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sábado, 8 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22181: Os nossos capelães (16): Arsénio Puim, vítima da ira de César por mor de Deus e da sua consciência de cristão e português (Luís Graça, "O Baluarte de Santa Maria", maio de 2021)

1. O Miguel Puim, filho do nosso camarada Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS&, CCS/BART 2917 (Bambadina, 1970/72) , mandou-nos, em 15 de março passado, a seguinte mensagem:


Caro Luís

Espero que se encontrem bem e de saúde.

Volto ao contacto dado que “O Baluarte”, jornal da Ilha de Santa Maria, de onde o meu pai é natural, irá efetuar uma edição onde reunirá vários artigos em sua homenagem.

Como se recordará, enviou-me no ano passado o seu simpático testemunho sobre o meu pai (*). Gostaria de incluir nesta edição d’ “O Baluarte” o seu artigo de forma a cobrir a vertente de capelão militar e opositor ao Estado Novo e à guerra colonial.

Entendo que o seu excelente testemunho do ano passado não requereria grande atualização, não fosse o limite dos artigos a publicar, que no caso é de 5.000 caracteres com espaços (atualmente o texto tem mais de 24.000 caracteres). Antecipando que posso contar com a sua participação, vinha assim pedir que me enviasse o seu artigo atualizado, cumprindo com esta dimensão.

Uma nota para referir que, dado que a publicação já não se encontra associada ao aniversário, estas referências seriam de excluir.

Pode confirmar se posso contar com o seu artigo e se me poderá enviar este artigo até 6 de abril?

Terei todo o gosto em fazer chegar o conjunto dos artigos que serão publicados para que possa juntar ao blogue, se assim entender.

Um abraço

Miguel Puim


2. Depoimento de Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, a publicar, neste mês de maio, no jornal "O Baluarte de Santa Maria", mensário (II série) que se publica na  ilha de Santa Maria, da Região Autónoma dos Açores, desde 1977, e de que o Arsénio Puim foi um dos cofundadores.
 

O Arsénio Puim foi alf mil capelão, CCS / BART 2917, Bambadinca (maio 70/ maio 72), sendo natural da ilha de Santa Maria, RA Açores: com 85 anos, vive hoje na ilha de São Miguel, e é enfermeiro reformado. 


Arsénio Puim, vítima da ira de César por mor de Deus e da sua consciência de cristã e português (**)

Luís Graça

 (in "O Baluarte de Santa Maria", maio de 2021)


Conheci o Arsénio Puim como capelão militar, no leste da Guiné, em Bambadinca em meados de 1970, em plena guerra do ultramar ou guerra colonial (como se queira). 

Convivemos cerca de 9 meses. Regressei a casa em março de 1971 e ele seria expulso da Guiné dois meses depois. Só voltaríamos a encontrarmo-nos quase quatro décadas depois, em 24 de maio de 2009, em Lisboa, na casa dos seus filhos, na altura estudantes universitários.

Mas a imagem que eu sempre guardei dele era a da serenidade, reflectindo a sua maneira de ser e estar, como homem e açoriano, a par da sua coragem e o seu amor à liberdade, à verdade e à justiça Devo , todavia, dizer que não éramos íntimos: eu não ia sequer à missa e, portanto, não posso falar das suas célebres homilias da paz, mal recebidas pelo poder político-militar. Conheci-o melhor, isso sim, quando lhe editei a série “Memórias de um alferes capelão”, publicada no nosso blogue. E que é um notável documento humano e literário.

O alferes miliciano capelão Puim era o mais civil, o mais paisano, de todos nós. Nunca o vi armado (, recusou a G3 que lhe foi distribuída), nas colunas logísticas, quando se deslocava, com frequência, entre a sede do batalhão, em Bambadinca, e os diferentes aquartelamentos e destamentos do sector (Xime, Enxalé, Missirá, Mansambo, Xitole, Ponte dos Fulas)… Ou quando se deslocava a Bafatá onde confraternizava com os missionários italianos do PIME (o Pontifício Instituto para as Missões Exteriores).

