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segunda-feira, 15 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19980: 15 anos a blogar desde 23/4/2004 (11): quando os "artilheiros" davam lições aos "infantes", habituados a comer e a calar... (C. Martins, alf mil art, cmdt do 23º Pel Art, Gadamael, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971 >  A saída do obus 14, de noite. Foto espetacular do  ex-alf mil médico Amaral Bernardo, membro da nossa Tabanca Grande desde Fevereiro de 2007.

Foto (e legenda): © Amaral Bernardo (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. A propósito de "infantes" e de "artilheiros" (*)... 

O C. Martins - nosso leitor e camarada, mais conhecido por ter sido o "último artilheiro de Gadamael" , alf mil art, comandante do 23º  Pel Art, que acabará por (con)fundir-se com o 15, mas também médico, hoje, no Portugal profundo, periférico, - não faz parte formalmente da nossa Tabanca Grande (TG), por razões alegadamente deontológicas, éticas e profissionais,  que eu entendo e respeito. Isto quer dizer que: (i) nunca pediu para aderir à TG; (ii) nunca aceitou o meu convite para ingressar na TG; (iii) nunca se apresentou ao "pessoal da caserna", como mandam as NEP do blogue; (iv) nem nunca enviou as duas fotos da praxe; (v) nem muito menos gosta que a gente lhe mostre a cara ou o use o seu nome profissional.. Mesmo assim tem 27 referências no nosso blogue.

Em contrapartida, é (ou foi) leitor assíduo, fã do nosso blogue, comentador quase diário, há alguns anos atrás, dos nossos postes, e frequentador dos nossos encontros nacionais (, já não foi aos dois últimos, o de 2018, por razões imprevistas de saúde...). É um profundo conhecer da Guiné,  onde depois da independendência fez voluntário como médico de uma ONG, enfim, é um verdadeiro amigo do povo guineense... Tem, além disso - e excecionalmente - uma série feita com os seus comentários neste blogue...

Já em tempos lhe transmitimos que tínhamos saudades das suas "lições de artilharia para os infantes", da sua boa disposição, do seu sentido de humor de caserna, da sua saudável irreverência, enfim, dos seus comentários, por vezes desconcertantes,  mas sempre certeiros, ou não fosse ele um artilheiro e, para mais, o último artilheiro de Gadamael!...Sabemos que alguns não lhe perdoaavam esse pequeno detalhe do seu currículo, mas a verdade é que alguém tinha que fechar a porta da guerra... E em Gadamael coube-lhe a ele, que nem sequer foi voluntário para a tropa, era dirigente estudantil quando foi apanhado pela "ramona"...

Será sempre aqui lembrado como um bom contador de histórias, com grande  sentido de humor, e muitas memórias da tropa, da guerra e da paz, que ele se dignou partilhar connosco, seus camaradas da Guiné...  Enfim, um "bravo da Guiné"!

Esta história que (re)publicamos a seguir,  é uma verdadeira lição de um "artilheiro", para os pobres coitados ds "infantes" que já cá, na metrópole, nos quartéis de Norte a Sul, comiam e calavam... Já nessa altura perguntavamos aqui: foi a tropa uma escola de virtudes ? Quero eu dizer, a tropa do nosso tempo... Aprendia-se lá só coisas de artilharia, infantaria, cavalaria, transmissões ? Mas também valores como os da justiça, equidade, liberdade, integridade, honestidade, coragem moral, patriotismo ?...

Espero que o C. Martins nos leia (ainda) e se sinta honrado com a republicação desta história  que é também uma forma singela de o associarmos às  discretíssimas comemorações dos quinze anos do blogue de todos nós (**)... Não sei se ele já se reformou, se sim (, mesmo que médico nunca arrume o estetoscópio e dispa a bata), acho que está na altura de ele entrar por aí adentro, na nossa Tabanca Grande, de mãos nos bolsos, a assobiar e dizer: - Rapaziada, finalmente cheguei!

2. Lições de artilharia para os infantes > Quando a gente nem sempre come e cala...

por C. Martins (***)

Este tema é muito interessante: Relação entre comandantes e comandados e vice-versa. Atitudes, justiça, injustiça, abuso de poder, capacidade de liderança ou não, coesão ou espírito de corpo. Todos nós tivemos casos, independentemente da categoria ou posto hierárquico. 

A propósito de rancho... Lembro-me de um caso passado num regimento de uma cidade alentejana. O oficial de dia fez um levantamento de rancho !!!!.

Este tinha por hábito não se limitar a provar a comidinha da bandeja, mas verificar as pesagens dos géneros segundo as NEP. Era vitela à jardineira: tanto de ervilhas, cenouras, batatas e a carne da dita.
Iniciado o repasto, que a bem da verdade o pessoal comia com sofreguidão, o dito oficial, olhando de soslaio para pratos e travessas repara que havia ervilhas, cenouras, grande quantidade de batatas e, surpresa, a carne praticamente tinha-se evaporado!.

- NINGUÉM COME MAIS, CAR...!!! - berra o gajo com um galãozito transversal no ombro, e enceta uma corrida frenética até à cozinha onde se depara com grandes nacos de carne sobre a bancada.

Transtornado, enfia uma cabeçada no 1º sargento vago-mestre ou lá o que era:
- Você está preso, seu f... da p...!. E estão todos presos, seus cabr...f...das p..., bandidos, gatunos! ...

Mais calmo, tenta contactar o comandante que não estava, o 2.º também não... Bem, a alternativa era o contacto com o QG da região militar. Atende o oficial de dia da respectiva:

- ... Fez o quê ?!! Você já desgraçou a sua vida!

Nesse dia almoçou-se só às cinco da tarde.

O sorja f... da p... tinha por hábito gamar a carne e outros géneros que vendia a talhos e estabelecimentos civis, com a conivência dum cabo RD... Os outros elementos da cozinha eram ameaçados para se calarem. A justiça militar atuou com penas exemplares... O aspiranteco teve um elogio verbal e foi mobilizado para o CTIG.

Qualquer coincidência com a realidade não foi mera ficção.

C. Martins

______________

Notas do editor:



segunda-feira, 1 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19937: 15 anos a blogar desde 23/4/2004 (10): o misterioso homem da piroga, afinal um rapaz do nosso tempo, o Renato Monteiro, que fez a "fotobiografia" da nossa guerra... Foi "lacrau", da CART 2479 / CART 11, andou por Contuboel e Piche, levou uma porrada, foi parar à CART 2520, ao Xime, ao Udunduma e ao Enxalé...



Guiné > Região de Bafatá  > Contuboel > Centro de Instrução Militar de Contuboel > Junho de 1969 >  A dolce vita dos dois primeiros meses de comissão...  Em primeiro plano, Luís Graça (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479 / CART 11), em passeio pelo Rio Geba. Ao fundo, a velha ponte e açude, de madeira, sobre o rio Geba Estreito, onde o Renato Monteiro, um dia, esteve prestes a morrer afogado, à minha frente!...

Como legenda a esta foto, do meu álbum, eu escrevi o seguinte em 2005:

"Nunca mais encontrei o meu amigo Monteiro que, segundo creio, é o coautor de um livro que li e apreciei muito sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote, 1990, 307 pp)"... 

