domingo, 25 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23916: (In)citações (226): "O pedinte da berma da estrada" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

"O PEDINTE DA BERMA DA ESTRADA"

adão cruz

Lá estava o seu rosto velho e sulcado, arranhado do mundo e da vida, meio escondido na barba espessa e negra que o ninho havia impregnado de pequenas arestas de palha. Já quase não vivia, no magro sentido biológico. Apenas pensava. Por isso algumas vezes o julgaram morto quando ele verdadeiramente vivia. Outros apelidaram-no de filósofo.

Os olhos esquecidos por detrás das pálpebras negras e sujas não paravam nem por escassos instantes no rosto de alguém. Apenas um relance veloz como o raio constituía a única manifestação vital desse corpo, quando, frente a ele, alguém detinha ou abrandava o passo.

Todas as vezes que o vi me pareceu ver o meu retrato, mas sempre muito distante, muito longe. Um capote gasto e roto como a pouca vida que o mantinha ainda à flor da terra caía-lhe dos ombros magros como uma cruzeta. Há anos, muitos anos, que tal veste fora nova e de um castanho torrado como o cair da folha. Nunca deixara de cobrir aquele corpo, pois a ele o haviam cosido as mãos da miséria.

O próprio cachorro, cuja idade lhe comia no lombo grandes tufos de pelo, não reconheceria o dono sem capote, o dono cindido em dois. Cão e mendigo, esqueléticos e mudos, parados como um pântano, posavam para o mundo, para a grande tela da vida. Constituíam os dois uma só peça, uma única escultura cinzelada numa só pedra.

Não falavam. Apenas de hora a hora gemiam. Se era a goela a queixar-se, mexia-se a mão apergaminhada e ossuda do velho a acariciar-lhe tremulamente o focinho esguio. Se o gemido nascia do peito humano, brandamente o cachorro se aconchegava a ele, lambendo-lhe os olhos e a boca, como se quisesse mostrar-lhe quanto valia o amor de um cão perante a pobreza do mundo. E o coração do pobre velho sorria sobre um mar de tristeza.

Muita gente vinda da feira passava na estrada de regresso a casa. Todos recordavam esse capote de corte fino e um cachorro felpudo de raça. Mas todos passavam. Do grande homem de outrora nada existia, além de uma recordação que a palavra louco viera definhando com o decorrer dos anos.

Todos passavam. Alguns, ao vê-lo, contorciam a boca, na impossibilidade de compreenderem o negro decalque do presente sobre a luminosa gravura do passado. Outros nem um olhar gastavam. Era a humanidade que assim seguia, apática e obtusa, incapaz de perceber que um pobre velho sempre a lastimara e jamais lhe invejara a sorte e os bens.

Eu havia acabado, para esse dia, o meu trabalho. Como sempre, ao dirigir-me a casa, parei frente ao pedinte da berma da estrada. Sim, parei junto àquele que fora nos meus tempos de criança o grande empreiteiro. Um relance de olhos ao chapéu meio podre pousado na berma poeirenta mostrou-me algumas moedas de cobre, negras e tristes como a miséria daquele velho e daquele cão. O rosto cavado e dorido notou-me e espremeu uma lágrima. O cachorro gemeu, esticando as patas finas numa languidez de velhice. Que tristeza me tomou!

Ali me detive, na ânsia de ouvir daquela boca seca um sopro que fosse, da voz longínqua que nunca se apagara da minha mente. Mas essa voz morrera e da loquacidade de outrora nada existia. Negava-se a língua a articular qualquer sílaba, do mesmo modo que as pernas anquilosadas se negavam empreender qualquer movimento. Senti o coração mergulhar num vazio pesado. Pobre homem!

De repente, os anos palpitantes da meninice afloraram ao meu espírito como estrelas brilhantes e inquietas num céu sedoso e longínquo. Como eu os senti, como eu rapidamente os revivi nesse encontro com o pedinte da berma da estrada! Era como se um lírio murcho reabrisse as pétalas ao mais fraco lampejo de sol primaveril. Os meus olhos perderam-se num mundo de sonho que ficava para além da esquelética face do pobre velho.

Tudo corria dentro de mim num fluir delicioso e colorido de imagem em bola de cristal. E eu via-o, via-o no centro de tudo, indelével em todos esses quadros mágicos, como se formasse o fundo imóvel da torrente do passado. Ele era a esse tempo a pessoa mais importante das redondezas.

Já a noite caía sobre as copas negras das árvores quando dei por mim. Um poente que mais parecia uma fogueira pintava a orla marítima do céu, e um vento leve e frio, nascido do anoitecer da serra, fazia tremer. Fitei o rosto do infeliz no qual buliam alguns pelos da barba e pensei: como dorme! Era tão grande e resplandecente a paz daquela face amachucada que eu quase senti, ao olhá-la, um sagrado respeito.

O frio de que o cair da noite se envolveu tornou-se tão cortante, que me obrigou a ceder à ideia de levar o velho pedinte a algum abrigo. Quantas vezes eu pensara arranjar àquele homem o pão e a cama dos derradeiros dias. Mas havia sempre um resto de orgulho a impedi-lo de abrir a mão ao meu auxílio. E como me doía matar esse bocadinho de orgulho que o aquecia ainda como a frouxa chama de uma vela.

Nesse dia não podia deixá-lo. Toquei-lhe as mãos pálidas e estremeci. Estavam geladas como pedra sepulcral. Palpei-lhe nervosamente o rosto e a barba que mais me pareceu uma mão cheia de palha seca. Subi-lhe as pálpebras mas já não havia luz que me permitisse enxergar-lhe os olhos. Tentei convencer-me de que respirava, mas nem o respirar dos anjos era mais leve. De repente, ouvi por sobre o coração pancadas tão fortes que me pareceram arrancadas de um tambor. Em breve percebi que não passavam de silêncio, do mais profundo silêncio.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23731: (In)citações (225): As questões éticas nos cuidados de saúde (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P23915: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XIV: O Oio, sempre o Oio, na cabeça do alferes... "Porra, que guerra de merda! Guerra de mulheres", gritou o Cruz, abanando a cabeça.


Guiné > Região de Oio > Bissorã > Vista aérea >  s/d > Era uma das "portas de entrada" para o Oio. Foto do blogue, sem autor para já conhecido.

