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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21222: Recortes de imprensa (112): entrevista ao antropólogo Vasco Gil Calado sobre droga e álcool na guerra colonial, "Público", 2 de agosto de 2020 (Carlos Pinheiro)


Recorte da edição do Público, 2 de agosto de 2020: Texto de Patrícia Carvalho e fotografia de Daniel Rocha. O artigo só está disponível para assinantes. (Excerto reproduzido com a devida vénia...)  


1. Mensagem do nosso camarada e amigo de Torres Novas, Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70)

Date: segunda, 3/08/2020 à(s) 18:23

Subject:  Artigo no jornal "Público" sobre álcool e droga na guerra colonail

Caros companheiros e amigos

Peço imensa desculpa de vos estar a incomodar, mas o trabalho que abaixo partilho, Cannabis e álcool: as companheiras esquecidas dos combatentes da Guerra Colonial, e que, possivelmente muitos de vós já tereis visto, feito por um fulano para a sua tese de doutoramento, depois de ter entrevistado 200 ex-combatentes, incomodou-me sobejamente porque – posso estar a ver mal – o senhor chegou aquelas conclusões depois de ter falado com uma inexpressiva percentagem daquelas muitas centenas de milhares de jovens que durante 14 anos deram o corpo ao manifesto.

Ele, segundo diz, nunca se tinha interessado pela Guerra Colonial, e só agora, não sei porquê, realizou o tal trabalho e chegou a estas "esplêndidas" conclusões.

Não me quero alongar mais, mas permito-me perguntar se este senhor não mereceria que lhe fosse dirigida uma reacção que desmontasse o que o senhor afirma doutoralmente.

Já me têm feito confusão algumas teses de doutoramento, mas esta suplantou todas as medidas.

Se algum ou alguns dos meus amigos se quiserem dar ao trabalho de alinhavar algumas palavras acerca do assunto, fico grato.

Cá fico à espera.

Um grande abraço, virtual

Carlos Pinheiro

 PS - Vd. artigo no jornal Público de 2 do corrente:

2.  Nota do editor LG:

Obrigado, Carlos pela tua oportuna chamada de atenção. Mas é preciso ir  às fontes, ler em primeira mão o autor, para depois se ter uma opinião fundamentada.  O tema é delicado mas não é tabu. Temos, no nosso blogue,  30 referências sobre alcool, mas apenas duas sobre drogas... 

Percebo, pelo título do artigo, que possa desencadear reações emotivas (, já me chegaram ecos de Trás-os-Montes...), porque mexe com a nossa autoestima e pode ferir a honra da generalidade dos combatentes. Mas não vamos provocar aqui uma "caça às bruxas"... Há 16 anos que falamos, aqui, no nosso blogue, de tudo ou quase tudo, com frontalidade e verdade. Mas o nosso blogue não tem por missão produzir "trabalho científico", apenas partilhar "memórias"... A ciência é com os cientistas,,,

Começo por dizer que não li a entrevista do "Público", nem o livro, mas vou consultar a tese de doutoramento, do Vasco Gil Calado,  em antropologia, pelo ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, defendida em provas públicas em 17/9/2019.  Temos que separar o artigo de jornal (e os títulos de caixa alta dos jornais provocam muitas vezes leituras enviesadas) e o trabalho académico.

Este é um trabalho com arbitragem científica. E terá por certo méritos e desméritos. Não há trabalhos científicos perfeitos.  E é bom desde já chamar a atenção que não é um trabalho de  investigação (quantitativa) em epidemiologia mas um trabalho de investigação (qualitativa) em antropologia. Portanto, é preciso ter cuidado com as eventuais generalizações abusivas.

Este trabalho académico pode ser consultada no Repositório desta instituição ["O Repositório Institucional do Iscte tem como objetivo preservar, divulgar e dar acesso à produção intelectual do Iscte em formato digital. Na medida em que reúne o conjunto de publicações académicas e científicas do Iscte, contribui também para o aumento da visibilidade e impacto do trabalho de investigação a nível nacional e internacional."]

Referêmcia bibliográfica:

CALADO, Vasco Gil Ferreira - Drogas em combate: Usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa [Em linha]. Lisboa: ISCTE-IUL, 2018. Tese de doutoramento. [Consult. 3 de agosto de 2020 ] Disponível em www: http://hdl.handle.net/10071/18841. 

O acesso é restrito, por vontade expressa do autor (, por razões que desconheço, talvez relacionadas com a proteção das fontes e a confidencialidade da informação...),  podendo ser lhe pedida uma cópia em formato digital. Os trabalhos académicos, produzidos no âmbito das universidades públicas, devem estar ( e em geral estão)  em "open acesso", isto é, abertos à consulta pública.

Aqui fica o resumo da tese, o que é que está disponível "on line" no repositório, a par das palavras-chave: Antropologia cultural | Guerra colonial | Colonialismo português | Abuso de drogas | Memória coletiva | Usos e costumes | Portugal.

A Guerra Colonial Portuguesa foi um conflito de guerrilha marcado pelo desgaste físico e psicológico, tendo decorrido a milhares de quilómetros da «metrópole», em territórios inóspitos e em muito diferentes do que os jovens portugueses conheciam. 

Entre as novas experiências que tiveram lugar durante a comissão militar em África conta-se a descoberta da cannabis, uma planta de consumo tradicional em Angola e Moçambique, e a adoção de padrões de consumo intensivo de bebidas alcoólicas que a logística militar distribuía pelos quartéis. 

De acordo com as narrativas dos ex-combatentes, os usos de cannabis e álcool desenvolvidos pelos militares portugueses estão intrinsecamente relacionados com as circunstâncias do conflito, com as normas sociais e com as motivações de consumo. Na guerra, os militares portugueses recorriam às duas drogas como forma de ultrapassar as dificuldades, vencer o medo e lidar com uma realidade difícil de suportar, fosse pela omnipresença da violência, do tédio ou da tensão emocional. 

Embora a cannabis fosse uma planta que o olhar europeu historicamente associou à desordem e ao comportamento bárbaro, a partir do final da década de 60 do século XX os militares portugueses deram-lhe um uso diferente, consumindo-a de forma terapêutica, sem que isso desse aso a castigos disciplinares. No entanto, ao mesmo tempo, na «metrópole» o poder político iniciava uma «guerra às drogas», criminalizando o uso de cannabis e de outras substâncias psicoativas e fazendo da droga um problema social, associando-a à contestação social. 

Tudo isto permite perceber que a droga é um constructo social e um objeto eminentemente político, pelo que nada no uso de drogas é um facto adquirido ou algo que decorra exclusivamente das propriedades farmacológicas de cada uma, antes é condicionado histórica e socialmente, nomeadamente em função do contexto político. [Fonte: http://hdl.handle.net/10071/18841]

Há também um artigo do mesmo autor,  disponível em texto integral, "on line", na revista "Etnográfica" [Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia], e que já li em tempos (**).

Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica [Online], vol. 20 (3) | 2016, Online desde 27 novembro 2016, consultado em 04 agosto 2020. URL : http://journals.openedition.org/etnografica/4628 ; DOI : https://doi.org/10.4000/etnografica.4628

Resumo: Apresentam-se as principais questões suscitadas pelo trabalho em curso acerca do uso de substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974). São identificados alguns aspetos-chave que emergem das narrativas dos ex-combatentes acerca da sua experiência de guerra e que contextualizam um conjunto de práticas, entre elas o uso de drogas. Confirma-se o abuso de álcool e o uso de canábis entre os militares das forças armadas portuguesas envolvidas no conflito, numa altura em que em Portugal surgiam as primeiras iniciativas de combate às drogas. Tanto o consumo de bebidas alcoólicas como de outras drogas pode ser entendido como uma forma de lidar com a ansiedade e a violência do quotidiano.

Em tempos, o Gil Vasco Calado pediu-nos ajuda para  este trabalho académico (**). Já não me lembro se me chegou a entrevistar, nem tenho a certeza de o conhecer pessoalmente,  O poste P16807 teve 12 comentários.
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(**) Vd. poste de 6 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16807: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (39): pedido de ajuda para tese de doutoramento em Antropologia, pelo ISCTE-IUL, sob o tema do uso de álcool e drogas na guerra colonial (Vasco Gil Calado)

(...) Chamo-me Vasco Gil Calado, antropólogo e técnico superior do SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências]. 

Estou a fazer o doutoramento em Antropologia, no ISCTE, sobre o tema do uso de álcool e drogas na guerra colonial. Foi o Renato Monteiro quem sugeriu que o contactasse, na condição de grande especialista e dinamizador de um blog essencial sobre a guerra colonial. No âmbito académico da tese, gostava de o entrevistar, de forma anónima e confidencial, naturalmente.

O meu orientador é o Prof. Francisco Oneto, do departamento de Antropologia do ISCTE.
Nós cruzamo-nos no ISC-Sul, numa pós-graduação de Sociologia da Saúde, em que deu um módulo sobre Educação para a Saúde, se bem me lembro, para aí em 1999 ou algo do género. (...)

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20859: Historiografia da presença portuguesa em África (205): Monografia-Catálogo da Exposição da Colónia da Guiné - Semana das Colónias de 1939 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Uma importante publicação já com 80 anos e que cada um pode comprar por 10 euros. E que traz matéria para reflexão. Por exemplo, o que a Sociedade de Geografia de Lisboa e o Boletim da Agência Geral das Colónias publicavam e que hoje é matéria de consulta que nenhum investigador pode prescindir para conhecer o serviço de Saúde, a ação missionária, o comércio, a agricultura.
A exposição de 1939, há que dizê-lo com sinceridade, era bem abrangente, motivadora, interessava o curioso, o estudioso, até mesmo o investidor, procurava ser rigorosa, desvelava as espécies da fauna e não escondia a raridade do elefante e do leão, a variedade de macacos, a pujança das espécies ornitológicas, onde não falta o colibri, o melro, a garça-real, os papagaios e periquitos, os flamingos e os grous, patos e galinhas, os jagudis, a rola, o peneireiro e a coruja.
Em certos pontos, faz observações completamente datadas, as preocupações raciais são hoje de risota.
Em suma, vale a pena ler esta monografia-catálogo para ter um quadro do que se pensava da Guiné há cerca de oitenta anos.

