terça-feira, 6 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24374: (In)citações (246): O regresso dos Soldados (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Foto: © Luís Graça

1. Em mensagem de 3 de Junho de 2023, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos um texto que intitulou:


O Regresso dos Soldados


Nós os homens dos vinte anos feitos ou a fazer nas décadas de 60 e 70 do século passado, sonhámos com o dia 25 de Abril de 1974, mais do que os hebreus com o dia da libertação do Egipto.

Soldados em formação ou soldados prontos, milicianos, forçados a combater em savanas, matas e bolanhas, de Angola, Moçambique e Guiné, contra a sua consciência ou sem entenderem as razões dessas batalhas, a defenderem territórios habitados por africanos, gentes de outras cores, outras raças, de outras crenças e colonos brancos, tão longe das suas aldeias, dos seus bairros, das suas vilas e cidades, nessa África quente e desconhecida, que a alguns matavam e a outros feriam no corpo e na alma.

Muita da alegria de viver, que ficou por lá, entre sonhos e pesadelos de juventude perdida, os ex-combatentes procuram hoje recuperá-la, em convívios e almoços, em conversas longas só entre eles, sobre picadas, emboscadas, ataques, balas, rebentamentos, colunas, bajudas, homens grandes, mortos e feridos para libertarem o espírito e ganharem alento para fazerem a última caminhada com dignidade. Com o clarão das bombas ao rebentar, o cheiro da pólvora, o matraquear das espingardas e das metralhadoras todos transportam o desgosto imenso dos anos perdidos da juventude, quando outros da sua idade, os mais infelizes, perdiam a saúde e a vida, imolados no altar da Pátria, que nunca reconheceu o seu sacrifício supremo. Todos os que sobreviveram transportam a raiva pelo esquecimento a que foram votados pela sociedade civil e pelos governos depois da ditadura, os feridos e mortos em combate, que heróis ou não, foram seus amigos e seus irmãos, como se a Nação ao condenar o ditador e as suas políticas coloniais, devesse também condenar os ex-combatentes que foram forçados a fazer a guerra colonial.

Fomos nós que fechamos o ciclo penoso dos descobrimentos e da expansão marítima, que os gloriosos marinheiros portugueses iniciaram no século XV, com a morte de muitos por tempestades nos mares que destruíam as frágeis caravelas, pela fome, pelo escorbuto, doença terrível, por incursões em sítios onde aportavam. Entre nós, os últimos soldados do Império e os soldados e marinheiros lançados a desbravar caminhos dos mares de terras distantes, muitos outros soldados se sacrificaram até à morte, nos séculos que medeiam, a tentar dominar revoltas de reinos e tribos indígenas e na Primeira Guerra Mundial, contra grandes potências colonizadoras. O Velho do Restelo, a consciência crítica dos Lusíadas, por muitos interpretado como a consciência de Luís de Camões alertava para todas as desgraças e horrores que iriam acontecer, que nada de bom trariam a Portugal.

Ao reflectir sobre o meu passado procuro interpretar os pensamentos e sentimentos da minha geração e tentar desfazer o novelo, da teia de incompreensão, com que fomos recebidos, como se tivéssemos que corrigir todos os erros da nossa História antiga e recente.

"Viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inacção". "Tenho mais sono íntimo do que cabe em mim. E não quero nada, não prefiro nada , não há nada a que fugir".

Bernardo Soares, do "Livro do Desassossego".

Somos o princípio e o fim de uma ilusão que se esvai num curto espaço, a que se chama vida.

Francisco Baptista

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24365: (In)citações (245): "Pequena conversa com a Arte", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P24373: Efemérides (394): 10 de Junho de 2023 - Dia do Combatente Limiano - Homenagem aos Combatentes Limianos mortos ao serviço de Portugal (Manuel Oliveira Pereira)

C O N V I T E

Temos a honra de Convidar V. Exª para participar na Homenagem aos Combatentes Limianos mortos ao serviço de Portugal, a realizar no próximo dia 10, sábado.

Muito gratos e honrados com a V. presença.

O Presidente do Núcleo.
a) Manuel Oliveira Pereira (Dr)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24290: Efemérides (393): 5 de Maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa, a sexta mais falada do mundo, depois do mandarim, espanhol, inglês, árabe, hindi e bengalês, à frente do russo, japonês e punjábi... É a língua mais falada no hemisfério sul...

