Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23652: Parabéns a você (2103): António Bastos, ex-1.º Cabo At Inf do Pel Caç Ind 953 (Cacheu, Farim, Canjambari e Jumbembém, 1964/66)
Nota do editor
Último poste da série de 23 de Setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23639: Parabéns a você (2102): Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16 (Mansoa, 1964/66)
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23651: In Memoriam (452): Mário Rui Anastácio (1954-2022), ex-fur mil, BII 19, Funchal, 1974/75, meu cunhado (Luís Graça)
Fotos (e legendas): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Trabalhou na empresa Louricoop, tinha acabado de se reformar há uns meses; andou na escola Escola Industrial e Comercial de Torres Vedras; foi jogador de futebol, júnior, no Sport Clube União Torreense (SCUT), fundado em Torres Vedras, em 1917, bem como no Sporting Clube Lourinhanense, filial do Sporting Club de Portugal (SCP). Tinha o curso de treinador de futebol, e orientou diversas equipas, de vários escalões, na Região do Oeste.
Mário:
Partilhaste comigo, há umas escassas semanas atrás, na Praia da Areia Branca, uma pequena inconfidência: contaste-me, com velado orgulho, que o teu filho costumava dizer, à malta das suas equipas de futebol, que havia dois homens que o inspiravam, na vida e no desporto: o avô e o pai.
Do amor do
André pelo meu pai, eu já o sabia há muito. Pude testemunhá-lo em diversas ocasiões. Desde o André ainda miúdo. Da
admiração do teu filho por ti, como pai e como desportista, eu só poderia achar
normal e natural. O que foi bonito foi ver-te com um brilhozinho nos olhos
quando me constaste esta história.
Sei que o
mesmo amor sentias pela tua Ritinha, e pelos teus netos. E, claro, pela tua
mulher e mãe dos teus filhos. Sempre te ouvi tratá-la por Zairinha, "a minha
Zairinha". E sei que foi a mulher da tua vida, aquela que também é a minha
Zairinha, a minha querida mana do meio.
Hoje eles e
elas, a tua Zairinha, os teus filhos, nora e genro, os teus netos, os teus
irmãos, os teus cunhados, os teus sobrinhos, e demais família, e os amigos que
sempre te trataram, com fraterno carinho, por Márinho… (ou por “Mister”, os teus miúdos
da bola, que ensinaste a lidar com as alegrias e as tristezas no campo e fora
do campo, no campo pelado da vida)… todos eles e elas estão aqui, fisicamente
ou em pensamento, nesta hora e neste lugar sagrado, na igreja do Castelo, o
mais belo e nobre monumento da Lourinhã, para te dizer adeus na tua última
viagem.
Morreste longe
da tua terra, numa morte traiçoeira e fulminante que nos deixa a todos chocados
e desolados. Tinhas apenas 68 anos, uma vida ainda por completar. E nós temos
agora umas escassas horas para te dizer, em silêncio ou em voz alta, quanto te estimávamos e quanto te amávamos.
Quando morre
um de nós, todos morremos um pouco, e há uma torrente de memórias, vivências e
emoções que se soltam. Como o rio Grande da nossa infância, o rio que só era grande quando galgava as margens,
arrasava as vinhas e pomares, inundava o campo da bola e o largo do Convento. e
se confundia com o mar, o grande oceano. Lembras-te ? Até Deus ficava isolado
na igreja matriz…E nós fazíamos gazeta à escola, à missa, e à catequese…
Hoje somos nós que ficamos tristes e sós, mesmo sabendo que
todos somos mortais, e que um dia, nunca sabendo qual, cada um de nós partirá
também para essa viagem sem retorno.
Crentes ou não crentes, todos temos todavia a secreta
esperança ou a vã ilusão de voltarmos a sentar-nos à mesma mesa, frente ao mar,
como companheiros de viagem, e partilhar o melhor das nossas memórias da Terra
da Alegria. E eu quero voltar, noutra
incarnação, a ver esse teu brilhozinho
nos olhos e o teu sorriso bondoso… E, se possível, a beber
um copo contigo.
Até sempre,
até um dia, meu querido cunhado Márinho (é a primeira vez que te trato por
Mrinho).
Lourinhã, 28 de setembro de 2022. ´
Luís (a que se
junta a Alice, a Joana e o João, nesta pequena homenagem a ti que também é uma
manifestação de solidariedade na dor pela tua perda).
Guiné 61/74 - P23650: Historiografia da presença portuguesa em África (336): Imagem do nosso Império Africano num atlas inglês de 1865 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:
Queridos amigos,
Não sei se os alunos de Relações Internacionais ou os candidatos a cargos diplomáticos costumam, nos tempos que correm, visitar os mapas com mais de 100 anos, são cartas que iniludivelmente nos mostram as mudanças que ocorreram no quadro da geopolítica e da ascensão dos povos às independências, o que se traduziu em novas fronteiras, por vezes novas designações, desapareceram impérios, e não deixa de ter significado olhar-se para o que foi o império Russo e o império Turco-Otomano, nestes mapas estão chaves explicativas de um conjunto de beligerâncias atuais, isto para não falar já do que era a Palestina e de como mudou de face com o aparecimento de Israel, em 1948. Esta África de 1865 deu origem a dezenas e dezenas de Estados, no fim da era imperial. No que toca ao nosso império Africano, veja-se que a Guiné era um ponto diluído na Senegâmbia e a extensão de Angola e Moçambique era muito pequena, representava a débil ocupação da orla marítima, com alguma penetração para o interior, que, décadas depois, se veio acelerar, quando o ideal imperial passou a ser um catalisador da classe política portuguesa.
Um abraço do
Mário
Imagem do nosso Império Africano num atlas inglês de 1865
Mário Beja Santos
Adquiri há uns bons anos num alfarrabista o "Philips’ Atlas for Beginners", edição de 1865 dos editores George Phillip e filho, Londres e Liverpool. O livro terá pertencido a Zulmira Guimarães que à inglesa deixou escrito a tinta: 19th May 1876. Sendo um atlas para principiantes, dá imenso prazer ver uma Europa que mudou radicalmente no Centro Norte e nos Balcãs, aquela Prússia dominante deu origem ao primeiro racho, a Boémia irá ser um dos pilares da República Checoslovaca depois da Primeira Guerra Mundial, o Império Austro-Húngaro desapareceu, como o Império Turco-Otomano se retirou da Grécia, da Bulgária, etc. Nada a dizer das ilhas britânicas, a não ser que ainda não se fala da Irlanda Independente, a Escócia tem honras de uma página de mapa, é impressionante a diversidade de povos que se inseriam no Império Austro-Húngaro e vale a pena ver cuidadosamente o mapa da Rússia com as suas províncias bálticas, a Grande e a Pequena Rússia e as províncias do Cáucaso, assim se entenderá melhor o sonho de Vladimir Putin. Das alterações entre 1865 e a atualidade na Ásia nem se fala, temos uma enorme Arábia e uma vasta faixa que dava pelo nome da Palestina no tempo do nosso Senhor, ia de Beirute até Rafa. Enfim, curiosidades.