Um abraço do
Mário


Uma preciosidade: a Guiné na Semana das Colónias de 1939 (2)

Mário Beja Santos

Não é frequente (para não dizer que é uma raridade) poder comprar-se por uma módica quantia (10 euros) uma publicação com 80 anos toda ela dedicada à Guiné, nos seus aspetos históricos, etnolinguísticos e, de acordo com o que a seguir se escreve, mostrar como esta monografia-catálogo foi cuidadosamente elaborada para satisfazer a curiosidade daqueles que queriam saber um pouco mais sobre a Guiné. Para surpresa do autor de hoje mostravam-se espigas de trigo, arroz em casca e descascado, mostravam-se arados, enxadas e formas de cultivo, numa outra estante havia raízes e farinha de mandioca, referia-se que a batata consumida pelos brancos é produto de importação (hoje, na Guiné, fala-se na batata inglesa, as culturas de subsistência possuem em grande quantidade batata-doce), e havia uma estante com espécies de feijão, feijão encarnado, branco, carrapato e também feijão mancanha, favaca e feijão pedra. E dava-se a seguinte explicação: “A mandioca, o milho-amarelo e o painço, e o feijão, a ervilha do Congo e a alfarroba foram introduzidos na Guiné por nós; o cultivo do milho e da mandioca ainda não entrou nos hábitos dos nativos”. E prossegue a exposição dos recursos alimentares com o óleo de palma, a noz da cola, a malagueta, dava-se a notícia de que o café e o cacau frutificavam em pequena escala e só em terras Fulas e de Mandingas. Quanto a frutas, uma estante mostrava bananas, calabaceiras, manga, mamão, laranja, coco, fruta-pão, ananás e fruta de caju. Exibiam-se exemplares de vasilhas, de cabaços, de utensílios de cozinha, cestos. E expunham-se bebidas alcoólicas: o vinho de palmeira e a sua aguardente e a aguardente da cana sacarina.

Terá sido visto como uma verdadeira curiosidade a mostra de produtos usados no tratamento de moléstias, caso das sementes de rícino, a erva de S. Caetano, o pau de mauta, as folhas de medronheiro, o óleo de cola, as folhas de calabaceira e muito mais. E observava-se que o chá de cascas de limão é boa terapêutica nas febres e doenças do estômago, que o óleo de malagueta preta acalma as dores abdominais e que as folhas de manduco de feiticeiro e a água da maceração da raiz de nemplé atuam com eficiência nos reumatismos.

Passando para a habitação, refere-se que as moranças são resguardadas por caniçados, que as habitações dos Bijagós são de barro branco ou de madeira e que para as construções europeias e para os trabalhos de habitação ou de arte dos guineenses se utilizam madeiras preciosas, caso do pau-sangue, pau-ferro, a flor de mogno, a farroba, a laranjeira, entre outras.

A exposição sobre a indumentária parecia bastante completa, veja-se o comentário do catálogo: “A indumentária dos Fulas e Mandingas consiste num bubu de algodão ou de seda e um calção muito largo que desce abaixo do joelho, semelhante ao calção dos zuavos; na cabeça põem chapéus de palha de forma cónica ou achatada com franquelete de correia ou um boné branco. As mulheres usam um pano de algodão branco que desce até aos pés e uma blusa muito larga e sem mangas”. Numa das estantes o visitante podia observar panos de diversos padrões, almofadas de couro, mostras da tecelagem de peças de algodão com tinturaria local. Exposição minuciosa que incluía os adornos e enfeites. Para justificar a grande inclinação dos guineenses para a música e para a dança expunham-se instrumentos musicais, marimbas, korás, bambolons, guitarras, seguia-se a mostra de esculturas, de pessoas, de animais, de barcos e outros objetos, tábuas de Alcorão, adornos respeitantes à população animista, e neste capítulo mostrava-se a ação missionária e a evangelização.

Em setor à parte, era referenciada a Guiné do ponto de vista administrativo, temos depois a lista dos governadores da colónia da Guiné e uma cuidada apresentação da bibliografia por: História e Geografia, Ocupação e Delimitação de Fronteiras; População, Política Administrativa, Colonização; Agricultura; Comércio; Assistência. E também cartas geográficas e plantas hidrográficas, cartas corográficas e hidrográficas.

Tudo me surpreendeu, confesso, a citação camoniana, completamente esquecida, o resumo histórico, a fauna, os dados geográficos sumários, a população, a preocupação muito datada das considerações de antropologia racial, a alimentação, as mezinhas, as manifestações artísticas, a presença do religioso.
Obviamente que se tratava de uma monografia e de uma exposição em que importava encher o olho e apresentar resultados do sucesso imperial, como se escreve:
“Ao terminar este trabalho, dir-se-á ainda que a colónia entrou em franco desenvolvimento civilizador.
A cidade de Bissau progride intensivamente e a de Bolama também, embora em menor ritmo. As obras públicas aumentam celeremente.
As estradas atravessam a Guiné em todas as direcções; as comunicações telegráficas e telefónicas são cada vez maiores.
Construiu-se já o aeroporto de Bolama e vários campos de aviação vão ser criados no interior.
A assistência médico-higiénico e agrícola-pecuária expande-se, lenta mas seguramente, atingindo já os principais centros europeus e nativos com resultados animadores.
Enfim, a Guiné Portuguesa, num esforço digno do maior elogio, vai-se transformando numa das possessões mais ricas e progressivas do nosso Império Colonial.”
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Nota do editor

Poste anterior de 8 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20830: Historiografia da presença portuguesa em África (204): Monografia-Catálogo da Exposição da Colónia da Guiné - Semana das Colónias de 1939 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20830: Historiografia da presença portuguesa em África (204): Monografia-Catálogo da Exposição da Colónia da Guiné - Semana das Colónias de 1939 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Quem estiver interessado em adquirir esta raridade, vai ao 4.º andar da Sociedade de Geografia de Lisboa e por 10 euros entregam-lhe a monografia aqui referida. Está bem marcada pelo espírito da época: as curiosidades raciais, a natureza da religião, o que se produz e o que se podia produzir.
Trata-se de uma exposição, nunca se perca de vista que há comentários que remetem para escaparates de objetos expostos, dá-se a lista dos governadores da colónia da Guiné desde o século XVI ao século XX, a bibliografia apresentada tem as suas curiosidades, não se limita nem à História nem às missões, há aspetos particulares orientados para a agricultura, o comércio e a assistência e expunham-se cartas geográficas e plantas hidrográficas, também cartas corográficas e hidrográficas. Não encontrei fotografias desta semana das colónias, talvez seja uma questão de investigar os boletins da Sociedade de Geografia de Lisboa, não vou esquecer.

Um abraço do
Mário


Uma preciosidade: a Guiné na Semana das Colónias de 1939 (1)

Mário Beja Santos

A sorte favorece os audazes, diz-se e consta, e há casos em que é verdade. Andava eu a catar referências sobre a Guiné no início da II Guerra Mundial, insere-se num computador a data de 1939, refere-se a Guiné, e surge esta monografia-catálogo. Requisita-se imediatamente. Não traz grandes novidades mas comporta agradáveis surpresas. Logo a citação camoniana completamente esquecida, injustiça quase imperdoável para com o nosso bardo topo de gama, injustiça para a “mui grande Mandinga”, recorde-se que Luís Vaz de Camões tinha uma profunda formação humanística e devia saber da existência do Império Mandinga, bem como dos Jalofos e da Gâmbia. Depois, uma monografia-catálogo dispara em várias direções: atrai o visitante que visita a exposição da colónia da Guiné para alimentos, utensílios, produtos medicinais, formas de habitação, manifestações artísticas e religiosas, entre outros elementos.


Guardo uma frase que tem halo poético, a Guiné encontrar-se no extremo ocidental do Sudão. Depois fala-se da superfície, dos rios, da constituição geológica, do clima, da flora, da fauna, avança-se para um conjunto de considerações sobre a Pré-História (são elementos em grande parte cientificamente ultrapassados por outras evidências), é referido o reino do Gana, o Benim, o Império Mali (Camões seguramente que ouviu referências a este Império), a etimologia da palavra Guiné (continua a ser discutível), seguem alguns elementos sobre a história da presença portuguesa e temos depois dados populacionais e étnicos, posicionamento destes povos dentro da colónia.


Recorde-se ao leitor que estamos numa época (1939) de acesas discussões raciais, os antropólogos e etnólogos resolveram imiscuir-se e dar palpites sobre as características morfológicas e biológicas, vale a pena uma citação sobre o linguajar próprio deste tempo:

“Dos Fulas da Guiné Portuguesa, os Fula-Forros revelam o sangue berbere; são de elevada estatura, magros, pele acobreada, cabelo lanuginoso, nariz fino e saliente, lábios pouco espessos e olhos amigdoliformes; os Fula-Pretos evidenciam maior percentagem de sangue negro, e por isso são mais pigmentados e de feições mais negroides, razão por que os restantes Fulas os consideram descentes dos seus antigos escravos, desprezando-os sistematicamente.
Os Futa-Fulas são camitas menos mestiçados, com menor dose de sangue negro, circunstância que os leva a suporem-se racialmente superiores aos Fulas-Forros.
Em geral, os Mandingas são de estatura elevada, dolicocefalia elevada, pele muito pigmentada, cabelo lanuginoso ou frisado; a grande maioria deles revela mestiçamento com etíopes ou berberes.
Os Felupes e os Baiotes são altos, fortes, dolicocéfalos, prognatas, platirríneos.
Extremamente pigmentados, os Papéis têm cabelo encarapinhado e pequeno desenvolvimento da pilosidade, dolicocéfalos, prognatas, platirríneos, revelam lábios espessos, pómulos salientes e estatura elevada.
Antropologicamente, os Manjacos assemelham-se aos Papéis. Os Banhuns têm pequeno desenvolvimento corporal e a sua pigmentação é menos intensa, ao invés dos Balantas que são muito pigmentados, possuem elevada estatura, dolicocefalia platirrinia, prognatismo e grande espessura labial. Somática e etnicamente os Beafadas parecem-se com os Fulas.
Os Bijagós têm elevada estatura, dolicocefalia platirrinia, prognatismo, lábios grossos e pele negra. Da morfobiologia dos pequenos agrupamentos da nossa colónia, nada se conhece ainda”.