Foto (e legenda): © . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais um excerto das memórias do nosso camarada Amadu Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010, autor do livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.).(*)

O Virgínio Briote, nosso coeditor jubilado (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) disponibilizou-nos o manuscrito, em formato digital.Çembremos que, durante cerca de um ano, com infinita paciência, generosidade, rigor e saber, ele exerceu as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando-o a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos e da sua prodigiosa memória.



Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O Virgínio Briote e o Amadu.   

Foto: LG (2010)



Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


A edição de 2010, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretanto, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.

Recorde-se, aqui, o último poste desta série (*): O Grupo de Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG, comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva, nascido em Angola,  e 
agora já com 18 operacionais, incluindo o João Parreira (entradao em fevereiro desse ano) tinha  passado vinte dias em Catió, Cachil e Como, no princípio de 1965... 

O Amadu de tirou de memória todas estas peripécias. Há pormenores factuais que falham (e que tanto o Virgínio Briote como eu temos hoje dificuldade em recuperar): por exemplo, datas e locais precisos, nome das operações, outras subunidades que particparam com o Gr Comandos "Fantasmas" (que se vai dissolver me meados de 1965, ou pelo menos nessa data o Amadu sai). 

Nos excertos a seguir (duas curtas operações), o Amadu volta ao Oio,  região já fortemente dominada pelo PAIGC:  "o Oio, sempre o Oio, na cabeça do alferes", praguejava ele... Deve ter ocorrido em finais do 1º trimestre de 1965, fevereiro ou março.  O Grupo estava destacado em Brá e deslocava-se de viatura até a um dos quarteis principais: neste caso, Bissorã, entrada no Oio.

Mais uma vez dá para perceber que: 

(i) ele tende a tomar, nas acões em território IN, o partido dos mais fracos: crianças, mulheres, velhos, doentes, prisioneiros  (no mímino, não lhes fazendo mal ou até protegendo-os, de acordo com as orientações superiores); 

(ii) é coerente com os valores islâmicos e cristãos que aprendeu na infância, em Bafatá, na escola corânica e na escola dos missionários italianos: por exemplo, é "objetor de consciência" na matança de vacas, ele e o Braima... Um caso que ainda mais o eleva na nossa consideração.

Infelizmente é mais um episódio das suas memórias, com cenas de violência, de guerra suja, de contra-guerrilha, que eu gostaria de não publicar no dia de Natal... Mas não tinha mais nada para "tapar o buraco" do dia... 

Que seja ao mesmo  também um convite à reflexão sobre a extensão e a inutilidade da violência, da morte, do sofrimento, dos traumas que ambos causámos,  nós e o PAIGC do Amílcar Cabral, à pobre da população civil guineense apanhada "entre dois fogos" (o que até nem era verdade, a população que estava "do lado do PAIGC" não tinha muitas vezes alternativas, pelo menos nesta altura, e em regiões como o Oio que tinha já um historial de terror, quem não se lembrava do capitão-diabo ?!).

E,  depois,  Amílcar Cabral tinha pressa em chegar ao poder em Bissau e na Praia e transformar-se num líder, quiçá panafricano. (Infelizmente, fez mal as contas e terá subestimado tanto os seus inimigos internos como externos.).  Acrescentou-se, em abono da verdade, que ele, do lado português (ou seja, do regime colonialista que ele combatia), nunca encontrou interlocutores e negociadores políticos que o tivessem levado a série (a não ser talvez, tardiamente Spínola). 



 O Oio, sempre o Oio, na cabeça do alferez... "Porra, que guerra de merda! Guerra de mulheres", gritou o Cruz, abanando a cabeça (pp. 112 /114)

por Amadu Dajaló

Depois de três dias de repouso, quando entrei em Brá, soube que tínhamos que nos preparar para sair. Eu estava com a farda de terylene, tinha deixado o camuflado em casa. Assim, tive que o ir buscar rapidamente e quando regressei ao quartel, já todo o grupo estava na parada com o alferes Saraiva à minha espera.

Na reunião do grupo ficámos a saber o que se estava a passar. Um elemento do PAIGC, que ocupava um lugar de chefia, tinha-se apresentado e não se podia perder tempo, se os quiséssemos apanhar.

Saímos de Bissau em direcção a Mansoa, onde nos esperava uma coluna para Bissorã.

Quando chegámos, ficámos a descansar um pouco até à hora de jantar. Depois, começámos os preparativos para a saída. Iam connosco, um pelotão de europeus e um pelotão de milícias, com a missão de nos darem apoio no caso de ser necessário.

Por volta das 20h00 começámos a marcha em direcção a Gharon e aí pelas 24h00, mais ou menos, avistámos uma tabanca. Levados pelo guia, rodeámo-la de longe, mas,  apesar das precauções que tomámos, não conseguimos surpreender os cães, que não paravam de ladrar. 

Continuámos a andar até que, por volta das duas horas, passámos por outra tabanca, onde deixámos os pelotões e nós prosseguimos em direcção ao objectivo. A certa altura, o guia avisou que o acampamento estava ali à nossa frente. Passo a passo, entrámos nas barracas. Tudo abandonado, nem pessoal, nem nada que se aproveitasse.

Então, o guia disse ao alferes que alguns dormiam, às vezes, na tabanca com as suas mulheres. Logo, o alferes disse:

 − Rápido, vamos!

Lá chegados, sempre com os cães a ladrarem, a surpresa já tinha deixado de o ser, há muito que sabiam que tinham visitas. Cercámos a tabanca, em meia-lua, e o alferes, eu e o guia dirigimo-nos à barraca mais próxima. Estavam lá três homens e duas mulheres. Primeiro deixámos sair as mulheres e, quando os homens estavam cá fora, rompeu um tiroteio, que não foi aberto por nós. Nós respondemos e as rajadas sucederam-se durante algum tempo.

Quando o fogo abrandou, corremos para as casas e numa vimos vários corpos espalhados, de homens e mulheres.

−  Porra, que guerra de merda! Guerra de mulheres, gritou o Cruz, com a cabeça a abanar.

A fumarada era cada vez mais densa dentro dessa casa. Quando saímos vi uma mulher idosa, paralítica, a gatinhar no chão e a pedir para não a matarmos. Falou que não podia andar em quatro dialectos, balanta, mansoanca, mandinga e crioulo. Eu e o Cruz ajudámo-la e dissemos-lhe para não sair daquele esconderijo.