Guiné 61/74 - P24372: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte II: A imaginação que era preciso ter para se comer "atacadores da PM com estilhaços"!... Trocando carne do restaurante "Solar dos 10", em Bissau, por produtos locais de Có (camarão, ostras, tomate...) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

Pombal > 28 de Abril de 2007 > II Encontro Nacional da Tabancva Grande  > Dois representantes da CCAÇ 2402/ BCAÇ 2851 (1968/70), o Raul Albino (1945-2020)  (assinalado com um círculo a amarelo) e o Maurício Esparteiro (a verde)... (Na foto, há outros camaradas que já nos deixaram, além do Raul Albino: Jorge Cabral, Carlos Santos, Fernando Franco, Victor Barata... Mas outros, felizmente ainda estão vivos!)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1.  O nosso saudoso camarada e amigo Raul Albino (1945-2020), ex-alf mil at inf, MA, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), publicou ainda em vida dois volumes com a história da sua unidade. 

O Raul Albino com a ajuda do fotógrafo Maurício Esparteiro (vd. foto acima) concebeu e realizou uma ideia original: um livro da CCAÇ 2402 onde todos e cada e um são gente... Do capitão ao soldado básico, toda a gente teve lá a sua foto, o seu espaço (*)... 

Além disso, cada um dos camaradas da CCAÇ 2402 podia ter uma versão única e original do livro, com registos exclusivos sobre a sua pessoa... Com uma pontinha de orgulho, o Raul e o Maurício mostraram-me, no encontro em Pombal, em 2007,  um exemplar do seu livro: cada exemplar saíu da tipografia a 8 euros, sendo vendido a 10 euros, para cobrir as quebras e as borlas ...

No II Volume, que continuou a ter  a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro, o Raul contou ainda com a participação especial do ex-cmdt da companhia, Vargas Cardoso, e do ex-fur mil SAM, João Bonifácio.  

Hoje publicamos mais dois pequenos textos do Mário Vargas Cardoso (1935-2023), ex-cor inf ref, que há dias nos deixou, e que ilustram bem o sentido da divisa dos "Lynces de Có": "Se é impossível, há de fazer-se" (**)...

No nosso blogue, o Raul Albino também já havia publicado, no devido tempo, 18 postes com episódios da história da CCAÇ 2402 (***).

Mário Vargas Cardoso (1935-2023)


50 kg de tomate produzidos por dia na bolanha de Có...

Ao chegarmos a Có, os indígenas começaram a aparecer com tomates do tamanho de batatas novas, pois não sabiam plantar tal fruto.

Então a Companhia com as sementes que levávamos, começou por fazer os viveiros em caixotes e o Moreira e o Ferreira, salvo erro,  encarregavam-se de chamar as indígenas (as mulheres é que trabalhavam na lavoura) e ensiná-las a fazer o viveiro, até as plantas terem determinada altura.

Depois era preparar o chão e transpalntar essas plantas de forma ordenada e com espaços entre os pés dos tomateiros; regar quando preciso; encanar as plantas quando começavam a precisar de apoio; continuar a regar; e colher quando estivessem em condições de o fruto ser apanhado...

Como se devem recordar,  algumas semanas depois, naquela bolanha para o rio, em Cõ já se produziam mais de 50 kg de tomate por dia...


... que chegámos a trocar, com outros produtos locais (camarão e ostras), com o restaurante "Solar dos 10", de Bissau

Uma das dificuldades com que nos deparámos na Guiné, todos se lembram, era no respeitante à possibilidade de obter produtos frescos...

Todos se recordam que,  desde o início da comissão, exceto no período que estivemos em Mansabá, sempre tivemos uma horta cavada e tratada pelos nossos militares. 

Mas no respeitante a carne, a situação era muito difíciil. As populações não produziam gado para vender aos militares. Para eles  o gado era uma riqueza pessoal.

A Manutenção Militar tinha dificuldade em enviar carne fresca, para as unidades instaladas no mato, e estas tinham de se "desenrascar". 

Mas os "Lynces de Có", que às vezes se viam obrigadas a "requisitar" alguma vaca aos africanos, pagando ao preço estipulado pelo Governo da Pronvíncia, também utilizaram outros processos legais.

Lembro-me que, por duas vezes, se a memória não me falha, conseguimos carne vinda de Bissau, de forma expedita mas arcaica. 

Então o processo foi este: através do Bonifácio [ o fur vagomestre, nosso tabanqueiro, a viver hoje no Canadá encomendámos às indígenas que nos trouxessem ostras, camarão e tomate. Entretanto,, via rádio, para o delegado do nosso batalhão em  Bissau, de acordo com código que estabeleci com ele, pedia-lhe para obter junto do sr. proprietário do restaurante "Solar dos 10", peças de carne e levá-las em dia combinado, até João Landim, local onde se fazia a cambança do rio Mansoa, na jangada ali existente,

Por sua vez, a Companhia organizava uma coluna que, saindo de Có, levava tudo o que se fosse necessário mandar para Bissau, mais os produtos que os indígenas nos vendiam: 20 kg de camarão; 1 pipo de vinho cheio de ostras, e 80 kg de tomate.