Quem escreve a monografia avança com pequenas curiosidades, como se bisbilhotasse os carateres étnicos, fizesse um perfil de personalidades: os Balantas apresentados como alcoólicos e ladrões de vacas; os Fulas submetem-se sem problemas à autoridade portuguesa ou francesa:  
“Orgulhoso da sua genealogia, intrujão em questões político-familiares, intriguista e galopineiro político, o Fula é inatamente querelador; destituído do conceito de Pátria, motivos políticos ou questões de herança levam facilmente o Fula a emigrar da nossa colónia para território francês ou reciprocamente; os Felupes não se cruzam com outras etnias, ao contrário dos seus parentes Baiotes, embriagam-se amiúde com vinho de palma; os Papéis são aguerridos, enérgicos e decididos e têm repugnância pelos trabalhos agrícolas; os Manjacos têm grande tendência para as tarefas marítimas; os Beafadas são pouco trabalhadores, grandes amigos do descanso, fazem grandes libações de vinho de palma e aguardente; os Bijagós, conquanto considerados como os povos mais cultos da Guiné Portuguesa, são artistas. Os Grumetes dedicam-se às artes e ofícios e conquanto se vistam à europeia não se subtraíram ainda totalmente à influência ancestral e do meio ambiente, andam em completo estado de nudez, vivendo em regime poliândrico, o homem facilmente é desprezado pela mulher, são preguiçosos".

Seguem-se considerações sobre a língua. Veja-se o que escreve o autor:
“Na formação do crioulo entram fundamentalmente o português de quinhentos e os dialetos guineenses; acessoriamente, o crioulo contém vocábulos latinos, brasileiros, franceses e ingleses. O crioulo é um idioma dissonante, repleto de exclamações guturais e as suas palavras são, regra geral, dissilábicas. Dada a sua pobreza, o crioulo não pode traduzir, senão imperfeitamente, as ideias abstratas.
Todavia, há naturais de Cabo Verde que se exprimem elegantemente em crioulo e até alguns deles têm neste dialeto composições em prosa e em verso dignas de merecimento.
Os dialetos indígenas mais importantes são o fulbe, o mandê, idioma dos Jalofos, e dialeto dos Felupes, o idioma dos Nalus. O fulbe, sobre cuja origem os filólogos ainda não concordaram, tem grande riqueza de vocabulário e com 17 classes; mercê da sua doçura e musicalidade tem sido apelidado de italiano na África. Este idioma é falado pelos Fulas e por outros povos da África Ocidental.
O mandê é um dialeto falado por grande número de povos do Ocidente Africano (Mandingas, Sossos) competindo neste particular com o fulbe. Existem livros, como o Alcorão, escritos em Mandinga.
O idioma dos Jalofos difere muito do mandê. Há livros de orações em Jalope e francês. O dialeto dos Felupes é falado por estes e por outros djolas franceses.
As línguas veiculares da nossa colónia da Guiné além do português são o crioulo cabo-verdiano, o fulbe e o mandê".

Feita a exposição dita biogeográfica, o documento orienta-se agora para a alimentação, habitação, indumentária, artes e organização social e política.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20798: Historiografia da presença portuguesa em África (203): “Ensaios sobre as Possessões Portuguesas na África Ocidental e Oriental; na Ásia Ocidental; na China e na Oceânia”, importante trabalho de Lopes de Lima sobre a Guiné, 1844 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20800: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte I: A lepra, a doença por antonomásia na Idade Média





Fotos: cortesia de Alice Cruz (2009) (*)



1. Até ao séc. XVI, há três grandes epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. Vamos abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19. 

Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam  disponíveis na minha página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa. São excertos que estou a rever e a aligeirar, retirando por exemplo todas as citações e referências bibliográficas.

E a melhor maneira é ver como a experiência da doença e da morte ficou fixada na linguagem do dia-a-dia, ou melhor, nos provérbios populares enquanto "representações socais".

Na ideologia cristã-feudal, a doença é representada socialmente da seguinte forma esquemática:

(i) Está quase sempre associada à morte ("Mal viver, mal acabar"; "Tosse seca, trombeta da morte"; "Doença comprida em morte acaba"; "Não há morte sem achaque");

(ii) E, muitas vezes, à morte em massa de que a peste negra de 1348-1351 e o infernal ciclo de epidemias que se lhe seguiu durante mais de quatro séculos é o termo de comparação ("Não matou mais a Peste Grande de Lisboa", ou seja, a de 1569, no reinado de Dom Sebastião: terá morto um terço da população da cidade, qualquer coisa como 60 mil);

(iii) É vista como algo de inelutável, que transcende a vontade humana e contra a qual o homem é totalmente impotente ("Boda e mortalha no céu se talha"; "Deus faz o que quer e o homem o que pode");

(iv) Se não acaba na morte, é de prognóstico reservado ("A doença vem a cavalo e vai a pé"; "O mal vem às braçadas e sai às polegadas");

(v) É quase sempre um castigo ou uma provação de um Deus que é estranha e misteriosamente um pai maniqueísta, justiceiro e misericordioso ("A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"; "De Deus vem o mal e o bem"; " Deus o dá Deus o leva"; "Deus castiga sem pau nem pedra"; "É tão bom Deus como o Diabo");

(vi) E que só Deus, e não os médicos, pode curar ("De hora a hora Deus melhora"; "Deus dá o mal e a mezinha"; "Deus fere porém Suas mãos curam");


(vii) Por fim, a doença é repulsiva, estigmatizante e ruinosa para o indivíduo e a família ("Não tenhas medo que eu não tenho lepra"; "Em casa de doente o lugar não se aquente"; Terra ruim e mulher doente é que quebra a gente"; "Um doente come pouco e gasta muito").

2. Até à criação do Estado Moderno (grosso modo, até ao fim do Ancién Régime, ou seja, até à Revolução Francesa) não faz qualquer sentido falar-se em sistemas e políticas de saúde ou de protecção social ou até de assistência pública.

Estes conceitos irão surgir, lentamente, como resposta aos efeitos perversos da revolução industrial e urbana, operada pelo desenvolvimento do capitalismo liberal, bem como às profundas transformações demográficas, sociais, económicas, científicas, culturais e políticas que marcam o Século XIX . Nomeadamente o conceito de assistência pública é um conceito burguês que irá emergir da Revolução Francesa.

Durante a Idade Média, não há sequer um clara noção do que seja a saúde, individual ou colectiva. A única excepção são a lepra e as epidemias (, nomeadamente de peste) que devastam a Europa medieval.

O conceito positivo e multidimensional de saúde que temos hoje em dia, e que remonta à criação, em 1948, da OMS - Organização Mundial de Saúde, seria então completamente ininteligível para os nossos antepassados medievos.

A brutalidades dos números da morbimortalidade, a terrível impotência humana, o triunfo da morte e a exclusão social caracterizavam, então, a experiência da doença. Com as epidemias medievais, não há doentes: não se morre só, em casa ou no hospital, morre-se em massa, por toda a parte. Inelutável, indizível e fatal, a doença só tem uma saída: a morte ou a exclusão social (, que era uma forma de morte em vida). 


A resposta das nossas sociedades era a do internamento forçado e da brutal segregação, sexual, social e espacial, dos doentes. Foi assim que lidámos, por exemplo, com a lepra. E continuámos a lidar (ou somos tentados a continuar a lidar: veja-se o "lazareto", o "manicómio" ou o "sanatório" nos finais do séc. XIX/princípios do séc. XX;  os "hospitais-colónias" e os "sidatórios", no séc. XX)...


A lepra, a Doença por Excelência 


3. No caso da lepra, e devido ao terror infundido pela doença e à crença infundada no contágio pela simples presença do leproso, os doentes (alguns sendo portadores de simples afecções cutâneas!) eram apartados da comunidade e da família, despojados dos seus bens, submetidos a um macabro simulacro de funeral em vida, além de serem obrigados a viver da caridade, a usar um vestuário distintivo e a fazer-se anunciar através do toque de matracas, junto às povoações e nas vias públicas. Eram literalmente apartados dos vivos.

Hoje sabemos que a doença só é transmitida por contacto físico íntimo e prolongado (por ex., entre mãe e filho ou nas relações sexuais). Mas na altura o conhecimento médico da doença era grosseiro, o que explica os erros de diagnóstico cometidos e o radicalismo das soluções adotadas pelo Ocidente cristão. Os suspeitos eram então examinados por júris, compostos por autoridades civis e religiosas, incluindo um médico ou um cirurgião.

4. A lepra era, na Alta Idade Média, a Doença, por antonomásia. Conhecida desde a antiguidade, é amplamente citada na Bíblia como a doença do pecado da carne, logo um terrível castigo divino, susceptível de se propagar às gerações seguintes...Era uma doença "repugante", caracterizada sobretudo pela desfiguração do rosto: provoca(va) danos principalmente nos nervos periféricos (nervos localizados no exterior do cérebro e da medula espinhal), na pele, nos testículos, nos olhos e nas membranas mucosas do nariz e da garganta...

No baixo latim infirmus (doente), tal como malaud (na língua occitana), assumia por vezes o sentido específico de leproso.

Causada pelo bacilo 
Mycobacterium Leprae  ou Mycobacterium 
Lepromatosis [só identificado em 1874 pelo norueguês Gerhard E.A. Hansen (1841-192), que estará em Lisboa, em 1906, sendo um das vedetas do XV Congresso Internacional de Medicina ), era conhecida desde a Antiguidade (vd. por ex., Bíblia, Levítico, 13 e 14: Deus, através de Moisés e Aarão, divide os judeus em puros e impuros, sendo estes os portadores de lepra).