Confirmei, em 2009, essa impressão inicial: continuava a ser um homem calmo, sereno, sábio, sem uma única ruga de rancor ou amargura, muito menos, ódio. Não posso, em rigor, testemunhar da importância do seu papel na assistência religiosa e no apoio psicológico, moral e espiritual aos militares do setor L1 (Bambadinca). Sei que esse papel foi-lhe requerido em momentos difíceis do batalhão como, por exemplo, no subsetor do Xime, onde perdemos 6 camaradas, e 9 foram gravemente feridos, em 26 de novembro de 1970. O Puim ajudou os camaradas do Xime, da CART 2715, a fazer o luto.

Sei que era uma pessoa querida entre os homens do batalhão e subunidades adidas (como era o caso da minha africana CCAÇ 12), com uma presença discreta mas frequente nos quartéis do mato, pautando sempre o seu comportamento por um padrão de isenção, frugalidade, imparcialidade, austeridade e até de pudor.

Foi a sua discreta mas firme intervenção a favor de um grupo de prisioneiros, população civil, incluindo velhos, mulheres e crianças, que viviam sob controlo do PAIGC (, em condições miseráveis, diga-se em abono da verdade, esfarrapados, doentes, subnutridos), que lhe terá valido a ira de César contra os desígnios de Deus.

O Puim, inteirado da situação de injustiça, condoeu-se daquela gente e começou a visitá-los. Levava leite às crianças. E protestou. Era, de resto, um homem que não se calava, como não se calou noutras situações que feriam a sua consciência de cristão, homem e português.

Numa das suas homilias, num domingo de Abril de 1971, o Puim abordou este tema, doloroso, para ele... O tratamento dos prisioneiros nem sequer estava de acordo com a política, superiormente definida por Spínola, e consubstanciada no slogan “Por uma Guiné Melhor”... Terá sido a partir daqui que ele foi denunciado, e que em Maio de 1971 surge uma famigerada "ordem de Bissau" para ele se apresentar no "Vaticano" (as instalações dos capelães militares em Bissau)... O Puim tinha, pois, razão para se considerar duplamente maltratado pela instituição militar e pela hierarquia religiosa.

Mais do que falar, o Puim sabia ver, observar e ouvir como ninguém. E tinha uma grande curiosidade pela cultura da Guiné, incluindo o(s) seu(s) crioulo(s). Tinha, além disso, um espírito ecuménico, tendo participado inclusive em cerimónias religiosas, com outras confissões, em que se orou pela paz.

Deixem-me acabar o meu depoimento com o meu aplauso a este antigo capelão militar (para além de meu camarada e depois amigo): ele merece todo o apreço por, no cumprimento da sua missão castrense e espiritual, nunca ter descurado as suas obrigações como pastor da Igreja de Cristo... mas também como português.

O que eu quero sublinhar é a sua atenção, solicitude, disponibilidade, carinho, amor, solidariedade, caridade e compaixão para com os mais indefesos, as mulheres, as crianças, os homens, os velhos da população civil, independentemente da cor da pele, da religião, da etnia, da origem, do partido...

A grande diferença em relação a nós, militares, operacionais ou não, mais novos do que ele, é que o Puim ganhava-nos em maturidade humana, em sensibilidade sociocultural, em abertura ao outro, em generosidade mas também em frontalidade e coragem moral... Ele convivia com a população, e escrevia no seu caderninho notas sobre esses contactos... O famoso caderninho que lhe seria mais tarde confiscado e só devolvido a seguir ao 25 de Abril…e que deveria ser passado a livro! (***)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

9 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20957: (In)citações (160): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (a): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)

11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20962: (In)citações (161): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (b): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)



(***) Vd. também aqui o poste 8 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20952: (In)citações (147): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte II: Mais um de nós (Tony Levezinho); Parte III: O único santo que conheci em Bambadinca (Luís Graça)

(...) Versos do nosso editor Luís Graça, que noutra encarnação era o Henriques e foi amigo do único capelão, para mais açoriano de Santa Maria, que conheceu no TO da Guiné:

Para o único santo que conheci em Bambadinca
o nosso bom amigo e camarada Puim


Arsénio Puim, camarada, parabéns,
Por mais um aninho de vida, pá,
E oxalá, enxalé, inshallah!,
Seja a saúde o melhor dos teus bens.