Entretanto, apareceu o alferes, com mais elementos do grupo, a dizer que numa cerca, bem escondida na mata, estava uma manada de umas trinta a quarenta cabeças de gado. Deu-nos ordem, a todos, para as abatermos. O Braima Bá e eu não disparámos. A nossa crença não me permitia tal acto.

Saímos da área em direcção a Bissorã e,  antes ainda do meio-dia, apanhámos a coluna que nos transportou para Mansoa. Aqui, só o alferes saiu da viatura, enquanto nós ficámos à espera.

Oio, sempre o Oio na cabeça do alferes.
Como habitualmente, saímos de Bissau em viaturas, directos a Mansoa, onde chegámos por volta do meio-dia. Depois de comermos alguma coisa, tomámos lugar na coluna que nos levou até ao cruzamento de Inchula, onde nos apeámos.

Levávamos um guia da zona, de nome Amadú Camará [1].

Do cruzamento, partimos em direcção ao objectivo. De vez em quando, abandonávamos o carreiro e entrávamos no mato, tentando evitar as sentinelas, que nos tinham avisado ficarem a guardar os trilhos em certos locais.

Segundo o guia,  as barracas do acampamento inimigo estavam muito perto. O Aquino tinha-se constipado durante a noite e, de vez em quando, tentava abafar a tosse. Andávamos um por um, primeiro, o guia, depois eu, a seguir o alferes e, quando este estava a chegar junto de nós, o Aquino não conseguiu aguentar e espirrou. O alferes disse “porra”, voltou para trás e deu-lhe duas ou três pancadas na cabeça e,  depois ficou debruçado em cima do Aquino, para aí dois ou três minutos.

Regressou para junto de nós e o Aquino, não aguentou, começou outra vez a tossir. Nesta altura, estávamos numa situação delicada, o amanhecer estava quase a surgir e nós ainda nos encontrávamos numa zona sem árvores que nos servissem de abrigo.

Neste instante avistámos um vulto a urinar e ficámos a aguardar que ele acabasse e entrasse na casa de mato, para então lhes batermos à porta. Só que o vulto também nos viu e arrancou a correr, acordando o pessoal das barracas. Caímos em cima deles, abatemos um e caçámos-lhe a arma.

(Coninua)
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Nota do editor:

[1] Devido a uma armadilha, foi-lhe amputada uma perna. Vive em Portugal.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]
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sábado, 24 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23914: Os nossos seres, saberes e lazeres (547): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (82): Regresso a Inglaterra em plenos funerais de Isabel II (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Foi um dia em cheio, o do regresso a este ponto do condado de Oxford, que não se visitava depois da pandemia. Deu para recordar e anotar diferenças, os velhos bares afundaram-se , a taxa sob bebidas alcóolicas e o confinamento levaram ao encerramento de casas históricas; o comércio local também vai mudando de natureza, são as cadeias de grande distribuição que presidem agora ao abastecimento, até as caixas de multibanco se sumiram, a entrega do correio faz-se numa loja de jornais, revistas e bombons. É uma zona cada vez mais residencial, faz parte da lógica do viver britânico, estar perto do campo, não viver em prédios; a natureza mantém-se acolhedora, vê-se à vista desarmada que as condições de vida e o poder de compra já não são o que eram, cada conversa desliza rapidamente para o preço do gás e da eletricidade, há quem tema mudanças no aquecimento das casa, fazem-me perguntas, olham-me surpreendidos quando lhes respondo que reforço a vestimenta em casa, aliás dou-me mal com o aquecimento.E agora há que contar o bem que me soube voltar a Oxford, onde as diferenças também são muito grandes, deu-se uma relativa pulverização das lojas de livros e de música, lê-se de outro modo e arrenda-se a música para 3 dias. Aconteceu visitar a cidade em dia de solenes exéquias da rainha, inadvertidamente apanhei um concerto de truz em magnificência de catedral. Eu depois conto.

Um abraço do
Mário


Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (82):
Regresso a Inglaterra em plenos funerais de Isabel II (2)


Mário Beja Santos

Prometera dar-vos conta de uma visita a Oxford, venho atrás com a minha palavra, com a pressa de alinhar as imagens esqueci outras lembranças de Faringdon, vividas no primeiro dia. A Oxford e ao seu portentoso museu de arte e arqueologia iremos logo a seguir.
A primeira imagem de hoje é de quem foi ao posto de turismo, onde agora se situa o museu local e que no passado era a casa da bomba de água, chegou a ser hospital, tornou-se depois propriedade de Lorde Faringdon que a cedeu à autarquia, é aqui que se pode visitar o museu a que fizemos referência no número anterior. Em frente está uma bomba manual, serviu de fonte, terá sido construída no século XVI e reconstruída no século XVIII, adicionaram-lhe duas lâmpadas de gás. Felizmente que a deixaram de pé, é talvez o melhor agradecimento que se pode fazer àquela que foi ao tempo a principal reserva de água para abastecimento público.