Em Portugal chegou a haver "mais de sesenta  casas de São Lázaro, predominantemente no Norte e no litoral", fruto da caridade cristão, manifestada sob a forma de doações e legados. As mais importantes eram "as gafarias de Coimbra, Guimarães e Santarém, além do Hospital de São Lázaro, no termo de Lisboa. (***)

5. Desde o Séc. VI, diversos concílios da Igreja Católica (Orleães, Arles, Lyon) recomendavam o isolamento dos doentes, se bem que na altura a lepra ainda fosse endémica, ou seja não epidémica, localizada ou circunscrita a uma dada região

Com as Cruzadas (as expedições cristãs para a "reconquista" dos lugares santos de Jesrusalém, ocupados pelos muçulmanos), aumentou consideravelmente o número de leprosos e, em consequência, multiplicaram-se as leprosarias ao ponto de terem existido em França mais de duas mil, por volta de meados do Séc. XIII.

A partir do Séc. XV, esta terrível doença que marcou o imaginário medieval, tenderá a regredir no Ocidente, Crê-se que a exclusão social na Idade Média, a par da imposição de interditos sexuais, pode em parte explicar este recuo da lepra...

A desafectação progressiva das leprosarias (em Portugal, gafarais) vai, por seu turno, fazer aumentar a rede hospitalar, nomeadamente em países como a França.

6. No nosso caso, as gafarias obedeceriam, a "três tipos de governo" (i) As criadas por iniciativa do rei, e dirigidas por representantes seus; (ii) ass municipais (por exemplo, Braga, Guimarães, Lisboa e Porto); e, finalmente, (iii) as estabelecidas pelos próprios gafos e por eles administradas, embora sob protecção régia.

Embora associada à promiscuidade e à pobreza, a lepra também vitimava gente da alta nobreza e do alto clero;  D. Afonso II, por exemplo, morreu em 1223, vítima de lepra. Tal como seu pai, D. Sancho I.

Algumas destas gafarias sobreviveram até ao séc. XX, como foi o caso da Gafaria para Lázaros e Lázaras (ma prática, para "doentes de chagas incuráveis", anexada em 1721, ainda fazia parte dos "hospitais menores" da Misericórdia do Porto, no início de década de 1930.

De qualquer modo, quando comparado com as regiões europeias transpirinaicas (por ex., a França), o nosso país terá tido poucas gafarias. Só em França, no Século XIII, contavam-se mais de duas mil. Fora da Pensínsula Ibérica, o desenvolvimento da doença terá sido muito maior, a partir sobretudo das Cruzadas (finais do Séc. XI).

Tal facto tende a ser imputado a uma menor mobilidade das populações cristãs peninsulares: estando empenhadas na "Reconquista" até tardiamente (em Portugal até meados do séc. XIII), não teriam podido (nem precisado de) ir combater ou peregrinar à Terra Santa. Recorde-se que o último reino muçulmano, o de Granada, só cairá nas mãos dos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1492.

No reinado de D.Afonso IV, há já notícias de abusos na administração dos bens destinados aos "gafos". Tal facto, aliás bastante corrente, conduzirá à intervenção do poder régio, nomeadamente no caso do Hospital de São Lázaro de Coimbra. Assim, por carta de 30 de março de 1326, ordenava-se ao maioral e ao escrivão da gafaria de Coimbra que se não dessem rações a pessoas de fora que, além de sãs, tivessem com que se sustentar.







Guiné-Bissau > Bissau > Cumura > Missão Católica e Hospital de Cumura > 14 de Dezembro de 2009 &gt > 18h > Mural com as seguintes inscrições: "Obrigado, Bispo Settimio"; "X Aniversário da Morte de Dom Settimio"; "A Verdade Vos Libertará".

O missionário Settimio Arturo Ferrazzetta, da ordem franciscana, foi o 1º bispo da diocese de Bissau, criada em 1977. "Homem Grande" da Igreja Católica de África, nasceu em Itália, em 8 de Dezembro de 1924, e morreu, com fama de santidade, em Bissau, em 26 de Janeiro de 1999.


O Hospital da Cumura foi construído nos anos 50 pelos Franciscanos de Veneza. Dedicava-se à Lepra. Hoje também, mas sobretudo à Sida e à Tuberculose.(**)

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



7. Até ao final do Século XIV, não parece haver ainda uma clara distinção semântica (nem muito menos conceptual) entre gafarias, albergarias, mercearias, hospícios, hospitais e estabelecimentos assistenciais similares. 

Algumas gafarias, como a de Lisboa (fundada provavelmente pelos Hospitalários, por volta de 1220) e a de Coimbra eram também conhecidas como hospitais de S. Lázaro, mas na prática não prestavam quaisquer tipos de cuidados, limitando-se pura e simplesmente a segregar os doentes em relação ao resto da população

Não temos números sob os "gafos" ou leprosos no nosso país e o resto da Europa. No séc. XVI ainda existiam: por exemplo, em 1514, dá-se por concluída a reforma geral dos legados pios e estabelecimentos assistenciais, com a publicação do Regimento de como os contadores das comarcas hão-de prover sobre as capelas, hospitais, albergarias, confrarias, gafarias, obras, terças e residos.


E hoje ainda está longe de ter sido erradicada. Na Guiné-Bissau, por exemplo, é ainda endémica. E, para se evitar o estigma social, já não há "leprosos", mas sim "doentes de Hansen". Mas de acordo com um inquérito de 1937, em Portugal, onde a doença começou a recrudescer a partir do séc. XVIII, haveria 1.127 casos, concentrados sobretudo na região Centro (distritos de Viseu, Aveiro, Coimbra e Leiria). No Sul, havia duas manchas, nos distritos de Santarém e Faro. (***)


8. Com o tempo, as gafarias ou leprosarias destinadas ao internamento dos "gafos" ou leprosos, passam, mais tarde a ser conhecidas por lazaretos, termo que deriva do facto de a lepra ser então igualmente conhecida como o mal de S. Lázaro. 

Os lazaretos, com a reforma da saúde pública, liderada por Ricardo Jorge (1899-1901), passam a ter outras funções,  nomeadamente o confinamento de passageiros, oriundos, em geral por via marítima, de países ou portos com surtos epidémicos de doenças "exótico-pestilenciais": por exempo, o lazareto da Trafaria (que já existia no séc. XVI, com essa função).

Endémica em Portugal, a lepra chega aos nossos dias: nos anos 40 do séc. XX,  é criado, sob inspiração de Bissaia Barreto (Castanheira de Pera, 1886-Lisboa, 1974), o Hospital-Colónia Rovisco Pais, na Tocha, que chegou a te
r um milhar de internados. (O internamento era compulsivo.)

Este estabelecimento assistencial foi criado graças à herança de José Rovisco Pais (Sousel, 1862 — Lisboa, 1932), um grande proprietário, lavrador, industral de cervejas, dono da Cervejaria Trindade, filantropo: em testamento doou aos Hospitais Civis de Lisboa as suas herdades de Pegões, qualquer coisa com sete mil hectares, que deram origem depois,  nos anos 50, à Colónia Agrícola de Pegões.

O Hospital-Colónia Rovisco Pais ficou conhecido pela sua natureza repressiva, senão mesmo totalitária (*). 

Nascido em 1947, no auge do Estado Novo, e na sequência da "luta contra a lepra"   (D.L. nº 36450, de 2 de Agosto de 1947)(***), a disciplina era implacável: até à década de 1960, havia uma cadeia privativa e os próprios médicos puniam os doentes com penas de prisão, por simples faltas ao regulamento como sair para o exterior sem autorização.

A partir de 1996, nas antigas nas instalações do Hospital-Colónia Rosvisco Pais, antiga "Leprosaria Nacional",  foi instalado o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro - Rovisco Pais.

(Continua)
_____________

Notas do autor:

(*) Alice Cruz - O Hospital-Colónia Rovisco Pais: a última leprosaria portuguesa e os universos contingentes da experiência e da memória. Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.16 nº 2, Rio de Janeiro,  Apr/June 2009 [Consult em 1/4/2020. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0104-59702009000200008].


RESUMO

"O Hospital-Colónia Rovisco Pais foi inaugurado em Portugal na década de 1940, com vistas ao tratamento, estudo e profilaxia da lepra, de acordo com modelo de internamento compulsivo, cuja configuração remete ao conceito de instituição total proposto por Goffman. Trata-se de um importante projeto higienista do Estado Novo. O seu paradigma educativo combinava elementos inspirados na medicina social europeia e na ideologia do regime ditatorial paternalista português. 


"O Hospital-Colónia será aqui ponderado como dispositivo disciplinar, desenvolvendo-se reflexão acerca do confronto entre o poder disciplinar e a experiência. A memória emerge como instrumento contingente para o acesso às práticas e aos significados intersticiais tecidos no quotidiano do Hospital-Colónia, buscando-se auscultar a experiência de seus ex-doentes como sujeitos políticos."


(**) Vd. poste de  21 de abril de  2011 > Guiné 63/74 - P8146: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (8): 14/12/2009, das 16 às 18h: Visita ao hospital de Cumura: lepra, sida, tuberculose... e compaixão

Vd. também poste de 13 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P344: O meu primeiro contacto com um leproso (Rui Esteves)

(***) D.L. nº 36450, de 2 de Agosto de 1947: "Organiza o regime jurídico do combate à lepra. Cria o Instituto de Assistência aos Leprosos, estabelecendo a sua orgânica, competências e funcionamento. Determina que a Leprosaria Nacional Rovisco Pais, passe a denominar-se Hospital-Colónia Rovisco Pais, que fica subordinado administrativamente aos Hospitais Civis de Lisboa, e dispõe sobre a sua estrutura, gestão financeira e assistência médica aos doentes."

quarta-feira, 25 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20773: Antropologia (39): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Despedimo-nos por ora do Cónego Marcelino Marques de Barros a quem a cultura luso-guineense tanto deve, praticando a tremenda injustiça de o deixar no olvido, como ele não tivesse sido o pioneiro na pesquisa da etnolinguística guineense, um laborioso ajuntador de termos crioulos, tendo mesmo organizado um dicionário e em artigos como este denota uma observação e um estudo pautados pelo possível rigor científico de quem se queixa, como ele faz quando se dirige ao Governador Pedro Inácio de Gouveia, "vejo bem que me devem ter escapado muitos desalinhos e incorrecções de frase, e mesmo erros na exposição dos factos, como é de esperar que aconteça sempre a todas as obras desta natureza feitas à pressa, na Guiné, sem livros, sem bibliotecas públicas, em quem se vê forçado a recorrer quase exclusivamente à memória dos seus esclarecidos amigos, à sua e aos seus apontamentos, e nada mais".

