul honorário em Los Angeles e o senhor Presidente da República emitiu uma mensagem de condolências (João Crisóstomo, Nova Iorque, de passagem por Portugal, adviser da Sousa Mendes Foundation, com sede nos EUA)


Lssy Jarvik em Liboa, 2016 (#)
1. Mensagem de João Crisóstomo, em complemento do poste P22594 (*):

Data - domingo, 3/10, 21:17  

Assunto . Mensagem do senhor Presidente da República

Caro Luis Graça,

Conforme nossa conversa:

Fiquei satisfeito que o nosso consul honorário em Los Angeles tivesse recebido instruções para estar presente no funeral de Lissy Jarvik, mas ao mesmo tempo sentia que ela merecia/merece muito mais. Por isso contactei a Presidência da República na esperança de que o Senhor Presidente,  com uma mensagem,  desse maior relevância a esta “ despedida” a Lissy .

Foi com muita satisfação que recebi uma mensagem de Sua Excelência que tenho muito gosto em poder dar a conhecer.

Abraço. João

(#) Fonte: Fotograma do vídeo (2' 02'') da reportagem "Refugiados salvos por Aristides de Sousa Mendes em Portugal". RTP Ensina (com a devida vénia...)
 
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Presidência da República Portguesa:

Caros João Crisóstomo e Paulo Menezes,

Encarrega-me Sua Excelência, o Presidente da República de Vos enviar a mensagem de condolências para o funeral da professora Lissy Jarvik, pedindo que a façam chegar aos familiares mais próximos:

"Ao tomar conhecimento do falecimento da Professora Lissy Jarvik, apresento as minhas sentidas condolências à família e amigos, bem como à Sousa Mendes Foundation US , que ajudou a fundar e a que presidiu. Neste momento de luto, e recordando o seu percurso de 97 anos, quero agradecer, em nome de todos os portugueses, o papel que representou no reconhecimento internacional de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português que lhe concedeu um visto em Bordéus.

O testemunho da Professora Lissy Jarvik junto do Yad Vashem, em conferências, trabalhos de investigação e em vários filmes e documentários foi determinante para a evocação da memória do português que “preferiu estar com Deus contra os homens do que com os homens contra Deus”.

 O entusiamo e empenho nas celebrações do quinquagésimo aniversário da morte de Aristides de Sousa Mendes, promovendo o Projecto Dia da Consciência, entretanto reconhecido pelo Papa Francisco, não nos fará esquecer o legado de Lissy Jarvik. Um legado de coragem e defesa da dignidade da pessoa humana, imperativo de consciência e cidadania, fiel aos valores que Aristides de Sousa Mendes representa e sempre defendeu.

Valores que serão novamente evocados a 19 de outubro, data da Cerimónia de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes.”


Maria João Ruela

Consultora Assuntos Sociais, Sociedade e Comunidades
Casa Civil do Presidente da República


2. Sobre a professora e psiquiatra geriátrica, jubilada, Lissy Jarvik  - Feingold, apelido de família, casada com Murray Jarvik 1923 - 2008) - ,  nascida nos Países Baixos, de origem  judia, e refugiada em Portugal, de junho de 1940 a janeiro de 1941, importa saber mais o seguinte:

A família Feingold recebeu vistos assinados por Manuel de Vieira Braga, por delegação de Aristides de Sousa Mendes, em Bayonne, França em 20 de junho de 1940: Leo Feingold, 53 anos; Lissy Feingold, 15; Regina Feingold (Engelart, apelido de solteira), 38; Sonja Gerda Feingold, 13. Viajaram para Portugal, fixando residência na Figueira da Foz. Embarcaram, em Lisboa, com destino a Nova Iorque, em janeiro de 1941, no navio "Lourenço Marques". 


O nosso camarada e amigo João Crisóstomo é "adviser" da Sousa Mendes Foundation, um dos fundadores e antigo dirigente desta fundação, criada nos Estados Unidos justamemte para homenagear este herói português,  e tendo como missão concreta: angariar fundos para o restauro da Casa do Passal, em Cabanas de Viriato, Carregal do Sal,  e a criação de um museu.


TESTEMUNHO DE LISSY JARVIK (FEINGOLD, APELIDO DE SOLTEIRA)
ESCRITO EM 1996


Sem Aristides de Sousa Mendes eu não estaria aqui.
É tão simples quanto isso.

Sem Aristides de Sousa Mendes eu teria sofrido torturas
tão dolorosas e tão prolongadas
que a morte teria sido um alívio bem-vindo.

Sem Aristides de Sousa Mendes eu teria perdido meio século de vida -
meio século que me permitiu respirar; viver, amar -
amadurecer, casar, ter filhos, estudar, ensinar
e ainda ajudar algumas pessoas individualmente, 
bem contribuir um pouco mais para nossa base de conhecimento s
obre envelhecimento e saúde mental;

E eu teria perdido a oportunidade de fazer parte de um país
que era a casa de um povo verdadeiramente livre,
um país que ofereceu oportunidades 
para os não-privilegiados, os oprimidos, os necessitados -
para pessoas como eu.

Tradução;  Google / LG

TESTIMONIAL OF LISSY JARVIK NÉE FEINGOLD
WRITTEN IN 1996


Without Aristides de Sousa Mendes I would not be here.
It's as simple as that.