Pump House e o que resta da velha fonte de abastecimento público

Uma das visitas obrigatórias em Faringdon dá pelo nome da igreja All Saints Church, faz parte da história local, Faringdon está perto do Vale do Cavalo Branco, conserva um celeiro do século XIII, ocupou uma posição estratégica durante a guerra civil do século XVII, os fiéis de Carlos I aqui se confrontaram com as forças parlamentares, os adeptos de Oliver Cromwell lançaram umas bombardas para a torre, e o resultado está à vista, ficou uma torre minguada. All Saints Church assenta numa antiga igreja do tempo saxão, a sua nave é tipicamente normanda, obviamente com alterações introduzidas no período gótico, a sua porta é uma preciosidade. Não é a primeira vez que vos falo deste assunto, mas apraz-me frequentar este espaço cemiterial, nada tem de medonho, é uma bela evocação da serenidade que julgo necessária para rememorar entes queridos que nos ficam para trás. Vejam as imagens, não há nada de tétrico, que os mortos estejam em paz neste coberto florestal.
Uma bela porta ao gosto normando
Faringdon foi até ao século XIX uma importante encruzilhada de caminhos, não é por acaso que esta rua de chama London Street, hoje é uma área residencial, está nas rotas do turismo interno devido às suas atrações periféricas (Vale do Cavalo Branco, Buscot Park e Buscot Manor, cuja visita aqui se registará e Kelmscott Manor, casa de verão de um genial artista, William Morris, ligado ao movimento Art and Crafts, algo como a arte nova decorativa britânica). Não esqueço a primeira visita que fiz a Faringdon, e logo aqui fiz referência, um celeiro que dá pelo nome de Great Coxwell Barn, fazia parte de uma abadia, foi construído no século XIV, Morris chamava-lhe uma das mais belas peças da arquitetura inglesa.
Interior do celeiro do século XIV, impecavelmente restaurado
O passeio até à torre Folly é uma exigência para abarcar uma vastíssima panorâmica deste belo ponto do condado de Oxford. Foi-se por esta vereda até se avistar a construção de 1935 proporcionada por Lorde Berners. Toca-nos pela sua elegância, pelo gesto humanitário que lhe está subjacente (ajudar gente desempregada), o edifício tem pouquíssima aplicação, há para ali umas reuniões anuais, mas diga-se o que se disser é o ícone de Faringdon, se o Lorde era excêntrico extravasou na perfeição para o empreendimento a que nenhum turista se furta, e a compensação do desfrute é sempre muito elevada.
Todos os passeios pedestres em tarde ensoleirada maravilham quem gosta de contemplar a natureza. Foi o que se fez, caminhando à margem da estrada que leve a Lechdale, um calor inusitado para a estação, mas aqui também a meteorologia anda às avessas, é um verde sempre muito lavado pelos orvalhos bem gotejantes, os caminhos bem tratados, a natureza pródiga, foi um passeio que deixou saudades.
É aqui que me encontro aboletado, com direito a tratamento familiar, o que se vê desta janela é uma paisagem deslumbrante, sentado olhei para aqueles inesperados reflexos da luz na parede, dou-vos a minha palavra que me pareceu um quadro, foi só puxar pela câmara, creio que resultou, ao leitor cabe decidir.
Aqui se deixa o prenúncio da visita a Oxford, o Museu Ashmolean é uma atração irresistível, espraia-se por cave, subcave e três andares, lá em baixo é o ponto de eleição para levar a miudagem, tem uma organização profundamente didática para ensinar a explorar o passado, a explicar o que é a conservação de um objeto de arte, mostra as sucessivas etapas do dinheiro, da leitura e da escrita e dos têxteis. Sobe-se umas escadarias e entra-se no mundo egeu, no Egito, na Mesopotâmia, na China, na Pré-História europeia, na escultura greco-romana, na Índia primitiva, na Itália antes de Roma e nas artes do império romano. E não digo mais para vos falar a seguir das minhas escolhas. Antes da fachada do Ashmolean que aqui se vê, temos a imagem de uma época de intolerância, no reinado de Maria a Sangrenta esta mandou para a fogueira recalcitrantes religiosos, aqui fica a lembrança de que não se deve brincar com o fogo que é a fé de cada um.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23888: Os nossos seres, saberes e lazeres (546): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (81): Regresso a Inglaterra em plenos funerais de Isabel II (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23913: Boas festas 2022/2023 (10): Mensagem dos nossos amigos nova-iorquinos Vilma e João Crisóstomo


Nova Iorque > Queens > Dezembro de 2022 >  A primeira coisa que fiz ao voltar de Portugal foi dar os devidos "ares de Natal” à minha casa. As luzes são menos este ano, excepto na entrada que está mais ou menos como em anos anteriores.


Nova Iorque > Dezembro de 2022 > Depois dum concerto de  Natal no ‘Carnegie Hall,  fomos ver a árvore de natal no “Rockefeller Center”. "Boas Festas”...



Newark, New Jersey > Dezembro de 2022 > cidade que conheço bem e onde ainda vou de vez em quando, especialmente para me fornecer de coisas portuguesas, como sucedeu na semana passada num dia das compras para o Natal: bacalhau, bolos-reis (para nós e presentes para os amigos),  azeite, vinho verde e tantas coisas que nos ajudam a matar saudades Na foto, a Vilma,  a minha filha Cristina e o meu neto Caton no meio da secção de bacalhau…

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas de Guiné]


1. Mensagem do João Crisóstomo, Nova Iorque, com data de hoje, às 14;44:


Caríssimo Luís Graça e Alice

Era minha intenção telefonar-vos hoje dia 24 (são agora 06.00 AM aqui, mas os fusos horários fazem uma hora já avançada para vocês), mas resolvi antes mandar este E mail.

Ontem ao deitar dei uma olhada pelo Blogue para ver se haviam mensagens de boas festas dos nossos camaradas . Últimamnente tenho andado mesmo ocupado e já há tempos que não tenho visitado o blogue.

E logo deparei com algo que me chamou a atenção e curiosidade : Um conto de natal em que um pobre (Um tal Garrinchas, criado pelo nosso grande Miguel Torga) consoou com a Nossa Senhora e o Menino Jesus). Que coisa linda de ler! Só mesmo um Miguel Torga! E só mesmo um Luís Graca para lembrar, encontrar e ter a ideia de nos enviar um presente destes como presente de natal . Obrigado meu caro. Com certeza muitos outros ( mesmo que não façam comentários) vão sentir o que eu senti. E só por isso já valeu bem o tempo que te levou a escrever este post de natal.(*=

E logo me lembrei que tenho de telefonar ao António Luís Malhado. O Peixeira tinha-me pedido para o contactar, pois não conseguia falar com ele já há bastante tempo. E fui a descobrir que este nosso "camarada da Guiné" vive relativamente perto de mim, em Newark, New Jersey, cidade que conheço bem e onde ainda vou de vez em quando, especialmente para me fornecer de coisas portuguesas, como sucedeu na semana passada num dia das compras para o Natal… (Ver foto: a Vilma , a minha filha Cristina e o meu neto Caton no meio da secção de bacalhau…) 

 Ele, como o meu primo Germano, era do pelotão do Joaquim Peixeira. Gostei de falar com ele e até ficamos de nos encontrar logo que possível. Porque ele usa computador,  vou tentar "aliciá-lo” para entrar para a Nossa Tabanca. Vamos a ver. Entusiasmos e situações semelhantes anteriores não levaram a sucesso. Oxalá neste caso tenha mais sucesso .

Mas o sono não vinha e logo decidi ver mais alguns posts recentes. E vi então muitas mensagens de Natal de camaradas nossos: joaquim Alves, Beja Santos, António Ramalho, Ramiro Jesus e Valdemar Queiroz. 