Só nos serve p’ra sermos livres e felizes,
Enquanto andamos cá por esta terra,
Com lembranças de uma antiga guerra,
Em que do mal fomos maus aprendizes.

Ah!, já não és mais o bom ‘padre-capilon’,
Em Bambadinca, cova do lagarto,
E dos ‘cães grandes’ ficaste bem farto,
Nunca auguraram nada de bom.

Da Guiné, a todos nós, a ti e a mim,
Uma certa memória nos ficou,
Sítios onde Cristo nunca parou,
E outros qu’ amaste, meu santo Puim.

Nhabijões, Samba Silate, Mero ou Xime,
São geografias, são emoções,
Não há rancor nos nossos corações,
Mesmo sabendo que toda a guerra é crime.

Enterraste os mortos, e dos vivos cuidaste,
Ajudaste-nos a fazer o luto,
Exorcizaste o mal absoluto,
Mas sabemos o preço que pagaste.

Têm um preço a justiça e a liberdade,
Que nem todos nós queremos pagar,
Teu bom exemplo é de recordar,
P’la camaradagem e amizade.

Luís Graça, na Lourinhã,
na ponta mais acidental do continente europeu,
(,aqui donde se ia a Nova Iorque a pé,
há 150 milhões de anos,)
e hoje confinado, na sequência da pandemia de COVID-19
(de que Deus nos livre!),
8/5/2020

Outros postes de homenagem ao Arsénio Puim, editados em 8 e 9 de maio de 2020, por ocasião do seu 84º aniversário:


8 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20954: (In)citações (148): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte IV: o termos vivido e sofrido a mesma contradição numa realidade que nos obrigou, cada um de sua maneira, a uma reviravolta na vida (Lino Bicari)

Guiné 61/74 - P22180: Parabéns a você (1961): Arsénio Puim, ex-Alf Graduado Capelão da CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/71)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de Maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22171: Parabéns a você (1960): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835 (Gandembel e Nova Lamego, 1968/69)

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21425: Efemérides (337): O 4 de Outubro, dia do meu mentor espiritual, Francisco de Assis (1181-1226)... É uma ocasião também para lembrar os 7 capelães do Exército, no CTIG, que eram da Ordem dos Frades Menores (João Crisóstomo, Nova Iorque)


João Crisóstomo, luso-americano, natural de Torres Vedras, conhecido ativista de causas que muito dizem aos portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes... Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona; ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque; tem  cerca de 120 referências no nosso blogue.


1. Mensagem do João Crisóstomo 
 
Data - 04/10/2020, 21:01
Assunto - 4 de Outubro, Dia de São Francisco de Assis


 Caríssimos irmãos:

Entre telefonar para Montariol, Varatojo, Portela de Leiria e Seminário da Luz escolhi o velho Varatojo para um abraço mais directo.  Falei com o sr. P. Vitor Melícias que me prometeu transmitir ao P. Castro e demais residentes o meu abraço de saudades e de Paz e Bem. E como não dá para falar a todos vocês pelo telefone tenho mesmo de usar estas possibilidades que as novas tecnologias de múltiplos endereços proporcionam.

Este abraço vai pois para todos vocês também, para que o espírito do Pai Francisco continue a nortear as nossas vidas e o nosso viver.

E se todos os membros de outras ordens justificadamente lembram e celebram os seus fundadores, é gratificante verificar o lugar especial de carinho e afecto com que "o nosso" Francisco de Assis é celebrado: 

 Num mundo tão egoista como este em que vivemos hoje, o seu desinteresse por coisas “materiais’, o seu amor pela natureza em todas as suas vertentes é de tal maneira inspirador que até o próprio Papa achou pertinente escolher o nome de Francisco. E se não de outra maneira, pelo menos como protector dos animais ele já era conhecido de muita gente, agora verifico com muita satisfação a maior relevância com que em toda a parte neste dia o seu espírito de simplicidade e de desinteresse é lembrado e apontado como exemplo.