Without Aristides de Sousa Mendes I would have suffered tortures
so grievous and so prolonged
that death would have been a welcome relief.

Without Aristides de Sousa Mendes I would have missed out
on half a century --
half a century which allowed me to breathe; to live, to love -
to mature, to marry, to have children, to study, to teach
and to help a few people individually
as well as to contribute a little bit to our knowledge base on aging and mental health;

And I would have missed out on becoming part of a country
which was the home of a truly free people,
a country which offered opportunity to
the disenfranchised, the downtrodden, the needy --
to people like me.


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Notas do editor:

3 de outubro de 021 > Guiné 61/74 - P22594: In Memoriam (408): Lissy Jarvik (1924-2021), de origem judia holandesa, foi salva por um visto do nosso Aristides Sousa Mendes; mais tarde, já eminente médica, especialista em psiquiatria geriátrica, tornou-se uma dos grandes paladinos da memória do cônsul português de Bordéus (João Crisóstomo, Nova Iorque, agora de passagem por Portugal)

Guiné 61/74 - P22597: Agenda cultural (786): Convite para a apresentação do livro "Nunca Digas Adeus às Armas (Os primeiros anos da Guerra da Guiné)", por António dos Santos Alberto Andrade e Mário Beja Santos, dia 18 de Outubro de 2021, pelas 18 horas, no Pálácio da Independência - Largo São Domingos, 11 - Lisboa

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22583: Agenda cultural (785): Apresentação do livro "Ataque a Conakry", de José Matos e Mário Matos e Lemos, dia 21 de Outubro, às 17 horas, no Palácio da Independência - Largo de São Domingos - Lisboa

Guiné 61/74 - P22596: Notas de leitura (1387): Imagens à procura de comentários: Augusto Trigo e a CART 1746 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
A folhear um acervo documental dos herdeiros do General Schulz, chamou-me a atenção a belíssima imagem de um álbum de Augusto Trigo, um artista luso-guineense a quem se faz a tremenda injustiça de não lhe conhecer a valiosa obra; e no meio daqueles dossiês e registos metodicamente organizados, saltou uma fotografia de gente que conheci, a CART 1746, por obra e graça da investigadora Lúcia Bayan aqui a faço chegar, ela é merecedora de comentários. Façamos isso em memória desse gentil camarada que foi o Capitão Vaz, é o meu pedido.

Um abraço do
Mário



Imagens à procura de comentários: Augusto Trigo e a CART 1746

Beja Santos

Sempre que me encontro com investigadores a estudar a Guiné Portuguesa, ou etnias da Guiné Portuguesa, ou estudiosos das guerras de África, não deixo de os alertar que continuamos com algumas lacunas graves no tocante a esses treze anos: a guerra da Guiné carece, e com algum grau de urgência, de uma tese de doutoramento sobre a governação de Arnaldo Schulz, nós pegamos nos manuais e não há investigador que habilidosamente circunscreva o período de 1964 a 1968 num arrazoado de linhas que não nos permite conhecer a estratégia utilizada por aquele oficial do Estado-maior quanto à ocupação da Guiné, depois das tremendas convulsões que se viveram em 1963; Portugal manteve relações diplomáticas com Cuba durante a guerra de África e não há nenhuma investigação que nos permita conhecer o que consta nos arquivos diplomáticos de Lisboa e Havana, nomeadamente quanto à participação cubana junto dos movimentos anticoloniais PAIGC e MPLA; o Estado de Israel apoiou a política colonial portuguesa, vendeu armamentos e explosivos, etc.

Em conversa com a investigadora Lúcia Bayan, que trabalho no doutoramento sobre a etnia Felupe, deu-me a saber que era depositária pelos herdeiros do general Schulz de um acervo documental e que mo gostaria de mostrar. E um dia aconteceu, folheámos um acervo impressionante de documentação de caráter institucional, vimos álbuns e recortes em doses maciças. No essencial, trata-se de documentação de utilidade subsidiária para quem estudar o Governador Schulz, são recortes de jornais, cópias dos seus discursos, álbuns com imagens à sua despedida, enfim documentação já publicada. Mas encontrei duas exceções. A lindíssima capa de um álbum fotográfico que lhe ofereceram com a cópia de um quadro de Augusto Trigo, um artista infelizmente pouco conhecido, guineense e com um trabalho apuradíssimo ao nível da banda-desenhada. Era bom que o Luís Vassalo, que tanta atenção tem dado à banda-desenhada com motivos na guerra de África, falasse da obra do Augusto Trigo.

No meio daquela caterva de documentos, saltou uma fotografia, via-se nitidamente que era uma imagem avulsa, sem nexo com tudo quanto ali aparecia organizado. Ela aqui está, refere uma viagem do General Schulz a Bissorã, à CART 1746, que esteve em Bissorã e no Xime, lembro-me perfeitamente do falecido Capitão Vaz, com quem estabeleci uma relação afetuosa, teve mesmo a gentileza de colaborar na apresentação de um livro meu. Apelo aos camaradas da CART 1746 que façam comentário desta fotografia, tão gentilmente cedida pela investigadora Lúcia Bayan. Ficamos todos a aguardar.