Acabei pro receber, passados uns tempos, em 4 de julho de 2005, a seguinte mensagem, assinada pelo Renato Monteiro:

 "Amigo Luís: Muito surpreendido por me rever numa piroga no rio Geba. Na verdade, não me lembrava desse episódio. Não menos espantado por rever a picada do Xime e outros locais que, passado tanto tempo, ainda se encontram bem presentes na minha memória... Lamento, ao contrário, não ter reconhecido ninguém nas fotos nem, sequer, te referenciar. Não sei a explicação. Sou, na realidade, coautor do livro que referes. Fico ao teu dispor para o caso de quereres comunicar, e feliz pela Internet ter possibilitado este reencontro. Um abraço, Renato Monteiro".

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Este texto esteve guardado, durante quase um ano, até ser publicado em 23 de junho de 2006 (*)... Não o fiz por respeito à vontade (tácita) do seu autor, que eu conheço de Contuboel, do Centro de Instrução Militar de Contuboel, dos brevíssimos meses de junho e julho de 1969, e de quem perdi depois, completamente, o rasto (mas não o rosto)... O rosto vim a reconhecê-lo na contracapa de um livro (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote, 1990, 307 pp)... Enfim, uma estória singela de encontros e desencontros já aqui evocada no nosso blogue, em 23 de junho de 2006 (**)...

"O misterioso homem da piroga", que me conduzia, rio Geba Estreito abaixo, havia embarcado para a Guiné em 18 de fevereiro de 1969, três meses antes de mim. Fazia parte da CART 2479 / BART 2866 (***)... Passou por Contuboel (Junho/Julho de 1969) e depois por Piche, acabando por mudar de companhia, por motivos disciplinares...

A porrada (, dez dias de detenção,) valeu ao Renato a mudança de companhia: foi colocado no Xime e depois no Enxalé, na CART 2520 (1968/70)... Por pouco tempo, já que o paludismo apressou-lhe o fim da comissão: evacuado do Hospital 241 foi transferido para o HMP, em Lisboa, em 4 de Setembro de 1969.

Tudo para justificar a quebra de um compromisso e dar a conhecer, aos restantes camaradas e amigos da Guiné, uma camarada da Guiné, com uma história de vida e uma sensibilidade singulares, um homem "desalinhado" como alguns de nós, e sobretudo que sabe pôr em palavras muito daquilo que sentimos e vivenciámos na tropa e na guerra, ou não fosse ele um poeta, um artista, um fotógrafo.

O Renato há  muito que me perdoou eu ter-lhe retirado um pouco do seu mistério... (LG)


2. Diga se me ouve, escuto!

por Renato Monteiro

[ex-fur mil,  CART 2439 /, CART 11, Contuboel e Piche, 1969/ CART 2520, Xime e Enxalé, 1969/70);  licenciado em história pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi professor do ensino secundário; tornou-se um notável fotógrafo do quotidiano, com obra feita (vários álbuns publicados desde 1998; e tem pelo menos 20  blogues de fotografia). Nasceu em 1946, no Porto, vive em Lisboa]


Amigo Luís:

Apesar dos inúmeros apagões (alguns intencionais) sobre o capítulo da minha história (desde o embarque ao regresso), tenho a ideia de, nesse tempo, ser sempre dos últimos a chegar à formatura. A falta de pontualidade acabava sempre por constituir motivo sério de repreensão (inúmeras vezes repetida) pelo Comandante da Companhia [, cap mil art Analido Aniceto Pinto (1934- 2014), foi funcionário da Galp Energia):
- Ó Monteiro, um dia destes, dou-lhe uma porrada!

É bem provável que te recordes do sujeito: um tipo excessivamente baixinho, que nunca foi capaz de fazer uma meia volta - volver sem criar a impressão de mover-se numa matéria adesiva, impedindo a rotatividade livre dos calcanhares. Era também conhecido  por filtrar as sílabas e as vogais através do cornetim nasal, em vez do uso comum das cordas vocais quando comunicava com o pessoal...
comandante:

Não vale a pena adicionar, a estas, outras características inerentes ao sujeito para perceber como, a partir de certa altura, o regime, com um número cada vez mais insuficiente de quadros permanentes, não teve outro remédio senão mandar para as urtigas os manuais de selecção de pessoal para as três frentes... Em determinada fase do campeonato, os recursos humanos deixaram de se preocupar com a questão dos perfis: servia qualquer um.

Como não alterei, em nada, esta inclinação espontânea para o desalinho, acabei por propiciar o cumprimento da promessa nasalada do capitão, cedo demais, em Piche, para onde fôramos transferidos.

Após 10 diz de detenção domiciliária, em situação de incomunicável, acabei por ser recambiado para o Xime, com um grande sentimento de luto, sobretudo em relação aos africanos do meu pelotão (com quem trocava imensas estórias) para além de me ver afastado do companheirismo de um ou outro camarada, especialmente do furriel Cunha (mais conhecido por Canininhas) que, tendo sensivelmente a mesma estatura da do capitão, não era tão baixinho quanto aquele!

Natural do Barreiro e filho de um palhaço, herdara do pai um grande humor (que muito ajudou a contrariar a propensão para uma revolta amarga que me deixava a falar sozinho), sendo, ainda, dotado de uma aptidão fora de série para tocar qualquer instrumento. (Hoje não faz outra coisa do que andar pelo país fora, a concertar órgãos e pianos gripados...).

Desde a aterragem no Aeroporto da Portela (1969),  vi-o apenas três vezes: uma com o propósito de me facultar o diário da companhia [, a história da unidade,]  (a CART 2479); outra para me ceder algumas fotos tiradas por si na Guiné (algumas das quais figuram no livro Guerra Colonial: Fotobiografia, 1990); e uma outra a pretexto de beber um copo...

Seguramente que a personalidade do Canininhas, vertida para a literatura, não careceria de muita elaboração ficcional, bastando quase só transcrevê-lo... E, pergunto-me se não terá sido ele o autor da foto da Piroga do Geba, já que uma das suas fixações era, para além de perfilhar uma gazela (!), adquirir uma câmara fotográfica...

Como tu, é difícil recordar o terceiro camarada que se encontrava connosco e a quem , afinal, se fica a dever este inesperado reencontro entre nós e, com uma certa memória de mim próprio...

Ao contrário da maior parte das pessoas que conheço (e crê, não me vanglorio desta particularidade) nunca mais cuidei em revisitar os antigos companheiros... Sequer os que integravam a Companhia sediada no Xime que incorporei [, a CART 2520].

Salvo os graduados, a maior parte [da CART 2520] era constituída por malta recrutada no Alentejo, tendo como comandante [, o cap mil António dos Santos Maltez,]  um homem com quem apenas troquei duas ou três brevíssimas conversas, uma das quais em torno de livros que líamos e autores que apreciávamos.... Igualmente miliciano, de formação católica, de quando em quando, procedia a uma breve cerimónia no centro da parada, junto a um padrão ou coisa do género, onde lia umas passagens da Bíblia a muito poucos (meia dúzia ?) de soldados que, voluntariamente, o acompanhavam...

Ao que julgo, era professor de Química e, apesar de não recordar o seu nome (imagina, como trabalhei para a evaporação destas memórias),  conservo dele a melhor das lembranças... Aceitava pacificamente a minha tendência para o desalinho (se é que dava por isso) e eu respeitava-o.

A partir do Xime, como sabes, a par das incursões que se faziam em direcção (por vezes mais aparentes do que efectivas) às bases ou acampamentos dos Turras (devidamente assinalados no mapa da tua página), mantínhamos um contacto regular com Bambadinca para o reabastecimento logístico.


