domingo, 3 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23405: A minha guerra foi pior que a tua?!...(1): Bambadinca (1969), Gandembel (1968/69), Gadamael (1973) (Luís Graça / C. Martins / Hugo Guerra / Alberto Branquinho / Joaquim Mexia Alves)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Invólucros de granadas de canhão s/r, deixadas na orla da mata contígua à pista de aviação, na noite do ataque a Bambadinca, 28 de maio de 1969...  


Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 2769 (Gadamael e Quinhamel, de janeiro de 1971 a outubro de 1972) > Vista aérea de Gadamael Porto nos finais do ano de 1971. Foto do cor art ref António Carlos Morais da Silva, e por ele gentilmente cedida ao nosso camarada Manuel Vaz.

Foto (e legenda): © Morais da Silva (2012) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 2317 (1968/69) > A messe de oficiais

Foto (e legenda): © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Nas nossas conversas sobre a Guiné do nosso tempo (1961/74), já tenho ouvido "bocas"  do género: "Ah, mas não compares, o meu sítio foi muito pior do que o teu!"... 

Pior? Melhor? O que isso quer dizer? Há escalas para medir estas coisas?... Não creio. E até agora nunca ouvi dizer, a nenhum antigo combatente, que passou lá, na Guiné,  "as melhores férias da sua vida"...

Mesmo em Bissau, não havia o conforto e a segurança  que se podia esperar, por comparação, por exempo, com as outras capitais dos territórios em guerra, como Luanda e Lourenço Marques. Bissau chegou a ser flagelada, houve atentados terroristas, ouvia-se Tite a "embrulhar", estava a escassos quilómetros de Bissalanca e da Base Aérea nº 12, havia um inusitado movimento  de tropas, viaturas, aeronaves, navios da marinha,  estava rodeada de quartéis, tinha um enorme perímetro de duplo arame farpado, etc. 

Bissau era o "hall" de entrada da guerra...  Mas não se vivia lá tão mal (e em insegurança) como na generalidade dos quartéis e destacamentos do "mato"...  E no "mato" a guerra (e a sua violência) foi evoluindo com o tempo, e o próprio dispositivo militar foi crescendo e adaptando-se, de acordo com o terreno, a região, a implantação do IN, a sua agressividade, estratégia, armamento, população sobre o seu contr0lo, etc.  E, claro, o conceito de estratégia  dos nossos comandantes-chefes (de que destaco os três principais, Arnaldo Schulz, 1964/68; António Spínola, 1968/73; Bettencourt Rodrigues, 1973/74)...

Claro que havia diferenças em função do ramo das forças armadas a que se pertencia (Exército, Marinha, Força Aérea), especialidade, posto, local, período, companhias de quadrícula e de intervenção, tropa especial e "tropa-macaca", etc. 

Os desgraçados que estiveram em Gandembel (de abril de 1968 a janeiro de 1969), os "homens de nervos de aço", sofreram 372 ataques e flagelações em menos de nove meses, até que o Spínola mandou retirar aquele  dispositivo (em Gandembel e Balana) (*)... (Nos últimos tempos temos falado pouco de Gandembel, será que já está tudo dito ?!...)

Nunca ninguém contabilizou os milhares de granadas que lá cairam... e muito menos a dor, o sofrimento (físico e psíquico), o luto, o stresse pós-traumático, etc. (coisas que são mais difíceis de descrever, medir, quantificar...).

Mas Gandembel foi, fora de dúvidas,  um dos piores sítios da guerra da Guiné, mas também só existiu durante o tempo necessário para uma mulher gerar uma criança (nove meses). Depois a FAP foi lá e escaqueirou todo o trabalho ciclópico dos homens da CCAÇ 2317 (1968/70), que construiram, sob as ordens de Schulz e depois de Spínola, aquele quartel, a pá e pica, e defenderam-no com unhas e dentes das investidas do 'Nino' Vieira...

O mesmo se pode dizer de Guidaje, Guileje e Gadamael, nos meses de maio/junho de 1973... Será que se tornaram "colónias de férias" ou "resorts turísticos" depois disso? Guileje foi retirada em 22 de maio de 1973, por isso fica fora da corrida... Por seu turno, Guidaje acalmou, mais depressa que Gadamael... E houve outros sítios (por exemplo, na zona leste, no setor de Nova Lamego) que também conheceram o inferno depois da "batalha dos 3 G": Copá, Canquelifá, etc.

Como se costuma dizer,  cada um sabe de si e Deus sabe de todos...  Mas cada um tem o direito de dizer, aqui no blogue,  onde e quando a guerra lhe doeu mais...  

Vamos lá "repescar" alguns comentários do nosso vastíssimo blogue, que já tem mais de 23,4 mil  postes e 93,4 mil comentários... Alguns comentários "escondidos" (na vitrine das traseiras) merecem vir até à montra principal do nosso blogue, mesmo que seja uma dezena de anos depois... Ficamos também a saber que alguns dos nossos leitores (e comentadores) são mais nocturnos ("mochos") do que diurnos ("cotovias")...


2. Seleção de nove comentários, datados de 30 e 31 de Maio de 2011 e de 1 de junho de 2011, de vários camaradas,  ao poste P8345 (**), poste esse que teve cerca de 4 dezenas de comentários, numa altura (2011) em que ainda havia muita coisa para dizer, contar ou comentar, e a malta ainda tinha muito sangue na guelra. Mas também, de algum modo, estávamos a aprender a lidar com as nossas diferenças de perceção e opinião... e a cultivar o humor de caserna.

Refira-se, por fim que  um dos autores do poste P8345 (o Carlos Marques dos Santos) e três dos comentadores (Jorge Cabral, Luís Faria, Torcato Mendonça), infelizmente já faleceram... Curvo-me à sua memória e não lhes perturbo o sono eterno.

(i) Luís Graça | 29 de maio de 2011 às 07:38

(...) Para um "pira" acabado de desembarcar numa LDG no Xime, e que faz o percurso Xime-Bambadinca, em coluna auto, com forte protecção, e debaixo de grande tensão, na manhã de 2 de junho de 1969, a imagem do amontoado de invólucros (e empenagens) de granadas de morteiro e canhão s/r é das coisas que ficam logo na retina...

Fiz/fizemos o mesmo "percurso turístico" que muitos outros camaradas da zona leste, ao passar e parar em Bambadinca, a caminho do centro militar de Contuboel (por exemplo, visita aos quartos atingidos por morteiradas)... Felizmente que, embora tendo bom armamento (e até sofisticado), os artilheiros do PAIGC eram em geral mauzinhos, por falta de formação técnica...

O ataque a Bambadinca teve sobretudo impacto político e psicológico... É de destacar a "ousadia" do PAIGC... E a data escolhida (28 de Maio) também não terá sido arbitrária...


(ii) Luís Graça | 29 de maio de 2011 às 08:17

Que a defesa militar de Bambadinca foi descurada, não temos dúvidas... Estava-se sob o efeito psicológico, positivo, da Op Lança Afiada... Ninguém acreditava que alguma vez Bambadinca pudesse ser atacada... Em Maio de 1969, Bambadinca tinha apenas os seguintes efectivos:

(i) Comando e CCS do BCAÇ 2852

(ii) Pel AM Daimler 2046

(iii) Pel Mort 2106 (-)

(iv) Pel Caç Nat 63

Casa arrombada, trancas à portas... Daí o desgraçado do Carlos Marques Santos ter saído de Mansambo para ir "montar a tenda" na ponte (semidestruída) do Rio Udunduma... Daí as emboscadas (todos os dias) em Bambadincazinho (na célebre Missão do Sono), a abertura de valas à pressa... São factos a lembrar. (...)