Para a troca trazíamos para  Có cvrne que o deleghado pedira ao "Solar dos 10", que por sua vez nos ficava com os produtos que referi. E assim sempre se podia comer "os atacadores da PM [leia-se: esparguete...]  com estilhaços"...

Vargas Cardoso, ex-cmdt, CCAÇ 2402 (Cõ,. Mansabá er Olossato, 1968/70)


[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos ( Parèntses retos: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)

(**) Último poste da série >  5 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24368: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte I: Tempo(s) de Homofobia(s) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

(***) Vd. último poste da série > 19 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

Guiné 61/74 - P24371: Parabéns a você (2177): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM/QG (Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24355: Parabéns a você (2176): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24370: A galeria dos meus heróis (50): Diz-me quem foi o teu pai... (Luís Graça)

 


A galeria dos meus heróis > Diz-me quem foi o teu pai…

por Luís Graça (*)


Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

Quem, o Ulisses?

 Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

 Já agora retifica: ex-cunhado... Mas nunca fomos à bola um com o outro.

E eu aproveitei então para esclarecer, o meu interlocutor, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… Mal saiu a amnistia aos faltosos, refratários e desertores, voltou à sua terra para abraçar o paizinho e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, mal nos vimos. Mas ainda me lembrava dele na escola, ao ex-cunhado de Jorge, hoje o senhor embaixador com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola acrescentou o Jorge.

Foi um sortudo, o Ulisses!...

Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

A dona Natércia?!... exclamei eu. A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

Há,  sim. E a nossa terra não teria agora  atalhou o Jorge uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe", estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou-me o Jorge, uns bons anos mais velho do que eu. − Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... (Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos.)

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.   Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa.

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrei eu.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o nosso historiador local, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da terra, vim a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época.

Claro, o pai Anselmo visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado uma amante 20 e tal anos mais nova.

Mas… exilado, dizes tu?!

É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

 À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como alguns que a gente conheceu. Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou comigo,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorger  a completar a minha frase.

E depois elucidou-me:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube muito mais tarde... Também nunca vi semelhante humilhação aos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste dos primeiros da terra a marchar para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.  

Das suas origens do Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios.

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadmizada.

Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a tímida abertura da economia, ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém. Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos".)

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. O Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. O Jorge achava que ele era do "reviralho"...

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política comigo. Nem nunca o ouviu falar de política com os filhos.

Também é verdade, sempre declinou o insistente convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca.

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. Em boa verdade, a razão não era essa: ele movimentava mais dinheiro que a câmara toda, dependente das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, e elevação de espírito, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... Acabou,  no entanto, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Todavia, sabia-se pouco da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indaguei eu.

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que sempre me pareceu mais verosímil ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distància, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir à  arte xávega e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a muher e os filhos detestavam... preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial era menos considerado socialmente do que o comerciante. O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) destas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano, o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE . Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, outra assistentes social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório das empresas.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas. 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses ainda foi meu colega de escola… Mas não propriamente meu amigo, Separavam-nos três anos e os seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de menino rico… Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que eu nunca pude frequentar. Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos. 

−  Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida trocou-lhe as voltas − acrescentei eu.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena melodramática que terá feito lá em casa, "preferia ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". A mãe era uma senhora conservadora,   beata e amiga dos pobres. E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se política naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente... Formou-se em direito europeu na Holanda, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematei eu. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  Mas temos de reconhecer que teve um bom pai.

© Luís Graça (2023)




Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934.  São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a  Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P24369: Notas de leitura (1588): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
A descrição desta segunda viagem trouxe uma inevitável polémica entre os historiadores dos Descobrimentos, não há consenso sobre as paragens cabo-verdianas que ele regista. Atenda-se que ele umas vezes fala do Cabo Verde continental, na primeira viagem faz até uma bela apreciação paisagística, esta segunda viagem leva-o até ao rio de Gâmbia, é certo e seguro que o Infante D. Henrique lhe pediu para explorar a costa abaixo, e assim o vemos no batizado Cabo Roxo, depois o Casamansa e depois o rio Grande ou Geba, onde ele deu conta do macaréu, coisa que nunca vira. É um mercador, percebe-se sem dificuldade que anda ali a desempenhar o papel de cronista, o registo que faz nas suas viagens prima pela curiosidade do seu olhar, tem conhecimentos de Náutica, fascina-se com a vegetação, com os animais e as aves, teme a aproximação das caravelas da terra, de vez em quando é patente a hostilidade quando chega. Quando acabamos esta saborosa leitura e sabemos que virão um Lemos Coelho, um André Donelha, um Duarte Pacheco Pereira, um André Álvares d'Almada, rendemo-nos a este espírito curioso, alguém que já tinha mundo e que mercadejava no Mediterrâneo e que regressa à sua terra onde exercerá cargos políticos. É uma peça-chave da nossa tão fecunda literatura de viagens, talvez a reportagem mais viva que guarda a historiografia deste projeto henriquino em que Cadamosto embarcou, pois não disfarça que também queria enriquecer.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