Mas aos Valdemar Queiroz e Beja Santos, de quem tenho os contactos telefónicos, vou logo que me for possível tentar chamar directamente. A todos os outros, mencionados ou não, que enviaram a sua amizade e saudações — e também outros como o Abel Rei que o fizeram no facebook, == de que tive conhecimento pela minha Vilma que frequenta essas paragens —  o meu Muito Obrigado com a certeza dos meus votos de Boas Festas e a minha amizade também. (**)

A minha “navegação”pelo blogue levou-me ao teu “Arquivo.pt” onde , entre muitas outras coisas fui deparar com muitas fotos, descrições de lugares que "foram meus" antes de "serem teus", como os casos de Bambadinca, Bafatá, Xime, etc, que,  embora na maioria dos casos já tenha visto em posts e ocasiões anteriores, me veio proporcionar relembrar divagar e sonhar uma vez mais nesta "quase véspera" de Natal de 2022/23…

E decidi ler alguns dos comentários aos blogues mais recentes para descobrir entre os comentários ao post P 23905, que "eu este ano, estou como o condenado à morte, da cama para o corredor para a cama, com uma escapadela (temerária) ao portátil, na mesa de trabalho... Apanhei /apanhámos uma virose ou uma gripe daquelas de caixão à cova... E coitadinha da neta que andou a espalhar os vírus, não sei como ela vai conseguir esta noite ir no 'avião grande« para a «Madeira Grande«... Por mim e pela a Alice, o Natal está feito...Faz-me tristemente lembrar as tristes crises palúdicas da Guiné"---

E eu que raramente rogo pragas (mas faço-o quase sem dar por isso quando as razões são fortes) dei comigo a acordar a Vilma e a praguejar contra mim mesmo… "Como é possível passarmos tanto tempo sem telefonar que o pobre do Luís Graca e a Alice estão doentes e nós nem sabemos nada?”

Bom meu caros…mea culpa, mea culpa… Very very sorry to hear this. Oxalá essa virose ou gripe malvada passe depressa. Ficamos “torcendo”,”rezando” ou o que quer que seja seja mais forte e dê mais resultados. Estamos com vocês. Com muita saudade e muita amizade,

João e Vilma
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Guiné 61/74 - P23912: Boas festas 2022/2023 (9): Mensagens dos nossos camaradas e amigos: Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS; Joaquim Costa, ex-Fur Mil API; José Câmara, ex-Fur Mil Inf; João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil e Idálio Reis, ex-Alf Mil Inf

BOAS FESTAS DOS NOSSOS CAMARADAS


1. Mensagem natalícia do nosso camarada Hélder Sousa, (ex-Fur Mil TRMS, TSF - Piche e Bissau, 1970/72)

Meus caros amigos e camaradas (e outros)
Com estas expressões acima, procuro que as mesmas sejam inclusivas para os "amigos" de diversos graus, ou seja de profundidade de interação, desde os superficiais aos mais profícuos, e também para os "camaradas", sejam os das Transmissões, os de Piche, os de Bissau, os que de mais perto ou de menos perto comungam pontos de vista próximos.
Claro que nesta época de grandes desejos de felicidade, e tendo em conta o meu cognome de "conciliador-mor" pressurosamente colocado faz tempo, não poderia deixar de incluir nestas palavras "os outros", aqueles que não se enquadram nas duas categorias anteriores.
Em épocas recentes acabava sempre por fazer um ou outro "escrito" marcado pela dor do falecimento da minha mãe no dia do Natal de 2012. Agora, passados 10 anos, embora ao chegar "a data" ainda mexa comigo, já consigo o distanciamento suficiente para vos desejar umas "Festas Felizes", ou seja, um "Bom Natal", comemorando o nascimento de Jesus que, embora parecendo um acontecimento intrínseco apenas à Fé Católica, na realidade se trata de algo que veio dar ao Mundo uma nova esperança de vida e de relacionamento entre pessoas, e também um "Feliz Ano Novo", embora se saiba que se trata apenas de um simples desejo, já que tudo indica que não será bem assim.

Então... para todos, "Festas Felizes"!
Hélder Sousa


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2. Mensagem natalícia do nosso camarada Joaquim Costa, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Inf da CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74):


Para o Administrador, Editores e toda a "comandita" do nosso Blogue, um SANTO NATAL e um entrada à P**** em 2023.

São os votos deste sempre Periquito
Joaquim Costa



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3. Mensagem natalícia do nosso camarada José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73):

Caro amigo,
Que o Natal seja passado com muita paz e saúde, sem dúvida a melhor prenda que o Menino nos pode trazer, no seio da família.
Boas Festas e Bons Anos.

Abraço transatlântico.
José Câmara


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4. Mensagem natalícia do nosso camarada João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, CMDT do Pelotão de Transportes Especiais (BENG 447, 1968/71):
Bom dia,
Venho desejar-te os melhores votos de Feliz Natal por email pois perdi o meu telemóvel com todos os contactos.
Continuo porém a acompanhar e ler todos os dias o "nosso" blog.

Até breve,
Um abraço
João Rodrigues Lobo


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5. Mensagem natalícia do nosso camarada Idálio Reis, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835 (Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69):

Festas Natalícias felizes e um próximo Ano vivido em pleno no seio de toda a família.

Calorosamente,
Idálio Reis

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23908: Boas Festas 2022/23 (8): Relembrando a nossa partida para o CTIG, em 22/12/1971, recordando os mortos e desejando melhores dias para os vivos (António Duarte, ex-fur mil at inf, CART 3493/BART 3873, e CCAÇ 12, Mansambo, Bambadinca e Xitole, 1972/74)

Guiné 61/74 - P23911: Conto de Natal (25): Quando o pobre do Garrinchas teve o privilégio de fazer de São José e consoou com a Nossa Senhora e o Menino Jesus (Uma pequena obra-prima de Miguel Torga, do livro "Novos Contos da Montanha, 1ª ed., 1944)


Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 - Coimbra, 1997)
Fotos: cortesia de RTP Arquivos e Imprensa Nacional


1. Temos, por tradição, publicar nesta altura um "conto de Natal"... Já lá vão  duas dúzias de contos (*). Mas,  este ano, não sei por que carga de água (não é por falta dela...),  ninguém se lembrou mandar nada, nem uma miniconto de Natal. Que falta cá nos faz, o "alfero Cabral"!... Ele teria tapado o buraco, remetendo-nos um contozinho, passado cá ou lá, no território da Guiné do nosso tempo... 

Tive, portanto, de ir meter a foice em seara alheia para manter a  tradição ou pelo menos tentar salvar a honra do convenento ou, pelo menos, as aparências... Não interessam agora as razões, a verdade é que eu podia ter espicaçado a criatividade e a sobretudo a vontade dos nossos escritores natalícios.