(iii) C. Martins | 30 de maio de 2011 às 01:05

(...) Sempre que leio estas estórias fico com inveja... Oh bambadinqueiros, foram todos uma cambada de sortudos!... 

Nós, os gadamaelistas,  era assim: embrulhar, corrida para os abrigos ou espaldões de obus e morteiros, comer vianda, jogar póquer  de dados, beber Old Parr ou Gin com água da bolanha, dormir nos intervalos, sair para o mato, embrulhar, idem, idem, idem... Isto para os graduados, porque para os soldados ainda era pior.

Eu já sabia que tinha sido assim, só estou a confirmar. Não me lembro de ter passado um único momento agradável. Não nos podiamos dar ao luxo de facilitar.

Um alfa bravo para todos os sortudos. 
O invejoso C. Martins (ex-artilheiro em Gadamael)


(iv) Hugo Guerra | 30 de maio de 2011 às 20:23

(...) Faz tempo que me remeto ao silêncio, embora todos os dias e por mais que uma vez "folheie" o nosso blogue. 

Reparo que é preciso muito cuidado para deixar algo escrito porque as apreciações chovem, o que é salutar, e portanto todo o cuidado é pouco com o que se digita.

Hoje fiquei banzado com o relato do ataque a Bambadinca, localidade que eu, na minha ingenuidade dos vinte anitos, pensava não existir na Guiné que frequentei entre Agosto de 68 e Março de 70. (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e São Domingos), só para avivar a memória.

Que me perdoem os homens e mulheres que fizeram a guerra em Bambadinca, mas podiam ficar-se pelas belas desrições que fazem das Messes, das Familias presentes, da vida social e do que mais constituia o seu dia a dia e lembrarem-se de vez em quando das centenas de ataques junto ao arame farpado em Gandembel, dos mortos e feridos que lá tivemos, e éramos cerca de 500 homens enterrados nos bunkers, à espera que a noite corresse bem e não nos entrassem no arame farpado.

Bolas... não me venham dizer que todas as "estadias" na Guiné eram iguais. Isso é fazer esquecer Madina do Boé, Guileje, Gadamael Guidage e outros tantos buracos onde os nossos militares faziam das tripas coração para sobreviver.

Não me sobra engenho e arte para descrever o que eram essas flagelações, mas custa-me ver que o blogue está a ficar demasiado cor de rosa.

As porradas que vou levar dos camaradas que habitualmente escrevem no blogue, serão encaradas com simpatia porque muito poucos escolheram as suas estâncias de férias.

Quando em Set 1970 fui viver e trabalhar para Angola, no Ambriz primeiro e em Camabatela por último, aí sim, vi com os meus olhos o que era uma guerra convencional e de ar condicionado, com mortos e feridos em acidentes de viação e chá das cinco em casa dos gerentes coloniais das fazendas, que ainda os havia... Mas isso são outros trezentos que, por exemplo, o camarada Rosinha bem conhece...

Agora a minha Guiné... poupem-me, sem ofensa para ninguém. (...)


(v) Alberto Branquinho | 30 de maio de 2011 às 23:06

(..) Ó camarada Hugo Guerra! Que coragem! Ando, desde 6ª feira à noite, a matutar sobre "comento... não comento".

E, agora, fazendo novo acesso a este post sobre o ataque a Bambadinca (primeiro lugar onde arrimámos, para ficar em Fá uns meses), vejo que alguém veio dizer aquilo que eu andava a matutar: digo/não digo... embora de forma mais comedida.

É que o que eu queria, afinal, dizer era da trabalheira que dariamos aos editores se escrevessemos sobre as vicissitudes dos vários ataques diários (nocturnos e diurnos) que sofriamos em Gandembel e Ponte Balana. (Pelo menos durante o quase mês e meio que durou a operação Bola de Fogo).

E o que teriam que contar os de Guileje, Gadamael, Guidage, etc. Preocupação era quando estavam um dia sem atacar ("O que é que os gajos estarão a pensar fazer?").

Desculpem qualquer coisinha (...)

 
(vi) C. Martins | 31 de maio de 2011 às 00:21

(...)   Eu até sei porque fui destacado para Gadamael: foi por motivos políticos... O meu o crime foi pertencer à pró-associação de estudantes da FML - Faculdade de Medicina de Lisboa.

Não, não era do PCP, se bem que os pides pensavam que sim, e por isso bastante porrada levei em Caxias, para além da tortura do sono. 

Solto, malhei com os costados na tropa. Mobilizado para o CTIG, passei dois dias em Bissau, e aí vou eu de batelão até Cacine e de sintex até Gadamael. 

Aí chegado deparo com um ambiente surrealista, 15 minutos depois de desembarcar, parti o bico com elas a cairem junto ao arame farpado em frente aos obuses, a mata a arder e eu em cima da roda do obus a armar aos cucos para demonstrar que os tinha no sítio... Só que estava borrado de medo. Fiquei logo apanhado do clima.

Camarigos, quando digo que muitos foram uns sortudos, estou a falar a sério, assim como quando digo que tenho inveja.

Quero realçar que não me considero nenhum herói, apenas fui objecto das circuntâncias.

Era contra a guerra, e tinha bastante consciência política... mas jamais pensei em desertar ou ser refractário... O que é uma contradição, é verdade... Mas, o que é que querem?... Gosto muito de ser tuga, porra... Estou a ficar emocionado.

Acho que já disse demais, para quem quer ficar no semi-anonimato, e tem idade para ter juízo.

Um alfa bravo para os sortudos, e principalmente para os menos. (...)


(vii) Joaquim Mexia Alves | 31 de maio de 2011 às 09:47

(...) Perante alguns comentários aqui colocados, resta-me pedir desculpa por me ter "armado" em combatente. É que não estive em Guidage, Guileje, Gadamael, e outros sítios e como tal não tenho direito a contar as minhas "férias" na Guiné.

Não sou um combatente, sou um sortudo!!!

Ainda gostaria de saber quem foi que meteu uma cunha para eu ter tanta sorte em ter ido para a Guiné, para os sítios tão agradáveis em que passei dois anos da minha vida?

Pior do que eu, ou seja, ainda menos combatente, só o cozinheiro que nunca saiu para o mato!

Mato? Qual mato? Aquilo era um jardim onde se saltava à corda e brincava à cabra-cega!

Remeto-me à minha insignificância, e peço desculpa por ter estado na Guiné.

Um abraço para todos, com um sorriso, porque o humor ajuda a sentirmo-nos bem. (...)


(viii) Alberto Branquinho |   31 de maio de 2011 às 12:44

(...) Pensei que estavamos a falar "só" de ataques a aquartelamento(s) e não da "guerra fora de portas"... para onde foi extrapolado o cotejo.

É que quanto a "guerra fora de portas" há, logo, um factor importante, que é o de muitos (a maior parte das unidades) terem permanecido todo o tempo no mesmo quartel ou na mesma (reduzida) zona e outros terem andado durante dois anos com a "trouxa" às costas, como unidades de intervenção, como "mulheres-a-dias" a fazer limpezas em casa alheia, por quase dois terços da Guiné. Transportados em colunas-auto e variadas vezes em Lanchas de Desembarque, contando, neste caso, com uma emboscada. (...) 