A segunda viagem de Luís de Cadamosto aconteceu em 1456, ele e Antonieto Usodomar armaram duas caravelas e rumam para o rio de Gâmbia, partem com o agrado do Infante D. Henrique. “Saímos do lugar chamado Lagos, com vento próspero, e pusemos o rumo para as Canárias. Sendo o tempo favorável, não nos preocupámos de tocar nas ditas ilhas, mas navegámos em seguida para o Sul e com a corrente da água, que impetuosamente seguia para Sudoeste, andámos muito”. Assim chegaram ao Cabo Branco, foram colhidos por um forte temporal, mudaram de azimute, e depois avistaram terra, nada sabiam daquelas paragens. Começaram por uma ilha desabitada: “Havia imensa quantidade de pombos. No alto da montanha tiveram vista de três outras grandes ilhas de que não tínhamos dado conta, porque uma nos ficava a sotavento da parte do Norte, e as outras duas estavam na mesma linha, do lado oposto, da parte do Sul, também na nossa derrota, e todas à vista umas das outras”. E depois chegaram à vista das outras ilhas, correram ao longo da costa, desembarcaram, encontraram tartarugas, percorreram o rio. “À primeira ilha onde desembarcamos, demos o nome de ilha da Boa Vista, por ter sido a primeira vista da terra naquelas partes; e a esta outra, que nos parecia a maior das quatro, demos o nome da Ilha de Sant’Iago, porque fomos lançar âncora nela no dia de S. Filipe e Sant’Iago”. E daqui partiram para um lugar chamado Duas Palmas, entre Cabo Verde e rio de Senegal e assim chegaram ao rio de Gâmbia, não encontraram oposição de ninguém, encontraram uma ilha e puseram o nome de Sant’André, prosseguiram viagem pelo rio Gâmbia, apareceu alguém que percebia do intérprete que tinham levado que lhes disse que aquele país era Gâmbia, e que o seu principal senhor era Forosangoli, que vivia a nove ou dez jornadas, este senhor dependia do imperador do Mali, mas que havia muitos senhores menores, disse mesmo que os levaria a um deles chamado Batimansa, oferta que agradou aos navegadores.

Chegados ao destino, enviaram um presente ao senhor Batimansa, uma camisa. “Mandámos-lhe a dizer que tínhamos vindo de mandado do nosso Senhor, o Rei de Portugal, cristão, para travar com ele boa amizade e para saber se precisava das coisas dos nossos países, que todos os anos o nosso Rei lhas enviaria, e com muitas outras palavras”. Permaneceram onze dias naquele local, receberam muitas visitas, havia gente que queria vender coisas. “As coisinhas que nos traziam eram algodões, fiados de algodão e panos de algodão feitos à sua maneira. Traziam também muitos macacos e babuínos grandes e pequenos. Também traziam gatos de algália e peles deles para vender”.

Dá-nos um quadro bem curioso das almadias e do modo de remar. E tece também considerações sobre os usos e costumes, e não deixa de falar do clima: “Esta terra é muito quente, e quanto mais se anda para o Sul tanto mais parece pedir a razão que as regiões sejam quentes; e sobretudo neste rio havia muito mais calma do que no mar, por estar povoado de muitas árvores e muito grandes. Da grandeza destas digo que estando nós a fazer aguada numa fonte junto à margem do rio, havia uma árvore grandíssima e muito grossa; porém, a altura não era proporcional à grossura, porque julgámos que tivesse de altura uns 20 passos, e a grossura, mandando-a medir, achámos umas 17 braças de circunferência, no pé”.