Um abraço do
Mário


Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes… (3)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 3.ª Série – Nº 12, 1882, publicou um artigo do Vigário-Geral da Guiné, Marcelino Marques de Barros, porventura o primeiro grande intelectual guineense, com o título “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens dos seus povos”. Marcelino Marques de Barros tem sido alvo de alguns ensaios, deplora-se que o conjunto da sua obra não tenha tido a republicação que se justifica, ele foi etnolinguístico e explorou, com os seus conhecimentos, a dimensão antropológica, como um verdadeiro pioneiro.

A espiritualidade é tema que o fascina, compreende-se, é vigário, é missionário, debruça-se sobre os outros credos, as outras práticas, teístas ou animistas, interroga-se, como vai escrever neste documento que comprova os seus dotes de investigador. Falando de Deus, diz que não é um negócio fácil ouvir um gentio (a não ser os mouros) pronunciar um nome qualquer que desperte a verdadeira ideia de falarmos de Deus: “Vulgarmente dizem como os Felupes que Deus é o firmamento azul, a chuva e as borrascas; que a sua voz e as suas armas são os raios e trovões, o que tudo nos leva a recordar até a poesia de Lucrécio. Os nossos pagãos consideram a Terra como a última morada das almas, e os Felupes e Bijagós acreditam na sua transmigração e todos prestam culto aos seus tótemes. A morte para um Bijagó não é mais do que um sono breve, pela certeza que têm de ser instantaneamente concebido no seu país; o Bijagó põe uma corda ao pescoço e aperta-a com a mesma facilidade com que pomos uma gravata”. Falando dos espíritos ou génios, diz que há os bons e maus, o irã, é espírito bom, os génios maus são diabos armados. Quanto a totemismo, fetichismo e idolatria refere que prestam culto a quadrupedes, répteis e aves. Observa que os mouros constroem templos para adorar Alá, os fetichistas têm aras e nas ruas, nas casas, nas florestas e à beira dos rios e dos lagos têm mesmo monumentos megalíticos e até recetáculo do sangue das vítimas.

Da religiosidade remete as suas observações para a habitação, géneros de vida e organização política. Quanto à habitação: “Os Felupes fabricam muitas casas de taipa, altas, espaçosas, ventiladas e muito limpas, os mais gentios fazem choças e cabanas de barro, de cana ou de mangue. Em toda a parte encontram-se habitações distintas e coletivas”. E quanto ao género de vida: “Cada raça segue um género de vida que lhe é peculiar. São sedentários os Cassangas, Felupes e Nalus; nómadas certas categorias de Fulas, seminómadas os Balantas e emigrantes os Manjacos da Costa de Baixo”. O seu apontamento sobre a vida doméstica é muito interessante: “As raças activas, tais como Felupes, Fulas e Balantas, quando não se acham empenhadas em guerras sanguinolentas andam à caça, à pesca, na roça dos matos, na lavra dos campos; outros, como os Cassangas, Papéis e Beafadas, quando não aparecem às portas das tabernas, aparecem empoleirados nas palmeiras de que extraem o vinho chamado de palma, ou então deitados indolentemente, dormem à sombra das árvores. As crianças quase todas andam nos campos a pastorear rebanhos”. A sua atenção vira-se para a vida social, política, intelectual e assim chegamos à família: “Por não haver entre esta gente o menor vislumbre daquele prestígio moral ou religioso que tornam a união conjugal indissolúvel, o marido é sempre senhor ou amante da sua mulher, que pode banir de sua casa sem prévia sentença de juiz, excepto entre os mouros, que possuem códigos de todos os processos civis e crimes. Os Mandingas herdam as concubinas de seus irmãos. O Nalu espanca o seu pai e herda as suas concubinas. O Felupe despreza e espanca a mãe. O Mandinga é extremoso pelos seus sobrinhos, e o Papel é doido por seus filhos, e todos consideram acto de barbaridade bater numa criança: pode impunemente lançar fogo a um arrozal, envenenar um rebanho inteiro e apedrejar a avó porque não haverá quem lhe arranque uma orelha”.

Faz os seus comentários ao direito de propriedade, às formas de alimentação e ao vestuário e expende considerações alargadas sobre a etnogenia (estudo da origem dos povos). Alude aos antigos impérios, às tribos sudanesas, aos reis Mandingas, parece cheio de boa vontade nesta pesquisa dos tempos ancestrais, pois sabe-se que não foi exatamente assim que as coisas se passaram, socorreu-se de narrativas orais, fantasiou acerca da escravatura dos Bijagós, vê-se que é uma etnia que lhe ocupa muita atenção.
E não deixa de ser curioso o que vai dizer sobre os Fulas, a sua vivência:  
“Os Futa-Fulas, que escrevem em árabe toda a sua história, contam que, no tempo em que a religião do Profeta se estendia como um turbilhão aos quatro ventos veio levantar no interior do Sudão as suas tendas um chefe que além de uma numerosa colegiada que o acompanhava trouxe um filho havido com a sua mulher Cumba. Morreu o chefe e na menor idade do seu filho foi o aluno mais instruído que tomou o encargo de governar a família. Quando o filho chegou à maioridade, o regente recusou dar-lhe as rédeas do Governo, até que por decisão dos velhos chegou-se à conveniência que se revezassem no Governo do novo Estado que depois de 600 anos constitui hoje uma potência, a mais civilizada de quantas há entre o Senegal e o Gâmbia, e entre o Deserto do Sara e as praias do mar oceânico. Quanto aos Fulas, consta com menos visos de certeza, que os rebanhos de Maomé, o Profeta, estavam entregues ao cuidado de um árabe que era casado com Sirá. Esta pequena família, ou os seus descendentes, acompanharam as caravanas que atravessaram o deserto até às terras dos Futa-Fulas aonde continuaram a vida nómada, essencialmente pastoril e agrícola; e com o seu algodão, leite e manteiga dos seus numerosos rebanhos compraram escravos que se multiplicaram entre si e que se chamaram depois Fulas-Djalons. A escravatura povoou as nossas praças e presídios de uma mistura híbrida de raças de todas as proveniências cujos filhos, depois de libertos e baptizados, tiveram nome de Grumetes, por se entregarem quase exclusivamente às lides de cabotagem comercial. Com o andar dos tempos, os oriundos do arquipélago de Cabo Verde, especialmente os soldados, tiveram filhos nas suas relações com as filhas dos Grumetes; as filhas dos Papéis, Beafadas, Mandingas e Fulas, algum tanto domesticados pelo comércio e pela religião cristã abandonaram os seus pais e o seu país para depois de baptizadas se casarem com os oriundos do referido arquipélago ou com os filhos dos libertos. Os europeus e os seus descendentes, multiplicando-se nas suas relações com as filhas do país, elevaram e aperfeiçoaram a raça dos aborígenes, oferecendo ao mesmo tempo um não pequeno contingente à estatística da população. É deste modo que o povo português indígena aumenta progressivamente como um fluxo indefinido do mar”.

Há para aqui muito consta e disse, a investigação histórica posterior encarregou-se de pôr alguma ordem em tanta consideração fantasista do amável Cónego Marcelino.

Estamos a chegar ao fim, não porque o trabalho do Cónego Marcelino esteja nas derradeiras linhas, é que ele vai entrar em considerações linguísticas, tema que merece ser versado em apartado especial, a sua escrita é empolgante, um só parágrafo, em jeito de despedida: “A língua mandinga, pela sua incomparável harmonia, elegância e facilidade de pronunciação, é a mais falada em toda a Senegâmbia; e por ser muito cultivada pelos mouros letrados, está elevada a um alto grau de perfeição”.

Assim nos despedimos até à próxima deste louvável pioneiro das ciências sociais e humanas da Guiné.

Nota: Recomenda-se vivamente a consulta dos seus elementos biográficos no site https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4878/1/LS_S2_04_JoaoDVicente.pdf
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Nota do editor

Vd. postes de:

11 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20723: Antropologia (37): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (1) (Mário Beja Santos)
e
18 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20746: Antropologia (38): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20746: Antropologia (38): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Não é de mais recordar que o cónego Marcelino Marques de Barros pode ser encarado como uma primeira glória científica da Guiné: por ser guineense de origem, por ter exercido o múnus de Vigário-Geral, pela sua aturada pesquisa no campo da etnografia, da etnolinguística, da antropologia, por ter deixado uma miniatura de dicionário português-crioulo. Nas últimas décadas, incluindo mesmo o período colonial, procedeu-se a um levantamento de lendas, provérbios, canções, mas curiosamente quem foi o pioneiro desse levantamento tem o nome de Marcelino Marques de Barros.
Muito beneficiaria a cultura luso-guineense da edição integral de todo o seu trabalho, ele não foi um cabouqueiro amador, acresce que tinha uma escrita culta e uma clara devoção à terra que o viu nascer.

Um abraço do
Mário


Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes… (2)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 3.ª Série – Nº 12, 1882, publicou um artigo do Vigário-Geral da Guiné, Marcelino Marques de Barros, porventura o primeiro grande intelectual guineense, com o título “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens dos seus povos”. Marcelino Marques de Barros tem sido alvo de alguns ensaios, deplora-se que o conjunto da sua obra não tenha tido a republicação que se justifica, ele foi etnolinguístico e explorou, com os seus conhecimentos, a dimensão antropológica, como um verdadeiro pioneiro.