(ix) C.Martins | 1 de junho de 2011 às 00:23

(...) Pronto, está o "caldo entornado"... Peço desculpa a todos que se sentiram ofendidos ao chamar-lhes "sortudos".

Não foi minha intenção menosprezar e muito menos ofender quem quer que seja... Não penso nem nunca pensei que fui melhor que os outros... só porque estive num sítio onde a guerra foi mais intensa...

Cada um sabe de si. A minha forma de estar na vida, não é propriamente vangloriar-me do que fiz, nomeadamente na guerra.

Todos fomos combatentes, mas não se pode escamotear a verdade... havia no TO da Guiné zonas mais "quentes" do que outras... é ou não é verdade?

Eu só falo de Gadamael, porque foi o único sítio onde estive, posteriormente também estive em Bissau já na fase de retracção das NT quando já não havia guerra, onde a bem da verdade, passei os únicos tempos na "descontração".

Penso que uma das finalidades do blog, é cada um relatar aquilo que passou. (...)

Ainda quero dizer a todos os camarigos, que aquilo que nos une (ex-combatentes na Guiné) é bem mais forte, independentemente das opiniões de cada um.

Por favor levem isto na "desportiva".. eu pelo menos levo. (...)

(Luís Graça):

(...) Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação [, Lança Afiada,], o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFog, morteiros...

Esse ataque ficou célebre: os camaradas de Bambadinca, segundo algumas versões que ouvi na altura, da "velhice", e dados que confirmei mais tarde, teriam sido apanhados com as calças na mão, far-se-iam quartos de sentinela sem armas, não havia valas suficientes, houve indisciplina de fogo, etc...

 Claro que no dia seguinte o Caco Baldé, alcunha por que era conhecido o Gen Spínola, deu porrada de bota a baixo, na hierarquia do comando do batalhão, do tenente-coronel (Pimentel Bastos, o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS (...).

A sorte da malta de Bambadinca (Comando e CCS/BCAÇ 2852, Pel Caç Nat 63, Pel Mort 2106 e Pel AM Daimler 2106, sem esquecer os civis...) terá sido, diz-se ainda hoje, os canhões s/r, postados ao fundo da pista de aviação, terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... 

Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, menos de uma semana depois, a 2 de junho de 1969, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de 18 meses de inferno... quando fomos justamente colocados... em Bambadinca como companhia de intervenção, leia-se, de "pretos"), alguns dos nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda falavam com emoção deste ataque:
- Podíamos ter morrido todos - dizia-me o 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, natural da minha terra, Lourinhã (...)

Na história do BCAÇ 2852, o ataque (ou melhor, "flagelação") a Bambadinca é dado em três secas  linhas, em estilo telegráfico: 

"Em 28 [de Maio de 1969], às 00h5, um Gr IN de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros. " (...). 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

sábado, 2 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23404: Os nossos seres, saberes e lazeres (510): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Estas romagens de saudade têm os seus preceitos. Não há aspetos enfadonhos por retornar aos lugares conhecidos, vem-se em alforria, escolhe-se à carta, só há dias marcados para o Vale das Furnas, até lá tocam as campainhas. É a primeira manhã em Ponta Delgada, e logo assoma à memória a fase de adaptação à vida da cidade, de modo geral todos os outros tinham vida familiar organizada, eram muito poucos os que andavam a amanhar com recursos próprios. Tinha mapas das ruas, havia já os rigores outonais, quando ao fim da tarde descia da Rua de Lisboa em diferentes direções. Primeiro foi a descoberta do desenho da cidade, aquelas ruas quilométricas que pareciam vir lá do fundo da costa sul e se embrenhavam de São Pedro a São Roque; e no casco histórico de Ponta Delgada dei comigo a subir e a descer dentro daquele plano ortogonal que ainda hoje me surpreende. Mas por ali andei a mirar monumentos do meu culto, como o Convento de Santo André ou a Igreja do Colégio, de olhos postos no chão a contemplar os enleios geométricos da calçada portuguesa, a passar pelos jardins e a cogitar o que fazer durante a tarde, recordei João Bom, sabe-se lá porquê, talvez pela proximidade à Bretanha, não havia chuva à vista, passeou-se a manhã toda, amesendar-se era outro propósito e a seguir tomou-se a camioneta da carreira. Como nos velhos tempos, tinha que ser.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2


Mário Beja Santos

Começo a manhã na vadiagem, há objetivos definidos, mas não quero furtar as surpresas, é para isso que serve a memória e meio século de afetos perduráveis, inquebrantáveis. Desço a Rua do Contador, aqui está à minha espera o Convento de Santo André, uma das maiores formosuras da arquitetura religiosa, data do século XVI e escusado é dizer que andou ao sabor das remodelações. Num dos primeiros fins de semana disponíveis, em outubro de 1967, vim visitar o Museu Carlos Machado, criado em 1930, entrava-se pelo lado oposto desta primeira imagem, subia-se uma escadaria, havia a graciosidade de um pequeno jardim, e assim se entrava no que fora um convento de religiosas clarissas, impressionara-me muito a igreja, de uma só nave, com a sua cobertura de pinturas e as impressionantes grades de ferro forjado, e fora um prazer aquela área de História Natural. Limito-me agora a mirar o convento por fora, toca-me esta harmonia, a moldura dos janelões, a austeridade das grelhas para quem está dentro ver e não ser visto, e depois, como é impressiva a imagem do rendilhado dos janelões. Não quero empanzinadelas de arte, sei que no Núcleo de Santa Bárbara, em edifício próximo, um espaço de recolhimento recuperado, estão as exposições dos dois artistas plásticos, Domingos Rebelo e Canto da Maia, hoje de manhã visito o primeiro, a ambos conheço bem, quero revê-los cuidadosamente para melhor os conservar.