Também muito saborosa é a descrição que faz dos elefantes, deram-lhe a comer carne de um deles, achou-a dura e desenxabida. “Trouxe um dos seus pés e parte da tromba para o navio, e também muitos dos cabelos do corpo, que eram pretos e compridos um palmo e meio e mais; e tudo, juntamente com parte daquela carne que foi salgada apresentei depois em Portugal ao dito Senhor D. Henrique, que as recebeu como grande presente, por serem as primeiras coisas que tinha recebido daquele país, descoberto por indústria sua”. Volta a fazer comentários sobre as coisas que viu no rio de Gâmbia, e põem-se ao caminho para Casamansa, onde também havia um senhor chamado Casamansa. Daqui partiram para o Cabo Roxo, chegaram depois à boca de um rio de razoável grandeza, deram-lhe o nome de rio de Sant’Ana, continuaram e encontraram outro rio a que puseram o nome de São Domingos, e assim chegaram à boca de um grandíssimo rio, que julgaram ser um golfo. “Estivemos sobre a embocadura deste grande rio, ou Rio Grande, dois dias, e a Estrela do Norte aparecia aqui muito baixa. Neste lugar encontramos uma grande contrariedade, que não há em outro lugar, pelo que pude ouvir, e foi que, havendo aqui maré de água enchente e vazante, como em Veneza e em todo o poente, e enquanto em toda a parte cresce seis horas e baixa outras seis, aqui cresce quatro horas e baixa oito, e é tão forte o ímpeto da corrente da dita maré, quando começa a encher, que é quase incrível, porque três âncoras na proa mal nos podiam segurar, e com esforço, e momentos houve em que a corrente nos fez fazer à vela à força, e não sem perigo, porque tinha mais força do que as velas com o vento”. Cadamosto, sem o saber, estava a experimentar o macaréu, será provavelmente esta a primeira descrição feita por um europeu deste fenómeno da natureza.

E deste modo finaliza a sua segunda viagem: “Partimos da embocadura deste grande rio para voltar a Portugal, e fizemo-nos em direção àquelas ilhas, que estavam distantes da terra firme umas 30 milhas. Chegámos a elas, são duas grandes e algumas outras pequenas. Estas duas grandes são habitadas por negros e são muito baixas, mas abundantes de belíssimas árvores, grandes, altas e verdes. Também aqui não pudemos falar, porque não nos entendiam, nem nós a eles, e partindo dali, fomos para os nossos países dos cristãos, para os quais, por nossas jornadas, tanto navegámos, que Deus por sua misericórdia, quando lhe aprouve, nos conduziu a bom porto”.

Texto de inexcedível beleza e de uma incontornável riqueza para esta literatura de viagens encetada no século XV.


Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
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Nota do editor

Último poste da série de2 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24362: Notas de leitura (1587): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24368: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte I: Tempo(s) de Homofobia(s) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

  

Capa do II Volume do documento policopiado "Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), 2008,  inumerado.


1.  O nosso saudoso camarada e amigo Raul Albino (1945-2020), ex-alf mil at inf, MA, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), publicou ainda em vida dois volumes com a história da sua unidade. 

No II Volume, que teve a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro, contou ainda com a participação especial do ex-cmdt da companhia, Vargas Cardoso, e do ex-fur mil SAM, João Bonifácio.  Hoje publicamos um pequeno texto do Vargas Cardoso, ex-cor inf ref, que há dias nos deixou (*). No nosso blogue, o Raul Albino também publicou, no devido tempo, 18 postes com episódios da história da CCAÇ 2402 (**).


O transmissões que era gay...

por Vargas Cardoso 

Durante o período de preparação das unidades que mobilizavam para o Ultramar, quando já tinha conhecimento do teatro de operações do destino, e se preparavam os exercícios finais, que em 1968 se faziam no Continente / Metrópole, apresentavam-se na unidade mobilizadora (no nosso caso, o Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora) os chamados especialistas, ou sejam os elementos do comando da companhia.

De entre os condutores, enferfermeiros, mecânicos, radiotelegrafistas, trabsmissões, etc., apresentou-se-me um futuro cabo de transmissões, que durante a habitual entrevista que tive com todos os militares da CCAÇ 2402, me causou alguma preocupação, pois pareceu-me denunciar um comportamento de tipo sexual, à época, bastante anómalo.

Já não me recordo como obtive informações complementares, mas lembro-me que dias depois,  e uma vez confirmadas (em princípio) as minhas suspeitas, falei com o nosso médico, o dr. João Dória (***), manifestando-lhe os meus receios, por estar em vias de embarcar para a Guiné, um militar que iria ter uma actividade muitas vezes sozinho no seu posto de serviço.

Ficou decidido, entre mim e o nosso clínico, conseguir que o rapaz baixasse ao Hospital Militar da Estrela onde foi sujeito ao chamado teste do "prato de farinha" (****). Face às diligências do dr. Dória com os seus colegas do Hospital, chegou-se à conclusão que o rapaz era o que agora se designa por "gay".

Resultado, embarcámos com um militar de transmissões a menos, mas escapámos aos problemas que aquele militar, sendo "doente", nos poderia levantar.