Vejamos com atenção o mapa de África. O Magrebe foi reconstituído por Marrocos, Algéria, Tunísia, a Tripolitânia, o Egipto e a Núbia, já no declive do Mar Vermelho. Segue-se o Sará ou o Grande Deserto, mais abaixo temos a Senegâmbia na parte ocidental, entre a foz do rio Senegal e a Serra Leoa (o mapa refere Bissau, Bijagós e Rio Grande, isto para significar que esta Senegâmbia era completamente indiferenciada, embora já estivesse em fase de disputa a Gâmbia Britânica e a colónia do Senegal, na parte central encontramos o Sudão ou Nigritia, alfobre de um grande conjunto de países atuais), descendo encontramos o Daomé, o Benim, a Baía do Biafra, segue-se o rio Zaire ou Congo e temos uma faixa amarelada que vai do Luango até Benguela, faixa essa que representará talvez um terço do território angolano atual. Não deixa de ser curioso o que era África Astral, lá está claramente mostrado o território Macololo, um dos detonadores do ultimato britânico, em baixo temos a colónia do Cabo, subindo temos Moçambique reduzido a uma faixa amarelada onde se lê Sofala, Quelimane e Moçambique, com o canal de Moçambique a separar o continente de Madagáscar. Há o nome Cabo Verde para referenciar a parte continental, não são visíveis as ilhas arquipelágicas e em frente ao rio Gabão temos a referência às ilhas de São Tomé e Príncipe. O atlas Philips destacará depois a África do Sul para relevar a República do Transval, o Orange, o país Zulo, a colónia do Cabo, fora destes domínios refere-se a Bechuanalândia (hoje Botsuana), o deserto do Kalahari, e na continuação do que é hoje o sul de Angola, Namíbia.
A que propósito aqui se evoca o Atlas Philips para principiantes, de 1865? No caso vertente de uma leitura para portugueses, a insignificância ou o indiferenciado do território Imperial Português, já aqui se citou até a exaustão os alarmes que chegavam ao governo de Lisboa sobre aquela Senegâmbia cada vez mais partilhada pela gradual ocupação britânica e francesa. Não esquecer que uma das razões que se escolheu Bolama para capital, em 1879, era a de fazer ponte com os negócios na Serra Leoa, nessa altura ainda com alguma importância. Ocupação das faixas angolana e moçambicana era débil, havia ainda muito território em discussão, e com a formação do reino do Congo do Rei Leopoldo da Bélgica, a extensão das colónias francesas, inglesas e alemãs, beneficiamos do espaço interior no final do século XIX. O atlas Philips não deixa ilusões quanto à retórica utilizada de que tínhamos uma presença africana com cinco séculos. Estes mapas encarregam-se de mostrar a crentes e descrentes o que era o Império Português em África antes da Conferência de Berlim, 1884-1885. Se uma imagem pode valer por mil palavras este atlas Philips desfaz ilusões aos obstinados que fantasiavam a existência do Império Africano com cinco séculos.
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Nota do editor
Último poste da série de 21 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23634: Historiografia da presença portuguesa em África (335): As missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)
terça-feira, 27 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23649: Notas de leitura (1499): Algumas (breves) notas sobre missionação (II) - Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)
Meus caros Camaradas,
Dando cumprimento ao que havia referido, abaixo um segundo texto sobre este assunto.
Uma saudação camarada.
Paulo Salgado
Algumas (breves) notas sobre missionação - II
Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia
Dou continuidade à minha breve referência sobre a missionação, tema que, por certo, outros trabalharão melhor, mas tentarei cumprir o que me propus no texto anterior.
Vale a pena este testemunho prévio para nos apercebermos da necessidade de o Reino enviar frades para a evangelização - a dimensão religiosa, nem sempre bem conseguida, mas preocupada com a palavra de Jesus. De resto, todos sabemos que uma das intenções, um dos objectivos dos descobrimentos era a pregação, a evangelização. Nas naus portuguesas e espanholas seguiam sempre “missionários”. Quem não se lembra dos nossos capelães, já não para evangelizar, mas para “dar força espiritual” às NT - assim era entendido pelos mandantes?
Repare-se, caros leitores, que existia (e existe) a preocupação de respeitar a hierarquia da Igreja - neste caso da parte de Loyola.
Mais uma nota: quem assina esta carta é o braço direito, admirador e seguidor indefectível de Inácio de Loyola, Pedro Fabro, que sempre procurou seguir o pensamento do Padre Superior da Companhia de Jesus - os jesuítas.
Finalmente, o próximo texto incidirá sobre um dos grandes missionários - Francisco de Xavier, e não Francisco Xavier; na verdade, ele era natural da localidade da região de Navarra - Xavier.
IHS. A graça e a paz de Jesus Cristo N. S. estejam com todos!
Há poucos dias chegou o vosso mensageiro com carta para nós[3]. Por ela soubemos notícias vossas e vimos quão boa lembrança guardais de nós, bem como o zelo que vos faz sedento da salvação das almas dispersas por vossa Índia, onde as messes já lourejam[4]. Oxalá pudéssemos satisfazer a vós e às nossas almas que sentem o vosso zelo. Mas existem alguns obstáculos que impedem corresponder não só aos vossos desejos, mas também aos de muitos outros.
Compreendereis isto pelo que vou dizer-vos. Todos quantos estamos reunidos nesta Companhia estamos oferecidos ao Sumo Pontífice, pois é o senhor de toda a messe de Cristo[5]. Por esta oblação lhe prometemos estar prontos para tudo quanto dispuser de nós em Cristo. Assim, se ele nos enviar aonde nos convidais, iremos alegremente. A causa desta nossa resolução, que nos sujeita ao seu juízo e vontade, foi entender ter ele maior conhecimento daquilo que convém ao cristianismo universal.
Não faltaram alguns que há algum tempo se esforçaram para que nos enviassem a esses índios que os espanhóis conquistam diariamente para o seu imperador. Para isso veio interceder em favor dessa causa, principalmente, certo bispo espanhol e o embaixador do imperador[6]. Mas persuadiram-se que a vontade do Sumo Pontífice era que não saíssemos daqui, pois é abundante a messe em Roma[7].
A distância do país não nos espanta, nem o trabalho de aprender línguas. Faça-se somente o que mais agrada a Cristo. Rogai, pois, por nós para que nos faça ministros seus no Verbo da Vida. Porque, embora «não sejamos por nós mesmos capazes de pensar algo como se fosse nosso», pomos a nossa esperança na abundância d’Ele e nas suas riquezas (2 Cor 3,5).
De nós e das nossas coisas tereis notícias completas por cartas escritas ao nosso particular amigo e irmão em Cristo, Diogo de Cáceres, espanhol, que vo-las mostrará[8]. Ali vereis quantas tribulações por Cristo passámos em Roma até agora e como delas por fim saímos ilesos[9]. Tão pouco faltam em Roma muitos a quem é odiosa a luz eclesial de verdade e de vida.
Sede, pois, vigilantes e esforçai-vos tanto em edificar o povo cristão com o exemplo de vida, como trabalhastes até agora em defesa da fé e doutrina da Igreja[10]. Porque, como podemos crer que nosso bom Deus conservará em nós a verdade da santa fé, se fugimos da sua bondade? É para temer que a causa principal dos erros de doutrina provenha de erros de vida. Se estes não forem corrigidos, não se extirparão aqueles. Pondo fim a esta carta, resta-nos pedir que vos digneis recomendar-nos aos nossos respeitadíssimos Mestres Bartolomeu, De Cornibus, Picard, Adam, Wankob, Laurency, Benoit a todos os mais que gostaram de chamar-se nossos mestres e nós seus discípulos e filhos em Cristo Jesus. N’Ele vos saudamos a vós.
Desta cidade de Roma, dia 23 de Novembro de 1538.
Vosso no Senhor, Pedro Fabro e mais Companheiros e Irmãos.
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Notas:
1 - Diogo de Gouveia (1471-1557), teólogo português de rígida ortodoxia católica, contrário mesmo a Erasmo, foi reitor da Universidade de Paris (1500-1501), obteve de D. João III a concessão de bolsas para estudantes nacionais, transformando Santa Bárbara num colégio português da Sorbona, do qual foi principal, durante longos anos. Mal informado sobre os primeiros discípulos de Inácio em Paris, esteve para castigar o Santo publicamente, como sedutor da juventude. Após a defesa de Inácio, reconheceu a sua inocência e pediu perdão de seu erro perante professores e alunos, reunidos para o projectado castigo. Agora, por sua iniciativa e por comissão do rei, escreve aos Companheiros, convidando-os para a missão da Índia (Fontes Narr. 139; Autob. 78).