Capa de álbum fotográfico cedida pelos herdeiros do general Arnaldo Schulz à investigadora Lúcia Bayan, a quem se agradece a partilha. A capa do álbum reproduz um quadro a óleo de Augusto Trigo.
Augusto Trigo no seu ateliê.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22593: Notas de leitura (1386): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte II (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P22595: Convite (16): Vilma e João Crisóstomo convocam as famílias Crispim & Crisóstomo, mas também amigos e camaradas, para um encontro no Mosteiro do Varatojo, Torres Vedras, domingo, dia 24/10/21, com missa às 12h30 por alma de todos os falecidos

 

Anúncio a publicar no jornal regionalista "Badaladas",  de Torres Vedras,
edição de 9 de outubro de 2021


1. Mensagem que o João Crisóstomo, a residir em Nova Iorque, e de momento de passagem por Portugal (com a Vilma, na Eslovénia), acaba de enviar a familiares, amigos e camaradas:

Caríssimo,

Conforme anúncio no "Badaladas", em anexo, este "encontro" tem uma dupla finalidade: reviver e alimentar a nossa amizade e ao mesmo tempo lembrar aqueles que nos foram/são nossos queridos e já nos deixaram.

Este será um momento para,  na celebração desta missa,  lembrarmos os Crispins e Crisóstomos; e todos os nossos amigos, especialmente aqueles com quem no passado partilhamos momentos na nossa vida em teatros de guerra ou em corredores de seminários, mas que são agora apenas saudosas memórias. 

 E em segundo lugar para aqueles com quem estamos ligados por amizades adquiridas depois ao longo das nossas vidas, podermos celebrar esta nossa amizade no claustro do nosso querido Varatojo (, convento do Varatojo ou mosteiro de Santo António, que remonta ao séc. XV, e éstá classificado como monumento nacional desde 1910).

Será um encontro/reencontro simples sem comes e bebes, mas que nos permite matar saudades causadas por longas ausências, devidas a distâncias físicas; ou, não sendo esse o caso, pelas circunstâncias da vida que, mesmo vivendo perto uns dos outros,   nos impõem separações como se estranhos fôssemos uns dos outros.

Para este reviver e alimentar amizades…esperamo-vos a todos de braços abertos. (*)

João e Vilma

2. Anterior mensagem do João Crisóstomo, dirigida ao editor do blogue:

Data - quinta, 23/09/2021, 03:14 



Assunto - Encontro no Varatojo, 24 de outubro de 2021


Caro Luís Graça,
 
Não tinha intenção de te escrever hoje, mas o decorrer do dia de hoje aconteceu ser para mim muito rico em memórias, na maioria relacionadas com a Guiné e camaradas que já nos deixaram. E por isso quase me sinto na necessidade de o fazer ainda hoje, enquanto as coisas ainda estão bem frescas 

Mas antes disso deixa-me falar-te dum encontro no Convento de Varatojo, de cuja intenção te falei há tempos.

Custar-me- ia imenso vir a Portugal e não ter possibilidade de ver/encontrar os meus familiares e amigos. É sempre essa uma das razões, senão mesmo a primeira, que me trazem a Portugal.

Mas as limitações impostas pela pandemia ainda não possibilitam fazer um encontro como tenho feito nos últimos 14 anos. Pelo que decidi desta vez cingir-me ao que fiz nas duas primeiras vezes em que reuni as minhas famílias Crisóstomo e Crispim.

 Nessas alturas pedi que fosse celebrada uma missa em que todos os membros destas duas famílias já falecidos fossem lembrados; ao mesmo tempo que dava a conhecer o evento, sugerindo que seria uma boa ocasião para um abraço entre nós, especialmente aqueles a quem eu de outra maneira não tinha tido ocasião de ver e cumprimentar.

No primeiro ano o encontro foi presidido por um padre, primo meu, e no segundo ano, na impossibilidade deste,  foi o Sr. Padre Melícias que celebrou esta missa.

Este ano vou fazer o mesmo. Será no dia 24 de Outubro, Domingo, às 12.30. Já falei com o Padre Melícias, que assumiu as funções de superior do convento depois da morte do P. Castro no ano passado. 

Depois da missa, embora sem os costumados comes e bebes, teremos ocasião de nos podermos encontrar, observando as directivas necessárias no que respeita à Covid-19. O cclaustro é grande, céu aberto, quase como se estivéssemos num grande jardim ou no meio da mata.

Além dos meus familiares falecidos eu vou incluir os meus colegas de seminário e amigos/camaradas da Guiné. 

Portanto. estão todos convidados. Até porque alguns destes estão ou pertencem a ambos grupos. Como seja o caso do Francisco Figueiredo, que foi depois da Guiné, foi comandante da TAP, ou o caso dum primo meu, natural do Sobreiro Curvo, José Carlos Vieira Martinho, cuja triste história, enviada pelo nosso saudoso Eduardo, foi contada no poste P 19824, no dia 25 de maio de 2019 (**). Sobre ela tu comentaste:

"Eduardo: uma história terrível, como muitas outras que aconteceram na Guiné. Só que esta tocou-te, e de que maneira, a avaliar pelas tuas palavras sentidas. Fizeste bem em reconstituir esta história. Também precisavas de fazer o luto... Andaste meia vida para contar, em público, esta perda trágica do teu amigo e vizinho".