Guiné > Região de Bafatá  > Setor L1 (Bambadinca) > Estrada Xime - Bambadinca >  CART 2530 (1969/70) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma >1969 > "Lembro-me de poucos momentos, desse tempo, a cores… Ponte do Rio Udunduma onde nos banhávamos e, à falta de um aparelho de pesca capaz, houvesse quem apanhasse peixe à granada… Vê-me, Luís, esse par de bidões, e diz-me se não são uma ternura!"...

Ponte do Rio Udunduma. A segurança desta ponte era vital para as NT. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No célebre ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969, a guerrilha tentara dinamitá-la. Desde junho de 1969 a ponte era defendida por 2 secções da CART 2520 (Xime) e, mais tarde, por um Gr Comb da CCAÇ 12 (a partir do final do ano de 1969), alterando com o Pel Caç Nat 52, comandado pelo alf mil  Beja Santos (transferido de Missirá para Bambadinca em Novembro de 1969, sendo substituído em Missirá pelo Pel Caç Nat 54, do alf mil  Correia). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.

Foto (e legenda): © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-

A Ponte de Rundunduma, próximo daquela aldeia (e que se encontra igualmente ilustrada na tua página), foi ocupada inicialmente pela secção de que fazia parte. [Trata-se de Amedalai, LG...]

No dia em que lá chegamos, a preocupação prioritária foi a de cavar uma vala, vertiginosamente, operação deveras penosa mercê da dureza do terreno, e de no dia seguinte tratarmos de construir uns frágeis abrigos, com os usuais bidões, enchidos com pedra e areia cobertos por folhas de zinco.

Imaginarás como nos sentíamos tão vulneráveis, sobretudo à noite, face a uma hipotética investida do IN. A expectativa de sermos atacados, com os parcos dispositivos de defesa e o reduzido número de homens que dispúnhamos, causava-nos uma grande intranquilidade... Alturas houve em que apenas dormitava durante o dia, por temer a probabilidade de virem a incomodar-nos de noite, estando ainda por perceber a que razão de não nos terem visitado... Ora, para serem bem sucedidos, nem precisariam de grande ousadia!

À volta do rio, nos charcos, o insistente coaxar das rãs era-me tão insuportável que a custo simulava junto da Guida a irritação que me provocava o pitoresco e pacífico som daquelas sujeitas quando, mais tarde, as surpreendíamos nos lagos do nosso namoro!

Apesar de partilhar com os demais aquele sentimento permanente face à iminência das emboscadas e flagelações aos aquartelamentos (que acabaram episodicamente por suceder) onde me senti, apesar de tudo, menos desconfortável (se assim posso dizer) foi no Enxalé, para onde fui destacado.

Aí, tive a oportunidade de retomar o contacto com as comunidades africanas, balantas e mandingas, que coabitavam, paredes meias, com o destacamento. Através da leitura recente que fiz a registos dessa altura, soube (para minha surpresa) que cheguei a ter perto de cem alunos aos quais procurava ensinar a falar e a escrever a língua portuguesa,  utilizando como espaço lectivo um antigo armazém de um colono, que se pôs em fuga no início da Guerra... [Trata-se do Pereira do Enxalé, pai da nossa grã-tabanqueira Maria Helena Carvalho. ]

Mas o pior de tudo foi ter sido incumbido de gerir a logística e de me ver obrigado a aplicar as formas de camuflar o saldo negativo que ingenuamente (?) herdara do camarada anterior, enquanto aguardava, ansiosamente, pela nossa transferência para a ilha de Bissau, onde viria a ser internado no Hospital com uma infecção que me proporcionou o regresso, dois meses antes do previsto, a Lisboa.

Logo no início desta longa resenha falava-te da falta de pontualidade em chegar às formaturas. Amigo Luís, essa lacuna mantém-se até hoje. Não apenas em relação às coisas que se comparam com a seca das formaturas, mas também com as que envolvem prazer, como o simples acto de responder-te...

Em parte, este deixar para amanhã o que deve ser feito logo, prende-se com a falta de tempo ou, melhor dito, com a forma como o ocupo...

Disso te darei notícia, tão breve quanto possível, aproveitando para responder às tuas últimas palavras.

Um grande abraço,
Renato
Lumiar, 28 - 7- 05 (****)
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 23 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

(**) Vd. poste de 23 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)

(****) Sobre a CART 2479 / CART 11, sabemos o seguinte:

(i) a CART 2479 [tem mais de meia centena de referências no nosso blogue) constituiu-se no RAL 5 em Penafiel, no ano de 1968, como subunidade do BART 2866, desmembrando-se desta unidade em fevereiro de 1969, e embarcando com destino à Guiné no dia 18, aonde chegou a 25 do mesmo mês;

(ii) o percurso operacional da CART 2479 na zona leste, foi longo, fixando a sua sede em Nova Lamego, no Quartel de Baixo em setembro de 1969;

(iii) passou por Bissau, Contuboel (Centro de Instrução Militar), Nova Lamego, Piche;

(iv) comandante: cap mil art Analido Aniceto Pinto (1/6/1934- 27/2/2014) (trabalhou na Galp Energia);

(v) foi extinta em 18 de janeiro de 1970, passando a companhia a designar-se CART 11 [, tem cerca mais de 90 referências no nosso blogue];

(vi) em maio de 1972 a CART 11 passou a designar-se CCAÇ 11 [tem cerca de 4 dezenas de referências].

(****) Último poste da série > 18 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19899: 15 anos a blogar desde 23/4/204 (9): o ataque a Sare Banda, destacamento da CART 1690 (Geba, 1967/69), em 8 de setembro de 1968: o alf mil Carlos Alberto Trindade Peixoto e o fur mil Raul Canadas Ferreira jogavam às cartas, à luz de petromax, foram mortos por uma roquetada (A. Marques Lopes)

terça-feira, 18 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19899: 15 anos a blogar desde 23/4/204 (9): o ataque a Sare Banda, destacamento da CART 1690 (Geba, 1967/69), em 8 de setembro de 1968: o alf mil Carlos Alberto Trindade Peixoto e o fur mil Raul Canadas Ferreira jogavam às cartas, à luz de petromax, foram mortos por uma roquetada (A. Marques Lopes)



Guiné > Região de Bafatá >  Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamentos e aquartelamentos > 1968 > A CART 1690, com sede em Geba, tinha vários destacamentos: Banjara, Cantacunda, Sare Banda, Sare Ganá... Os destacamentos não tinham luz eléctrica e as condições de segurança eram precárias. O IN tinha uma importante base em Sinchã Jobel, a oeste de  Geba, a sul de Banjara, a sudeste de Mansabá. (*)

Infografia: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados.





Guiné > Região de Bafatá >  Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O destacamento não tinha população civil e era defendido por um pelotão da CART 1690. Distava 45 km de Geba. O ataque a Banjara, a 24 de julho de 1968, às 18h00, já aqui foi descrito há 14 anos por A. Marques Lopes.


As instalações que se veem na foto pertenciam à antiga serração do empresário Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira,
um dos primeiros militantes comunistas a ser deportado para a Guiné, em 1925,  dono de modernas serrações mecânicas aqui, em Fá Mandinga e em Bafatá, a partir de 1928, exportador de madeiras tropicais, colono próspero e figura respeitável na colónia em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960...




Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O abastecimento das NT era deficiente, pelo que se recorria aos "produtos naturais" da região...

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > Restos do antigo destacamento de Sare Banda > Na foto, o ex-presidente da Câmara Municipal de Chaves Altamiro Claro, membro da nossa Tabanca Grande, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3548 / BCAÇ 3884 (Geba, 1972/74).