2 - Um ano antes (Novembro de 1537), Inácio, com Fabro e Laínez, dirigia-se a Roma e, pouco antes de lá chegar, tivera a célebre visão de La Storta, que confirmava o título desses sacerdotes «amigos no Senhor», Companhia de Jesus, e lhe dava o seu significado profundo (Autob. 96). Como diz Ribadeneira sobre esta carta: «Escreveu a nosso Padre se teriam por bem irem todos ou parte dos Companheiros a pregar o Evangelho às Índias Orientais». Responde Fabro em nome dos demais, dizendo-lhe que estavam às ordens do Sumo Pontífice, o qual prefere que por então trabalhem em Roma (Iparr. BAC 668).
3 - D. Pedro Mascarenhas, novo procurador de Portugal em Roma, junto do Papa. Tratou com Inácio e Companheiros sobre a ida de alguns deles para missionar na Índia, a pedido de D. João III. Mais tarde, como Vice-Rei da Índia, apoiará os missionários jesuítas.
4 - Em Goa já havia um bom grupo de cristãos e até um colégio fundado para jovens indianos, chamado de Santa Fé, além da cristandade antiga de S. Tomé e outros núcleos.
5 - Em Maio de 1538, já estabelecidos em Roma, por não terem podido ir à Terra Santa, exercitavam-se em ministérios em favor da cidade de Roma. Levantou-se grave perseguição contra eles movida por Landívar, despedido da Companhia, e por outros espanhóis influentes na Cúria Romana. A defesa de Inácio é levada até à sentença final, que lhes restituiu a fama e os ministérios, muito frutuosos junto do povo (Autob. 98). Pouco antes de escrita esta carta, passado mais de um ano sem navio para Jerusalém, os Companheiros ofereceram-se ao Papa, de acordo com o voto de Montmartre (Autob. 85).
6 - João Fernández Manrique de Lara, marquês de Aguilar, era o embaixador de Carlos V em Roma. «Certo bispo espanhol» é talvez o antigo discípulo de Inácio em Barcelona, João de Arteaga, bispo de Chiapas no México, que oferecera o seu bispado a Inácio ou a algum dos Companheiros, e acabou por morrer na sua diocese (1541), ao beber veneno por engano (Autob. 80).
7 - Palavras do Papa, segundo Bobadilha: «Porquê esse tão grande desejo de ir a Jerusalém? Autêntica Jerusalém é Itália, se desejais trabalhar na Igreja de Deus» (Fontes Narr. III, 327).
8 - Diogo de Cáceres, em Paris, determinara seguir a Inácio. Em 1539, chegou a Roma e interveio na reunião dos primeiros Companheiros. No mesmo ano, voltou a Paris e ordenou-se sacerdote, mas em 1541 abandonou a Companhia (Iparr. BAC 669).
9 - Cf. supra, nota 5.
10 - Diogo de Gouveia opusera-se com toda a força ao primeiro aparecimento do luteranismo na Sorbona. Alguns aderentes à heresia tiveram então de fugir de Paris.
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Notas do editor:
Poste anterior de 8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Algumas (breves) notas sobre missionação (I) - Missionaria Africana - coligida e anotada por António Brásio; Agência - Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)
Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P23648: (In)citações (223): Reflexão sobre ética (uma visão pessoal) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)
REFLEXÃO SOBRE ÉTICA
(Uma visão pessoal)
adão cruz
Existe uma ética inscrita no nosso código genético, válida só por si, existe uma ética baseada na história da vida e das sociedades humanas ou existem ambas, fundidas e inseparáveis?
Para mim é muito difícil dizer o que é a Ética, até porque não sou, propriamente, uma pessoa sabedora nestas áreas. No entanto, a vida sempre me deu a entender que a Ética é a mais bela construção do ser humano, assente em quarto pilares fundamentais.
A Ética é, penso eu, a vivência da verdade, o lugar certo do Homem dentro de si mesmo, o fio-de-prumo do Homem no interior da sua cumplicidade. A ética compreende a disposição do Homem na vida, interfere com o seu carácter, os seus costumes, a sua moral, ao fim e ao cabo com o seu modo e a sua forma de vida. O Homem faz-se por si e pelos outros, sendo a ética a autenticidade deste fazer-se.
O primeiro pilar da verdadeira morada do Homem seria constituído pelo pensamento e pela sua inseparável companheira, a razão. Podemos dizer que as plataformas que permitem a elaboração de um pensamento ético são a liberdade e a responsabilidade. A capacidade do Homem de assumir a séria orientação da sua vida determina-o como homem livre e, por conseguinte, a caminho do sujeito ético. E um sujeito ético é, fundamentalmente, um sujeito que procura a verdade. O referente da liberdade humana é a procura da verdade, porque a verdade orienta a liberdade e encaminha-a para a sua plenitude. O pensamento é o suporte mais poderoso e a mais forte armadura do Homem, a mágica força da sua criatividade.
O segundo princípio ou pilar fundamental decorre do primeiro e chama-se cultura. Não sei verdadeiramente o que é a cultura. E cada vez sei menos, neste pequeno país e neste pequeno planeta feito de inúmeros serventuários medíocres e arrogantes, incriativos plagiadores de todos os lugares-comuns inseridos nas políticas de retrocesso. Sei, no entanto, que não é a cultura espectáculo, a cultura enlatada de tanta gente cabotina, a massificação e homogeneização que apenas gera vícios consumistas, impedindo o homem de pensar, reflectir e encontrar, mas a cultura do dia-a-dia, a cultura estruturante da pessoa, a cultura do percurso, a cultura da ética dialógica que está na base da racionalidade critica, orientada para a procura do verdadeiro significado da realidade humana.
O terceiro princípio seria o respeito pelos outros. Todavia, o respeito pelos outros nunca existirá se não houver respeito por nós próprios. O respeito pelos outros é o espelho do respeito de nós próprios.
O quarto pilar desta edificação ética do Homem seria a justiça e a solidariedade. O primeiro passo da solidariedade estaria no entender da justiça social e no seu consciente reconhecimento como prioridade das prioridades. O segundo passo seria a consciência de que viver dos outros implica sempre viver com os outros e para os outros. Precisamente o contrário daqueles que aceitam o egoísmo, o individualismo e o hedonismo como fatal decorrência da onda globalizante e os desculpabilizam e valorizam. Penso que o Homem é um ser para o encontro, encontro consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com o desconhecido, a quem abre a sua curiosidade, a sua vontade de saber e a sua vital necessidade de procura da verdade.
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Nota do editor
Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23637: (In)citações (222): Reflexão (complexo caminho da simplicidade da Evidência) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)
Guiné 61/74 - P23647: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (96): Os geradores nos quartéis também forneciam eletricidade para a população civil? (Manfred Stoppok, investigador alemão, a fazer um estudo sobre a história da energia elétrica na Guiné-Bissau, 1890-2020)
Diorama de Guileje > 2008 > A casota do gerador Lister: miniatura, da autoria de Nuno Rubim, destinada ao Núcleo Museológico de Guileje, Guileje, região de Tombali, Guiné-Bissau
Fotos (e legenda): © Nuno Rubim (2008). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Data - 26 de setembro de 2022, 16:44
Assunto - A electrificação e os militares na Guiné-Bissau nos anos 1960
O meu nome é Manfred Stoppok, sou investigador pós-doc na Universidade de Bayreuth, Alemanha.
Eu descobri nos arquivos históricos ultramarinos em Lisboa que, durante a guerra de 1961/74, uma grande parte da capacidade de produção de eletricidade estava nas mãos das forças armadas portuguesas: dos 59 lugares com geradores fora de Bissau, 47 tinham somente um gerador nas mãos das forças armadas, e somente 19 tinham uma distribuição civil.
Em termos da capacidade de produção, ambas, a administração civil e as forças armadas, tinham cerca de 1 MW cada um no total.