O Cónego Marcelino não seria certamente detentor de informações exatas quanto à topografia guineense, o seu trabalho data de quatro anos antes da Convenção Luso-Francesa mas o que refere é inteiramente impossível, quanto a números. Ele escreve: “O domínio português nesta parte ocidental de África estende-se a 62 mil quilómetros quadrados, isto é, acha-se reduzido a pouco mais da quinta parte da antiga Senegâmbia Portuguesa. A sua população deve ser muito mais de 2,5 milhões, isto é, a quinta parte da população da Senegâmbia, que é seguramente de 14 milhões. Os rios mais importantes que retalham o continente são: Casamansa, S. Domingos ou Farim, Geba, Rio Grande, Tambalé ou Nalú e o Rio Nuno. E junto à embocadura destes rios temos o arquipélago dos Bijagós todo inteiro”. Bem curiosa a sua observação sobre a extensão da Senegâmbia, parece desconhecer que a presença portuguesa era quase epidémica, circunscrita a zonas do litoral, neste tempo o posto mais avançado era Geba, não distante de Bafatá.

Refere-se à topografia e depois faz um inventário de alguns dados etnográficos a que já se fez referência, como seja a saudação, os pactos e juramentos, a hospitalidade, o roubo, as correrias e abordou-se a epigamia, poligamia e poliandria. Há aqui dados curiosos que ele evoca: “Entre Bijagós, a mulher faz casa por suas mãos e recolhe o homem da sua preferência. Uma Balanta pode ter mil amantes, e querendo passar uma temporada previne o marido, dizendo: “Vou a uma entrevista”, e sem mais cerimónias abandona-o por muitos dias; mas ao regressar a casa é mal recebida, e pode mesmo ser castigada pelo marido se se apresenta com as mãos vazias. É de estilo trazer sempre alguma coisa: um balaio de arroz, uma cabra ou uma cabaça de leite”.

Falando do aborto e infanticídio, refere que os gémeos, os albinos e os partos monstruosos são, em geral, expostos nas florestas à voracidade das feras e das aves de rapina. Os Felupes, principalmente, constituem uma exceção, quanto aos gémeos, que consideram como um prodígio de fecundidade, com que os pais muito se engrandecem. Acerca da aleitação, observa: “As mães exageram tanto o dever de aleitar os seus filhos que não é raro encontrar rapazes de três a quatro anos que para toda a parte vão, tudo comem e tudo sabem, divertirem-se com os seios da mãe, como se ainda andassem ao colo”.

Não menos curioso é o que ele escreve sobre a circuncisão: “Em toda a Senegâmbia, é opinião minha, ninguém considera a circuncisão debaixo de um aspecto religioso; um Balanta pode ser circuncisado sem que por isso se considere islamita ou judeu; um Grumete pode ser circuncisado sem que para esse facto se considere pagão ou renegado. A circuncisão, pois, não é mais do que um manto sagrado, que envolve uma sociedade secreta, universal, terrível e admiravelmente constituída, com os seus sinais e com os seus símbolos, e aonde as raças, as cores, as religiões e as hierarquias desaparecem completamente. As festas da circuncisão são as mais aparatosas que se conhecem, e nelas se notam certos usos estranhos e singulares. Não há nada, enfim, mais interessante e mais curioso no estudo dos usos e costumes africanos do que essa cerimónia a que chamam fanado, insignificante na aparência, e que, contudo, é a origem das feições políticas das nações e a fonte dos heroísmos, de grande virtude e de atentados enormes. Ali se aprendem línguas para sempre desconhecidas do vulgo; ali se cortam as excrescências físicas e morais do homem; é ainda ali onde se entra no conhecimento de um nome semelhante ao Jeová dos hebreus, para não ser pronunciado senão uma ou duas vezes na vida. Eu provarei, em outro escrito mais desenvolvido, tudo o que venho de expor neste e noutros capítulos. Os Bijagós são os únicos que se não circuncisam”.

Falando de costumes, ele escolhe os agrícolas e os guerreiros, sobre os agrícolas diz o seguinte: “Enquanto que toda a terra é insuficiente para as ambições de um Balanta e de um Felupe, o Beafada, pelo temor de ser tido na conta de feiticeiro, não cultiva as suas terras mais do que o limitado no quadrado da distância em que tombou a sua enxadinha, arremessada com toda a força. Enquanto entre Bijagós os homens passam o tempo a fisgar peixe à beira-mar ou nos bosques a beber vinho de palmeira, as mulheres lavram as terras, semeiam e recolhem o mantimento para sustentar o marido e os filhos. E enquanto, finalmente, os Felupes e Fulas engordam os seus animais com arroz e milho, de que estão cheias as suas tulhas, os Cassangas, e não poucas vezes tribos Beafadas morrem de fome aos centos por ano".

Quanto aos costumes guerreiros, é esta a sua leitura: “As declarações de guerra são sempre feitas pelas tribos que reconhecem a sua superioridade numérica: uns, como os Futa-Fulas, só combatem com o fim de acharem nos despojos das povoações destruídas ou sujeitas, os meios de subsistência. Alguns combatem sempre em campo aberto, tais como os Felupes e os Futa-Fulas; os Papéis só ocultos por trás das árvores ou espalhados pelas moitas fazem uso das suas armas. O Balanta afronta as balas com uma espada em punho, e os Futa-Fulas disparam um chuveiro de flechas envenenadas nas grandes batalhas. E a cabeça do inimigo, separada do tronco, é o maior troféu que um guerreiro pode alcançar nos combates”. Estima que a antropofagia está radicada da Guiné quando escreve: “Os Felupes de Bote e Sélek são os últimos povos que há vinte anos perderam o hábito de devorar os seus semelhantes”. E procede a uma síntese do que são as doenças da região: “Algumas enfermidades há, muito vulgares na Europa, tais como a gota e a hidrofobia, que são desconhecidas nestes países; e algumas, ao contrário, são muito vulgares, como a elefantíase, a oftalmia, a hemicrania (tipo de cefaleia), a alienação mental e a misteriosa pedra escrófula, como lhe chamam vulgarmente, mal do sono”.

O Cónego Marcelino, percebe-se facilmente, sente-se fascinado com um conjunto de aspetos religiosos, e desenvolve o tema a partir das cerimónias fúnebres. Os tais selvagens de que fala só morrem em resultado de feitiços de um pobre diabo, sendo o cadáver metido numa tumba negra e levado aos ombros de quatro hércules, ao som de umas ladainhas. Como as cerimónias do enterramento podem demorar vários dias, para que a corrupção não incomode os vivos alimentam uma fumarada por baixo da barraca sobre a qual assentam o pobre morto. “E a minha pena recusa descrever os nauseabundos processos a quem sujeitam o cadáver. Por toda a parte se encontram sítios destinados para os enterramentos; porém, tribos há que enterram dentro de casa e por debaixo da cama dos vivos: é o costume dos Bijagós e Nalus. De duas maneiras, geralmente, cavam os gentios as suas sepulturas: horizontal e vertical. Uns sepultam os seus mortos como nós sepultamos os nossos, os Papéis e os Mandingas, por exemplo, outros no fundo da galeria horizontal, tais como os Felupes e os Beafadas. Quase todos os gentios envolvem os seus finados em panos e esteiras, e os mouros colocam os seus mortos sobre o lado direito com o rosto para o Oriente”.

OBS: - Recomenda-se vivamente a consulta dos seus elementos biográficos no site:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4878/1/LS_S2_04_JoaoDVicente.pdf

(continua)
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Nota do editor

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quarta-feira, 11 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20723: Antropologia (37): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2019:

Queridos amigos,
A referência a este primoroso trabalho do cónego Marcelino Marques de Barros não é o de uma mera referência cultural. Em termos científicos, ao nível das ciências sociais e humanas, é um trabalho pioneiro, talvez mesmo o primeiro de todos que saiu das mãos de um guineense. O antigo Vigário-Geral da Guiné era correspondente da Sociedade de Geografia, sentiu-se instado a alinhavar um punhado de notas, tudo apareceu rigoroso, conforme se sabe, fala no modo de saudar, nos pactos e juramentos, na hospitalidade, vai à família, aos costumes que podem ser agrícolas ou guerreiros, fala na morte e na sepultura, no modo de habitar, na vida doméstica, no vestuário, é o primeiríssimo etnolinguístico e poucas dúvidas tenho de que terá sido o pai da sociologia na Guiné, o percursor dos estudos linguísticos.
Este venerando investigador que se preparou em Cernache do Bonjardim veio a falecer em Portugal, ainda na I República.

Um abraço do
Mário


Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes… (1)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 3.ª Série – N.º 12, 1882, publicou um artigo do Vigário-Geral da Guiné, Marcelino Marques de Barros, porventura o primeiro grande intelectual guineense, com o título “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens dos seus povos”. Marcelino Marques de Barros tem sido alvo de alguns ensaios, deplora-se que o conjunto da sua obra não tenha tido a republicação que se justifica, ele foi etnolinguístico e explorou, com os seus conhecimentos, a dimensão antropológica, como um verdadeiro pioneiro. Dirige-se em primeiro lugar ao Governador da Guiné, Pedro Inácio de Gouveia, nos seguintes termos:  
“Ponderosos motivos de sincera admiração e reconhecimento com o ilustre governador me levaram gostosamente a escrever esta breve notícia sobre os usos e costumes do meu país. E apesar da diligência que nisso empreguei, vejo bem que me devem ter escapado muitos desalinhos e incorrecções de frase e mesmo erros na exposição dos factos, como é de esperar que aconteça sempre a todas as obras desta natureza feitas à pressa, na Guiné, sem livros, sem bibliotecas públicas em quem se vê forçado a recorrer quase exclusivamente à memória dos seus esclarecidos amigos, à sua e aos seus apontamentos”.