Vargas Cardoso, cor ref 

Excerto de: Parte II - Comando da Companhia, textos de Vargas Cardoso. In: Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), II Volume, 2008, documento em pdf, inumerado.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24363: In Memoriam (478): Mário Vargas Cardoso, cor inf ref (1935-2023), ex-cap inf, CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) e ex-cmdt do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74) (João Bonifácio, ex-fur mil SAM, CCAÇ 2402, 1968/70, a viver no Canadá); Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 3547, Contuboel, 1972/74)

(**) Vd. último poste da série > 19  de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

(***) Julgamos tratar-se do dr. João Dória Nóbrega (1934-2021), ginecolista e obstetra.

(****) O "teste da farinha ou  do prato da farinha" era uma prática infamante, homofóbica, que esteve em voga em diversos exércitos, incluindo o brasileiro e, ao que parece, também no português.

Guiné 61/74 – P24367: (Ex)citações (427): Retratos de existências em tempos de conflito armado. O existencialismo humano (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Retratos de existências em tempos de conflito armado

O existencialismo humano

Comecemos pelo princípio do existencialismo humano, ou seja, pela existência de um qualquer ser vivo, mesmo mínimo que ele seja, numa esfera chamada Terra. Exploro, ainda que sinteticamente, que nós, indivíduos pensantes, sentimos e agimos de acordo com os momentos vividos, uma vez que esta transversal veracidade cujas linhas, embora oblíquas, se mantêm análogas ao longo das nossas vidas.

Numa visão ampla de compassivas existências, interpreta-se, filosoficamente, que na espécie humana subsistem, em certas ocasiões, sensações de pavor e ansiedade perante um mundo aparentemente absurdo que o rodeia, mas que, entretanto, se vai moldando ao longo da sua formal viagem terrena.

Esta cosmopolita e pressuposta tese filosófica, onde, por vezes, se vinculam presumíveis interrogações, eleva-nos para uma dissertação de ideias que nos transportam para o princípio da humanidade, onde o “homo erectus” foi paulatinamente transformando-se, ganhando novas formas de vida, novos pensamentos, novas estruturas físicas, envolvendo-se em lutas guerreiras, lutas que visavam superiorizar-se ante o adversário, conquistou novos terrenos, criou as suas pátrias, os seus credos, religiões e cores, bem como o seu próprio idioma, sendo nós uma consequência lógica de uma transformação humana de todo imparável.

Aliás, numa pesquisa persistente sobre a espécie humana, julga-se que ela terá cerca de 6 milhões de anos, sendo os seus primatas oriundos do noroeste de África, onde o seu habitat natural terá tido lugar numa floresta tropical. Relativamente ao termo “humano”, no contexto da evolução humana, alude-se ao género “homo”.

Após este pequeno introito, o qual se prende com o nosso crescimento, físico e intelectual, ao longo dos anos que levamos de existência, puxo a fita cinéfila atrás e revejo-me na Guiné, onde os galões amarelos e as divisas estabeleciam ordem hierárquica. E eis que, num impulso previamente controlado, reencontro-me com o inesquecível momento aquando ousei, uma tarde, dar banhos na piscina destinada aos oficiais do QG, instalações estas situadas por detrás dos nossos alojamentos alcunhados então como o “Biafra”, mas cuja piscina era também franqueada à classe de sargentos, julgo eu.

A banal filosofia de vida que na altura perfilhei, assimilava-se a uma espécie de “infiltração num trilho armadilhado”, porém, joguei com o facto de que em Nova Lamego, Gabu, não existir tal benesse, por isso a minha atrevida ida ao local foi tipo de uma enlouquecedora emboscada que surtiu efeito. Não houve “assalto à mão armada”, tão-pouco “mortos e feridos”, mas puros instantes de entretinimento.

Resumindo: todos éramos singelos militares que cumpríamos uma comissão militar obrigatória numa terra distante que nos fora literalmente imposta, uma vez que éramos, afinal, numa liturgia considerada sem fronteiras, originários de antigos guerrilheiros de um tal “homo erectus” e que o tempo transformou. Segue-se mais um pequeno texto, onde as aventuras em solo guineense proliferavam.

Ida à piscina do QG, em Bissau

O dia, como sempre, estava divinal. Sol e calor q.b. prometia uma ida a banhos para refrescar ideias de um corpo que se deparava com uma sufocante temperatura que não dava tréguas a um furriel miliciano que, ocasionalmente, se encontrava na capital. A visita a Bissau, embora curta, apresentava-se oportuna para uma escapadela à piscina dos oficiais que, por acaso, estava também franqueada à classe de sargentos.