Acabei, entretanto, de visitar Coimbra (incluindo o cemitério da Conchada) e o Bussaco, e isso despertou em mim um rio, irrepremível, de emoções e memórias, nomeadamemte em relação a amigos e e camaradas da Guiné, que já nos deixaram,   a cameçar pelo  Maldonado, cuja campa descobri,  mas também 
o Mano,  o Abna na Onça, o Queba Soncó, o Açoriano e outros que acabaram a sua vida nas terras da Guiné a par dos que, tendo voltado,   da lei da morte já entretanto se libertaram : o Zagalo, o Pires, o Rosales, o Eduardo… Falarei desta visita ao cemitério da Conchada, em Coimbra, em próximo poste.

É, por isso, que  o encontro em Varatojo não será só uma reunião dos meus familiares e amigos. Será antes uma "reunião familiar em sentido bem lato”, tão abrangente quanto o coração, memória e imaginação de cada um de nós o quiser fazer.

João Crisóstomo

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Notas  do editor:

(*) Último poste da série > 1 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22586: Convite (15): Encontro de ex-militares milicianos e amigos que estiveram directa ou indirectamente ligados à contestação antimilitarista e anticolonialista, dia 7 de Outubro de 2021 na Casa do Alentejo

(**) Vd. poste de 25 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19824: Efemérides (302): Faz hoje 46 anos que morreu, na sequência de ferimentos em combate (, um estilhaço de RPG 7, ) o fur mil cav João Carlos Vieira Martinho, do EREC 8740/73, sediado em Bula... Era meu amigo e vizinho do Sobreiro Curvo, A dos Cunhados,Torres Vedras, e eu fui o último dos seus conhecidos a vê-lo, ainda com vida, mas já em coma profundo, no HM 241, em Bissau (Eduardo Jorge Ferreira, ex-alf mil da Polícia Aérea, BA 12, Bissalanca, jan 1973 / set 1974)

domingo, 3 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22594: In Memoriam (408): Lissy Jarvik (1924-2021), de origem judia holandesa, foi salva por um visto do nosso Aristides Sousa Mendes; mais tarde, já eminente médica, especialista em psiquiatria geriátrica, tornou-se uma dos grandes paladinos da memória do cônsul português de Bordéus (João Crisóstomo, Nova Iorque, agora de passagem por Portugal)


Lissy Jarvik, em declarações à RTP, em Lisboa, em 2016: "Sem Aristides de Sousa Mendes, eu não teria vivido os últimos 76 anos"

Fonte: Fotograma do vídeo (2' 02'') da reportagem "Refugiados salvos por Aristides de Sousa Mendes em Portugal". RTP Ensina (com a devida vénia...)



1. Mensagem de João Crisóstomo dirigida aos embaixadores portugueses Domingos Fezas Vital (EUA) e Franscicsco Duarte Lopes (Nações Unidas), com conhecimento ao nosso blogue:

Data - sábado, 2/10, 23:03 (há 15 horas)
Assunto - Lissy Jarvik / Aristides de S. Mendes



Exmos Senhores Embaixadores Domingos Fezas Vital e Francisco Duarte Lopes,

Permitam-me este e mail em simultâneo, pois que honestamente não sei a quem o deva dirigir.

Estou em Portugal de momento e há dias constou-me que o Senhor Embaixador Domingos Fezas Vital nos ia deixar, o que muito lamentamos, mas creio que se nos vai deixar é porque algum valor mais alto se apresenta. Talvez neste momento “congratulações” sejam mais apropriadas do que “lamentações", mas por enquanto foi tudo o que me disseram.

Ao mesmo tempo informaram-me que o Senhor Embaixador Francisco Duarte Lopes ia deixar de ser o nosso representante nas Nações Unidas para ir representar Portugal e os portugueses em Washington. De coração a ambos as minhas felicitações e os melhores votos, sentimentos que minha esposa Vilma comunga também de coração.
 
E porque tenho sido privilegiado pelo favor da amizade de ambos, permitam-me um pedido , partilhado da mesma maneira pela minha esposa Vilma, que esta amizade que generosamente nos têm concedido continue como até aqui, na certeza de que faremos o possível para continuarmos a merecer a vossa amizade.

E agora o fim primeiro deste e-mail : Acabo de saber que a eminente Professora Dra. Lissy Jarvik, ( de 97 anos) que recebeu um visto de Aristides de Sousa Mendes, acaba de falecer. Ambos Vossas Excelências sabem tão bem ou melhor do que eu o papel que ela representou no reconhecimento de Aristides de Sousa Mendes, junto do Yad Vashem - Centro Mundial de Lembrança do Holocausto, filmes /documentários em que o seu testemunho e figura foram proeminentes, as muitas conferências e trabalhos,  etc. 

Logo em 1996 quando comecei a “relançar" o reconhecimento de Aristides de Sousa Mendes nos Estados Unidos - onde na altura toda a gente, incluindo os muitos Rabis e outras figuras responsáveis que contactei, pareciam ter esquecido o nosso grande humanista - , Lissy Jarvik, deu-me o seu apoio entusiasta. 

 Os apoios de Elie Viesel, Eric Saul, Baruch Tenembaum, Presidente da IRWF - International Raoul Wallenberg Foundation ( de que o Papa Francisco, António Guterres, Padre Melícias, e muitos Prémios Nobel são membros) permitiram que este reconhecimento fosse significativo. 

 Na grande Exposição "Visas for Life Exhibit" , nas Nações Unidas em Abril de 2000; no 50º aniversário da morte de Aristides de Sousa Mendes, celebrado em 21 países, na semana de Junho de 2004, data em que em que nasceu o Projecto “Dia da Consciência", reconhecido pelo Papa Francisco em 17 de junho de 2020, Lissy Jarvik esteve sempre presente com o seu entusiástico apoio.