Regozijemo-nos todos os que logo de pequenos tivemos a sorte de dele ouvir falar e o termos agora como guia e mentor do nosso viver.

Um apertado abraço de PAZ e BEM.

João Crisóstomo
Nova Iorque

2. Comentário do editor LG:

João. como sabes o nosso blogue é ecuménico, mas "laico",  cabem cá todos os crentes e não-crentes, homens e mulheres de paz e boa vontade... 

Não sabia que o teu "mentor espiritual" tinha sido o Francisco de Assis (c. 1181-1226) (... a par do padre Vitor Melícias).  A maneira como falas dele é tão genuina que eu achei por bem publicar o teu poste, de resto sabendo que tu e outros milicianos que fizeram a guerra colonial na Guiné passaram pelos seminários da Ordem dos Frades Menores (OFM), ou Franciscanos. (**)

É, de resto,  o clero regular mais representado (, são 7 ao todo), na nossa  amostra de capelães militares, publicada no poste P19023.

E de entre esses sete é de destacar o nosso amigo comum (e meu parente)  Horácio Neto Fernandes, nascido em Ribamar, Lourinhã: o nº 42 da lista, era também franciscano (, fui à sua Missa Nova, em 1959), e esteve lá dois anos, primeiro em Catió e depois em Bambadinca e Bissau, de novembro de 1967 a novembro de 1969.

C0mo já tive ocasião de escrever, há aqui um pormenor intrigante: nunca nos encontrámos em Bambadinca, nem eu conheci nenhum capelão, entre julho de 1969 e maio de 1970, em Bambadinca, no primeiro batalhão, a que esteve adida a minha companhia, a CCAÇ 12: refiro-me ao BCAÇ 2852 (1968/70). 

Sabemos que, ainda mais do que os médicos, os  capelães militares eram em número insuficiente para as necessidades do exército, no TO da Guiné. E o batalhão a seguir, que eu servi, o BART 2917 ficou sem capelão ao fim de ano:  era o nosso Arsénio Puim... Um e outro são membros da nossa Tabanca Gramde.

Além do Horácio Neto Fernandes (nº 42) (, que esteve no CTIG de 1/11/1967 a 3/11/1969), cite-se mais os seguintes capelães, da Ordem dos Frades Menores (OFM), por ordem alfabética:

José António Correia Pereira (nº 84): de 26/3/1972 a 21/3/1974;

José de Sous Brandão (nº 79): de 25/9/1871 a 22/12/1973:

José Marques Henriques (nº 97): de 28/4/1974 a 9/10/1974):

Manuel Gonçalves (nº 58): de 19/7/1969 a 30/6/1971;

Manuel Maria F. da Silva Estrela (nº 11): de 27/9/1963 a 14/8/1965;

Manuel Pereira Gonçalves (nº 91): de 28/5/1968 a 29/6/1974):

Pode ser que algum leitor nos ajude a localizar o batalhão a que pertenceram estes capelães franciscanos.


(**) Último poste da série > 6 de outuibro de 2020 > Guiné 61/74 - P21423: Efemérides (336): No dia 5 de Outubro, homenagem aos Antigos Combatentes de Guifões falecidos em campanha e depois de regressados da Guerra do Ultramar (Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150)

terça-feira, 26 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P21011: (In)citações (162): Agradecimento pela homenagem que me foi feita, por ocasião do meu 84º aniversário; espero para o ano poder ir ao convívio do pessoal do meu batalhão (Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS / BART 2917, Bambadinca, maio 1970 / maio 1971)

1. Mensagem do nosso camarada, amigo e grã-tabanqueiro Arsénio Puim [. ex-alf mil capelão, CCS / BART 2917, Bambadinca, maio 70/ maio 72; natural da ilha de Santa Maria, RA Açores, vive na  ilha de São Miguel]: 

Date: terça, 26/05/2020 à(s) 13:13

Subject: agradecimento

Grande amigo Luís


Muito obrigado pelas tuas palavras de apreço e indesmentível amizade que quiseste incluir no registo de testemunhos organizado pelos meus filhos no meu 84.º aniversário.