Este aspeto é provavelmente uma coisa muito especial no desenvolvimento do sector de energia. Neste sentido, tenho algumas perguntas, na resposta às quais os senhores talvez me possam ajudar.
(i) Os geradores dos militares forneciam eletricidade em geral somente para os quartéis – para uso próprio – ou também forneciam eletricidade para as unidades administrativas, escolas, hospitais, etc.? Ou até mesmo para alguns particulares ou comerciantes?
(ii) Ou havia uma iluminação pública das ruas naqueles lugares? Em pelo menos alguns casos isso acontecia, havia eletricidade para a administração, mas eu não sei se isso era a regra ou a exceção.
(iii) E, bem interessante para mim, o que é aconteceu com os geradores militares na hora da independência da Guiné-Bissau? O mais provável é que os geradores tenham sido levados para Portugal, o que significou a perda de quase 50% da capacidade de produção fora do capital Bissau. Ou será que estes equipamentos ficaram na Guiné?
Eu agradecia muito se os senhores puderem e quiserem partilhar as suas experiências comigo ou então indicar-me onde posso encontrar documentação sobre estas coisas.
Eu também estarei em Lisboa por duas ocasiões nos próximos meses – no final do outubro de 2022 e no início de fevereiro de 2023 – e teria muito gosto em ter um encontro pessoal com quem quiser partilhar as suas informações e memórias relativamente a este assunto,
Com os melhores cumprimentos
Dr. Manfred Stoppok
[Revisão e fixação de texto, negritos: L.G.]
Manfred Stoppok | Post-Doc Researcher
f: funded by Fritz Thyssen Foundation
a: University of Bayreuth – Social Anthropology
e: manfred.stoppok@uni-bayreuth.de
w: www.history-electrification.com
Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
(*) Último poste da série > 25 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23459: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (95): PSP / 7ª Companhia Móvel de Polícia: selecção de fotos da visita a Bissau, de Américo Tomás (em 2/2/1968) e de Marcelo Caetano (em 14/4/1969) (Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)
Acerca dos manuais que o Camarada Coronel NUno Rubim precisa, deve ser difícil pois nunca os vi em 2 anos e um dia de Comissão, nem na escola Militar tivemos acesso a eles.
Os grupos geradores mais utilizados eram: 500/250 KVA, 150, 50/47,5 KVA.
No Quartel General (QG), na Central nova, havia dois Dorman de 250 KVA, com 6 cilindros, refrigeração a água por radiador e, um grupo gerador de emergência Lister de 75 KVA.
Na Central velha, existia operacional um Deutz de 12 cilindros em V, refrigerado a ar e um Lister de 50 KVA.
Na Engenharia [ BENG 447] e no Hospital Militar estavam os grupos geradores maiores.
No mato, normalmente, encontravam-se geradores com potências de 50, 20 e 7,5 KVA.
As marcas Stanford e Frapil para pequenas potências até 20 KVA. As motorizações eram diversas: Dorman, Deutez, Lister e EFI produção nacional.
Em Porto Gole havia um Lister de 47,5/50 KVA, na Ponta do Inglês havia um Gerador de 20 KVA que lá fui levar com um operador de Motores Fixos [ e que se avariou, obrigando o pessoal a recorrer à iluminação a petróleo com garrafas de cerevja] .
Ajudei a transferir o grupo gerador, na lama, da LDP (Lancha de Desmbarque Pequena) para cima do Unimog, a descarregar no local e a fazer ligações de potência.
Por azar, o meu camarada inverteu a polarização na excitação e o gerador ficou inoperacional.
Ponta do Inglês [destacamento do Xime, na foz do rio Corubal], iluminação? A bazucas [garrafas de cerveja, de 0,6 l] cheias de petróleo penduradas no arame farpado.
A iluminação nos aquartelamentos era feito com cibes [ rachas de troncos de palmeira] a fazer de postes, linhas de cobre nú de 2,5 mm2, circuito fechado em anel, lâmpadas Philips 150 Watts spot.
Não havia uniformização nos geradores, tal como muita coisa era comprada ao sabor de quem dava melhor percentagem, mas a maioria dos aquartelamentos tinha geradores de 7,5 ou 20 KVA. (...)
26 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4867: Memória dos lugares (35): Porto Gole, Março/Abril de 1968, CART 1661 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23646: Convívios (942): Ontem, dia 24 de Setembro de 2022, realizou-se no Grande Hotel do Porto o almoço de confraternização da CART 1745 (Bigene, 1967/69) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico)
1. Mensagem do nosso camarada Adão Cruz, (ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68), médico cardiologista, pintor e escritor, com data de 29 de Setembro de 2022:
O SENTIDO DO SANGUE
adão cruz
Ontem, estive com os dois da foto anexa, o Laranjeira à minha esquerda e o Ruca à minha direita, sentados à mesa. Na mesma mesa, além das respectivas esposas, o amigo António Dias e o Alves. Não nos víamos há cinquenta e três anos.
Ontem realizou-se o almoço de confraternização, no Grande Hotel Do Porto, ao fundo da Rua de Santa Catarina, da CART 1745, 67/69, da guerra da Guiné. Esta Companhia foi a última em que estive e que foi substituir a minha CCAÇ, a 1547, 1966/68, em Bigene, no norte da Guiné. Quando faltavam pouco mais de dois meses para a minha Companhia acabar a comissão e vir embora, o capitão recebeu uma ordem superior para ser realizada uma perigosa emboscada nocturna no corredor de Sambuiá, onde, eventualmente, iriam passar Amílcar Cabral e seus homens. A tão pouco tempo de vir embora, todo o pessoal, já fisicamente debilitado por quase dois anos de mato, foi psicologicamente ao fundo, compreensivelmente aterrorizado. Morrer agora, no fim? O comandante e eu éramos bastante amigos. Propus-lhe que enviasse um rádio para o Estado-Maior dizendo que o médico considerava a Companhia inoperacional, com o que ele concordou. Recebeu como resposta a mesma ordem, dizendo exigir-se um último esforço. O capitão voltou a responder, dizendo que o médico considerava muito difícil qualquer esforço. Tudo isto se passou durante uma madrugada inteira. Ao romper do dia, aterrou na pequena pista de Bigene um helicóptero trazendo a bordo o Comandante Supremo Arnaldo Shulz, o major-médico do serviço de saúde e um colega meu do hospital militar. Vinham fazer uma inspecção à Companhia. Soube mais tarde que me valera a razão, de outra forma teria ido parar à pildra. A companhia foi dada como inoperacional e iria ser substituída pela CART 1745, com a qual, ou melhor com os poucos elementos que dela restam, eu almocei ontem, no Grande Hotel Do Porto.
Numa tempestuosa noite, no minúsculo cais do Rio Cacheu, deu-se a rendição das Companhias. A minha embarcaria rumo a Bissau, após o desembarque da CART 1745, comandada pelo Capitão Miliciano, Torre do Vale. Na altura da troca, este novo comandante recebeu um rádio dizendo que embarcava toda a Companhia menos o médico. Não é fácil descrever, quer da minha parte quer da parte dos soldados e oficiais, a onda de emoção, tão torrencial como a chuva. Com lágrimas de raiva, recusei-me a ficar. O Capitão Torre do Vale, mais tarde um grande amigo, infelizmente já falecido, muito amavelmente fez-me ver que era uma ordem superior à qual não podia desobedecer e que seria obrigado a prender-me, se eu insistisse. Uma mesquinha e inesquecível vingança do Estado-Maior, pelo meu atrevimento!