Foto (e legenda): 
© Altamiro Claro (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Uma bomba da FAP (Força Aérea Portuguesa), das muitas que foram lançadas sobre a base do PAIGC, durante a guerra colonial, e que não chegaram a explodir. Na foto, o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes. Em finais de 1967, Sinchã Jobel passou a ser uma ZLIFA (Zona Livre de 
Intervenção da Força Aérea). Ficava no regulado de Mansomine, entre Mansabá e Bafatá. A foto, histórica, é do organizador desta viagem, do Porto a Bissau, em abril de 2006, o Xico Allen [ex-1.º cabo at inf, CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972/74]. Levou o jipe, que lá ficaria para futuras viagens. O grupo regressaria depois de avião. Acompanhou, em 22 de abril de 2006, o A. Marques Lopes neste regresso, emocionante, à mítica Sinchã Jobel. (*)

Foto (e legenda): © Xico Allen (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > Restos do antigo destacamento de Sare Banda > 22 de abril de 2006, "a caminho de Sinchã Jobel"


Fotos (e legenda): © A, Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Um ataque a Sare Banda, em 8 de setembro de 1968

por A. Marques Lopes


(i) amigo e camarada, um histórico da nossa Tabanca Grande, com 240 referências no blogue;

(ii) lisboeta, filho de pais alentejanos, que vive em Matosinhos;

(iii) cor art DFA, na reforma, ex-alf mil art, CART 1690, Geba, e CCAÇ 3, Barro (1967/68)];

(iv) ferido em combate e evacuado para o Hospital Militar Principal, na Estrela, onde esteve em tratamento durante nove meses, voltando depois ao TO da Guiné para completar a sua comissão de serviço; 

(v) em abril de 2006, (re)visitou Guiné-Bissau, num viagem de grupo organizada pelo Xico Allen; 




Sare Banda estava perto de Sinchã Jobel, e é natural que fosse atacada. O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto, o meu segundo substituto [, o "Aznavour", por ser parecido com o Charles Aznavour, sendo natural de Moçamedes, Angola]. O outro morto foi o fur mil Raul Canadas Ferreira [, natural da metrópole]. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas. (**)


Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinham luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso. Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG. 

As fotografias de Sare Banda que mando tirei-as em Abril 2006, quando a caminho de Sinchã Jobel, passando por Geba, Sare Ganá e Sinchã Sutu.

8 de setembro de 1968 : desenrolar da ação

(i) Acção inicial do IN

Em 8 de setembro de 1968, às 20h21, um numeroso grupo IN, estimado em cerca de 100 elementos instalados em semi-círculo nas direcções NE-SW e SE-NW, atacou o destacamento de Sare Banda com o seguinte armamento:

- Canhão s/recuo- Morteiro 82
- Lança granadas RPG-2
- Lança granadas P-27 "Pancerovka"
- Metralhadoras pesadas
- Metralhadoras ligeiras
- Armas automáticas
- Armas semi-automáticas



O ataque foi iniciado com um tiro ao canhão S/R e dois Lança Granadas Foguete, dirigidos contra a cantina e depósitos de géneros que atingiram mortalmente o Alferes, Comandante do Destacamento e um furriel e provocaram ferimentos numa praça. 

Estes tiros iniciais do IN atingiram e destruíram ainda o mastro da antena horizontal do rádio, ficando assim o destacamento de comunicações cortadas com toda a rede de Geba. 

No seguimento da acção do IN atingiu com uma granada incendiária uma barraca coberta por 2 panos de lona de viaturas pesadas, onde costumavam dormir vários elementos das NT por não caberem todos nos abrigos, o que provocou a destruição de todo o material lá existente e iluminação das posições das NT.


(ii) Reação das NT


a) Das forças do destacamento



Após a surpresa inicial, os elementos que se encontravam fora dos abrigos correram para os mesmos e reagiram imediatamente ao ataque IN. Não obstante terem ficado sem o seu Comandante e sem comunicações logo aos tiros iniciais, nunca perderam a calma e o moral, opondo tenaz resistência aos intentos do IN. 

Refira-se que, logo no início da reacção, as NT atingiram com tiros de morteiro a guarnição IN do canhão s/r,  calando-o definitivamente, e em determinada altura do ataque repeliram energicamente uma tentativa de penetração de elementos IN ao destacamento, que para o efeito haviam conseguido chegar junto da rede do arame farpado. 

Essa reacção, feita só à base de tiros de espingarda G-3 e granadas de mão em virtude de se ter avariado o Lança Granadas Foguete (bazuca, 8.9), foi verdadeiramente eficaz e decisiva para o desenrolar dos acontecimentos, pois o IN foi obrigado a recuar deixando no terreno 3 mortos, além de armamento e arrastado consigo outros elementos feridos e mortos.

O IN sempre perseguido pelo fogo das NT recuou cerca de 200 metros, instalando-se entre Sare Banda e Sinchã Sutu, donde continuou a flagelar o destacamento até cerca das 22h30 (1 hora e 30 minutos depois do início do ataque), altura em que desistiu dos seus intentos retirando definitivamente.

b)Das forças de Geba (CART 1690)

Em virtude das péssimas condições atmosféricas não foram ouvidos em Geba os rebentamentos de forma a poderem ter sido localizados. Refira-se ainda que o facto do destacamento de Sare Banda ter ficado sem comunicações logo de início do ataque, só permitiu que em Geba se tivesse conhecimento do sucedido cerca das 09h02, do dia seguinte,  de 9 de setembro de 1968, e através de 2 praças do destacamento que haviam vindo a pé voluntariamente comunicar a ocorrência.


Prontamente saiu de Geba uma coluna de socorro que, ao atingir Sare Banda às 017h45, fez um reconhecimento nos arredores seguido de batida de madrugada, mas já não conseguindo contactar com o IN, que havia retirado na direcção de Darsalame e se dirigindo para Sinchã Jobel. 

(iii) Resultados obtidos:

Baixas sofridas pelo IN: 8 mortos confirmados. Muitos feridos sendo possível que hajam mais mortos devido aos rastos de sangue encontrados no carreiro de retirada do IN.


Material capturado ao IN:


- 1 Espingarda semi-automática SIMONOV cal. 7,62 mm
- 1 Espingarda automática G-3 / 7,62 mm
- 1 Granadas de canhão s/r
- 2 Granadas de lança-granadas foguete
- 1 Granadas de morteiro 82 mm
- 2 Granadas de mão ofensivas RG-4
- 8 Carregadores de Met. Lig.
- 2 Fitas de Met. Lig.
- 2 Facas de mato
- 2 Bolsas p/transporte de munições
- 2 Cantis
- Diversas Munições de armas aut.