A caminho do Núcleo de Santa Bárbara, quedo-me diante deste pormenor de calçada portuguesa que logo me assombrou quando aqui cheguei, a quantidade imensa de desenhos geométricos, veja-se a profundidade desta rua que muitas outras, também em profundidade atravessam, é certo que há momentos em que se caminha a medo, tal e tanto é o tráfego rodoviário, mas os passeios estreitam-se, é a contingência do desenvolvimento, guardo as saudades daquele tempo em que caminhava tão gostosamente a pé, para saborear a ortogénese, a perpendicularidade destas ruas estreitas, parece que vieram do campo para a cidade, guardando este casario baixo compactado, o que dá um encanto por aqui vaguear na dimensão da escala humana.
O que mais gosto em Domingos Rebelo é a sua narrativa em prol da açorianidade, mesmo sendo ele dotado de uma paleta suave, vem da escola realista, naquele turbilhão de Paris, caldeiro de movimentos estéticos, foi ali que firmou o seu pincel figurativo, com ressaibos naturalistas, e daí esta plasticidade onde cabe retrato, neste caso e elegia dos trabalhos agrícolas, onde não faltam nuvens tormentosas, e daqui se salta para um tema icónico, os imigrantes, ele regista o que é fundamental levar dos parcos bens, bem visível o registo do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e há a dor da partida e também aquela figura enigmática da senhora da cidade, bem enchapelada, que tudo olha sem interferir, e o pano de fundo aquelas Portas da Cidade, hoje profundamente alteradas.
Vamos agora aos retratos, primeiro um artista dos tempos de Paris, atenda-se à pose, à meditação, ao sossego das mãos, não é artista em transe, poderá ser poeta ou músico. A obra seguinte toca-me muito, dentro da linhagem do Orpheu, ele foi o último, aí talvez por fevereiro de 1968, o grande etnógrafo e poeta quis conhecer-me e convidou-me para jantar na Rua do Frias, bem perto deste Núcleo de Santa Bárbara onde o estou a recordar, no retrato ele está no vigor da idade, recebeu-me no alto das escadas, com uma estranhíssima indumentária que parecia ter uns guizos, ainda pensei que era traje gaúcho, a um jovem sem obra que se limitara a cumprir um programa de conferências proposto por amigos, era deferência demasiada. Contemplo o retrato, recordo o jantar e os dois livros que me ofereceu, ganhei forças para ir ver mais tarde a exposição que está na Biblioteca Municipal.
Sob a forma de um tríptico, Domingos Rebelo faz desfilar gente piedosa que vem beijar o pezinho do Menino Jesus, todos os olhares se encaminham nessa direção, a exceção está no primeiro plano, aquela mãe ajoelhada fará certamente um comentário à menina de pé descalço, seguramente sob o olhar do sacristão, e curiosamente o menino que balança o ostensório é figura única que domina a cena, e o que podia ser um desequilíbrio na figuração acaba por organizar toda a sinceridade e ingenuidade da tensão religiosa.
É a oração de romeiro, e duas recordações me assaltam. A primeira, e a de carro, algures na costa norte, e avançava em marcha cadenciada um grupo de romeiros, conforme me alertaram. Saímos da viatura, como prova de respeito. Nada me fora dado ver tão intenso sinal de piedade, o coro da reza, o caminhar sem distrações, a austeridade da indumentária, os velhos e as crianças, provando que o amor a Deus não divide as idades. A segunda, foi uma brejeirice, convidado a fazer uma conferência no Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, na autarquia de Ponta Delgada, fui recebido à porta pelo seu presidente, o Dr. Machado. Vendo-me a contemplar um quadro que logo identifiquei como saído da paleta de Domingos Rebelo, uma família orando com um pão em primeiro plano, logo comentou: “Este quadro estava no meu gabinete, confesso que a certa altura em já não podia ver aquele pão a toda a hora, mandei-o pôr aqui à entrada, e olhe que está muito bem, não lhe parece?”.
Domingos Rebelo não precisou de copiar ninguém, mas devo dizer que desconhecia esta obra que até me recordou o espanhol Joaquín Sorolla, pelas cores vivas, pela movimentação na orla da praia, pela ondulação e imponência da figura principal, aquele equilíbrio ao ombro de quem sabe como e o que transporta. Como fiquei a gostar desta embriaguez de luz!
Despeço-me de Domingos Rebelo revendo o seu autorretrato, ele em pose de desfastio, como se simulasse que estava a ser fotografado em momento de pausa, e temos a sua mulher, a sua musa, de olhar vagante, meticulosamente inserida num meio florido, ressaltando o acetinado do vestido daquele esverdeado neutro, que, sabe-se lá porquê, me lembrou Cézanne, passe a autenticidade deste mestre açoriano.
Outro local de memória, um daqueles jardinzinhos que pululam dentro da cidade, decidira fazer uma pausa, não havendo hoje o meu saudoso Café Gil, o nosso ponto de encontro noturno, estando fechada a livraria também, fui matar saudades à Tabacaria Açoriana, guarda formato antigo, tem hoje outra substância, mas os livros lá estão, a preços económicos, e as pessoas ali se reúnem em tertúlia, como nos velhos tempos. Parei e meditei. Quero ver se organizo o programa da cidade da tarde, há autocarros, está decidido, se tiver a sorte de comer uma boa sopa de peixe na Central, vou até João Bom. O que veio a acontecer.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23383: Os nossos seres, saberes e lazeres (509): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23403: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (7): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte VI: o ataque a Gadamael Porto: de 31 de maio a 11 de junho, o IN disparou cerca de 1500 granadas de canhão s/r e morteiro 120



Guiné > Região de Tombali > Gadamael > De 31 de maio a 11 de junho de 1973, em cerca de 6 dezenas de flagelações, caíram em Gadamael Porto 1468 granadas de canhão s/r e de morteiro 120. Fonte: CECA (2015), p. 333



Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 >  O alf mil Carlos Milheirão (*), depois,  no obus 14, e por detrás, assinalados por seta e  legenda, o depósito de géneros e a enfermaria


Foto nº 2  > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Em primeiro plano, o autor das fotos, o alf mil Carlos Milheirão, que esteve em Gadamael entre fevereiro e julho de 1974.


Foto nº 3  > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Legendas, em primeiro plano, o Carlos Milheirão... À volta, da direita para a esquerda (i) portadas da messe; (ii) depósito de géneros e enfermaria; (iii) canhão sem recuo; e (iv) geradores elétricos (?).


Foto nº  4 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
O Carlos Milheirão no espalddão do obus 14. Legendas: da esquerda para a direita: (i) aqui provavelmente estava uma das metralhadoras; (ii) obus 14; (iii) algures por aqui havia um canhão sem recuo; e (iv) depósito de géneros e enfermaria.
 

Foto nº  5 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 >
 Crianças... Legendas: (i) direção da bolanha /cais; (ii) depósito de géneros e enfermaria; e (iii) enfermaria / abrigo.


Foto nº  6 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Aspeto geral do aquartelamento... Legendas, da esquerda para a  direita: (i) abrigo; (ii) bandeira; (iii) padaria (?); (iv) cozinha e messe de sargentos; (v) messe e bar de oficiais; (vi) estas telhas certamente "voaram" com um disparo de obus para a mata do Cantanhez (Jemberém); e (v) espaldão de obus 14 


Foto nº  6A> Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > Foto anterior, mais detalhada.


Foto nº  7> Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Legendas: (i) abrigo; (ii) geradores elétricos (?); e (iii) bandeira (quando se içava ou arriava, os cães vinham para ali e uivavam ao toque do clarim)


Foto nº  8 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Da esquerda para a direita: (i) bolanha; (ii)  algures por aqui havia um canhão sem recuo; (iii) obus 14; (iv) depósito de géneros e enfermaria; (v) bolanha/cais; e (vi) tabanca.

Fotos (elegenda): © Carlos Milheirão (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação da esta nova série "Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra?" (**).

Trata-se de excertos da CECA (2015) sobre estes acontecimentos de maio/junho de 1973. Recordamos Guidaje, Guileje e Gadamael, os famosos 3 G, "a batalha (ou as batalhas) dos 3 G", na véspera da efeméride dos seus 50 anos (que será em 2023).  

Felizmente que ainda temos muitos camaradas vivos, que podem falar "de cátedra" sobre os 3 G, Guidaje, Guileje e Gadamael... Outros, entretanto, já não estão cá, que "da lei da morte já se foram libertando"... Do lado do PAIGC, por seu turno, é cada vez mais difícil poder-se contar com testemunhos, orais ou escritos, sobre os acontecimentos de então.



CAPÍTULO III > ANO DE 1973 > 2. Nossas Tropas


2. 1. Ataque lN no Sul a Guileje e a Gadamael Porto

2.1.2. Ataque lN a Gadamael Porto


Após a retirada da guarnição de Guileje (22Mai73), a guarnição de Gadamael 
Porto tinha a seguinte constituição:

CCaç 4743/72, 
2 GComb/CCaç3520, 
Pel Canh s/r 3080 (5 armas) 
e Pel Mil 235. 

Vindas de Guileje: 

CCav 8350/72, 
15° Pel Art (14 cm) a 3 bocas de fogo, Pel Rec Fox 3115, apenas com 1 VBTP White 
e 1Sec (+)/Pel Mil 236 (o restante pessoal estava ausente ou havia sido baixa em combate).