Estes almoços, como o de ontem e outros em que estive, sobretudo da minha CCAÇ 1547, não são almoços que possam assemelhar-se a ouros quaisquer. Não sei dizer o que sentimos. Trata-se de um sentimento muito específico, um sentimento difícil de definir, um sentimento de tristeza e alegria, um sentimento muito enraizado de unidade, de irmandade, de cumplicidade que está para além do natural sentimento da amizade. De Saudade não será, mas é um sentimento que arranca cá do fundo uma espécie de estranha nostalgia, um rebuscar no fundo do tempo o sentido do sangue que nos corria nas veias, a memória de todos os medos e fraquezas, uma sensação de perda profunda que até hoje aceitámos como vitória e que nos trouxe a um futuro do qual nunca saberemos o valor. Sabemos apenas que sem essa perda e essa vitória, sejamos nós quem formos, nunca seríamos quem somos.
Mantive-me nesta nova Companhia os quase três meses em que, por direito, devia estar em Bissau, descansadamente, a beber umas cervejas. Quando vim embora, o último abraço, já sentado na avioneta, foi-me dado, de forma bem apertada, pelo meu caro Ruca. Pouco tempo depois de chegar a Portugal, soube por um dos muitos amigos nativos que lá deixei, que o “alfero” Ruca tinha perdido uma perna.
Ontem, felizmente, reconheci que o tal abraço não fora o último, pois ao fim de cinquenta e três anos, o que não faltou neste almoço foram abraços. Ao fim da tarde, não me despedi sem perguntar ao meu caro Ruca: olha lá, Ruca, tu que eras um rapazinho de vinte e poucos anos, por acaso muito bonito, com um prometedor séquito de namoradas, como é que lidaste no teu futuro com as mulheres? O Ruca respondeu, sorridente: olha, meu caro Adão, tinha uma prótese e as próteses, na altura eram tecnicamente pouco evoluídas. Eu via-me à rasca para camuflar o melhor que podia, até ao terrível momento de dizer à namorada que só tinha uma perna.
Nota do editor
Último poste da série de 21 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23635: Convívios (940): Um total de 72 inscritos no 49.º almoço-convívio do pessoal da Magnífica Tabanca da Linha, amanhã, quinta feira, dia 22/9/2022, em Algés, o que é um número muito bom depois do "longo inverno social" que foi a pandemia de Covid-19
Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2020:
Queridos amigos,
Amadú Dafé, estou seguro, vai ser um grande escritor, este Ussu de Bissau é eloquente comprovativo. Oxalá que ele não perca esta veia esplendorosa de escrita luso-guineense, por onde perpassam feiticeiros e balobas, mufunessas, poilões e bambarans. É uma denúncia vigorosa que ele nos dá nesta narrativa que se lê e relê com gosto, uma denúncia do tráfico de crianças que são exploradas, obrigadas a pedinchar, submetidas a negócios de pedofilia, tudo a pretexto de que frequentam escolas corânicas. Não sei como é que o islamismo reage a tais situações criminosas, a religião e os governos, como é óbvio, o que aqui se conta tem a ver explicitamente com a Guiné-Bissau e o Senegal. A escrita é admirável, é uma brisa de revelação, um escritor de formação universitária que não enjeita os problemas do seu povo humilde, a sofrer toda a casta de infortúnios, Ussu é um porta-bandeira de um crime que precisa de ser mais denunciado e castigado.
Um abraço do
Mário
Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (1)
Mário Beja Santos
Estou absolutamente convicto que Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, vai ficar no pódio das melhores narrativas da novel literatura deste país irmão. Melhor surpresa no arranque deste ano de 2020 não me podia ter sido dada. No dizer do autor temos aqui uma história aficionada de um aluno de escolas corânicas, faz parte daquele pesadelo de milhares de crianças da costa ocidental africana que são sujeitas aos terríveis maus-tratos onde não faltam a mendicidade, o viver nas condições mais abjetas, a escravatura pedófila.
Não é um romance, nem novela nem noveleta, é um relato em que uma criança é entregue a um escritor, ainda muito mal conhecido em Portugal, que esgrime o pensamento dessa criança com intensa vibração, levando-nos, na plenitude, aos recantos da miséria, tudo isto feito numa linguagem em que se desossa o português vernacular posto ao serviço de um idioma específico a que chamamos luso-guineense. Ussu tem uma mãe exigente, que sonha alto, quer este filho lançado na vida, no presente tudo é mais negro para a criança do que a cor da sua pele. É um mundo animista entrelaçado dessa esperança que uma escola corânica possa pôr o menino num patamar mais elevado. São episódios sucessivos dessa história que tem títulos condizentes: despatriado, escolhido, descartado, mendigo, faminto, punido, desperto, prevaricado, evadido, compaixão, suborno, norteado, pasmo, confuso, livre, elucidado, espectro, posto.
Não é só o tráfico de crianças que é denunciado em toda a sua extensão, é um mundo de curandeiros, de uma vertente do islamismo que precisa de ser execrada e perseguida no continente inteiro, por permitir que escroques aufiram dinheiro fingindo que educam crianças, no fundo escravizadas, não muito longe da escravidão antiga, tudo isso aparece posto em causa numa criança que conta a sua saga pelo punho de Amadú Dafé, numa das mais belas escritas que conheço.
Dura é a vida de Ussu, com aquele pai ausente, como se conta:
“Ademais, porque a minha mãe não me devolveu ao meu pai ainda estou por entender. O meu pai parecia ter-me abandonado, não ignorava esse facto, mas não me parecia capaz de me rejeitar caso ela decidisse que eu fosse viver com ele. Tenho memórias dos telefonemas dele e das suas palavras mélicas a perguntarem-me se a minha mãe me tinha sovado. Eu sempre respondi, prontamente, que sim, e nunca o vi fazer nada a esse respeito.
Às tantas achava-o mentiroso e fantoche, e desculpei-o sempre como uma pessoa muito ocupada. Que nem tem tempo de me telefonar sempre tinha, quanto mais de me ir visitar de quando em quando.
Cresci esperando por um convite seu para ir passar uns dias com ele, por uma prenda simples para o eternizar como um pai querido, por um acontecimento memorável por forma a nunca o perder nos meus sonhos. Nunca pude contar com ele e talvez por isso mesmo é que a minha mãe decidiu sempre sozinha tudo sobre a minha vida”.
Se maus-tratos recebia, se havia sovas e açoites, lá no seu chão de origem, o que o espera do dito mestre corânico, aproxima-se do inferno, o ambiente doméstico é desolador, as crianças que vê cirandar dão-lhe a antevisão do mundo tétrico que o espera:
“As crianças que passavam por mim ali sentado, que entravam e saíam com latas penduradas no pescoço e roupas sujas e retalhadas, não me parecia pertencer à casa. Continuei, porém, sentado no meu cantinho, já não chorava, continuava a não sentir a minha alma, mas o estado de ausência total de mim mesmo não me permitia mais sentir a minha tristeza.
Não sabia se tinha fome, se tinha sono, se estava cansado de tanto andar, se estava desesperado ou se apenas queria a minha mãe de volta. O meu mundo resumia-se à minha vaguidade, ao meu estado leve de alma e à minha perdição. Tudo o que tinha, tudo o que sabia, de tudo o que me lembrava estava ali resumido e refletia-se nos olhos daquelas crianças que entravam e saiam com latas vermelhas e roupas esfarrapadas. Era esse o meu destino, o meu mundo era a minha fome, o meu sono e o meu cansaço. O meu mundo era também o desprezo e a indiferença daquelas pessoas em relação à minha pessoa”.
Leva pontapés e passa fome, tem que andar na mendicância, leva açoites e vergastadas, e vamos saber como é que se aprende o Alcorão naquele ambiente sórdido:
“O senhor levou-me para a casa, a suposta escola, e mandou-me ficar sentado na rua à espera até o sol levantar-se. Quando os outros alunos começaram a aparecer, mandou-me segui-los para o quintal, onde se encontrava, afinal, a sua escola de Alcorão. Os alunos tomaram lugar em círculo à volta de um empilhado de lenhas e cinzas no centro. Dava para perceber que as lenhas estiveram a arder no dia anterior. Tentei olhar, por forma a fixar a cara de cada um deles, mas não fui capaz de reter nada. Todos tinham quase o mesmo aspeto. Esbranquiçados de pele, roupas esfarrapadas, cabelos encaracolados e empoeirados, corpos magros e olhos fundos de tristeza. Liam em voz alta, cada um levava uma tábua escrita a tinta preta à mão e todos com lições diferentes. Era um caos, uma dessintonia total, como jogo de sortilégio”.