Além de uma bolsa de medicamentos, com o seguinte material:

- 3 Streptomycin. Sulphite-ampolas de 5.000.000 (Frascos)
- 1 Éter (frasco)
- 1 Mercúrio cromo (frasco)
- 1 Bálsamo (frascos)
- 10 Injecções (desconhecidas em ampolas)
- 178 Aspirinas comprimidos (carteiras)
- 96 Madexposte em comprimidos
- 6 Chinim Sulfur (comp. emb. de 5)
- 5 Codemel (carteiras de 10 Comprimidos)
- 1 Adesivo (rolo)
- 1 Algodão cardado (maço)
- 1 Garrote
- 20 Ligaduras de gaze de 10 cm x 5cm
- 1 Seringa de plástico c/agulha


A. Marques Lopes
Alf Mil da CART 1690 


[Revisão / fixação de texto: LG](***)

____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


5 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15202: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte V): a partir da Op Invisível, de 18-19/12/1967, passa a ser uma ZLIFA (Zona LIvre de Intervenção da Força Aérea)... O alf mil Fernando da Costa Fernandes, de Santo Tirso, é morto, não sendo possível resgatar o seu corpo, e o soldado Manuel Fragata Francisco, de Alpiarça, é gravemente ferido, aprisionado e levado para Ziguinchor onde é tratado pelo dr. Mário Pádua e mais tarde, em 15/3/1968, entregue à Cruz Vermelha Internacional



(***) Último poste da série > 13 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19887: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (8): O soldado Machado, de etnia cigana: 'Ó Barrelas, pagas-me uma bejeca ?!'... Uma "estória" bem humorada do Mário Pinto (1945.2019)


quinta-feira, 13 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19887: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (8): O soldado Machado, de etnia cigana: 'Ó Barrelas, pagas-me uma bejeca ?!'... Uma "estória" bem humorada do Mário Pinto (1945.2019)


Mário Pinto (1945-2019):  além de animador nas redes sociais,  foi também um dos grandes organizadores dos convívios do pessoal da CART 2519, "Os Morcegos de Mampatá", igualmente conhecidos por "Os Coirões de Mampatá", comandados pelo cap art Jacinto Manuel Barrelas... Estiveram em Buba, Aldeia Formosa e Mampatá (1969/71), ao tempo em que era comandante do COP 4 o major Carlos Fabião.

Sobre este oficial superior escreveu o seguinte, em 10/2/2015 na página do Facebook Tabanca de Mampatá - Grupo Público:

 (...) " A primeira vez que o vi, foi no meu desembarque em Buba em meados de Maio de 1969, ainda periquito e desconhecendo aquilo que teria de infrentar apartir daí. Na formatura formal de apresentação em Buba, fiquei a conhecer o então Major Carlos Fabião, comandante do COP4.
Quem, como nós, CART. 2519,  habituados á disciplina militar imposta pelo seu comandante, estranhou, e  de que maneira, a atitude descontraída e informal de Carlos Fabião quando nos recebeu, de calções e camisa com o seu bastão, a dirigir algumas indirectas ao nosso Capitão Barrelas, avisando que no seu sector era tudo mato e não uma parada de qualquer quartel onde os militares teriam de andar sempre aprumados. No seu sector permitia que os mesmos andassem á vontade quanto a bigodes, barba e vestimenta, o que era necessário era que os homens se sentissem á vontade e com espírito guerreiro para enfrentarem as vicitudes que iriam encontrar daí para a frente. Desejou boa sorte a todos e que o nosso destino seria Mampatá e a nossa missão os trabalhos da nova estrada Buba-Aldeia Formosa.
Para mim, que estava habituado à disciplina ferrea do meu comandante de Companhia foi uma lufada de ar fresco este seu discurso... O certo é que o Capitão Barrelas nunca mais foi o mesmo daí em diante, ele próprio com algum espanto meu aderiu à moda do calção, tronco nu e chinela no pé.
Isto a meu ver, só foi possível depois do discurso de boas vindas do comandante do COP4, Major Carlos Fabião" (...) 


"Hoje é dia de coluna, algures na estrada Buba-Aldeia Formosa 1969/71" (Mário Gualter Pinto, 12 de fevereiro de 2012, página do Facebook Tabanca de Mampatá - Greupo Público) (com a devida vénia...). Não temos a certeza se a foto era da autoria do Mário Pinto, administrador da página. De qualquer modo, passa a ser de todos nós...


1. Esta foi a primeira das "estórias do Mário Pinto" (que publicou cerca de 4 dezenas) (*)... Fomos repescá-la para alimentar esta série dos "15 anos a blogar, desde 23/4/2004" (**).  É um dupla homenagem, ao nosso Mário Pinto (1945-2019), que nos acaba de deixar, e também aos nossos camaradas de etnia cigana, que passaram pelo TO da Guiné. Não sabemos quantos foram, nem muito muito os que cumpriram o serviço militar na época. Mas temos o descritor "ciganos" no nosso blogue. A "estória" vale também pelo bom humor de caserna.

No seu blogue, "CART 2519, Os Morcegos de Mampatá", em poste de 23 de agosto de 2009 , o Mário Pinto já tinha deixado esta nota de homenagem ao seu camarada Machado, o "cigano" (que, convém dizê-lo, não é uma "raça", mas quando muito um "grupo étnico": em Portugal e no resto do mundo, não há "raças humanas"; o termo "raça" era ainda usado no nosso tempo, mas sem "conotação racista", tal como o Mário Pinto o usa aqui).

(...) "Quem não se lembra do cigano, José António Pereira Machado, soldadi atirador do 1.º Grupo de Combate ?!

Foi um dos inconformados e controversos soldados que os Morcegos tiveram nas suas fileiras. No mato era um bom combatente, sempre activo e combativo, demonstrava não ter medo do perigo, mas no aquartelamento era problemático e conflituoso.

A sua raça e origem não permitia a convivência com os seus camaradas. Por diversas vezes, tememos a seu abandono, ou seja que o mesmo desertasse, mas o mesmo tornou-se sempre digno dos Coirões.

Por ser uma figura carismática da nossa Companhia, deixo aqui uma pequena citação ao Cigano." (...)


O soldado Machado, de etnia cigana: ' Ó Barrelas, pagas-me uma bejeca ?'

por Mário Pinto


O “Cigano”, como era conhecido o soldado Machado (creio que era mesmo da etnia cigana), foi protagonista de um episódio hilariante, mas muito real, que um dia “atropelou” o que não podia ser “abandalhada” - a rígida Disciplina Militar -, que na tropa se exige (creio que ainda hoje esta se mantém), em relação aos superiores hierárquicos.

Certo dia, o nosso capitão integrou-se num grupo de combate que ia patrulhar a nossa ZA - Zona de Acção, onde ia o nosso camarada Machado. Depois de percorrida já uma vasta área do patrulhamento habitual, e perto dum local por todos considerado de elevado risco, o Machado sai-se com esta:

- Ó meu capitão, à nossa frente estão pegadas do IN.

Isto em pleno mato... O capitão ripostou:

- Ó meu coirão, não sabes o meu nome, eu sou o Barrelas!

O patrulhamento terminou ao findar do dia e procedeu-se ao respectivo regresso ao aquartelamento de Mampatá.

Na cantina, que era comum a todos, praças, sargentos e oficiais, depois do banho, o camarada Machado tem este desplante perante a admiração de todos os presentes:

- Ó Barrelas, não me pagas uma bejeca?!

O capitão, com o seu ar autoritário - de Comandante -, virou-se para o Machado e disse:

- Ó meu coirão, já não me conheces, eu sou o teu capitão Barrelas, por isso deves tratar-me como tal. Quando te dirigires a mim, tratas-me por meu capitão!

O mesmo, atónito com a situação, retorquiu:

- Mas o senhor lá atrás disse-me para o tratar por Barrelas!...

Aqui o capitão riu-se da situação e acabou mesmo por pagar a “bejeca” ao Machado.