Quero também transmitir o meu agradecimento ao Machadinho, o Guimarães, o Levezinho e o Beja Santos pelas suas mensagens de felicitações e apreço que me escreveram. Semesquecer o lino Bicari. Com tempo, hei-de responder individualmente. (`)

Envio também os meus cumprimentos amistosos a todos os camaradas da Guiné, cujo convívio durante um ano ou um ano e 20 meses para alguns, apreciei muito e a quem procurei servir, conciliando, quanto possível, a minha qualidade de capelão militar e de padre da Igreja de Cristo.

Neste contexto de pandemia, e atento o facto de pertencer a um grupo de risco, vivi os últimos dois meses e meio, e vou continuar mais algum tempo, «internado» em casa mais a Leonor. E foi nestas condições que celebrei os meus anos, dum modo muito «sui generis», conjuntamente com a esposa, filho, nora e netas: nós dentro de casa, na sala, eles fora, debaixo do alpendre, separados uns dos outros por uma janela grande; dentro o bolo dos anos, fora uma réplica do bolo; soprei as velas e cantámos, todos, os parabéns; através dos vidros, saudámo-nos e «atirei beijinhos» às netinhas, que corresponderam com o mesmo gesto.

Posso dizer-vos que gostaria de ainda participar mais uma vez num encontro do Batalhão. Talvez para o ano, se Deus quiser.

Um grande abraço para ti e esposa

Arsénio Puim
____________

Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

9 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20957: (In)citações (160): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (a): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)


9 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20957: (In)citações (160): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (a): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)

9 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20955: (In)citações (149): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte V: lembranças do capelão do BART 2917 (Beja Santos)

8 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20954: (In)citações (148): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte IV: o termos vivido e sofrido a mesma contradição numa realidade que nos obrigou, cada um de sua maneira, a uma reviravolta na vida (Lino Bicari)

8 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20952: (In)citações (147): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte II: Mais um de nós (Tony Levezinho); Parte III: O único santo que conheci em Bambadinca (Luís Graça)

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P21007: 16 anos a blogar (14): A minha visita ao destacamento de Missirá, com o alf mil médico Mário Gonçalves Ferreira", na passagem do ano de 1970, ao tempo do "alfero Cabral (Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/71)


Viseu > 26 de Abril de 2008 > 2.º Convívio do pessoal da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e unidades adidas > O Jorge Cabral, ao centro, "entre um Psiquiatra (Marques Vilar) e um Cardiologista (Mário Gonçalves Ferreira, autor do romance 'Tempestade em Bissau")... Diz o Jorge Cabral que ambos os médicos "me visitaram em Missirá, quando eu comandava o Pel Caç Nat 63, tendo o Mário, passado lá o Natal de 70, com o Padre Puim".

[Não foi o Natal, foi o Fim de Ano, emenda o Puim, que apontava tudo no seu famoso caderninho que lhe será confiscado pelo comando do BART 2917, na altura em que veio "a fmigerada ordem de Bissau" para o meterem no avião da TAP, de volta para os Açores, já que tinha passado a ser  "persona non grata" no CTIG; o caderninho, que deve ter ido parar às mãos da PIDE/DGS, só lhe seria devolvido no pós-25 de Abril,  com uma misteriosa folha a menos]...

Os dois médicos foram igualmente companheiros de quarto do capelão. O Marques Vilar substituiu, em março de 1971, o Mário Gonçalves Ferreira. O Arsénio Puim foi expulso do CTIG em maio de 1971.

Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A MINHA VISITA A MISSIRÁ NA PASSAGEM DO ANO DE 1970

por Arsénio Puim

[ex-alf mil capelão, CCS/ BART 2917, Bambadinca, maio de 70/maio de 71; aqui ao centro, ladeado à sua direita pelo Benjamim Durães, e à esquerda, pelo "alfero Cabral" > Viana do Castelo, 16 de maio de 2009 > Convívio do pessoal da CCS / BART 2917 e subunidades adidas (Bambadinca, 1970/72).  nFoto: Benjamim Durães (2009)]

Li no blogue uma evocação de Jorge Cabral relativa à visita do Capelão Puim ao Destamento de Missirá, na Guiné, em Dezembro de 1970. (*)

Foi realmente em Dezembro, mas no último do mês, e aí passei a noite de fim de ano. (**)

O transporte foi de sintex através do rio Geba, à tardinha. A placidez das águas, a arborização das margens, a sinuosidade do trajecto e sobretudo a abundância, a variedade e a beleza das aves – de cores as mais variegadas – fizeram desta uma viagem encantadora.

Da margem ao acampamento, julgo que ainda distavam um ou dois quilómetros, que percorri a pé mais o médico Mário Ferreira, que também visitava Missirá. Numa dada altura, ouvimos um grande tropel dentro do mato. Parámos. Mas logo vimos que era um bando enorme de macacos em deslocação. Ao atravessarem o caminho, olhavam-nos e logo continuavam a correria.

A noite de passagem do ano foi muito alegre, com boa comida e alcoolfarta. Houve discursos e música (admito que também discursei) no acampamento, que – é a impressão que guardo – se caracterizava por quase não haver separação física e humana entre ele e a tabanca,  e por todo um espírito que me pareceu nada ter a ver com o lema, demasiado redutor, pertencente a um Pelotão antigo, que ainda se podia ler, impresso num bloco de cimento, na parada [, referência provável ao Pel Caç Nat 52, anterior ao comando do Alf Mil Beja Santos, Missirá, 1968/69, cuja divisa era 'Os Gaviões: Matar ou Morrer' : vd. foto à esquerda].

No primeiro dia do ano tivemos missa no pequeno aquartelamento de Missirá, e voltei a Bambadinca.

Esta é uma das minhas boas recordações da Guiné, graças também ao comandante do Destacamento e 'grande régulo' de Missirá, o ex-alferes Jorge Cabral, que saúdo com amizade. (***)

Arsénio Puim


2. Comentário do editor LG:

Tem andado arredio, do nosso blogue, o "alfero" Cabral, genial criador das "estórias cabralianas"... De tempos a tempos, quando faz anos, lá lhe dou uma telefonadela... Não sei se ainda está "confinado", o que não acredito, mesmo sendo ele do "grupo de risco"... Aliás, somos todos... De qualquer modo, faço votos para que ele  sobreviva à pandemia e ao pandemónio da COVID-19 de que muitos camaradas já não podem ouvir falar mais...

Quanto ao nosso Cabral, já aqui escrevi em tempos que ele  era descendente de militares e que, na sua rica e frondosa árvore genealógica, havia Cabrais e... que Tais!... Na Guiné, foi meu contemporâneo e vizinho, fizemos operações juntas e até bebemos uns copos em Fá... E recordo-o por, entre outras bizarrias,  reivindicar ser ele "o único e legítimo Cabral" (sic), mesmo que o outro, o "usurpador", defendesse os seus pergaminhos de Kalashnikov na mão...

Apesar da sua linhagem ilustre, posso garantir que nunca o vi, nas terras de Badora e do Cuor, a "cantar de galo"... Sempre prezou (e honrou) a sua linhagem, isso é indesmentível e eu disso sou testemunha: costumava garantir, a quem o queria ouvir, que "na Guiné, Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum"... Ou de Fá, conforme o sítio onde estava (e esteve um  ano em cada lado). 

À força de ser propolada e levada pelo vento, de bolanha em bolanha, a histórica e temível frase deve ter chegado aos ouvidos do Corca Só, o chefe da 'barraca' de Madina / Belel, a sul do Morés, a tal ponto que no tempo do "alfero" Cabral não mais voltou a meter-se com a malta de Missirá...(Este Corca Só tinha jurado tirar o escalpe ao Beja Santos, anterior comandante de Missirá, à frente do temível Pel Caç Nat 52).