Ussu é chicoteado, vergastado por aqueles jovens à ordem do senhor. E mandado a caminho da feira, vai pedinchar, ai dele se voltar para casa sem dinheiro ou arroz. E Amadú Dafé, no mais belo recorte lírico, dá-nos o estado de alma de Ussu no seu pedinchar:
“Aqui, a minha cama é o meu chão, o meu manto é a areia, a minha casa é a terra. A lua continuava a guiar-me, a correr atrás de mim e a andar ao meu lado em todas as direções e condições, iluminando-me.
Comia o vento enquanto tinha a companhia da lua. Não podia ser mais grato à natureza e a Deus. Às tantas, não queria largar a vida de talibé (aluno), realizava-me de alguma forma. Era uma vida engraçada que aprendi a ter. Ganhei-a à custa das minhas costelas, das minhas lágrimas, sobretudo da minha alma, dura e persistente”.
E era aquele terror de voltar sem dinheiro ou arroz, o prémio das chibatadas. Tem a felicidade de conhecer Lamine, mas até lá chegar teve que descer ao fundo da existência:
“Meti-me no lixo da feira e procurei, até que encontrei, uma lata vermelha igual à que os meus companheiros portavam no pescoço. Cheirava a caca, mas não me importei, nesta vida, caca é preferível a chibatadas, caca alterna nas refeições”. É neste vórtice da degradação que ele encontrou o tio Lamine, faz-se amigo do seu filho, Adulai, enquanto mendigava o tio Lamine dava-lhe de comer. “Com a barriga cheia era mais fácil pedir esmolas e as forças nas pernas eram maiores para visitar várias lojas e casas da cidade e da feira onde sabíamos que, com sorte, conseguíamos sempre um pouco de arroz ou uma moedinha. No entanto, sempre nos mantínhamos preparados para fugir às ameaças de porrada que nos prometiam, à água quente que nos atiravam, ou às humilhações que nos submetiam”.
Temos aqui a promessa de um grande escritor.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P23644: Voltamos a recuperar as antigas cartas da província portuguesa da Guiné, um dos recursos mais preciosos do nosso blogue - Parte I: De Aldeia Formosa a Buruntuma
Bambadinca (1955)
Bedanda (1956) (inclui Cufar, rio Cumbijã...)
Beli (1959) (inclui Rio Corubal...)
Bigene (1953) (inclui Barro, Ganturé, rio Cacheu, fronteira com o Senegal...)
Quando voltou à Guiné-Bissau, em 1996, em viagem de negócios (mas também em romagem de saudade), o Engenheiro Técnico Humberto Reis (ex-furriel miliciano da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) já tinha adquirido as 72 cartas da antiga província portuguesa, à escala de 1/50.000.
Para os eventuais interessados, essas cartas podem (ou podiam em fevereiro de 2006...) ser adquiridas no Centro de Documentação e Informação do Instituto de Investigação Científica e Tropical, em Lisboa.
"A Embaixada da República da Guiné-Bissau em Portugal declara, para os devidos efeitos que está o sr. Eng. Humberto Simões dos Reis autorizado a adquirir cartas geográficas da Guiné-Bissau.
"Para que não haja nenhum impedimento a tal objectivo, se passou a presente declaração que vai ser assinada e autenticada com o carimbo a óleo em uso nesta Missão Diplomática".
Presumimos que esta exigência de autorização da embaixada da Guiné-Bissau, em Lisboa, para um turista levar consigo cartas geográficas do país, fosse ditada, na época, por razões de "segurança de Estado".
Na altura declarámos expressamente que a divulgação destas cartas, no nosso blogue. de modo algum pretendia pôr em risco a independência e a soberania do país irmão. Nem muito menos podia ser interpretada como uma provocação.
Além de serem um documento de interesse historiográfico (e sentimental), e apesar de algumas lacunas (tem já mais de meio século, são muitas delas dos anos 50/60), estas cartas são sobretudo importantes para a reconstituição da memória dos lugares e a reorganização da memória (individual e colectiva) dos antigos combatentes portugueses (sem esquecer os do PAIGC) que estiveram aquartelados e/ou envolvidos em operações na antiga província portuguesa da Guiné, hoje Guiné-Bissau. Para já dão-nos um retrato muito fiel da geografia da Guiné antes da guerra (incluindo a dimensão aproximda das diversas povoações, muitas delas desaparecidas com o início da guerra: houve regulados inteiros que ficaram sem gente, sem tabancas...).
Ao Humberto Reis, nosso mecenas, mais uma vez a nossa gratidão pela sua generosidade (todo este trabalho foi pago do seu bolso) e a nossa homenagem ao seu carinho pela Guiné-Bissau e pelos guineenses. Não é por acaso que ele é o nosso "cartógrafo-mor" e colaborador permanente, desde então. (*)
(*) Vd. poste de 19 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12476: Blogoterapia (245): Homenagem ao nosso 'cartógrafo-mor', Humberto Reis, para o quem o nosso blogue tem uma dívida de gratidão... Que o bom irã do nosso poilão lhe dê amor, saúde, patacão, longa vida... e bons augúrios para 2014!...
domingo, 25 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23643: (De)Caras (188): a morte em combate, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, do alferes mil Américo Luís Santos Henriques, natural de Ourém, contada pelo seu cmdt da 4ª CCAÇ, cap inf Aurélio Manuel Trindade (Bedanda, 1965/67)
Lista dos alferes mortos em combate, no CTIG, no período entre 1963 e 1967 (n=20)... Entre eles, o Américo Luís Santos Henriques, da 4.ª CCAÇ, Bedanda, Sector S3, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, em que participou também a CCAV 1484 (informação do Jorge Araújo). Infelizmente não há nenhuma foto do Henriques.
Fotos (e legendas): © Benito Neves (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Esta morte está dramaticamemte narrada no livro de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do antigo cap inf Aurélio Manuel Trindade, hoje ten gen ref), "Panteras à Solta", ed. de autor, 2010, 399 pp, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).
ainda muito cru. Logo no primeiro jantar foi o Carvalho a atirar:
─ Meu capitão, o posto da árvore hoje é guarnecido pelo Henriques. Eu já lhe disse que o meu capitão e nós todos não temos confiança nos negros e por isso havia um posto que durante a noite era guarnecido por um oficial ou sargento. Ele diz que eu estou a gozar com ele. O meu capitão sabe bem que todos têm de passar por aquele posto várias noites. Esta noite era eu. Como se apresentou o Henriques é ele que deve ir.
(...) O dia começou com o capitão reunido no seu gabinete com os seus subalternos.
─ Tenho informações que me dizem que depois da nossa acção no cruzamento do Cantanhez, a guerrilha construiu um acampamento na mata junto à nascente do Ungauriuol [de acordo com a carta de Bedanda, e 1/50 mil] . Vamos sair esta noite para lá. Vamos apenas três pelotões mais o pelotão do Tala [alferes de 2.ª linha, cmdt do pelotão de milícias de Bedanda]. Sai à frente o Henriques, a seguir o Cristóvão e o Tala, e por último o Manuel. Penso sair do quartel à meia-noite para chegarmos ao raiar da aurora, não sei o local exacto do acampamento. Batemos a mata e seguiremos qualquer pista que encontrarmos até chegar ao acampamento. Não levamos um objectivo concreto, pretendo apenas explorar uma notícia e, mediante isso, impedir que os guerrilheiros fortifiquem o acampamento. Não pretendo deixar os tipos sossegados nesta área. Alguém tem alguma coisa a dizer?