Lembro que a piscina ficava por detrás das instalações de sargentos no Quartel General (QG). Sei que a minha presença em Bissau ficou a dever-se ao facto de me encontrar de férias e esperando pelo dia da viagem que me trouxesse, por 30 dias, à então metrópole. Tudo isto se passou nos primeiros dias do mês abril de 1974.

Não sei de quem terá partido a ideia de uma tarde a banhos em águas calmas e sobretudo refrescantes. Um camarada, certamente, propôs o desafio e a malta não rejeitou a experiência que contou para o enriquecimento factual das minhas aventuras guineenses.

A piscina, na sua estrutura física propriamente dita, continha bons espaços de lazer e de desporto. Recordo, com saudade, o campo de voleibol, por exemplo. Ressalta-me à mente os improvisados jogos entre camaradas. Os despiques exacerbados protagonizados por militares que pertenciam, quiçá, a especialidades ou a secções diferentes em horas de pleno ócio.

Anoto que esses jogos poderiam ser jogados por equipas de piriquitos organizados que casualmente por lá terão passado. Porém, a minha conceção nessa visita à piscina do QG, encaminhou-me para uma visão mais ampla, isto é, depreendi que toda aquela rapaziada, essencialmente alferes, cheiro-me a gente que se conhecia mutuamente para além de outros oficiais com patentes mais elevadas que olhavam o novo visitante como um mero intruso. Olhares enviusados, alguns de esguelha, que espelhavam reinar num trono meramente sonhado. Deixai-os em paz, senhor! Teremos, eu e o camarada que me acompanhava, comentado.

Perante a benesse não me fiz rogado e eis-me a saltar para a água da piscina. Depois veio o salto do meu camarada. Nadámos, apanhámos um pouco de sol e retirámo-nos, ficando a dúvida para os graduados superiores quem seriam os dois marmanjos que invadiram aquele espaço porventura “armadilhado” e se retiraram rumo ao “Biafra” dos sargentos!

Nas minhas memórias conservo histórias hilariantes de uma Guiné onde os contrastes de patentes militares traçavam irreverentes poderes e, simultaneamente, desusados princípios, onde a pressuposta guerra dos galões se sobrepunha, e de que maneira, ao contingente das divisas.

Mas tudo isto são narrativas passadas, porque também sei que o pessoal da cidade era portador de uma conduta diferente daquela que constatávamos no mato. Existiam, e é verdade, hierarquias militares que marcavam posições diferenciadas e quanto a isso nada a dizer, melhor, a contradizer. Era a lei do mais forte que imperava.

Recordo de uma ocasião passar por Gabu um amigo meu, tínhamos sido companheiros de futebol no Sporting, o Luís Guerreiro, era soldado, e levá-lo à messe de sargentos, sendo que a sua presença foi bem acolhida. Disse de quem se tratava e não houve o menor problema, não obstante o Luís, a princípio, duvidar da fartura que lhe coloquei à sua disposição.

Numa outra ocasião, na cidade de Bissau, encontrei um velho amigo que era da PM que fingiu não me conhecer. Pomposo, tipo mandão, tentou entrar num trilho pressupostamente desconhecido e fazendo jus à braçadeira que ostentava no braço procurou amedrontar-me com uma pergunta tipicamente baixa e sem algum nexo aparente. Se a memória não me falha o gozo da brincadeira era o crachá de Operações Especiais/Ranger colocado no meu ombro esquerdo. Respeitosamente olhei-o de frente, olhos nos olhos e disse-lhe: “primeiro bate-me a respetiva continência e depois falamos”. O rapaz viu que meteu água e a conversa enveredou por um outro tipo de palavreado.

Contrastes... o mato era mato, a cidade era a cidade!

Um abraço, camaradas 

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

17 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24228: (Ex)citações (426): Recordações dos Comandos Africanos em Paunca, em setembro de 1970 (Valdemar Queiroz e Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 11, 1969/70)

domingo, 4 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24366: (De)Caras (196): "Deus deve ter-se esquecido de África": o nosso tabanqueiro nº 643, Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, 1ª CCP / BCP 12 (Angola, 1970/72), num corajoso e sentido depoimento sobre a sua participação na guerra colonial, à Camões TV, Toronto, Canadá



Jaime Bonifácio da Silva (n. 1946, Seixal, Lourinhã), ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72), professor de educação física reformado, antigo autarca em Fafe, a residir h0je na sua terra natal. Tem mais de 7 dezenas de referências no nosso blogue. Membro da Tabanca Grande nº 643, desde 31/1/2014


Angola >  Norte - Montes Mil e Vinte > 26 de junho de 1970 > Heli SA-330 Puma na  recuperação do 3º Pel da 1ª CCP /BCP 21 (1970/72)... Nesta operação morreu um soldado do meu pelotão.