 Mas a semana foi má, com o editor-mor, também de molho, na cama, a largar suores frios com uma virose ou gripe daquelas das antigas que matam os velhos e vergam os novos...

E confesso, aqui, um paradoxo: nunca até hoje ninguém se lembrara de nos mandar o conto "Natal", de Miguel Torga, que hoje vamos publicar. Até como "prenda de Natal", ou com o simples pedido de divulgação do melhor que se faz "para lá do Marão", que a malta às vezes até é briosa na defesa das coisas do seu "chão", não +e Francisco, não é Zé Manel ?!...

Estou-me  a referir, obviamente, aos muitos transmontanos e durienses que se sentam aqui connosco à sombra do poilão da Tabanca Grande, alguns dos quais com créditos firmados nas letras (poesia, ficção, memórias, reportagem): estou-me a lembrar, assim de repente (e seguramente correndo o risco de esquecer de outros), dos nomes dos nossos queridos Alberto Branquinho, Fernando Gouveia,  Franscisco Baptista, Paulo Salgado, Zé Manuel da Régua, etc. Mas ainda podíamos alargar o leque aos vizinhos minhotos e aos de Entre Douro e Minho, como o Manuel Luís Lomba, o José Teixeira, o António Carvalho, o Joaquim Costa, o Mário Leitão, o Luís Jales de Oliveira, a Rosa Serra, o Abílio Machado, o Zé Ferreira da Silva, e por aí fora... Tudo gente, portanto, nortenha dos quatro costados, portugueses de grei e de lei...

A explicação pode ser simples: afinal o conto ("Natal",  de Miguel Torga) é "muito conhecido" (será  assim tanto ? foi no passado, ainda o é hoje ?)... E depois há o problema dos "direitos de autor"... O autor morreu em 1995, e a sua obra só cai no domínio público lá para o ano de 2065, quando todos nós já estivermos na quinta das tabuletas.... 

Mas vamos ao que interessa, para encurtar explicações: tenho andado, nestes últimos tempos, a ler e a reler alguns dos nossos melhores contistas da língua portuguesa, do Miguel Torga ao José Correia de Araújo, passando pelo cabo-verdiano Germano Almeida. Não me levem a mal que destaque, aqui e hoje, o conto "Natal", de Miguel Torga.

Não entro, propositadamemte, em demasiados promenores de análise literária ao texto que acabariam logo por afastar leitores ou por inibir o prazer da descoberta ou da releitura do conto. Dieri só que +e uma curta história (c. 125 linhas, 5 páginas) de um pobre diabo, na véspera de Natal, que tenta no limite das suas forças e dos 75 anos, chegar, à hora da consoada, à sua terra, Lourosa, algures na  mítica "Montanha" ou "Reino Maravilhoso"... 

O "Garrinchas", nome da personagem do conto, de resto a única de carne e osso, é mais uma figura esculpida na pedra, um sem-abrigo, um "pobre-de-pedir", como se dizia no meu tempo, como dizia a minha mãe ou a senhora professora primária, apontando para o "Livro de Leitura da Terceira Classe: havia os pobres (que éramos todos nós) e os mais pobres dos pobres, os pobres-de-pedir, que andavam a mendigar, "pedir esmola", de porta em porta, "a mão estendida à caridade". 

Vinham em bandos, em geral, à sexta.feira, e às vezes de longe, de fora do concelho... Tal o como o  "Garrinchas" que sabia, por experiência própria, que os santos da casa não faz4m milagres , entenda-se, não abrem facilmente os cordões à bolsa, são mais forretas.

Portanto, o leitor é confrontado com um problema social muito grave que se arrastava, há mais de dois séculos, desde as invasões napoleónicas, e se prolonga para lá do fim da Monarquia,  a I República e o Estado Novo, até aos anos 60/70, o da indigência social (no campo e na cidade).  

Sempre houve em Portugal (e na Europa) bandos e bandos de gente a mendigar, "a estender a mão à caridade",,,. Mas este "Garrinchas" é um solitário, perdido nos confins da Terra Fria ou da Terra Quente, não se sabe ao certo,  de Trás-Os-Montes, imaginamos nós.

A magia deste conto (uma pequena obra-prima como quase todos os outros que o autor publicou, e que eu adoro ler e reler) está na importância que o "sagrado" assume, de repente, no final do conto... o "sagrado" está sempre subrepticiamente presente na escrita  de Torga,  ele que não era crente, era profundamente espiritual (uma "animista", diríamos nós na Guiné),  em comunhão com a terra, os outros e os demais seres vivos. 

Que ele, lá no Olimpo dos escritores e artistas, onde finalmente descansa das agruras da vida terrena (e não foram poucas!),  nos perdoe este atropelo ao direito de autor, mas ele saberia compreender e aceitar, se fosse vivo e nos lesse, que é tudo por uma boa causa. 

Por favor, caro leitor, saboreia esta prosa, devagar, de preferência, lê-a à lareira (ou luz da vela), logo à noite, entre o vinho fino (também pode ser uma aguardente DOC da Lourinhã ou um bagaço de Candoz ou um medronho do montado da serra algarvia) e a aletria (ou o arrroz doce)... 

Lê-o, por favor, em voz alta, para os mais novos (e os menos novos que ainda que não tenham  desistido  de aprender e de sonhar...). E depois, escreve-nos,  a dizer se valeu a pena a experiência. Bom Natal e Melhor Ano Novo de 2023. LG

Natal 

por Miguel Torga  (1905-1995)

Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa (#), pior. Ninguém dá nada. 

– Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras!

Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam… Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim… Segue-se que só dando ao canelo (#) por muito largo conseguia viver.

E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa… E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo  (#), permanentemente escancarado à pobreza.

Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura… Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. 

O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. 

Aflito, batia-lhe na taipa (#)  do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer?

Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo… Areias, queriam dizer. Importava-se lá. E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido!

O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa… Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama! Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes. Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura. Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida…

Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha. Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não. 

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel. Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. 

 Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também. 

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho (#). Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo. 

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava? 

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. 

 É servida? 

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira. 

– Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

Miguel Torga


In: Miguel Torga - Novos Contos da Montanha, 15ª ed. Coimbra, edição de autor, Gráfica de Coimbra Lda, 1991, pp. 121-126 (1ª ed., 1944).