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Último poste da série > 9 de junho de  2019 > Guiné 61/74 - P19874: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (7): o inferno de Bissá: a morte do balanta Abna Na Onça, capitão de 2ª linha (Abel Rei, ex-1.º cabo at, CART 1661, Fá, Enxalé, Bissá, Porto Gole, 1967/68)

domingo, 9 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19874: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (7): o inferno de Bissá: a morte do balanta Abna Na Onça, capitão de 2ª linha (Abel Rei, ex-1.º cabo at, CART 1661, Fá, Enxalé, Bissá, Porto Gole, 1967/68)


Guiné > Carta de Fulacunda (1955) > Escala 1/50 mil > Pormenor: posição relativa  de Porto Gole e Bissá, e de outras povoações na margem direita do rio Geba, abandonadas com a guerra.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)


Foto nº 1 > Estrada de Porto Gole para Bissá e Mansoa


Foto nº 2 > O António Rodrigues no porto fluvial de Bissá durante um reabastecimento


Foto nº 3 >  O António Rodrigues em Bissá, junto do monumento da CART 2411 [Enxalé, Porto Gole e Bissá, 1968/70), uma companhia da qual não tínhamos, até agora,  referências no nosso blogue


Foto nº 4 > O António Rodrigues em Bissá, junto do monumento da CART 2411. Inscrição: "Sangue, suor e lágrimas".

Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2587 / BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969 / 1971) > Fotos do álbum de António Rordirgues, ex-1º Cabo Aux Enf, CCAÇ  2587, 3º  Gr Comb:

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Agradecemos a gentileza. Já em tempos o António Rodrigues [, foto atual à esquerda,] nos tinha mandado fotos do Enxalé e duas de Bissá, com a seguinte nota:

"Junto também duas fotos de Bissá, talvez um dos piores destacamentos que existiam na Guiné, principalmente nos períodos das chuvas. É um dos locais com poucas referências, em tudo o que tenho lido sobre a guerra na Guiné." (*)

Acompanha o nosso blogue desde longa data. Mora em Coimbra. É fundador,  administrdor e editor  do blogue Batalhão de Caçadores 2885 (Guiné, 69/71). que continua ativo desde fevereiro de 2009, com mais de centena e meia de postes. Por todas as razões e mais uma: é um rapaz do meu tempo e meu vizinho...O pessoal do BCAÇ 2885, incluinmdo a CCAÇ 2587, partiu para o CTIG, no T/T Niassa em 7 deemaio de 1969, e regressou a no T/T Uíge, em março de 1971, em 24 de fevereiro de 1971.  A minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, independente, embarcou para o CTIG 3 semanas depois, em 24/5/1969. Graduados e especialistas, metropolitanos, da priemria geração da CCAÇ 12, eram todos de rendição individual e regressámos no T/T Uìge em 17/3/1971. Fiz operações no subsetor da CCAÇ 2587...É possível que nos tenhamos encontrado. De qualquer é louvável o esforço que o António Rodrigues tem feito para manter ativo e produtivo o
blogue do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71).


Abel Rei, Porto Gole,
c. 1967/68
15 anos a blogar  (**) > O Inferno de Bissá: a morte de Abna Na Onça, capitão de 2ª linha


1. Excertos das minhas notas de leituea (***)

Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/1968. Prefácio do ten gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002).


Um título enganador

O inferno? Seguramente, para o Abel e os seus camaradas, o inferno foi Porto Gole, Bissá, Enxalé, pela dureza das condições de vida, nos dias de paz e nos dias de guerra… Paraíso ? Não sei se o autor se refere à breve estadia, no início da comissão, em Fá Mandinga, onde a guerra só se antevia ou pressentia, ao longe… Há também momentos, de alguma felicidade, passados em Porto Gole e e no Emxalé, à beira rio, ajudando a esquecer as praias atlânticas da infância e da adolescência do autor (Praia da Vieira, São Pedro de Moel…).

Entre o inferno e o paraíso ?... Eu diria que o Abel conheceu algumas estações do inferno, como todos nós; e que também conheceu um pedacinho do paraíso; em todo o caso, é preciso entender o uso, que se fazia na época, destas duas metáforas, e que hoje não podem ter a mesma leitura. (...)

(...) Com menos de 3 meses de Guiné, o autor interroga-se se não estará já “apanhado pelo clima” (25/4/67, p. 75). Os fantasmas do álcool voltam a aparecer no seu diário: “ de há uns dias para cá, tem sido bebedeira certa; não sendo ninguém prejudicado com isso, talvez só eu!”…

A 30 de março de 1967, o Abel, nascido em 1945, em Maceira. Leiria, comemora, como devia ser, o seu 22º aniversário natalício:

“À noite, e depois de várias misturas, emborrachei-me” (…) (p. 59).

Porto Gole não tem ainda electricidade: em 4/4/67, o Abel passa a ficar encarregue da manutenção e reparação dos ‘petromaxes’ em serviço na tabanca e aquartelamento. Como se não bastasse já a ‘chatice’ de ser 1º cabo, passa também a desempenhar as funções de ‘vagomestre’ (competindo-lhe adquirir e distribuir os géneros no rancho) (12/4/67).

Não esconde a conflitualidade entre camaradas, em especial dentro da sua secção, com destaque para o relacionamento com o seu furriel: 

“Quem nos obriga a andar cá, não olha às ‘qualidades’ dos que comandam, e somos nós os que sofremos consequências. Esse meu registo, gostaria um dia passar uma ‘esponja’ sobre tudo isto!” (9/4/67, p. 65).

Em Bissá, as relações com o seu alferes, um antigo seminarista, também foram tensas: é obrigado a trabalhar de pá e pica, sob um sol escaldante (15/5/1967, Bissá, pp. 85/86). (...)


Abna Na Onça, c. abril de 1967.
 Foto de José António
Viegas (2017)
A morte do capitão de 2.ª linha, o balanta Abna Na Onça, em Bissá

Entretanto, alguns dias depois da ocupação de Bissá, em 7/4/67, que passou a ser um destacamento, guarnecido por um pelotão (-) da CART 1661 e uma companhia (-) da Polícia Administrativa de Porto Gole, o dia 15 de abril de 1967 seria um “dia trágico”: um ataque do PAIGC a Bissá, de duas horas, na noite de 14 para 15 de abril de 1967, fizera sete mortos e cinco feridos . Na sequência deste desastre, o destacamento foi (temporariamente) abandonado…

Pela primeira vez o autor não esconde que lhe vieram “as lágrimas aos olhos” (p. 69). A tragédia abatera-se sobre Bissá e Porto Gole:

“Houve choro de todos, com gritos e desmaios das mulheres, como que adivinhando o que aconteceu, entraram de rompante, dentro do destacamento, numa altura em que procedíamos à pesagem de peixe fresco, chegado do rio… Tinha morrido um capitão de 2ª linha, mais seis nativos, todos da Polícia Administrativa, e todos eles com as famílias cá na tabanca de Porto Gole. Morria o homem em quem se tinham fortes esperanças para acabar com a guerrilha inimiga na zona – o capitão Abna Na Onça por ser corajoso e respeitado por negros e brancos”.

E sobre a importância deste aliado, balanta, das autoridades portuguesas, acrescenta o Abel Rei:

“Um homem que, desde o início da guerra, vinha enfrentando, com máxima inteligência, aqueles que o fizeram sofrer, matando-lhe toda a família; perseguindo [o Inimigo], matando, capturando armas. Este foi o seu fim, só porque estava do nosso lado". (15/4/67, Porto Gole, pp. 69/70).