Fotos (e legendas): © Jaime Silva (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Um depoimento lúcido, sentido, sereno e corajoso do nosso amigo e camarada Jaime Bonifácio Marques da Silva, natural da Lourinhã, membro da Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo!), âà Camões TV, um estação de televisão luso-canadiana, com sede em Toronto, e que emite desde 2016, tendo cerca de 4 milhões de subscritores.

Episódio nº 5 do programa África Nossa - Operações de Intervenção, realizado por Paulo Fajardo. (Foi emitido o passado dia 29 de maio)...

Clicar aqui para ver o vídeo (10' 59'') (reproduzido com a devida vénia):

https://camoestv.com/documentarios/africa-nossa/africa-nossa-ep-05-operacoes-de-intervencao/

 África Nossa – EP 05 – Operações de Intervenção

Africa Nossa
29 Mai 2023

Sinopse:

África Nossa – EP 05 “África Nossa” – Esta é uma série documental realizada por Paulo Fajardo e com a produção da Camões tv MDC. São depoimentos inéditos de ex-combatentes da Guerra Colonial que entre 1961 e 1974, foram mobilizados para o ultramar, em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.

Mais de 10 mil morreram e 30 mil regressaram feridos. Memórias que se perdem entre silêncios e que ainda hoje causam desconforto. Vamos a mais um depoimento de alguém que esteve nesse teatro de guerra. Uma produção MDC Media Group para a Camões TV, com realização de Paulo Fajardo.

Uma estação de televisão com sede em Toronto, Canadá, com mais de 3,8 mil subscritores. Criada em 2016, é dirigida fundamementalmente á comunidade lusófona.

Our New Channel is available 24h a day, 7 days a week, on Bell Fibe Tv 659 & Rogers Cable 672.

Camões TV Magazine every Sunday from 10am to 12pm on Bell TV 583; Bell Fibe 235 & 1235; Rogers Digital 129 & Rogers Cabo 12; Shawn 646.


www.camoestv.com
YouTube/camoestvofficial

Guiné 61/74 - P24365: (In)citações (245): "Pequena conversa com a Arte", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


Pequena conversa com a Arte

adão cruz

Há muito tempo que não falo contigo em público, mas penso em ti todos os dias e vivo-te intensamente. No entanto, não ando lá muito satisfeito contigo, melhor dizendo, não estou muito convencido da verdade da nossa relação. Cá para nós, também não acredito muito nos orgasmos daqueles com quem privas e a quem iludes tanto ou mais do que a mim.

A plenitude contigo, bem como a plenitude com a tua amiguinha poesia seria um contrassenso se conduzisse à frustração. Mas eu não vejo os teus amantes, por mais convencidos que pareçam, libertar-se das desilusões e frustrações. Apercebo-me de que, como eu, procuram constantemente mendigar o afecto que teimas em não me dar.

Todos os planos se interceptam no universo policromático e polipoético que cria o labirinto onde te escondes. O teu secreto reduto, em permanente movimento pelos céus do incriado, torna a tua posse quase impossível, por infinitamente diversa e fugidia em cada momento da vida. Todos os meus pressupostos interpretativos na gestão do acto criativo fazem-te rir, eu sei. Todos os pressupostos não são mais do que sentimento e dilatação da memória, que dificilmente coexistem com a dissolução das experiências pessoais.

Eu não moro em ti, mas moro mais em ti do que em qualquer outro lugar. Por tu o saberes, obrigas-me a ser um guardião de ruínas, medindo a palmos de esperança e futuro a arqueologia da vida. Na ânsia da tua vasta presença e no paulatino destapar das sucessivas camadas da realidade complexa, fazes de mim uma espécie de geólogo do meu próprio íntimo. Mas eu não posso viver fora desta procura e não tenho medo nem vergonha de me preocupar com a arte, de me preocupar contigo. Tenho medo, isso sim, daquilo que o reaccionário Flaubert chamara a maré de merda que inunda o nosso estado mental. Na realidade, poucos se preocupam a sério contigo. A infinita estupidificação corre o mundo como uma conjura contra a poesia e a liberdade - as asas que te eternizam - e faz do ser humano um arremedo, habitante de quatro paredes onde não cabem as cores da mente cultural e a edificação da palavra. Um ser encerrado na prisão dos actos controlados, longe da luz e da razão, caminhando cegamente na rota da sombra.

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24360: (In)citações (244): "CONFISSÃO à Arte, minha velha amiga da onça", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)