Lança-se num esboço sobre o mundo étnico, ele que se diz desconhecedor das inextrincáveis raças que povoam a Senegâmbia: fala dos Beafadas habitando as margens do Geba e Rio Grande, dos Mandingas, dos Fulas, dos Bijagós, Nalus, Brames, Papéis, Balantas, Felupes e mestiços. Reconheça-se que esta divisão tem imperfeições, o curioso é que o investigador tenta esmiuçar as diferentes subdivisões étnicas, caso dos Fulas onde coloca os Turoncas, Futa-Fulas, Fulas livres e Fulas Pretos ou escravos. Passando para a etnografia, observa o modo como os povos se saúdam. Diz que “quase todos os habitantes desta costa saúdam como nós e com apertos de mão. Os Felupes cumprimentam as pessoas de elevada hierarquia abanando as mãos juntas. Os Papéis de Cacheu levam bruscamente o indicador aos olhos da gente. Os mouros, deixando as suas sandálias à porta de quem muito respeitam, entram dizendo salamaleques. O Fula leva um século a fazer os seus cumprimentos: pergunta pela saúde do seu interlocutor, de toda a sua família, individualizando; pelo estado de todas as suas coisas, especificando; de todos os seus negócios feitos e por fazer".

Passando para os pactos e juramentos, refere que estes se fazem sempre perante duas os mais testemunhas e diz o seguinte: “Os parentes, embora ausentes, são sempre fiadores natos de qualquer pacto havido entre duas ou mais pessoas; no caso de rescisão, os parentes do culpado são reduzidos ao cativeiro e vendidos. O gentio não tem ideia do que seja palavra de honra e não se julga obrigado a dar cumprimento aos seus compromissos sem que os ligue a um juramento. O juramento individual é o que fazem aos seus manes ou aos grandes feitiços da sua nação. O juramento mais solene de paz e amizade entre duas nações ou tribos contendoras consiste no enterramento de pólvora e bala, acompanhado de outras cerimónias de rito sobre as asas de um ídolo ou feitiço”.

E passa para novo tema, a hospitalidade, praticada pela maior parte dos povos de um modo irrepreensível: “Até se julgam na obrigação de defender o seu hóspede dos danos ou ultrajes que possa sofrer dentro da sua casa ou fora dela, e, sendo preciso, cumprem este dever à mão-armada. Por excepção, entre os Balantas, ladrões famosos, não raras vezes o hospedado goza dos benefícios da hospitalidade enquanto não dá um passo fora da cabana ou enquanto não faz as suas despedidas”.

O tema agora é o tabu, e bem curioso é o seu punhado de observações: “Assim como os insulanos da Polinésia, os nossos gentios envolvem qualquer coisa ou pessoa num manto de prestígio sagrado; e os símbolos que representam este acto supersticioso são principalmente as manilhas de ferro, búzios ou ramos de palmeira. Na pessoa ou coisa sagrada não se pode tocar, sob pena de morte, que tarde ou cedo sobrevém de uma maneira misteriosa, isto é, por meio de um veneno mais ou menos lento”.

Passamos agora para a vindicta, dizendo o aprendiz de antropólogo que há para ali selvagens que são vingativos: “Qualquer membro de uma tribo é assassinado, justa ou injustamente, não se recorre ao tribunal dos reis ou dos grandes; qualquer dos filhos, e na falta destes seus próximos parentes, ficam na imprescritível obrigação de espingardear o assassino, e, na sua ausência, qualquer membro da sua tribo”.

Tema recorrente em todas as investigações antropológicas é o roubo. Eis o que nos diz Marcelino Marques de Barros: “Os Balantas roubam sempre, dia e noite, e em toda a parte; e muito se honram com isso, não como acto em si digno e meritório, mas como uma arte por onde se avalia a destreza, a astúcia e a audácia de um homem. O filho família de um Balanta que não mostra desde cedo suficiente habilidade na arte de furtar é desprezado pelos seus pais como ente inútil e efeminado. Estão convencidos que todo o homem tem direito de matar um ladrão apanhado em flagrante”.

Recordemos que estamos no século XIX e que a presença portuguesa é ténue, faz todo o sentido o que ele escreve sobre as correrias:
“As nações guerreiras armam-se muitas vezes, e vão, junto aos caminhos, atacar as caravanas para as despojar das suas mercadorias, ou então, envolvidos nas sombras de uma noite escura, assaltam de improviso uma aldeia inteira, metendo tudo a ferro e fogo, e arrastam as donzelas e as crianças para terras longínquas, onde as vendem ou as matam, quando não encontram quem as inverte por compra ou resgate”. E deixa uma palavra sobre a pirataria, as pirogas de guerra que atacam embarcações entre Bissau, Bolama, Pecixe e Cacheu.

Aborda igualmente a epigamia, a poligamia e a poliandria. Escreve o seguinte:
“Em toda a parte nesta costa o pai respeita a filha, o filho, a mãe e o irmão a irmã. O direito de contratar uma união conjugal é sempre restrito a certas condições. A idade entre os 14 a 20 anos é o limite médio em que geralmente têm lugar os casamentos. Exceptuando os Bijagós, entre os quais nenhumas condições existem para toda a espécie de união conjugal, gentios há que não cedem as suas filhas em casamento sem que seja de antemão comprada a seus pais por 60 a 200 mil réis, que se dão e se recebem a troco de presentes, isto especialmente entre Papéis e Mandingas. Por causa dos maus tratos, a mulher volta a casa dos seus pais, que ficam na obrigação de restituir os presentes que receberam ou o seu valor”.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20584: Antropologia (36): As insígnias de autoridade dos Felupe e Marcos no Chão Felupe, por Lúcia Bayan (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20588: Manuscrito(s) (Luís Graça) (177): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte II


Guiné > Algures > s/d > Manel Djoquin, com o seu icónico velho Ford, de matrícula G-804, a sua caçadeira e um dos seus ajudantes locais... (Dizem que um deles terá sido o Kumba Yalá, quando jovem... Nasceu em Bula, em 1953 e morreu em Bissau, em 2014, aos 61 anos; foi presidente da república, entre 2000 e 2003).

Foto (e legenda: © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A vovó Nené


A Julinha


Cabo Verde > Santiago > Praia > s/d > c. 1930 > Manuel Joaquim dos Prazeres éra um apaixonado por carros e corridas de carros.. E tinha, em sociedade, uma oficina de reparação de automóveis, a Auto Colonial, na Rua Sá da Bandeira (vd. pág. 29)


Guiné > s/l > s/ d (c. 1950 > O Manuel Djqoquim, numa das suas poses "cinematográficas" (v. pág. 80)

Fotos e legendas (2016): página do Facebook, Lucinda Aranha Antunes - Andanças na Escrita (Com a devida vénia...).


1. Notas de leitura:

Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.

A autora chama "romance" ao seu livro de memórias da família (*)...Na realidade, é um conjunto de histórias de vida, à volta da figura do "africanista" Manel Djoquim, e das "matriarcas" da família, a Julinha, sua segunda esposa, e a "vovó Nené", a ama das filhas e depois cozinheira, vinda da Praia, Santiago, para a casa de Lisboa, onde viveu mais de 60 anos, perfeitamente adotada e integrada na família (cap 1, pp. 9 e ss.; e cap 5, pp. 58 e ss.).

Esclareceu-nos a autora, Lucinda Aranha, a mais nova das filhas do Nequinhas e da Julinha, já nascida em Lisboa: "Efetivamente nunca fui à Guiné ou a Cabo Verde. Para mim,  embora o livro gire à volta do Manel Djoquim, é um livro de mulheres onde dominam as 2 matriarcas. Este trio constitui as 3 personagens mais importantes." (*)

Na contracapa pode ler-se:

"A busca de uma vida melhor. O encontro com a aventura e o desconhecido. A liberdade de uma nova terra. Os encontros e os desencontros de uma vida amorosa"...

Na Guiné andava sempre armado...
Era uma inveterado caçador (pág. 71)
Esta nossa amiga, que nunca viajou, fisicando falando, até Cabo Verde e à Guiné-Bissau, acabou por
escrever um livro que é também uma "hino de amor" àquelas duas terras por onde andou, viveu, amou, trabalhou o seu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres (1901-1977). E um "hino de amor" aos seus pais, aos amigos dos seus pais, às suas manas, à sua ama, escrito de resto com delicadeza e inteligência emocional para não ferir suscetibilidades, até porque há muitas pessoas vivas: as irmãs, os amigos, os seus descendentes... Daí a autora chamar "romance" a este livro.

O livro tem 13 capítulos e 169 pp, onde o crioulo se mistura, saborosamente, com o português. Mas todas as falas ou expressões em crioulo têm tradução, em nota de rodapé, como a fala da vovó Nené (Maria Mendes, no romance): "C'uzas di vida, sima Deus crê. Mim nasci lá lundji, badia di pé ratchado e vem vivi e ve morri cum sinhóra e sus filhu fèmia em Lisboa" ["Coisas da vida, como Deus quer. Nasci longe, vadia de pé rachado e vim viver e morrer com a senhora e as filhas em Lisboa".] (p. 58).

Falando do feitiço de África, tudo começou, por Cabo Verde, onde Manel Djoquim, chega, em 1922, instalando-se na Praia onde começa por trabalhar, como mecânico, na Central Elétrica. Em 1930, casa-se com Tonha, "filha da terra" (pág. 33)., de quem tem duas filhas e um rapaz. 

A alfacinha Julinha, 11 anos mais nova, , aparecerá mais tarde, na viragem dos anos 30 (pp. 45 e ss.). Desta relação,  nascem, na Praia, duas irmãs da Lucinda... Em 1944, a família ruma até Bolama, onde nasceu uma terceira filha... Em 46, a Julinha e as filhas, mais a ama cabo-verdiana,  regressam a Lisboa, onde nasceu  a Lucinda.