─ Não, meu capitão. De qualquer modo gostaríamos de ir lá com um objectivo concreto em vez de bater a zona ─ disse um dos alferes.
─ Também eu gostava de ter um objectivo concreto, mas não temos. Não se preocupem porque a área está cheia de guerrilheiros e iremos encontrá-los de certeza. Saímos à meia-noite em ponto, ração de combate para um dia. Teremos um helicóptero em Catió [sede do BCAÇ 1858], para evacuações. Até logo.
(...) O capitão estava preocupado. Estava desfalcado em oficiais e os que havia tinham pouca experiência ou eram fracos em termos operacionais. O capitão terá que ir mais atento a todos os pormenores. Queria falar com o Tala.
─ Tala, vamos fazer uma batida na mata entre o Ungauriuol [afluente do rio Cumbijã, e que passa por Bedanda], o Lama e a estrada para Guileje [a nordeste de Bedanda]. Vai à frente o nosso alferes Henriques. Tu vais entre o alferes Fernandes e o alferes Manuel. Quero que mandes falar comigo, hoje às dez horas da noite, dois guias que conheçam a zona. Não dizes nada aos guias. Quero falar com eles na presença do alferes Henriques. Levas ração de combate para um dia. Percebeste bem o que eu quero?
─ Percebi, nosso capitão.
─ Então podes ir embora. Quero o teu pelotão à meia-noite pronto para sair. Até logo.
A seguir o capitão falou com o alferes Henriques.
─ Tu vais na frente da coluna. Embora não tenhas experiência de mato, és o subalterno com mais operações feitas. O teu pelotão é bom. Vou dar instruções aos guias que pedi ao Tala e entrego-te depois esses guias. São dois bons guias. Confio em ti. Sabes bem a importância que eu dou ao pelotão que vai à frente. Da sua visão e da sua actuação depende o êxito da operação. Temos que ir muito atentos, os guerrilheiros estão lá de certeza. Eu irei sempre contigo entre a primeira secção e a segunda. Tu deverás ir no meio da primeira. Estarei perto de ti para qualquer apoio que precises. Elucida bem os homens sobre o que terão de fazer. Se encontrarmos pistas vamos explorá-las com cuidado. Olhos bem abertos para não sermos surpreendidos. Se vires que não estás em condições de ir à frente, dou essa missão a outro.
─ Não, meu capitão. Agradeço a sua confiança em mim.
─ Prepara o teu pelotão. A mata que vamos bater é muito densa e vamos ter dificuldades se formos surpreendidos. Até logo.
(...) O capitão mandou depois chamar o Lassen [, seu guarda-costas] para preparar as coisas e avisar o Joãozinho [, 2.º guarda-costas] . Deu as instruções normais aos sargentos. Sobrou-lhe ainda tempo para meditar em todas as hipóteses que poderiam acontecer e na forma de ultrapassar dificuldades inesperadas. Tinha pensado profundamente a operação e ficava convencido de ter dado todas as instruções. Só faltava esperar que a sorte não o abandonasse. Em tudo na vida é preciso ter sorte, e na guerra é fundamental. Há militares que têm boa sombra no mato e outros não.
À hora combinada a companhia saiu para o mato. O capitão decidiu ir através da bolanha direito a Feribrique, passar depois por Melinde e atravessar depois o rio Lama para começar a bater a mata. A marcha era lenta e difícil. As bolanhas ainda tinham água e eram atravessadas por pequenas ravinas e fios de água difíceis de transpor de noite. A certa altura a coluna partiu-se. O capitão mandou parar o Henriques e ordenou aos guias que fossem recuperar a coluna.
─ Como te sentes, Henriques?
─ Mal, meu capitão. Sinto-me triste. Nunca me senti assim numa operação. Não sei o que se passa comigo.
─ Não é nada. É a primeira vez que tens a responsabilidade de abrires a coluna e estás a sentir esse peso. Só prova que és um oficial responsável. No entanto, se vires que não te sentes bem, passa o Manuel para frente. Vê lá se estás bem de saúde.
─ De saúde estou bem, fisicamente não tenho nada. Sinto-me é muito triste. É como se uma desgraça estivesse para me acontecer.
─ Tens a certeza de que queres continuar à frente?
─ Tenho, meu capitão. Não podia perder a oportunidade da abrir a coluna da companhia.
─ Então segue lá. Continuamos porque a coluna já está unida. Devagar que o terreno é difícil.
Assim se reiniciou a marcha. O rio Lama foi atravessado sem novidades. Com o raiar da aurora iriam dar início à batida. O capitão mandou seguir a corta-mato até encontrarem um caminho que desse indícios de uso recente.
Passado algum tempo o Henriques falou.
─ Cristo, aqui Henriques. Tenho aqui um caminho que parece ter sido utilizado, escuto.
─ Henriques, vou já para aí, depois falamos.
Rapidamente o capitão juntou-se ao Henriques e observou o caminho. Vinha do Cantanhez e seguia para noroeste, para a nascente do Ungarinol. O capitão nem hesitou.
─ Vamos seguir este caminho até à nascente do rio. Temos de ir com muito cuidado para não sermos emboscados. Podem começar a andar.
Dadas estas instruções , o capitão chamou os seus comandantes de pelotão.
─ Fernandes, Tala, Manuel, aqui Cristo. Encontrámos um caminho utilizado recentemente. Vem do Cantanhez e segue para noroeste. Vamos seguir por aí. Manuel, cuidado com a retaguarda. Se houver tiroteio o Tala e o Fernandes aguardam ordens. Cuidado e muita atenção. Já estamos no meio deles. Digam se entenderam, escuto.
Todos tinham entendido e o capitão reportou terminado. A progressão da companhia continuou muito lenta. Os soldados, olhos bem abertos, procuravam detectar no terreno e em cima das árvores algo de anormal, um sinal dos guerrilheiros. Silêncio total. Nem a bicharada se fazia ouvir. O capitão avançou um pouco e aproximou-se do Henriques. Sabia que, se houvesse emboscada, a sorte dependeria da reacção dos homens da frente.
Apesar de todo o cuidado na progressão, ouviu-se nitidamente um tiro isolado seguindo de um tiroteio enorme. A situação foi tão inesperada que todo o pelotão se deitou imediatamente no chão. O alferes Henriques estava caído uns três a quatro metros à frente do capitão. O capitão correu para ele para lhe dar instruções e verificou que o Henriques estava ferido com um tiro na barriga. De imediato tomou conta do pelotão, dando ordens directas aos soldados. O Lassen foi buscar o enfermeiro que rápido chegou ao local.
─ Eu já trouxe o alferes Henriques aqui para trás deste monte de baga baga ─ disse o capitão. ─ Tome conta dele e veja o que pode fazer. Eu tomo conta do pelotão e vou sair daqui ou ainda cá ficamos todos. Arrancamos directos a eles. Passo rápido e fogo sobre eles.
Os soldados levantaram-se e meteram-se pela mata dentro com o capitão. Os guerrilheiros pararam o fogo e retiraram. Na perseguição foi localizado um acampamento improvisado.
─ Fernandes, Tala, Manuel, ─ aqui Cristo ─ sofremos uma emboscada. O Henriques parece que está gravemente ferido. Localizei um acampamento que vou ultrapassar. O Fernandes deixa alguns homens recolher o Henriques e os outros feridos, traz o Tala e vem ter comigo. O acampamento fica por vossa conta. Destruamno.
O pelotão do Henriques garante a segurança frontal. Manuel, segurança à retaguarda. Depois do acampamento destruído retiramos para a bolanha e fazemos as evacuações. Digam se entenderam, escuto.
─ Cristo, aqui Fernandes. Entendido. Agora vou seguir para aí com o Tala. O Henriques morreu, informou o enfermeiro. Há mais três feridos, escuto.