(Não temos maneira, por falta de outras fontes, independentes, de confirmar ou infirmar a tragédia que se terá abatido sobre a família de Abna Na Onça, e que explicaria a aliança com os 'tugas', aparentemente 'contra natura',  deste lendário chefe balanta. Jorge Rosales, que era seu amigo pessoal, disse-me que  o PAIGC havia cometido o erro fatal de matar duas das suas mulheres e roubar-lhe centenas de cabeças de gado, no início da guerra)

Em 20 de abril de 1967, uma força, comandada pelo próprio capitão da CART 1661, e composta pelo 1º Gr Comb e pelo Pel Caç Nat 54, partiram para Bissá, com a intenção de reocupar o destacamento, que na altura pertencia ao sector do BCAÇ 1888 (Bambadinca).


Capa do livro do Abel Rei (2002)
Bissá: lá ficaram as piores recordaçõs e… um pedaço de cada um

Em 13 de maio de 1967, o Abel (integrado no seu Gr Comb, o 3º) é destacado para Bissá (onde permanece 15 dias).

É “um destacamento composto por oito casernas-abrigos, vedado com arame farpado e iluminado com (…) petromaxes”(14/5/67, Bissá, p. 84)…

E acrescenta o autor:

“Está cercado por tabancas cujos habitantes são de raça balanta, das quais foram queimadas as mais próximas para melhor defesa do mesmo. Fica rodeado de bolanhas (terrenos planos cobertos de capim) a nascente, sul e poente, e matas pelo norte – o ponto mais perigoso, e pelo qual os turras têm possibilidades de nos atacar. Há imensas árvores, e de grande porte, que foram deixadas mesmo dentro do aquartelamento”…

A força ali destacada era composta por um grupo de combate da CART 1661 e duas secções de polícia administrativa, além de uma secção de sapadores [do BENG 447 ?]:

“Está cá uma secção de sapadores que, além de vedarem o destacamento e armadilharem os pontos mais estratégicos, fizeram um forno para cozer o pão, e estão a fazer um refeitório e cozinha” (pp. 84/85).

A fonte de abastecimento de água é um charco: 

“Pelas cinco horas, vou habitualmente tomar banho, a uma poça com água da cor de barro, acinzentada, mas que constitui a nossa única base para limpeza, e também onde vamos buscar água para beber” (17/5/67, Bissá, p. 87).

Há uma hostilidade passiva por parte da população local, agravada pela atitude de suspeição dos militares portugueses em relação aos balantas: 

(…) “Fui apanhar alguns mangos, e dar os bons dias a quatro bajudas (…) que andavam a carregar com feixes de palha à cabeça, mas que se limitaram a olhar-me com curiosidade, não respondendo nada!”… Comentário (ingénuo) do autor: “Não entendo como é que a nossa cultura, que há meio milhar de anos se espalhou por estas terras, nunca os ensinou a falar a nossa língua?!” (18/5/67, Bissá, p. 88).

No dia seguinte, numa coluna de duas viaturas a Porto Gole, para ir buscar o correio e levar um “soldado castigado” para a sede do comando da companhia, o Abel e os seus camaradas encontram treze bajudas e dois homens: 

“Estavam munidos de catanas e machados” (…) e “quando nos viram, largaram logo a fugir (sendo o mais natural que tivessem ido fazer algum ‘serviço’ aos turras). Fizemos um cerco, e apanhámos o ‘bom pessoal’ (termo usado em relação aos civis nativos, que jogam com os dois lados) – que disse andar à lenha!" (…).

Em setembro de 1967, o Abel voltou para Bissá com o seu Gr Comb. No dia 3 há um primeiro contacto com o IN que faz uma flagelação a um tabanca das proximidades, Funcor, em pleno dia, às 14h… Os de Bissá respondem com morteiro 81 mm; o PAIGC riposta com morteiro 60 mm (p. 105). 

A 6 de setembro, uma força da guerrilha (estimada, com evidente exagero, em 180 elementos, segundo a história da unidade, citada pelo Abel), entra na tabanca de Bissá e flagela o destacamento. Há uma baixa mortal, confirmada, entre os atacantes, sendo enterrado dentro do arame farpado:

“Foi a primeira vez que vi de perto, um turra fardado (embora morto!). Tratava-se de um homem forte e tipo da raça balanta” (6/9/67, Bissá, pp. 105/106). Estava equipado com uma espingarda semi-automática Simonov M21, devendo por isso ser um milícia popular do PAIGC e não propriamente um guerrilheiro das FARP (reorganizadas no final de 1967)… 

A 8 de setembro há uma nova flagelação a Bissá, com morteiro 82 e armas automáticas… Aumentam as dificuldades de abastecimento do destacamento, devido à chuva, às minas e às emboscadas…

Setembro e outubro de 1967 vão ser dois meses negros para a CART 1661. O primeiro morto da companhia,  devido a explosão de uma mina  anti-carro, ocorre a 16 de setembro de 1967, com oito meses de comissão, quando uma coluna auto seguia de Porto Gole para o cruzamento da estrada para Mansoa onde se iria encontrar com forças de Bissá, para entrega de géneros alimentícios.

“Balanço: quatro mortos, sendo dois brancos e dois pretos, e mais treze feridos graves; uma viatura em pedaços; e diversos materiais estragados!” (…) (16/5/67, Bissá, p. 110).

Os mortos, todos do Pel Caç Nat 54 (com excepção do condutor), foram o fur mil Álvaro Maria Valentim Antunes, casado, natural de Portalegre, comandante da coluna, e os soldados guineenses Mamadu Jamanca e Adulai Sissé. O condutor era o sold da CART 1661, Manuel Pinto de Castro.

Esta ocorrência é referida pelo José Brandão, no seu livro Cronologia da Guerra Colonial: Angola, Guiné, Miçambique, 1961-1974 (Lisboa: Prefácio, 2008, p. 165): 

"16/9/1967: Morrem em combate na Guiné 4 militares do Pelotão de Caçadores 54”.

No dia seguinte ao tentar recuperar a viatura sinistrada, as forças de Porto Gole sofrem um emboscada…

A 2 de outubro de 1967,  Bissá volta a ser atacada, durante três horas… Eram 9h30 quando rebentou a primeira roquetada… O Abel escrevia dentro da enfermaria, “onde durmo, e estava a ouvir rádio”…A história da unidade fala em 150 elementos IN, os quais raptaram seis elementos da população e destruíram várias moranças…

A 5 de outubro, uma viatura saída de Porto Gole em direcção a Bissá faz accionar outra mina A/C. Balanço: 1 morto e 26 feridos. 

A 6, uma nova mina (desta vez incendiária!) com emboscada (por um grupo calculado em 80 elementos), junto ao local do rebentamento da mina anterior, faz 10 mortos e mais de duas dezenas de feridos, “com queimaduras, todos evacuados para a Metrópole”…

Diz-nos o Abel, em nota de rodapé, que “para estas evacuações, foi preciso um avião especial de emergência que, ao chegar a Lisboa, fez correr a notícia de que Bissau tinha sido bombardeada, simultaneamente ‘boatado’ pelo inimigo)” (p. 114).

Nesse dia, Abel estava em Bissá, fazendo contas à vida de cabo vagomestre, sem comer para dar ao pessoal… mas no dia 8/10/67 fez o balanço desta “série negra” que fez de Bissá “o pior aquartelamento” (p. 166) da Guiné, nessa época.

“Tanto na mina como na emboscada, foi precisa imediata colaboração da aviação, que desta vez chegou de pronto, vindo dois bombardeiros que ajudaram os helicópteros a localizar o acidente” (8/10/67, Bissá, p. 115).