[Seleção, revisão e fixação de texto / Bold a preto / Notas de rodapé, para efeitos apenas de publicação deste poste: LG]
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(#)Notas do editor LG: 

 Lourosa e os demais topónimos /Carvais, Feitais, Loivos..) são fíctícios. Mas ficam na "Montanha", no "Reino Maravilhoso"... 

Como explica o próprio criador: (...) "– Para cá do Marão, mandam os que cá estão!…
Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:
– Entre!

A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso. A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua.

Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição." (...)

(#) Canelo: canela da perna.

(#) Forno do povo: padaria coletiva nas aldeias de Trás-os-Montes, gerida pelas comunidade, onde toda a gente cozia o seu pão. Havia um sistema de trabalho rotativo. Funcionava também como albergaria para estrangeiros e pedintes de passagem pela aldeia. Estava permanentemente aquecido. Era uma instituições do "comunitarismo primitivo" de que Rio de Onor e Vilarinho das Furnas foram até aos anos 50 os exemplos mais perfeitos.

Imagem à acima, à esquerda: antigo formo do povo de Tourém, Gerés. Cortesia de GR 50 Peneda-Gerês > Forno do Povo, Tourém, Montaleger

(#) Taipa: parede de tabique

(#) Em Trás-os Montes, arcanho quer dizer traste, móvel, utensílio ou objecto considerado velho ou de pouco valor.
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... E depois, caro leitor,  de teres lido o conto, aponta, na tua agenda, uma visita, na próxima primavera de 2023, à Casa-Museu Miguel Torga e ao Espaço Miguel Torga (desenhado por Eduardo Souto Moura), em São Martinho de Anta, Sabrosa, recentemente inaugurados há menos de um ano... E não te esqueças que a terra não é só do Torga, é também de uma  nossas heroínas, a enfermeira paraquedista Giselda Pessoa (Antunes, apelido de solteira)... E depois vê o vídeo Casa Museu Miguel Torga, 27' 25'').

Guiné 61/74 - P23910: Parabéns a você (2129): Fernando de Jesus Sousa, DFA, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 6 (Bedanda, 1970/71

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23907: Parabéns a você (2128): Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150/73 (Bigene e Guidage, 1973/74); Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS do STM/QG/CTIG (Bissau, 1968/70) e Felismina Costa, Amiga Grã-Tabanqueira, poetisa e declamadora

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23909: Notas de leitura (1535): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Estamos agora a cerca de metade do livro em que o nosso confrade José Matos é coautor. Deu-se a evolução da FAP de 1961 a 1963, houve melhorias em Bissalanca, o pessoal melhorou a sua capacidade de treino, começou a guerra, que alastrou rapidamente da região Sul para a outra margem do Corubal e subiu até ao Morés. O que aqui se relata é esse primeiro ano das missões da FAP na Guiné. Como observam os autores, os pilotos tinham inicialmente grandes dificuldades com as cartas desatualizadas, procedem ao registo de acidentes e dão conta do estado das aeronaves. É facto que o efetivo das forças terrestres aumentara gradualmente nestes primeiros anos, os comandos militares não dispunham inicialmente de um bom sistema de informações, o corrupio de operações limitava-se a tentar suster as intrusões e a constituição de bases no interior do território, mas desconhecia-se integralmente a questão central da manobra do PAIGC. Quando se vêem historiadores a criticar estes 2 primeiros anos da guerra, estes críticos de bancada não tomam em consideração que era a guerrilha que possuía a iniciativa e o defensor procurava imaginar o que vinha a seguir. Mas foi assim que aconteceu, é manifestamente irrelevante andar a pôr a História em tribunal.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Depois de sumariar o prefácio, entrámos no primeiro capítulo intitulado “O Vento da Mudança”, verificaram-se as alterações operadas no início da era de descolonização e as consequências que vieram a ter na colónia da Guiné. Os capítulos subsequentes permitem-nos ter, mediante processo diacrónico, a evolução dos decisores políticos quanto à formação e equipamento da FAP nos diferentes teatros de operações, e depois o trabalho incide sobre a Guiné, os equipamentos existentes no período que precede a eclosão da guerrilha e as sucessivas respostas para permitir à FAP sucesso na multiplicidade dos desempenhos.

Os comandos militares da FAP na Guiné procuraram prontamente reagir e deter a atividade subversiva, mormente nas regiões fronteiriças, mas se bem que fosse notória a falta de qualidade e atualidade dos mapas aeronáuticos, tudo fizeram para evitar intrusões acidentais, designadamente na fronteira senegalesa, para não haver consequências políticas. Mesmo assim, o Senegal protestou alegando ter havido intrusões no seu espaço aéreo, cortou relações oficiais com Portugal. Em 21 de dezembro de 1961, alegadamente dois F-86 invadiram o espaço aéreo senegalês. Portugal reconheceu a intrusão, mas negou qualquer intenção deliberada, alegou-se que uma patrulha de reconhecimento de rotina sofrera uma falha de navegação e a intrusão não durara mais de 30 segundos. A República da Guiné igualmente protestou contra repetidas violações do seu espaço aéreo. A FAP teve neste período vários danos ou mesmo destruições antes de se terem iniciado os combates aéreos. Um F-86 sofreu um acidente com a colisão de um pássaro em 19 de agosto de 1961, apesar dos danos da colisão o Tenente Teixeira Lobo pousou com sucesso, mas a aeronave ficou inoperável durante várias semanas. A primeira perda aérea operacional da ZACVG ocorreu em 29 de maio de 1962. Nessa data, o Tenente José Cabaço Neves e o Furriel Manuel Soares Matos morreram num acidente de T-6 numa passagem de baixo nível quando investigavam tráfego suspeito nos rios. Outra perda ocorreu em 17 de agosto quando um F-86, no regresso de um reconhecimento, foi destruído num acidente na aterragem causado por fortes chuvas. A aeronave pousou no centro da pista, rolou invertida e explodiu, felizmente o Tenente Barbosa conseguiu escapar sem ferimentos graves. A frota Sabre ficara reduzida a 7, das quais 3 das 4 aeronaves estavam operacionais no início da guerra.