Nascido em Lisboa, em 1901, em plena "belle époque" (, que só o era para uma minoria privilegiada da alta nobreza e da burguesia em ascensão...), Manuel Joaquim terá visto em África uma tripla oportunidade para a sua vida... Na época, África estava longe de ser um "destino comum" para os portugueses que procuravam uma "vida melhor", longe da  metrópole, e dos tempos difícdeis do pós-guerra, mas também a "aventura" e o "desconhecido", a par da "liberdade" e dos "amores".. O Brasil era então,  de longe, o grande destino da emigração portuguesa.

Território português durante séculos, povoado por escravos e por europeus,  Cabo Verde não foi, mesmo assim, objeto de grandes memórias escritas por parte das gentes metropolitanas que naquelas ilhas se fixaram ou lá viveram durante uns largos tempos. Daí também o interesse adicional deste livro, com apontamentos e fotos interessantes sobre o quotidiano da vida na Praia, onde o Manel Djoquim viveu, mais de duas décadas,  entre 1922 e 1944. (1922 é uma data aproxiamda, em rigor a autora não sabe o ano exato em que o pai se ficou na Praia.)

Mais sorte terá tido, nesse aspeto,  o Mindelo, na ilha de São Vicente, cidade aberta,  cosmopolita, e que teve sobretudo o privilégio de ter, durante décadas, o Foto Melo, um estúdio fotográfico que atravessou um século (1890-1992), tendo documentado praticamente toda a vida (política, militar, económica, social, cultural...), a demografia e  a geografia  da ilha...

"O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim", dado à estampa em 2018, parece-nos ser, de algum modo, um desenvolvimento do livro anterior da autora, "No reino das orelhas de burro" (Lisboa, Colibri, 2012, 106 pp.), baseado também nas estórias  de homens e bichos que povoaram a sua infância (***)...

Na obra, agora em apreço, a autora baseou-se numa exaustiva pesquisa documental (escrita e fotográfica), recorrendo ao arquivo da família mas também e sobretudo às suas recordações de infância, adolescência e juventude  (o pai morreu quando ela estaria já  à beira dos 30), bem como a entrevistas a familiares e amigos do pai e da família, do tempo de Cabo Verde e da Guiné. Pai que é uma personalidade complexa e contraditória, conservador, puritano, moralista, mas também anticlerical, aventureiro, inimigo das corridas de touros e do fado,  e em termos político-ideológicos um admirador de Salazar tanto quanto de Amílcar Cabral...

A autora consultou igualmente a escasssa imprensa local, dessa época, "O Eco de Cabo Verde" (, com início em 1933) e o "Arauto", primeiro semanário e depois diário, que se publicou em Bissau, de 1943 a 1968. Teve, também, verdade se diga, uma boa ajuda dos nosso blogue e dos nossos camaradas e amigos que ainda conheceram o Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, durante a guerra... pelo menos até 1970/71... (A PIDE/DGS e as autoridades militares acabaram por impedi-lo de deambular livremente pelo  mato, com a sua carriplana, alegando razões de segurança; e isso foi "o princípio do fim": em 1973 tem um AVC,  já em Lisboa, e morre quatro anos depois, precisamenre em 25 de dezembro de 1977.)

A "morabeza" cabo-verdiana  está muito bem retratada no capítulo II ("Na cidade da Praia" (pp. 28-44).  Há ali personagens (amigos da tertúlia do Manuel Djoquim) que mereceriam um outro deenvolvimento num romance de maior fôlego: são homens (, não entram aqui mulheres...) das relações de amizade e convívio do futuro homem do cinema...(que, de resto, coneça aqui,  na Praia, a sua carreira de empresário de cinema, prosseguida depois , em 1944, em  Bolama,  onde se fixa, a convite da Associação dos Bombeiros locais, para dar sessões de cinema ao livre, com documentários sobre a II Guerra Mundial). (**).

"Além de mecânico da Central [Elétrica], de dar uma mãozinha na Marconi, fizera-se sócio da oficina-garagem do Pires [, a Auto Colonial,], abrira uma casa de comércio, dessas que vendem um pouco de tudo, dedicara-se à projecção de filmes.

"Ademais lucrava com a comodidade de a Central ficar  perto do cinema, o Teatro Africano, rebatizado  Cineteatro Virgínio Vitorino pelo Estado Novo, que desconfiara do nome primitivo, censurando as veleidades autonomistas africanas.

"A sala  era-lhe subalugada pela Cãmara, que administrava também a luz. Morava então na rua  Serpa Pinto, mesmo junto ao cinema e à Central, numa casa com quintal, árvores e fruta-pão e bananeiras e muito espaço para a criançada que ia nascendo e para os cães e os gatos de que gostava de se rodear.  A casa comercial e a oficina ficavam na rua Sá da Bandeira, a rua mais larga da cidade"  (pág. 23).

Numa terra assolada por secas cíclicas, a fuga à fome, à morte e à pobreza fazia-se muitas vezes emigrando para a Guiné e também para São Tomé e Príncipe. Para os cabo-verdianos,  a vida na Guiné era-lhes mais fácil, "ou não fossem mais estudados,o que lhes garantia bons cargos, posições de chefia" (p.33).

Este e outros temas eram pretexto para a cavaqueira, tal como a chegada á ilha de  exilados políticos, quer ainda no tempo da República como depois durante a Ditadura Militar e o Estado Novo: o coronel  Fernando Freiria ou o médico militar Carlos Almeida, são dois exemplos citados.

Também teve eco, naquela tertúlia,  a "grande escandaleira [que] foi o ataque ao crioulo e aos mulatos no 1º Congresso de Antropologia Colonial realizado no Porto, em setembro de 34. O dr. Luís Chaves, conservador do Museu Etnológico, cheio de zelo ariano, defendendeu que os mestiços eram seres inferiores, degenerados, incapazes de produzir obras literárias" (p. 37)... Com isso, amesquinhavam-se grandes escritores crioulos como o Fausto Duarte, autor do romance "Auá", que ganhara justamente o 1º prémio do 1º Concurso de Literatura Colonial, e em defesa do qual veio a terreiro o Juvenal Cabral, pai do Amílcar Cabral, nas páginas de "O Eco de Cabo Verde".

Depois de 1936, há outro motivo de conversa,  a abertura  da "colónia penal" do Tarrafal, na ilha de Santiago  (p. 41). E, e ainda antes de (e durante)  a guerra, as histórias dos alemães que, apesar da neutralidade do governo de Salazar, não se coibiam de ir a terra, desembarcados dos submarinos que patrulhavam o Atlântico, quer ´para se reabastecerem quer para fazerem jogatanas de futebol com a miudagem... (pp. 41/42).

Mas o acontecimento mais marcante desta época, pelo insólito, foi a passagem do zepelim, em 1934...

No livro "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim" (Alcochete: Alfarroba, 2018),
Lucinda Aranha faz referência a este memorável evento nos termos seguintes termos:

" (...) mas nada os fez [ao Manel Djoquim e amigos de tertúlia]  dar tanto à língua como o espetácul nunca visto do zepelim que, na manhã de 12 de junho de 34, pairou sonre o céu  da Praia, em espera de um passageiro alemão que resolveu ìr às comprars de sedas e outros artigos japoneses na casa Serbam. Foi um embascamento que os fez abandonar casa e trabalho " (...) (pág. 34)

Recorde-se que o zepelim era um grande dirigível, rígido,com carcaça metálica, de tecnologia e fábrico alemães, usado para travessias do Atlântico na década de 1930.


Cabo Verde> Ilha de São Vicente > Mindelo >  S/ d > A foto ilustra a passagem dum zepelim mas não tem datas.  Foto do álbum de Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001), pai do nosso camarada Hélder Sousa, natural de Vale da Pinta, Cartaxo, ex-1º Cabo n.º 816/42/5 da 4ª Companhia do 1º Batalhão de Infantaria do  R.I. 5,  despois integrado no RI 23... A foto tem a data de 18 de Outubro de 1943 e na legenda refere ser 'recordação de S. Vicente'. O original é "foto Melo". (****)

Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2009). Todo os direitos reservados. [Edição e Legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

É uma raridade esta foto: ao que parece, dataria de 1937, ano e que o Mindelo foi sobrevoado por um dirigível que pretendia abrir uma carreira entre a Europa e o Novo Mundo, o LZ 129 Hindenburg, de fabrico alemão, origulho do regime hitleriano:

(...) Reza a História, que o dito aparelho, uma das grandes apostas à época para o transporte de passageiros, adoptando os mesmos tipos de luxos dos grandes 'Paquetes Transatlânticos' que estabeleciam as ligações entre os três continentes, Europa, África e Américas, fez só uma viagem ligando os dois continentes. Partiu da Velha Europa para o Novo Mundo - o continente Americano, tendo passado sobre Cabo Verde.

"Mindelo ficou na sua rota e Tuta [Guilherme Melo] registou esse momento, único! O aparelho passou sobre a Ilha de São Vicente, tendo largado três sacos de 'Mala Postal' - a forma complicada como se dizia correio - e teve um fim trágico ao aterrar em Lakehurst nos USA [, em 6 de Maio de 1937].

"Para os arquivos, fica mais esta imagem, só possível em Mindelo, pelo manancial de informação que corria na ilha, por causa dos cruzamentos dos cabos submarinos do Telégrafo Inglês e da Italcable (Italianos) e do seu movimentado Porto, também à época local de passagem obrigatória para os barcos que cruzavam o Atlântico Sul" (...)". 
Fonte: sítio Mindel Na Coraçon

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 14 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20558: Manuscrito(s) (Luís Graça) (176): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte I

(**) Vd. postes de 10 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14238: Fotos à procura de ... uma legenda (51): Manuel Joaquim dos Prazeres, empresário de cinema e caçador, Cabo Verde (1929/1943) e depois Guiné (1943/73)... Fotos da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, com amigos (Lucinda Aranha)

(***) Vd. poste de 15 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12991: Tabanca Grande (433): Lucinda Aranha, filha de Manuel Joaquim dos Prazeres que viveu em Cabo Verde e na Guiné entre os anos 30 e 1972, e que era empresário de cinema ambulante

(****) Vd. poste de 9 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4926: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, S. Vicente, 1943/44 (Hélder Sousa)