 E em 2010/2011 quando nasceu a Sousa Mendes Foundation US foi Lissy Jarvik a quem foi dado o cargo e responsabilidade de primeira Presidente da Fundação. Curiosamente eu e ela deixamos ambos a Direcção desta Fundação quase na mesma altura, para continuarmos depois e até hoje apenas como “advisors”  da mesma.

A família de Lissy Jarvik acaba de contactar a Sousa Mendes Foundation US  pois querem convidar o consul português em Los Angeles para estar presente no seu enterro que deve ter lugar amanhã, domingo dia 3 ou na segunda feira, dia 4; ainda não tinham ou não sabiam a data certa.

Como disse atrás,   não sei a quem me dirigir neste momento. Sei que a vossa compreensão compensará a minha ignorância. Mas peço-lhes encarecidamente que deem as vossas instruções a quem de direito nesse sentido. É o mínimo (ela merece muito mais!) que podemos fazer. Lissy Jarvik merece a nossa gratidão pelo que tem feito pelo reconhecimento de Aristides de Sousa Mendes.
 
A urgência (a notícia/pedido chegou-me há momentos) leva-me a pedir o favor que tal pedido seja atendido tão cedo quanto possível. Fico aguardando o favor da vossa compreensão e ajuda.

Os meus respeitosos cumprimentos.
João Crisóstomo

crisostomo.joao2@gmail.com
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22551: In Memoriam (407): Celestino Augusto Patrício Bandeira (1946-2021), ex-Fur Mil da CCAÇ 2316/BCAÇ 2835 (Mejo, Guileje e Gadamael, 1968/69)

Guiné 61/74 - P22593: Notas de leitura (1386): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte III (Luís Graça): a excursão de 4 dias, a Lisboa, em 1959


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Quinta de Candoz > Vindimas > 1979 > "De calças arregaçadas até ao joelho ou em cuecas, lá vão eles [, amigos, vizinhos e familiares do dono] pisando e repisando os cachos das uvas tintas até que a grainha comece a boiar no cimo do mosto. Às mulheres era interdita esta função: 'estragavam o mosto', diziam os antigos. Era um tabu que, a custo, só hoje foi esquecido e ultrapassado." (*) ...

No foto, vê-se, de perfil, ao canto direito, o dono da casa e da quinta, o José Carneiro (1911-1996), aos 68 anos. Está a servir canecas de vinho tinto aos homens do lagar que fazem uma pausa para comer uns peticos (ovos mexidos com salpicão mais aletria quente com canela...). Faria 110 anos, se fosse vivo, no passado dia 26 de setembro. 

O lagar já não existe, a casa, com paredes de granito de 200 anos, foi reconstruída... Os campos, em solcalcos, outrora de milho, roubados à floresta de castaheiro e carvalho, deram origem a uma moderna vinha... É hoje a sede da Tabanca de Candoz. 

E já não se produz tinto, só branco... Que este ano andou pelos habituais 13 graus... Castas principais: pedernã (arinto) e azul...Outras: loureiro, avesso, alvarinho... Subregião de Amarante...O grosso das uvas são agora entregues à Aveleda, Penafiel... A vinha dá para manter as despesas do casarão...

Mas lembro-me, em 1979, do "privilégio" que senti, por, aos 32 anos, e pela primeira vez na minha vida, ter sido convidado para ir pisar uvas (tintas) num lagar de pedra... Eu tinha chegado a (e sido aceite em) aquela casa há 3 anos atrás e já tinha dado uma neta ao dono da casa (, de resto, já avô de um bando de netos)... 

Nunca mais entrei num lagar, lugar sagrado.

Não sendo propriamente um "menino da cidade", tendo vivido numa pequena vila, Lourinhã, com avós, tios e primos ali ao lado, no campo (Nadrupe e Quinta do Bolardo), a escassos quilómetros, acompanhei até aos 10, 11, 12,  anos algumas das atividades marcantes da vida rural, como as vindimas, em setembro, ou a matança do porco, em pleno inverno,

Na região do Oeste, na altura uma das regiões do país com mais produção vitivinícola (até aos anos 60), vinham ranchos de homens e mulheres das Beiras, os "ratinhos" ou "bimbos", vindimar os milhares de hectares de vinha que havia espalhados pela Estremadura e Ribatejo... Deslocavam-se em grupo, com um capataz, e dormiam nos palheiros, como animais... Depois, os homens foram para a guerra ou a salto para França, arrancaram-se as vinhas, mecanizou-se a agricultura, a vinha e o trigo deu lugar a outras culturas mais rentáveis, primeiro os pomares de pera rocha e depois as hortícolas ...

Mais tarde, a partir de 1976, descobri as vitivinicultura Norte, na região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar em andamento o passado", a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos), as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco,  os carros de bois "a chiar pelos montes acima", a parceria agrícola e pecuária (formas pré-capitalistas de peodução) , as feiras de gado, as romarias, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta, sim, porque o branco faz-se "de bica aberta")...