O Cmdt do CAOP 1, Cor Para Rafael Ferreira Durão, esteve no aquartelamento de 22 a 31Mai73.

O Capitão Inf 'Cmd' Manuel Ferreira da Silva assumiu o Comando do COP 5 em 31 de Maio de 1973.

"[ ... ] No dia 29, no Comando-Chefe das FAG, foi-me comunicado que no dia seguinte seguiria para Gadamael Porto, para comandar o Comando Operacional n" 5, substituindo o Major Coutinho e Lima, entretanto preso em Bissau. No dia 30, segui de helicóptero para Cacine, e em 31 de barco "sintex", para Gadamael Porto onde cheguei cerca das 11h00n depois de 2 horas de viagem [... ]

Após a partida do coronel Rafael Durão, nesse mesmo dia, reuni com os dois Comandantes de Companhia, Cap Mil Inf Manuel Maia Rodrigues (CCaç 4743/72) e Cap Mil Art Abel Quelhas Quintas (CCav 8350/72), para me inteirar da situação. Após o almoço, quando iniciávamos uma visita ao aquartelamento, começaram as flagelações contínuas, com artilharia, morteiros, canhão sem recuo e mísseis. No início os impactos verificavam-se fora das instalações, mas gradualmente foram-se aproximando, e no final do dia já caiam dentro do aquartelamento.

O aquartelamento de Gadamael Porto, onde se encontravam as instalações militares tinha uma área de cerca de um hectare, com uma avenida central em terra batida que do cais, onde na maré cheia acostavam os pequenos barcos, passava junto à enfermaria, comando, depósito de géneros, arrecadação de material de guerra, posto de rádio, etc. e seguia para a pista de aviação. Os alojamentos estavam dispersos, e alguns junto ao arame farpado, que protegia a parte por onde o ln podia atacar. Do lado oposto existia a tabanca
da população com cerca de 500 habitantes. [... ]

Gadamael Porto face à sua localização, normalmente não era atacado, pelo que os abrigos existentes eram reduzidos, e as valas à volta do aquartelamentonnão ofereciam qualquer protecção às granadas do lN. 

Além disso, para além dos militares a população de Guileje, procurou ocupar os poucos lugares com alguma protecção, o que mais complicou a situação. O aquartelamento de Gadamael Porto, era um local com pequenas instalações dispersas, com fraca consistência construídos apenas com adobes feitos no local que, como se constatou durante as flagelações, se desmoronavam quando as granadas de morteiro e artilharia aí rebentavam. O PAIGC utilizou durante os ataques granadas explosivas, incendiárias e perfurantes.

Ao amanhecer do dia 1 de Junho, o 2°dia da minha permanência, iniciou--se aquele que seria o dia mais crítico de toda a batalha de Gadamael Porto,mcom as flagelações quase permanentes particularmente de artilharia e morteiros 120 mm. Num espaço de tempo de 3 minutos chegaram a cair 18 granadas 
dentro do Quartel. 

O Relatório final da CCaç 4743/72 fala em 700 granadas no final do dia, mas penso que o número foi superior, a 1000. O que mais impressionava nem eram as explosões, mas sim o silvo arrepiante das granadas quando passavam por cima de nós.

Para responder ao fogo do PAIGC tínhamos a nossa artilharia e o morteiro 81 mm, que iam fazendo fogo com a rapidez possível. Poucos dias antes os obuses de 10.5 cm tinham sido substituídos pelos de 14 cm, mas os espaldões de protecção não estavam ainda adaptados. 

Cerca das 10h00 explodiu uma granada do lN na cobertura de zinco do Pelotão, causando 3 mortos e 11 feridos, o que o tomou inoperacional. Ainda se pôs um obus a funcionar com o apoio de voluntários e o pessoal que restou do Pelotão de Artilharia, mas ao fim de vários disparos ficou inoperacional. 

Claro que até esta altura os soldados nas valas e torreões de vigilância não faziam fogo, pois não se via qualquer inimigo. Os disparos que mandei efectuar, foi quando à tarde me apercebi que alguém estava a regular o tiro e então fez-se fogo de metralhadora para a encosta do outro lado do rio, onde era possível ver o aquartelamento.

A única arma pesada ainda disponível era o morteiro 81 mm, que embora não tivesse alcance para atingir as posições inimigas, continuava a marcar a nossa presença e que podia atingir as tropas do PAIGC, que encontravam nas imediações, como se provou mais tarde . [... ]

No dia 1 de Junho de 1973 houve 8 mortos e 28 feridos, que foram evacuados para Cacine que distava mais de 20 km, e os barcos levavam 2 horas no trajecto. Apesar da situação difícil nunca faltaram militares, para levar os feridos e os mortos para a enfermaria.

Ao princípio da tarde explodiu uma granada no posto de rádio, que ficou bastante danificado. Nesse abrigo encontravam-se os dois comandantes de Companhia, que ficaram feridos, e outros oficiais. Os dois capitães foram evacuados para Cacine, debaixo das granadas que continuavam a cair, e ficamos sem ligação rádio para qualquer aquartelamento. 

Lembro a noção da responsabilidade do operador cripto, que me veio perguntar se devia destruir os códigos secretos, ao que respondi que não. Passado algum tempo consegui
descobrir um rádio portátil TR-28, que estava intacto e a funcionar, o que me permitiu ser ouvido pela Unidade sedeada em Cufar, a quem pedi para comunicarem para Bissau a situação. Foi esta minha comunicação verbal que informou Bissau que Gadamael Porto embora com uma situação muito difícil estava ocupado, pois a Companhia de Cacine cerca das 12h00 informara Bissau que Gadamael Porto fora destruído e o pessoal tinha fugido para o mato, possivelmente devido aos rebentamentos contínuos que se ouviram em Cacine,
e conversas com os primeiros feridos, que aí chegaram cerca dessa hora vindos de Gadamael Porto. Se não fosse a comunicação rádio a informar a nossa ocupação de Gadamael Porto, poderia criar-se uma situação mais complicada e de difícil solução.

Após a evacuação dos capitães fiquei sem qualquer elemento de ligação às Companhias, em virtude de ter chegado na véspera e não conhecer os subalternos, que estavam dispersos pelo aquartelamento. Entretanto com as flagelações constantes, muitos dos soldados particularmente da Companhia de Guileje em virtude de as valas não oferecerem protecção, deslocaram-se ao longo delas até à tabanca da população, e ao tarrafo (zona alagadiça), que
não estavam a ser bombardeados. 

Não me apercebi dessas movimentações, hipotecado, como estava, com os problemas dos feridos, transmissões e reacção ao fogo ln para resolver. Durante a noite alguns nregressaram ao aquartelamento mas na manhã do dia 2 outros militares tiveram conhecimento de um navio patrulha da Marinha o NRP ORION sob o comando do Comandante Pedro Lauret e 2 LDM (Lanchas de Desembarque Médio) que estavam no rio
Cacine a cerca de 1 km. 

Com o apoio de botes de fuzileiros dirigiram-se para aí tendo sido recolhidos pela Marinha cerca de 200 militares e centenas de elementos da população. Foram levados para Cacine, tendo regressado passados dias a Gadamael Porto. É verdade que se os soldados se mantivessem nas valas, o número de baixas teria sido superior. Também é verdade que o navio patrulha, não enviou nenhum emissário ao aquartelamento a perguntar do que
precisávamos, quando tudo faltava, e só tive conhecimento da sua presença no dia seguinte.