─ Cristo, aqui Manuel. Entendido. Segurança à retaguarda garantida. Escuto.
─ Aqui Cristo, terminado para todos.
─ Bedanda, aqui Cristo. Fui emboscado. Tenho quatro feridos um dos quais oficial. Solicito presença helicóptero para evacuações. É urgente. Estou na mata a oeste do rio Lama e vou agora para a bolanha onde assinalarei a minha presença. Diga se entendido, escuto.
─ Cristo, aqui Bedanda. Entendido. Terminado por agora.
Rapidamente o acampamento foi revistado e destruído. Acampamento recente, estava localizado numa zona de difícil acesso onde os guerrilheiros se sentiam seguros.
O capitão estava triste. Tinha morrido um oficial que era para ele como um filho. Gostava de ir com o capitão para todo o lado e tinha grande admiração pelo seu comandante de companhia. Depois de destruído o acampamento e assegurada na bolanha a segurança para se fazerem as evacuações, o capitão disse ao Fernandes:
─ Sou o responsável pela morte do Henriques. Quando a coluna se partiu eu estive a falar com ele e o rapaz parecia que adivinhava a morte. Estava muito triste. Devia tê-lo mandado para a retaguarda e passar o teu pelotão para a frente. Nunca me perdoarei.
─ O meu capitão não tem culpa. Cada um de nós morre quando tem de morrer. Tinha chegado a hora do Henriques. Se me passasse a mim para a frente e o Henriques para a retaguarda, a emboscada seria à retaguarda e o Henriques morria na mesma.
─ Talvez tenhas razão. Mas nunca mais esquecerei a cara de angústia quando foi ferido e a conversa que tive com ele.
─ Não pense mais nisso, meu capitão. Está aí o heli. Vamos fazer as evacuações.
─ Eu vou falar com o piloto. Trata de trazer o Henriques e os feridos.
O capitão, acompanhado do Lassen, do Joãozinho e do rádio telegrafista, dirigiu-se para o helicóptero onde falou com o piloto.
─ Um dos feridos já morreu. Foi o alferes Henriques. Peço-lhe para o levar para Bissau juntamente com os feridos.
─ Eu vou fazer isso, embora o senhor capitão saiba que não nos é permitido levar mortos para Bissau.
─ O senhor pode dizer que ele morreu na viagem. Queremos evacuá-lo para Lisboa, e se estiver em Bissau é mais fácil para nós.
─ Esteja descansado, senhor capitão, que eu levo tudo para Bissau.
Quando o corpo do Henriques e os feridos estavam dentro do helicóptero, o Lassen perguntou ao capitão se também podia ir.
─ Não, não podes. Tu podes é levar já duas lamparinas no focinho. No helicóptero só vão os feridos. Eu fico cá e tu também ficas.
─ Nosso capitão, olhe, eu também estou ferido.
Só nessa altura o capitão deu conta de que o seu guarda-costas estava a perder sangue. Para estar sempre ao lado do seu capitão durante a emboscada, o Lassen não disse a ninguém que também estava ferido e nem sequer tinha sido visto pelo enfermeiro. O capitão viu então a amizade e o respeito que aquele soldado tinha pelo seu capitão.
─ Desculpa, Lassen. Agora devias levar duas bofetadas por não me dizeres que estavas ferido. Vais embarcar depois de o enfermeiro te fazer um penso.
Penso concluído, o Lassen entrou no helicóptero. De dentro do helicóptero falou para o Joãozinho:
─ Joãozinho, eu vou para Bissau. Toma conta do nosso capitão.
O capitão ficou emocionado. Como era possível tanto amor, lealdade e ternura dum soldado para um capitão de Lisboa. Coisa que só a vida dura de combate na Guiné pode explicar.
Depois da evacuação dos feridos, o capitão deu ordem para regressar ao quartel onde chegaram por volta das cinco horas. Um avião sobrevoou o quartel e o capitão deu ordens ao 1.º sargento para ir à pista ver quem tinha chegado.
Quem chegava era o coronel comandante do sector. O capitão já estava de tronco nu e calças desapertadas, preparava-se para tomar banho.
O comandante do sector disse ao capitão.
─ Parabéns, Cristo. Foi uma operação em cheio. Você não deixa os guerrilheiros descansar nem um pouco.
─ Meu comandante, não aceito os parabéns. Tive quatro feridos e um morto. O morto é um oficial que era como um filho para mim. Por favor, tenha dó de mim e compreenda a minha tristeza.
─ É certo que teve um morto e quatro feridos, mas isso não pode ofuscar o êxito da operação. Dou-lhe os parabéns e quero falar aos seus soldados. Mande formar a companhia.
─ Talvez o senhor não saiba como está a companhia neste momento. As ordens que dei foram que quem quisesse comer ia comer, quem quisesse tomar banho ia tomar banho e quem preferisse ir dormir ia dormir. Isto significa que tenho homens a dormir, a tomar banho e a comer. A companhia não está em condições de formar.
─ Olhe, Cristo, eu já estou farto de ver homens nus e posso vê-los mais uma vez. Mande formar a companhia como estiver.
─ Ouviu, nosso primeiro? ─ perguntou o capitão. ─ Não está aqui nenhum oficial. O senhor vai formar a companhia e tem dois minutos para o fazer. Os homens podem formar nus. Formam como estão. Ninguém perde tempo a vestir umas cuecas ou umas calças. Dê ordem para formar a companhia e acompanhe o nosso comandante. Se me dá licença, meu comandante, eu vou tomar banho que era o que eu estava a pensar fazer. O nosso primeiro forma a companhia porque os nossos alferes, tal como eu, não estamos em condições de receber parabéns quando nos morreu um alferes. Isso é mais que suficiente para eu considerar a operação um fracasso.
Dito isto, o capitão que segurava as calças com as mãos, deixou-as cair e ficou em cuecas em frente do comandante e do 1.º sargento, que deitou as mãos à cara. O capitão, imperturbável, começou a descalçar-se, tirou as calças e as cuecas e foi tomar banho sem dizer nada ao comandante. Quando saiu do banho mandou chamar o 1.º sargento para saber o que se tinha passado. A companhia tinha formado, e a maior parte dos homens estavam de cuecas ou de calções. Mesmo assim, o nosso comandante tinha falado com eles e dito que não deviam estar tristes por terem feridos e por ter morrido um alferes, porque os guerrilheiros tinham tido mais baixas. A operação tinha sido um êxito.
O capitão foi para a messe, pediu uma cerveja e falou com os alferes.
─ Os sacanas hoje agiram com inteligência. Aquele tiro contra o primeiro branco da coluna foi o sinal para a emboscada. Sabiam que com esse tiro feriam ou matavam um oficial ou um sargento. O Henriques era o primeiro branco da coluna e eu o segundo. O Lassen levou um tiro numa perna que era dirigido a mim. Não fui ferido ou morto por muita sorte. Hoje renasci. O nosso coronel deve estar chateado comigo. Eu não podia fazer nada. É de muito mau gosto vir dar os parabéns a um capitão por uma operação com quatro feridos e um oficial morto. Há indivíduos que nunca serão capazes de compreender a mentalidade dos combatentes. Que se lixem.
─ Olhe, meu capitão, ─ disse o Manuel ─ eu não fui à formatura mas espreitei. Cumpriram-se integralmente as ordens. Formou rapidamente mas em cuecas. Alguns de tronco molhado, pois tinham acabado de sair do banho. O nosso comandante não viu os homens completamente nus mas fartou-se de ver corpos de homens quase nus. Talvez tenha aprendido a lição e na próxima já não nos chateie. Vamos beber mais uma cerveja para esquecer as tristezas. (...)
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 20 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18860: Os 81 alferes que tombaram no CTIG (1963-1974): lista aumentada e corrigida (Jorge Araújo)