Legenda: da esquerda para a direita, os seguintes familiares e amigos do dono: Luís Graça (genro), Gusto (genro), Quim (genro), Manel (filho), António (filho) e Fernando (amigo da família, cunhado do Manel)

Foto (e legenda) : © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Estas  tradições, ligadas a uma economia agrícola fracamente monetarizada, e ainda em grande parte de auto-subsistência (como aquela que se praticava até aos anos 50/60), hoje já se perderam, embora perdurando na memória dos "antigos"...  

Voltei a encontrá-las (e a saboreá-las) no livro do António Carvalho, "Um caminho de quatro passos" (**). Há similitudes entre Medas (Gondomar) e Candoz (Marco de Canaveses): estamos a escassos 60 quilómetros de distância, na mesma região, a de Entre Douro e Minho. 

A primeira parte do livro (e nomeadamente a reconstituição do quotiano da vida rural em Medas, Gondomar,  até aos anos 60 do séc. XX) tem inegável interesse documental (e até etnográfico).  E sociológico: muitos dos homens e mulheres da nossa geração (, a que fez guerra colonial / guerra do ultrmar, 1961/74) conheceram a dureza da vida no campo e e do trabalho agrícola, e, em muitos casos, foi vítima, "avant la lettre", da exploração do trabalho infantil.

Para além da riqueza das observações sobre as culturas e as atividades agrícolas, os apontamentos que o autor nos deixa sobre a sua infância são saborosos  pelos regionalismos ou provincianismos usados, parte dos quais  continuam por grafar nos nossos dicionários ou então são deconhecidos de muitos falantes da língua portuguesa, a começar pelos citadinos e pelos nais novos.

Há uma subcultura camponesa do Norte que está em extinção. Na realidade, quem sabe o que é uma "pipa" e sua equivalência em litros ?  E menos ainda o signifocado de "desarroar as pipas" (tirar o sarro)... "Canastro" (ou espigueiro) também é um vocábulo estranho a um lisboeta. Tal como "canistrel" (pequeno cesto de vime). Tal como "calda bordalesa", "pingue de poro"... Ou ainda "queiró, carqueja e tojo".

A "ajuda rogada" é uma expressão idiomática que me parece muito mais nortenha do que sulista. Ou mesmo se pode dizer de "carro de milho" como medida, ou o "almude" ou a "talha de barro almudeira" (onde se guardava o azeite)... 

Embora o sistema métrico tenha entrado em vigor em Portugal, por volta de 1860, com a intenção de se uniformizae o sistema de pesos e medidas (, mudança fundamental para a criação de um verdadeiro mercado e, portanto, para o desenvolvimento da economia capitalista), persiste até hoje, no campo, o uso das antigas unidade de  medidas portuguesas, como por exemplo, moio, alqueire,  quarta, oitava, maquia , etc. (medidas de capacidade para secos); ou tonel, pipa, almude,pote, canada, quartilho, etc. (medidas de capacidade para líquidos).

Há expressões deliciosas, castiças, como "à  medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar", "tanger os bois", "guiar à soga", "o moleiro que arrochava os sacos de farinho sobre o dorso das mulas", "os dois porcos grandes, que se queriam gordos", "um terço de despacho (desembaraço)"... Enfim, vocábuos e expressões, de sabor castiço, que enriquecem a língua portuguesa, embora tendam a desparecer ou sejam cada mais de uso local ou restrito.

Por isso, volta aqui a reproduzir-se alguns excertos das primeiras páginas do livro (pp. 15-19), com a amável condescendência do autor, e como incentivo à sua leitura integral.



Capa do livro do antónio Carvalho (**)


A PISA E A DESFOLHADA

Setembro era o mês de maior azáfama, porque se juntava a colheita do milho e a vindima, não havendo um minuto de folga naqueles dias ainda grandes, mas já sem as reparadoras sestas. 

Na nossa casa [ em Medas].e nas de envergadura semelhante era sempre preciso assalariar mulheres , sobretudo na vindima, mas também na colheita do milho porque, antes que viessem as chuvas de outubro, o vinho tinha que estar nas pipas e as espigas no canastro. 

Enquanto um carro [de bois, não havia ainda ] andava no transporte das uvas, dos campos para o lagar, o outro carregava as espigas, para a eira. O lagar grande, de quatro pipas, levava dois dias a encher, mas o mais pequeno ficava lotado num só dia. Se hoje havia uma pisa , amanhã podia haver uma desfolhada. As uvas eram pisadas à noite, sempre com a ajuda rogada dos nossos vizinhos. 

Nós, os da casa, à medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar, não tínhamos como evitar esse esforço acrescido, mesmo depois de um dia de trabalho pesado. 

É certo que, quando chegávamos ali aos treze ou catorze anos, entrar pela primeira vez no lagar era sinal de que já éramos homens e essa assunção, havia muito tempo almejada, de uma pretensa maioridade, envaidecia-nos. 

O meu avô nunca pisava, mas estava sempre presente para servir vinho e cigarros aos pisadores, ao mesmo tempo que apontava para um ou outro ponto do lagar onde a grainha ainda não tinha chegado à superfície, sinal de que era preciso ali mais pé. O meu pai, esse andava por ali a dessarroar as pipas e a apertar-lhes as aduelas ou agarrado à prensa a aproveitar os últimos litros de vinho. 

No fim de cada pisa, à ordem do meu avô, saia o primeiro pisador e só se lhe seguia o segundo depois do primeiro ter lavado as pernas, e assim sucessivamente até ao último. 