Ao fim da tarde quando estávamos numa das evacuações de feridos no Cais, o médico ficou também ferido e foi evacuado. Era o alferes médico Antunes Ferreira, que foi incansável no tratamento e na preparação dos feridos e não queria ser evacuado. Lembro que todos os 8 mortos e 28 feridos em Gadamael Porto, nesse dia, foram evacuados para Cacine de "sintex".

Pouco tempo depois, quando vindo do Cais me deslocava junto do mort 81 mm, o Furriel Carvalho, saiu do abrigo veio na minha direcção e comunicou-me que não tinha munições para o morteiro, e que estavam poucos soldados na zona critica, e queria saber o que fazer. Eu nem sabia onde estavam as munições de morteiro, mas depois de o acalmar, apareceu o 1º cabo escriturário Raposo que se propôs ir na Berliet buscar granadas, ao paiol a cerca de 100 metros debaixo das flagelações, o que fez e foi incansável nessas tarefas e noutras, ajudado por outros militares que entretanto apareceram. [... ]

Mas tudo se resolveu. As granadas de morteiro apareceram montou-se uma metralhadora apareceram mais militares e passámos a noite a lançar uma granada de morteiro de tempos a tempos, a disparar umas rajadas de metralhadoras para assinalar a nossa presença, napesar de as flagelações com artilharia e morteiros do lN continuarem durante a noite. Nestes militares estavam oficiais, sargentos e praças, no efectivo de muitas dezenas.

A ideia de abandonar o Quartel nunca se me colocou, pois sabia que só por barco podia sair da zona. A minha preocupação durante o dia era evacuar os feridos, e garantir um mínimo de defesa. Mesmo que essa possibilidade existisse a minha formação ética o impediria. Aliás durante o dia estive sempre ocupado, a resolver os problemas que continuamente surgiam. Tudo seria diferente se eu conhecesse há mais tempo aqueles militares, que na maioria eram açorianos e que eram bons soldados, e a cadeia de comando pudesse funcionar.

No dia 2 de Junho, de manhã, aterrou um helicóptero com o General Spínola, o melhor Oficial General combatente da guerra de África. Logo que saiu do heli ouviram-se as saídas das granadas dos morteiros 120 mm, que demoravam 18 segundos a chegar ao Quartel, e que foi o tempo suficiente para se puxar o General, para dentro do helicóptero, apesar da sua resistência, e este levantar com o Cor Durão ainda pendurado. Quando estava a uns 20
m de altura as granadas caíram no local onde este aterrou. Antes de barco ou heli, tinham chegado o Cor Rafael Durão e os capitães de Cavalaria Manuel Monge e António Caetano. O capitão Monge foi comandar a Companhia de Cacine (Nota: Assumiu o comando da CCaç 3520 em 04 12h00 Jun73) e mais tarde o COP 5, e o capitão Caetano a Companhia 8350/72 (por um período limitado).

Nos dias 2 e 3 de Junho apesar da intensidade das flagelações, não houve mortos pois os militares procuraram melhores abrigos. No dia 3 chegou uma Companhia de Pára-quedistas comandada pelo Capitão Terras Marques, que eu conhecia, e que se instalou na zona da tabanca e nos assegurou uma estabilidade defensiva. 

No dia 4 de Junho um GComb da CCav 8350/72, efectuou um patrulhamento ao fim da pista antiga, a poucas centenas de metros. O lN atacou-o, tendo as nossas forças sofrido 4 mortos e 4 feridos e a captura de 3 esp G-3 e 1 EIR AVP-1. Os Pára-quedistas, chegados na véspera, acorreram ao local e recuperaram os feridos e os mortos. 

No dia 3 de Junho à tarde tinha-se apresentado o Major Pára-quedista Mascarenhas Pessoa que por ser mais antigo passou a comandar o COP 5. Os ataques mantinham-se intensos
levando o novo Comandante do COP 5 no dia 4 a solicitar a retirada ordenada
de Gadamael Porto. O que nunca se concretizou. [... ]

Perante a gravidade da situação em Junho desembarcaram mais duas Companhias de Pára-quedistas. Entretanto o Comando do Batalhão de Pára- quedistas deslocou-se para Gadamael Port0.  O Comandante era o Ten-Cor Pára-quedista Araújo e Sá e o 2° Comandante o Major Pára-quedista Moura Calheiros a quem muito devemos bem como aos Capitães Cordeiro, Terras Marques e Tenente Borges. 

Em fins de Junho fui com a CCaç 4743/72 para Tite. Regressei mais tarde ao COP 5 como Adjunto deste, comandado pelo Major Cav Manuel Monge, depois da saída dos Páraquedistas. Terminei a comissão na Guiné em Novembro de 1973. [... ]

Entretanto a CCav 8350/72 vinda de Guileje, e a CCaç 4743/72 de Gadamael Porto, foram rendidas por uma Companhia de Cavalaria e por uma Companhia de Artilharia.   [Nota : A CCaç 4743/72 foi rendida por troca pela CArt 6252/72 marchando por escalões em 4 e 19 de Jul73 para Tite e Bissássema. Em 26Jun73 a CCav 8452/72 foi colocada em Gadamael Porto a fim de colmatar a saída da CCav 8350/72. De 18Jun73 a 13Jul73 a 3ª C / BCaç 4612/72 foi atribuída em reforço temporário do COP 5 e colocada em Gadamael Porto. ] 

De 31 de Maio,  data da minha chegada até fins de Junho de 1973, as Nossas Tropas e Milícias aí aquarteladas tiveram 15 mortos e 39 feridos. [... ]  [Nota Depoimento escrito pelo Coronel de Infantaria 'Comando' Manuel Ferreira da Silva. ] 


Flagelações ln a Gadamael Porto de 22Mai a 30Jun26

 [Nota
 : Relatório das flagelações a Gadamael Porto no período de 22Mai73 a 30Jun73, da CCaç 4743/72.  ] 

Transcreve-se o "Desenrolar da Acção":

"O lN manifestou-se em contactos com as NT nos dias 25, 26 e 27Mai73 nas regiões de Ganturé, Lamoi e Bricana Velha, procurando impedir a penetração das NT na zona de Gadamael Fronteira.

No dia 31Mai73, iniciou as flagelações com morteiros 120 mm, tendo as primeiras granadas caído fora do perímetro do aquartelamento e sucessivamente o fogo foi sendo mais ajustado, deduzindo-se que o lN tinha montados Postos Avançados de Observação.

No dia  1Jun73 iniciou nova flagelação que durou várias horas tendo as granadas caído todas dentro do aquartelamento, com especial incidência sobre os depósitos de géneros e da cantina, zonas periféricas de defesa (valas) e espaldões da Artilharia que foram duramente atingidos.

A Zona do Cais de acostagem, foi igualmente batida, sobretudo quando da evacuação dos mortos e feridos. 

Nas flagelações que se seguiram nos dias imediatos o ln utilizou, morteiros 120 mm, canhão 130 mm, morteiros 82 mm e canhão src, com granadas explosivas, perfurantes e incendiárias, estas sobretudo de noite, cuja acção servia como ponto de referência.

A população, ainda no dia 31Mai73, pela tarde e noite, sobretudo a de Guileje procurou refúgio no aquartelamento, invadindo as instalações e ocupando valas e abrigos. 

No dia 1Jun73, ainda noite, foi seguida pela população da Gadamael Porto, que de manhã, quando o fogo IN se concentrou mais sobre a área do Quartel, propriamente dito, debandou para as zonas da tabanca e margem direita do rio, levando consigo, artigos de cantina, géneros e materiais, tudo o que apanhou à mão.