O José Brandão, na sua Cronologia da Guerra Colonial, limita-se a referir que no dia 5/10/1967 “morrem em combate na Guiné 2 militares da CART 1661”, o 1º cabo José Andrade Couto Pinto, natural de Santo André, Bustelo, cocnelho de Peanfiel, e o sold Manuel, natural de Lixa, Fornos, concelho de Castelo de Paiva. E que no dia seguinte morrem mais cinco: 1º cabo Abel Carvalho Martins (Montalegre), 1º cabo António Ribeiro Machado Sousa (Mato, Ataíde, Amarante), sold Artur Rodrigues Alves (Sabuzedo, Mourilhe, Montalegre), sold João Pimentel Fernandes (Boi Morto, Oriz, São Miguel), sold José Coelho do Nascimento (Cepelos, Amarante)…

O Abel Rei fala em 7 mortos. A história da unidade fala em 10 mortos, algumas das mortes tendo provavelmente ocorrido já no hospital… Até na contabilidade das nossas baixas mortais na guerra colonial, há critérios divergentes…

O rol de desgraças não se fica por aqui:
Abel Rei, Marinha Grande, c. 2002

“(…) em Bissá, se não temos mortos, os vivos não têm que comer. Há mais de oito dias que não temos vinho, cerveja ou outros líquidos que se bebam”… Por seu turno, “o comer acabou: estando-se a comer, ora carne de vaca, ora bacalhau com pão e… água!” (p. 115/116). 

A 1 de novembro de 1967, come-se peixe miúdo, “pescado nas poças da bolanha” (p. 117).

Em conclusão, Bissá “cá sabi”… A 11 de novembro, o Abel regressa a Porto Gole, sendo rendido o seu Gr Comb. “Lá ficaram as piores recordaçõs e… um pedaço de cada um” (p. 118).
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7722: Memória dos lugares (132): Fotos de Enxalé (Virgínio Briote/António Rodrigues)

(**) Último poste da série > 6 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19863: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (6): o inferno de Bissá: um homem apanhado à mão (Abel Rei, ex-1.º cabo at, CART 1661, Fá, Enxalé, Bissá, Porto Gole, 1967/68)

(***) Vd. postes de:

12 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

14 de agosto de  2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)

(****) Vd. postes de:

16 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18851: Recordações de Porto Gole, Enxalé e Missirá: fotos de Abna Na Onça e outros camaradas (João Crisóstomo, Nova Iorque; ex-alf mil, CCAÇ 1439,1965/67)

28 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17707: (De) Caras (96): O cap 2.ª linha Abna Na Onça, balanta, e o 1º srgt Arlindo Verdugo Alface, alentejano do Cano, concelho de Sousel, dois "irmãos de sangue", e dois "homens grandes" com quem tive o privilégio de conviver (Jorge Rosales, ex-al mil, 1ª Companhia Indígena, Porto Gole, 1964/66)

27 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17704: (De)Caras (95): Abna Na Onça, cap 2ª linha, comandante de uma companhia de polícia administrativa, regedor do posto do Enxalé, prémio "Governador da Guiné" (1966), morto em combate em Bissá, em 14/4/1967, agraciado a título póstumo com a Cruz de Guerra de 1ª Classe (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Enxalé e Ilha das Galinhas, 1966/68)

(...) Ai vai uma foto do capitão de 2ª linha Abna na Onça, tirada poucos dias antes de ele morrer em Bissá, esse homem valente com quem o meu Pel Caç Nat 54 saiu várias vezes, com ele e a sua polícia administrativa.

Na primeira levada para se implantar o aquartelamento em Bissá, foi o Capitão Abna na Onça com os seus homens mais um pelotão da Cart 1661, ao 2º. ou 3º. dia, já não me recordo, foram atacados em força com canhão sem recuo e morteiro 82 , tendo o cap Abna na Onça sido atingido com estilhaço de granada de canhão sem recuo no peito, enquanto teve forças comandou os seus homens até ao fim. Houve dificuldade de comunicações e só quando chegaram mensageiros de Bissá se soube da tragédia.

Foram depois retirados os mortos e os feridos para Porto Gole a aguardar por ordem, o que foram 2 dias terriveis com o cheiro, tendo eu gasto pacotes de detergente para tentar amainar o cheiro. Ao segundo dia vieram ordens para enterrar os policias administrativos, o que o fiz junto ao monumento e o cap Abna na Onça viria uma LDP buscá-lo.

Vim a saber depois pelo cabo manobra dessa lancha que a viagem de Porto Gole a Bissau, foi horrível com o cheiro, tendo os marinheiros vomitado todo o caminho.

(...) Foi substituído no comando da Policia Administrativa pelo seu irmão Sagna Na Onça. (...)


(...) [O Jorge Rosales] diz-me que era muito amigo do mítico Capitão de 2ª linha, o Abna Na Onça, chefe espiritual, poderoso, da comunidade balanta da região, a quem o PAIGC havia cometido o erro fatal de “matar duas mulheres e roubar centenas de cabeças de gado”. O seu prestígio, a sua influência e e o seu carisma eram tão grandes que ele sabia tudo o que se passava numa vasta região que ia de Mansoa a Bambadinca (nomeadamente, importantes informações militares, como a passagem de homens e armas do PAIGC).

Jovem (teria hoje 72/73 anos se fosse vivo), era um homem imponente, nos seus 120 kg. Schulz tinha-lhe oferecido um relógio de ouro e uma G3 como reconhecimento pelos seus brilhantes serviços … Mais tarde, será morto, em Bissá, em 15/4/67, com seis dos seus polícias administrativos, todos eles residentes em Porto Gole… Nesse dia o destacamento é abandonado pelas NT: “ um dia trágico para quem estava no inferno de Bissá, como escreveu o Abel Rei no seu diário( Entre o paraíso e o inferno: de Fá a Bissá. Memórias da Guiné, 1967/68, editado em 2002, pp. 68/70) (...)

O Jorge Rosales pertencia à 1ª Companhia de Caçadores Indígena, com sede em Farim (Havia mais duas, uma Bedanda e outra em Nova Lamego, acrescenta ele). Ficou lá pouco tempo, em Farim, talvez uma semana. A companhia estava dispersa. Foi destacado para Porto Gole, com duas secções (da CCAÇ 556, do Enxalé) e outra secção, sua, de africanos. Tinha um guarda-costas bijagó. Parte dos soldados eram balantas. Possuíam apenas 1 morteiro (60) e 1 bazuca. A farda ainda era amarela. Ficou 18 meses em Porto Gole. Ia a Bambadinca jogar à bola com os de Fá. Foi uma vez a Bafatá, apanhar o NordAtlas. Lembra-se da piscina.

Enquanto lá esteve, em Porto Gole, havia um certo respeito mútuo, de parte a parte. A influência de Cabral era evidente, fazendo a distinção entre o povo (português) e o regime (colonialista). Podiam deslocar-se num raio de 10 km…. Mas a ligação com Mansoa já se perdera. O troço já não era seguro. Em Mansoa estavam os respeitados Águias Negras (BART 645, que dominavam o triângulo do Óio: Olossato, Bissorâ e Mansabá) .

Do lado do Geba, eram os fuzileiros que impunham a lei e o respeito. Lançavam uma bóia e fundeavam a LDG em frente a Porto Gole. Vinha quase tudo por rio: os frescos, a bianda, os cunhetes de munições… (excepto o correio, que era lançado do ar, de DO 27, e às vezes ir cair no tarrafo; em contrapartida, o correio expedido ia de LDG... Singuralidades de Porto Gole que não tinha uma simples pista de terra batida, para as aeronaves). Tem vários amigos fuzos, desse tempo, incluindo o comandante Castanho Pais. (...)