Alguns pediam aguardente para se livrarem da comichão nas pernas aproveitando para, de um só trago, engolir um pequeno copo dela, antes que todos subissem as escadas de acesso à nossa grande cozinha, onde a minha mãe e a minha tia tinham posto na mesa três travessas grandes de arroz de tomate com bacalhau frito. 

Lembro-me de me sentir grande quando já fazia parte do grupo dos pisadores, sentado ali à mesa, com os meus irmãos mais velhos e o pessoal de fora.

As desfolhadas eram feitas também à noite, ao ar livre, com a luz do luar, se fosse dia dele, com a ajuda de algumas pessoas vizinhas, das nossas boas relações, sobretudo mulheres e raparigas bem novas que se juntavam na nossa eira, a pouco mais de cem metros de casa. Alguns, ainda crianças, à medida que o folhelho se ia juntando, adormeciam cansados, debaixo dele. 

Havia sempre um dos meus irmãos a subir a escada de acesso ao canastro, onde cabiam mais de seis carros de milho, enquanto outro se ocupava a acomodar as espigas dentro das divisórias. 

Era ali que as espigas ficavam a secar, para serem debulhadas, à mediada que precisássemos do milho, em qualquer dia de céu limpo. Debulhava-se sempre para cima de um carro de cada vez, guardando-se o milho, já limpo, numa das caixas grandes que tínhamos em casa. 

E era dessa caixa, enorme aos meus olhos de criança que, todas as semanas, se enchiam dois sacos para entregar ao moleiro que os arrochava sobre o dorso das mulas.

E não era demasiado o milho que mandávamos moer, porque para além da farinha para a fornada semanal, também os dois porcos grandes, que se queriam gordos, gastavam dela.


A CULTURA DA BATATA

Logo a seguir ao milho e ao vinho,  a batata era o produto mais representativo na nossa casa de lavoura, em termos de volume e de rendimento. 

Desde a década de quarenta até à minha adolescência uma parte significativa do trabalho era dedicado ao cultivo deste tubérculo que, semeado entre março e abril, não carecia de rega, adaptando-se assim muito bem aos nossos terrenos onde a água não abundava. 

O meu avô e mais tarde o meu pai deram uma especial atenção ao incremento desta cultura e terão sido, durante duas ou três décadas, os maiores produtores de batata da freguesia. 

Em quase metade dos nossos campos, bem estrumados, semeávamo-las, ficando os restantes, aqueles que podiam ser regados, dedicados ao milho e feijão consociado. Depois de se ter coberto o terreno com uma boa camada de estrume, lavrava-se e gradava-se com os bois. 

O trabalho de que mais gostava, aí pelos meus oito ou nove anos, era de me sentar na grade, agarrado com uma das mãos a uma das travessas enquanto que, com a outra munida de uma vara, tangia os bois à ordem do meu pai ou de um irmão mais velho que os guiava à soga. 

Não me dói a consciência por , com o meu peso, exigir aos bois aquele esforço suplementar, porque, se não fosse eu a desfrutar daquele prazer, um calhau grande seria lá posto na minha vez para fazer os dentes da grade penetrar bastante na leiva.

Encontrando-se a terra bem desfeita logo se começava a semeadura. Numa ponta do campo, aproveitando a sombra de alguma árvore, à minha mãe cabia sempre o trabalho de partir as batatas de semente, o que ela fazia com uma rapidez impressionante, tendo ainda o cuidado de deixar um só galeiro para cada bocado. 

A minha avó materna também ajudava algumas vezes bem como a minha tia Quina, mas ficavam-se por um terço do despacho da minha mãe. O meu avô dirigia as operações dos homens da enxada, enquanto o meu pai já andava a lavrar outro campo. 

Havia normalmente dois ou três homens a abrir regos e meu avô, sabendo da capacidade e vontade de cada um, mandava sempre o mais lento começar no primeiro rego, deixando o último para o trabalhador melhor, forçando deste modo os mais lentos a andar da perna, antes que o mais rápido esbarrasse com ele, o que seria uma vergonha para o atropelado. 

A mim, como a qualquer um dos meus irmãos, a partir dos sete ou oito anos, estribados por uma varinha de vinte e cinco centímetros, cabia-nos a tarefa de dispor as batatas nos sulcos que os adultos iam abrindo.

Naquele tempo não se usavam herbicidas, por isso logo que as primeiras ervas daninhas afloravam à superfície recorria-se ao trabalho de mulheres que vinham fazer a sacha removendo toda a vegetação nociva. 

Entretanto era preciso pulverizar os batatais com calda bordalesa e inseticida de modo a erradicar-se o míldio e o escaravelho. Julho e agosto eram os meses da colheita e do armazenamento numa loja fresca e escura. Tínhamos batatas em barda e, como a produção excedia largamente o consumo, vendíamo-las para as mercearias da freguesia e até para o Porto onde as fazíamos chegar por barco rabão.

Os campos de batatas ficavam disponíveis para nova cultura , a partir de agosto, semeando-se então, nabos, em quase todos eles, no mês de setembro, logo que, na mudança do vento, se adivinhava a ocorrência das primeiras chuvadas outonais, aproveitando-se a generosa estrumação de que tinham beneficiado. 

A cultura do nabal era também muito rentável, até aos anos sessenta, quando vinham diariamente meia dúzia de mulheres da outra margem do rio, comprar grandes quantidades de nabos que carregavam em gigos bem acogulados, destinados à alimentação humana e à engorda de porcos.