 Seguindo pelo tarrafo a população refugiou-se na região de Talaia, onde se lhe juntaram dezenas de militares que haviam saído das valas do Quartel, que estavam a ser fortemente batidas, bem como do Cais, entre eles, doentes e feridos ligeiros, que foram evacuados para
Cacine e, ainda os militares psicologicamente mais afectados que juntamente com a população foram recolhidos para Cacine. Os restantes militares, passada que foi a maior intensidade das flagelações, desse dia, foram regressando ao aquartelamento.

Nas flagelações que tiveram lugar durante o período o lN continuou a concentrar o fogo mais sobre as instalações com granadas incendiárias; assim, na noite de 2 para 3Jun73, uma granada atingiu a arrecadação do material de aquartelamento e material sanitário, e na noite seguinte a arrecadação do material de guerra e arquivo da secretaria, originando incêndios que destruíram toda a existência, não só destas dependências como das anexas que constituíam mesmo edifício. 

Após o aparecimento do clarão do incêndio o lN continuava enviando granadas, ora esporádicas ora com intensidade, obrigando o pessoal a manter-se nas valas e abrigos, impedindo qualquer acção, pelo que foi vão qualquer tentativa para debelar os incêndios. [...]

As perdas em pessoal e material avultam pela intensidade e ajustamento dos fogos. As arrecadações dos materiais, guerra e aquartelamento, sanitário e transmissões com as dependências anexas ou contiguas, atingidas por granadas incendiárias cujo fogo se propagou com uma rapidez alarmante, foram destruídas bem como toda a existência, salvo a excepção do material de transmissões que se conseguiu retirar a tempo na sua quase totalidade. Os materiais destruídos, sujeitos a altas temperaturas e ao deflagrar de munições, o armamento e outros ficaram calcinados reduzidos a um montão de sucata.
 
Igualmente os depósitos de géneros e artigos de cantina, sala do soldado, oficina auto e duas casernas de Pelotão, atingidas por várias granadas explosivas sofreram não só a destruição como foram alvo na noite de 1 para 2Jun73 da inversão da população que se apoderou de artigos, géneros e material.

Um elevado número de armas extraviado tem por base a troca de armas entre o pessoal que superlotava o aquartelamento, acontecendo que no acto de evacuação dos feridos, o fogo incidiu sobre o cais, muitos militares deixaram cair as armas ao rio tendo mesmo acontecido que num bote ao virar-se, tem-se conhecimento que pelo menos cinco armas ali se tenham perdido".

(Continua)

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo  das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 325-333.

[ Seleção / revisão / negritos / fixação de texto pata efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
__________

Notas do editor:


(**) Último poste da série > 30 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23398: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (6): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte V: o ataque a Guileje

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23402: Agenda cultural (816): Livro: Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes - 2ª edição (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem: 

Livro: Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes - 2ª edição

Caros conterrâneos, amigos e camaradas da guerra colonial

O tempo, sustentado na intemporalidade humana onde os nossos limitadíssimos ciclos de vida são uma evidente realidade, transporta-nos por uma dura viagem que nos faz reviver um passado, às vezes repleto de silêncios, mas sendo estes importantes para que cada um de nós saibamos afinal quem somos e donde viemos. Neste contexto, lá surgiu o grito de Ipiranga e lancei-me, subtilmente, na construção do livro Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes.

Assim sendo, o óbvio aconteceu, existindo igualmente a certeza de que foi nesse reino dos silêncios e repleto de conceptualizações, que o meu ego me chamou a terreiro, colocando-me mesmo a prumo, e me propôs, numa admirável atitude de aldeano, que deixasse escrita uma obra sobre a localidade que nos viu nascer.

Usufruindo de uma ampla experiência no cosmos da escrita, esta adquirida com o evoluir das eras, elaborei mentalmente uma narrativa que, em princípio, parecia difícil, ou seja, com contornos quase intransponíveis, mas o certo é que paulatinamente fui-lhe dando corpo e a “criança”, manifestando uma grande felicidade, lá viu um dia a luz solar que a fez feliz.

Investiguei imenso, tive também excelentes colaboradores, tais como o David Monge da Silva, o Zé Bica, a minha prima Mariana, pessoas consideradas já sábias, tendo em conta o amadurecimento da idade, aliás, tal como ficou escrito no livro, recorri aos blogues da nossa aldeia e aos seus administradores, Francisco Costa e Constança Joana que me abriram profícuos caminhos, tirei dúvidas, procurei conhecimentos das razões dos nossos costumes, do saber das nossas gentes, das suas profissões do antigamente, da sua evolução física e populacional e observar a sua posterior partida (décadas de 1950 e 1960, designadamente) de famílias que saíam em busca de uma vida melhor, quer como imigrantes quer como emigrantes, enfim, uma panóplia de explanações que ficarão memorizadas para a eternidade.

Aliás, Lisboa, e toda a sua cintura industrial, recebeu grande parte dos nossos conterrâneos que, logicamente, fugiam às agruras que a dureza da vida então impunha. Para trás ficava a agreste labuta no campo e lá partiram rumo ao desconhecido, mas levando consigo um mundo recheado de sonhos, e a verdade é que por lá ficaram, arranjaram trabalho, construíram famílias, compraram casas e, acima de tudo, produziram novas vidas, mas mercê de tanto suor derramado e de lágrimas de saudade do seu recanto sagrado. Outros, galgaram fronteiras amplamente diferentes, partiam a salto, desafiaram os medos, rumaram a países de uma Europa em plena construção e onde muitos ainda se mantêm, sendo o seu modo de existência pautado pela estabilidade.

Foram, e não o escondo, horas, dias, meses e anos (2) a trabalhar afincadamente num projeto que me encheu por completo a alma, não obstante as sequelas de um AVC que na madrugada de 27 de julho de 2006 me tentou levar para a infinidade perpétua, mas onde prevaleceu em mim o carinho e o amor pela minha/nossa terra, resultando dessa colossal dedicação o esgotar de exemplares da primeira edição que levou, agora, ao lançamento de uma segunda tiragem.

Caros conterrâneos e amigos, bem-haja a vossa disponibilidade na compra de uma obra, onde todos, mesmo todos, lá temos pedaços reais das nossas raízes, ou reminiscências daqueles que um dia partiram para o além. Acresço, que em cada um de nós existem pingas de sangue que nos une a seres humanos que foram cruciais para a nossa presença terrena.

Deixo também neste livro, capítulo XIII, o tema sobre os mortos na guerra colonial que evoluiu nos três palcos de combate – Angola, Moçambique e Guiné -, locais onde os camaradas da minha aldeia faleceram nas frentes de combate. Aliás, creio, que na minha justa opinião, se impunha esta referência. Tanto mais que todos nós, antigos combatentes, conhecemos exemplos semelhantes.

A todos o meu obrigado e, também, à minha Editora Colibri, assim como ao seu responsável, Dr. Fernando Mão-de-Ferro, sendo que foram vocês todos, em conjunto, que proporcionaram o êxito alcançado.

Sejam felizes!