Após o ataque a Tite e as emboscadas na região de Fulacunda, o PAIGC estendeu a sua ação; tempos depois, obteve-se a informação de que a guerrilha dispunha de metralhadoras e passava a usar minas anticarro. Os ataques dos insurgentes, davam-se sobretudo à noite e centravam-se em três tipos principais de alvos: linhas de comunicações (estradas, pontes e transportes fluviais), instalações militares (acima de tudo, os quartéis) e a infraestrutura económica (entrepostos comerciais, outros locais onde estivessem armazenados produtos para exportação). Agrupamentos populacionais, vilas importantes e destacamentos militares foram alvo de ataques, sabotagens, flagelações com espingardas, metralhadoras ou morteiros. Os guerrilheiros do PAIGC também procuraram começar a atacar as aeronaves portuguesas com os meios disponíveis, principalmente armas de pequeno calibre e, usando escandalosamente a propaganda, reivindicaram, no final de 1963, o abate de 17 aviões, incluindo mesmo cinco no dia 21 de fevereiro. De facto, houve uma única perda de aeronave naquele ano. A primeira ação real de ataque aéreo da ZACVG aconteceu em 4 de abril, depois de uma aeronave de observação Auster ter detetado armas de fogo próximo de Darsalame. A resposta foi um ataque de um caça F-86 que pretendia obter um efeito mais psicológico do que real. Naqueles primeiros meses, a FAP pouco melhor podia fazer, dispunha de informações vagas e fragmentadas. “Naquela altura era praticamente inexistente a informação fora das áreas populacionais que nos eram afetas”, segundo o Tenente-General António de Jesus Bispo, que cumpriu três missões na Guiné entre 1963 e 1971. “Não havia uma ideia clara da disposição do inimigo no terreno, pelo menos ao nível dos pilotos”. O sistema de obtenção de informações na FAP foi melhorando à medida que a guerra avançava, mas não faltaram surpresas táticas e estratégicas que acabavam por complicar a operacionalidade no ar.

Em 1 de abril de 1963, o recém-chegado Comandante-Chefe das Forças Armadas, Brigadeiro Fernando Louro de Sousa, apresentou a sua primeira avaliação do que se estava a passar em relatório enviado para o Ministério da Defesa: registava com preocupação a escalada da atividade guerrilheira em muitos pontos do território e como estava altamente perturbada a atividade económica e afetados os transportes. Remanescentes do Movimento de Libertação da Guiné, com sede no Senegal, ainda permaneciam nalguns pontos no Norte da Guiné, mas este movimento havia sido quase totalmente suplantado pelo PAIGC. O partido orientado por Amílcar Cabral revelava-se o mais bem armado e preparado dos dois e beneficiou do apoio dado pela República da Guiné, por outros regimes africanos e pelas nações do bloco comunista para além da China. Na opinião de Louro de Sousa, o PAIGC representava “maior perigo para a estabilidade da situação política da província” face ao seu rival menor.

Passados 8 dias de Louro de Sousa ter emitido a sua primeira avaliação para Lisboa, em 9 de abril de 1963, o Governador da Guiné, Vasco Rodrigues, recebeu outra queixa do Senegal, desta vez alegando que 4 aeronaves haviam atacado a vila senegalesa de Bouniak. O Senegal colocou a questão no Conselho de Segurança da ONU, foi adotada uma resolução que deplorava a violação de soberania e pedia às autoridades portuguesas para tomar todas as medidas necessárias para evitar situações como aquela. As autoridades portuguesas reconheceram um ataque ocorrido em 8 de abril de F-86 e T-6 contra a vila de Bunhaque, a 4 quilómetros de Bouniak, mas uma investigação conduzida pelo comandante da ZACVG, Tenente-Coronel Durval Serrano de Almeida, concluiu que não caíra fogo no lado senegalês. Este episódio permanece indiscritível, o comandante posterior, José Duarte Krus Abecassis (1965-1967), reconheceu que a FAP bombardeou e metralhou deliberadamente uma base de apoio inimiga no Senegal, em 1963. O governo português manteve uma política de negar oficialmente tais ataques, enquanto o Senegal convidava jornalistas estrangeiros para examinar os danos dos ataques e os resíduos das armas envolvidas. Krus Abecassis considerava que a recusa de Portugal em admitir tais ataques nos trazia descrédito político.

Com apenas 3 meses de guerrilha, a Guiné entrava na comunicação internacional, chamava a si críticas generalizadas e a condenação na ONU. Durante o ano de 1963, as operações da FAP acompanharam estreitamente o alargamento da atividade militar portuguesa. Em junho e julho, os guerrilheiros de Cabral lançaram ataques nas regiões do Xime e Xitole, o PAIGC atravessara o Corubal e procurava estender-se para o centro da Guiné. A guerrilha implantou-se na região do Oio, o que permitia ao PAIGC estabelecer uma rede de atividades em diferentes direções no interior da Guiné, obteve o apoio da etnia Balanta e dos Oincas nesta região densamente florestada do Morés. O ministro da Defesa português, Gomes de Araújo, admitiu publicamente que a guerrilha “infestara” aproximadamente 15 por cento da superfície do território. Para conter a maré insurgente, as forças portuguesas lançaram uma série de operações terrestres destinadas a repulsar as posições do PAIGC, as contribuições da FAP a essas operações normalmente incluíam incursões preparatórias para reconhecimento, mas também transporte de tropas, apoio de fogo, reabastecimento, evacuação médica.

No entanto, a situação agravava-se. O Ministério da Defesa enviou o General Venâncio Deslandes que chegado a Lisboa elaborou um relatório que começava por dizer que “a situação atual é realmente grave, cerca de um quinto do território dá sinais de insurgência, mais agudos nas regiões fronteiriças e na região Sul”. Alertou ainda a que um ataque a Bissau “seria fácil de executar, com todas as consequências políticas que isso acarretaria”.

(Continua)
Panorama geral de Bissalanca no início da guerra. Nessa época, a FAP dispunha de 30 aeronaves no teatro, incluindo os T-6 (Aquivo Histórico da Força Aérea)
No início da guerra, a FAP na Guiné dispunha de três ou quatro F-86 prontos para combate (Aquivo Histórico da Força Aérea)
Operações do PAIGC entre janeiro de 1963 a janeiro de 1964 (Matthew M. Hurley)
Peça de artilharia antiaérea Goryunov SG-1943 7,62 mm (à esquerda). Foi uma das primeiras armas de defesa antiaérea usadas pelo PAIGC (Coleção Abert Grandolini)
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Notas do editor

Poste anteruor de 16 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23886: Notas de leitura (1533): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (8) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23895: Notas de leitura (1534): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (3) (Mário Beja Santos)