A ÁREA BRAVIA E A  LAVRADIA

Nenhuma casa de lavoura podia ter grande expressão nem sustentabilidade se não tivesse uma área de terreno bravio proporcional ao terreno lavradio, onde os lavradores tinham as suas reservas de mato para as camas do gado. 

E a importância dos matos, constituídos fundamentalmente por queiró, carqueja e tojo,  tornou-se mesmo decisiva, quando a cultura do milho e da batata se impuseram, em detrimento da cultura do linho e dos cereais de grão miúdo, no séc. XIX, exigindo a estabulação do gado bovino para, deste modo, se obter maior quantidade de estrume. 

Ora nessa área de terreno  inculto, dispersa por várias parcelas a que os lavradores chamavam sortes, por terem sido distribuídas  por sorteio, em número proporcional à área agricultada de cada um, não crescia só o mato, mas medravam ainda o pinheiro e o eucalipto, para além das espécies autóctones, como o carvalho, o sobreiro, o castanheiro, o salgueiro e o medronheiro, estes em progressiva redução. 

Os lavradores maiores que tinham excedentes de mato,  vendiam, para os fornos do Porto, alguma carqueja e queiró, mas era na venda de lenha de eucalipto e pinho que eles, anualmente, incorporavam no seu orçamento familiar, uma verba significativa.

 Habitualmente era no fim do verão fim do verão que vendiam os seus pinheiros, reservando para consumo doméstico toda a ramagem que era empilhada ao lado das casas, perto da cozinha, numa meda proporcional ao número de pessoas de cada família. Eram essas rameiras, em vez das lenhas mais nobres, que se utilizavam nas  lareiras de quase todas as casas, antes da chegada dos fogões a gás e a eletricidade

A lenha das videiras que resultavam da poda, bem como os carolos do milho eram também combustíveis excelentes usados nas lareiras e nos fornos domésticos. As famílias que não tinham sortes pediam aos lavradores autorização para cortar uma rodada de ramos em cada pinheiro, carregando-os em feixes à cabeça, até suas casa. 

As medas de ramos de pinho feitas todos os anos, no fim do verão, à porta de cada família, faziam também parte dos monumentos rurais da minha freguesia e das vizinhas, e pelo seu tamanho também se ajuizava da pujança da casa.


O AZEITE , O ÓLEO DOURADO


Na agricultura de auto-suficiência tudo o que fosse importante para a alimentação havia de ser produzido numa casa de lavoura. 

Mas a oliveira não gosta dos ares marítimos do litoral nem dos nevoeiros, por isso dificilmente alguma casa de lavoura das Medas, por maior que fosse, produzia meia pipa de azeite [talvez cerca de 200 litros]. em anos bons, sendo que, na rigorosa gestão da nossa casa, era imperativo guardá-lo, dos anos melhores para os minguados. 

Entre novembro e dezembro  era a altura de se colher a azeitona nas oliveiras invariavelmente plantadas no bordo dos campos, para não ensombrarem as outras culturas. O povo dizia que eram aneiras, por isso nunca acreditava que a um ano farto pudesse suceder outro igual e tratava-as como parentes pobres da agricultura, sem grandes cuidados,  deixando que as copas se desenvolvessem na vertical, sempre com o propósito de  evitar que se apoderassem do solo com a sua sombra.

A colheita era quase toda feita através de escadas de pinho com passais de oliveira que os rapazes ou homens feitos escalavam, de canistrel na mão, para chegarem até onde fosse possível. Nalguns casos era mesmo imperioso varejar os ramos mais altos.

 Ultimamente estendíamos, debaixo de algumas oliveiras, um panal feito de serapilheira para a recolha da azeitona que varejávamos do chão e de cima das escadas. 

A azeitona colhida mais cedo e sempre à mão era para curtir em talhas de barro almudeiras, e era também nestas talhas grandes que se guardava o azeite, esse preciosíssimo óleo que era servido à mesa muito moderadamente e quase só em batatas cozidas, quando não fossem acompanhadas de carne gorda.

Na culinária a gordura que se usava mais frequentemente era o pingue de porco, branco como a neve, guardado em pequenas talhas para o ano.

António Carvalho

(Continua)

PS - Selecão de excertos, itálicos e negritos, da responsabilidade do editor LG.

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Fonte: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.

O livro pode ser adquirido, ao preço de 15,00 Euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) Contactos do autor, António Carvalho, Medas, Gondomar

Email: ascarvalho7274@gmail.com | Telemóvel: 919 401 036

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

24 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21388: Manuscrito(s) (Luís Graça) (191): Quinta de Candoz: vindimas, a tradição que já não é o que era... (Augusto Pinto Soares) - Parte I

(**)  Vd. postes de:


3 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22593: Notas de leitura (1386): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte II (Luís Graça)

(***) Último poste da série > 16 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23003: Notas de leitura (1419): Prefácio do nosso camarada Adão Cruz, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Caquelifá e Bigene, 1966/68) , ao livro "A Máscara (teatro)" (2015), de Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73)

Guiné 61/74 - P22592: Parabéns a você (1994): Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS - STM (Piche e Bissau, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22578: Parabéns a você (1993): António Bastos, ex-1.º Cabo At do Pel Caç Ind 953 (Cacheu, Farim, Canjambari e Jumbembem, 1964/66)