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

16 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23354: Agenda cultural (815): Tabanca dos Melros, 11 de junho de 2022: apresentação do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (2021) - Parte II: Palavras de agradecimento do autor

Guiné 61/74 - P23401: Notas de leitura (1460): “O percurso geográfico e missionário de Baltasar Barreira em Cabo Verde, Guiné, Serra Leoa”, por Graça Maria Correia de Castro; Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 2001 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Serão os franciscanos o pilar fundamental da missionação católica na região da Guiné, está historicamente comprovado, basta ler a obra exemplar do padre Henrique Pinto Rema. Os jesuítas fizeram uma aposta forte, entre Cabo Verde, Guiné e Serra Leoa. Iam impulsionados por um museu apostólico considerado difícil de conciliar com as adversidades do terreno e a crítica frontal à natureza do tráfico de escravos. Inflexíveis em negociar os trâmites do seu apostolado, morreram ou tiveram que regressar com a saúde abalada. A correspondência do superior da missão, Baltasar Barreira, é encarada pelos estudiosos e investigadores da Guiné como documentação histórica de grande interesse para o estudo da presença portuguesa na região.

Um abraço do
Mário



Baltasar Barreira e a sua importância na literatura de viagens do século XVII

Beja Santos

A obra intitula-se “O percurso geográfico e missionário de Baltasar Barreira em Cabo Verde, Guiné, Serra Leoa”, por Graça Maria Correia de Castro, Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 2001. No escopo essencial da obra, vê-se a autora a analisar um conjunto de cartas missivas do missionário jesuíta Baltazar Barreira, Superior da Missão de Cabo Verde e da Costa da Guiné, escritas ao longo de oito anos, entre 1604 e 1612. Em Portugal governam os Filipes, pululam os corsários, as dificuldades da missionação revelavam-se insuperáveis. Os jesuítas estavam sediados em Cabo Verde e ansiavam por missionar em terra firme, sabiam que iam ser confrontados com animistas e convertidos ao islamismo. Houve a pretensão de instalar uma administração civil e militar na Serra Leoa, mas não houve sucesso. A desistência dos jesuítas estará relacionada com a ausência de apoio temporal, não queriam fazer missionação sem a presença de soldados.

Tudo começa por parecer que ia correr bem, com o batismo do rei em Serra Leoa. Na costa da Guiné, os jesuítas apoiavam-se em lançados e residentes, não podiam contar com mais nada, e caminhando mais para norte havia já um avanço do islamismo instalado com estruturas de ensino e culto a funcionar. Baltasar Barreira contava com colaboradores entusiastas mas que morreram cedo. Sendo responsável pela missão, Baltasar Barreira procura sensibilizar os poderes político e religioso, fala com toda a franqueza, pede apoios de toda a ordem, o que ele escreveu bem como os outros jesuítas é um contributo do maior relevo para a história das missões católicas e para a história deste local da costa africana. Vários estudiosos serviram-se das informações de Baltasar Barreira, é o caso de António Carreira.

Os jesuítas chegaram a África munidos da profunda superioridade da sua cultura, vinham ardorosos para a conversão dos gentios. Por um lado, tudo parecia fácil dado haver uma estreita ligação entre a Coroa e a Igreja, estava ainda de pé o “direito de Padroado”, concedido aos reis portugueses por sucessivos Papas. Portugal assumia a convicção de que era nação missionária por excelência. Recorde-se que em Goa havia uma diocese independente que se estendia do Cabo da Boa Esperança à China. A partir de Goa, dirigiam-se as missões de Moçambique e Etiópia. Para esta missionação mobilizaram-se franciscanos, agostinianos, teatinos, carmelitas, jesuítas, fundavam igrejas e conventos. Malaca, conquistada por volta de 1511, era a base do apostolado missionário.

O primeiro Bispado de Cabo Verde e Guiné foi criado por volta de 1533, compreendia Cabo Verde e a costa ocidental africana, desde o rio Gâmbia até ao Cabo das Palmas, portanto um extensíssimo território, a colonização do homem branco era muito fraca. Como tudo era adverso para a missionação, a evangelização na costa da Guiné realizava-se em regime deambulatório a partir da sede, em Santiago. Recorde-se que a população das ilhas usufruía de regalias para comerciar entre os portos da Guiné e os da Serra Leoa, desde que utilizasse apenas produtos do arquipélago. Mas as transgressões eram muitas, os “lançados” sabotavam as diretrizes régias. E a concorrência estrangeira impunha-se, chegavam atraídos pelo comércio de escravos, cedo se soube na Europa que o ouro aqui não abundava.

A autora esboça o que era o ideal missionário dos jesuítas, o que os distinguia das outras ordens religiosas. Dá-nos igualmente uma nota histórica dos antecedentes dos jesuítas em Cabo Verde e de como se processou a missionação com Baltasar Barreira. A colisão frontal dos jesuítas era com o mercado de escravos, não só em África como no Brasil.

Toda esta documentação cabe no âmbito da chamada literatura de viagens dada a riqueza das descrições de Baltasar Barreira não só sobre as ilhas como sobre a costa africana. Descreve aos seus destinatários a história dos povos, a distância entre os reinos, como constroem as suas habitações, quais os seus recursos, enumera reinos, quantifica e qualifica produtos da terra (madeiras, frutas, as aves, o algodão, o marfim, a cera, o gado, as ostras…). Um tanto paradoxalmente, enquanto está atento ao humano e à paisagem, mostra-se de uma grande incompreensão em relação à religiosidade africana. É minucioso nos tempos reais da viagem entre as ilhas e o continente.

E vale a pena registar o que a autora escreve em jeito de conclusão:
“De Cabo Verde narra-se a forma de governo português e a hierarquização social constituída por uma minoria de homens livres e uma maioria de escravos onde era possível a miscigenação de várias etnias. A situação económica das ilhas era difícil, na origem da qual estavam núcleos temáticos tais como as secas, a fome, a carestia, o desamparo face ao corso e à pirataria proveniente da concorrência estrangeira.
A costa africana, sobretudo a Serra Leoa, constitui a vertente panegírica do relato, quer pelas descrições entusiastas da riqueza da terra, quer pelo clima e paisagem paradisíacos, quer pela boa disposição dos régulos em receber a nova religião. A veemência do jesuíta para que se fundasse colégio naquela região chegou ao ponto de citar, numa das suas epístolas, excertos de uma carta de Pedro Álvares Pereira, manifestando o desejo de auxílio necessário para que aí se implantasse a Companhia.

Foi na Serra Leoa que a evangelização de Baltasar Barreira atingiu o maior sucesso, durante cerca de dois anos, continuada depois pelo seu companheiro Manuel Álvares. O método da persuasão encetado pelas relações de amizade entre o Padre e os Povos, os presentes aos régulos, os convites para as cerimónias e festas religiosas, figuravam sempre em primeiro plano, como função persuasiva.
A herança cultural aliada ao desejo de Baltasar Barreira criar um clero local a partir da construção de um colégio que também servisse de seminário, levou a que os outros padres que se encontravam no arquipélago ensinassem a ler a algumas crianças, e o próprio superior a trazer consigo meninos, filhos de chefes africanos, para que se instruíssem em sua companhia e se tornassem padres também.

Estas cartas missivas têm um louvor permanente à Companhia (…). A programação que Baltasar Barreira imprime, como superior da missão e destinador de um programa narrativo evangelizador, coloca em destaque uma imagem de missionário exemplar que em todos os caminhos é protegido por Deus, destinador último, e a quem nunca se esquece agradecer”
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Uma imagem ideal da missionação, muito divulgada durante o Estado Novo.
Henrique Pinto Rema, missionário franciscano, autor da mais importante obra sobre a missionação na Guiné, a ser condecorado pelo Presidente da República.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23388: Notas de leitura (1459): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (3) (Mário Beja Santos)