Em Missirá, um destacamento mais exposto às morteiradas e roquetadas do IN do que Fá Mandinga, contava-se que o "alfero" Cabral, mais do que temido, passara a ser  "respeitado" (e quiçá "venerado")  pelos camaradas do PAIGC, desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los:
- Vocês não fujam, não tenham medo!!!... Sou o Cabral!!!...
____________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 16 de maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2847: Convívios (57): CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72): Viseu, 26 de Abril (Jorge Cabral)

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20962: (In)citações (161): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (b): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)


Lisboa > 24 de Maio de 2009 > O Arsénio Puim, na casa dos seus filhos, estudantes universitários, à conversa com uma antiga paroquiana e amiga do Padre Mário de Oliveira (também conhecido por Padre Mário da Lixa), a Maria Alice Carneiro,  esposa do Luís Graça. O Padre Mário de Oliveira, depois de vir da Guiné, foi paroquiar a freguesia de Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, em 1968. A amizade da nossa grã-tabanqueira Alice Carneiro vem, desse tempo.


Durante a guerra colonial, foram seguramente os dois casos mais conhecidos, pelo menos públicos e notórios, de conflito de ruptura, por razões de consciência, de capelães militares com Exército.

Em Maio de 1971, "por volta do 13 de Maio, talvez antes, a 10, 11 ou 12", o Alf Mil Capelão da CCS / BART 2717 (Bambadinca, 1970/72) foi intimado a comparecer em Bissau para receber a guia de marcha, de volta à sua terra, por ter sido considerado uma figura indesejável no CTIG... 

O seu quarto (que ele partilhava com o alf mil médico Mário Gonçalves Ferreira) e os seus objectos pessoais foram revistados, não por agentes da PIDE/DGS, mas por dois oficiais superiores do comando do batalhão.... O seu diário foi, abusiva e ilegalmente confiscado...

Por sua vez, o Padre Mário de Oliveira, da diocese do Porto, foi capelão militar do BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/69). tendo sido expulso em Março de 1968, menos de cinco depois da sua chegada ao CTIG, uma história já aqui contada em 2006 (**)...



Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Viseu > 26 de Abril de 2008 > 2º Convívio do pessoal da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e unidades adidas > O Jorge Cabral, o segundo a contra da esquerda, "entre um Psiquiatra (Marques Vilar) e um Cardiologista (Mário Gonçalves Ferreira, autor do romance 'Tempestade em Bissau0)"...  Diz o Jorge Cabral que ambos os médicos "me visitaram em Missirá, quando eu comandava o Pel Caç Nat 63, tendo o Mário, passado lá o Natal de 70, com o Padre Puim" [Não foi o Natal, foi o Fim de Ano, emenda o Puim, que apontava tudo no seu famoso caderninho ].. Os dois médicos foram igualmente companheiros de quarto do capelão. O Mário Gonçalves Ferreira substituiu, em março de 1971, o Mário Gonçalves Ferreira.

Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Muita saúde longa vida, Arsénio Puim,
porque tu mereces tudo! (2ª e última parte)

por Luís Graça



(8) O que ele não esqueceria era, afinal, 
o lema do batalhão, “Pela Guiné e suas gentes”… 
E foi o lema do seu batalhão que o tramou, 
a sua interpretação do seu significado… 


Na célebre homilia em Viana do Castelo (que, de resto, está publicada na história da unidade), a par do discurso patrioteiro, chapa um, do comandante do batalhão, ele realçava “ duas ideias principais que a Missa, como ato de culto ao Pai da humanidade e de comunhão da Palavra e do Pão, nos deveria inspirar e consolidar: (i) por um lado, o espírito de comunidade que deveria imperar no Batalhão 2917 ao serviço das terras da Guiné, onde íamos viver; (ii) e, por outro, os valores humanos e cristãos que devem ser apanágio de todos os homens de boa vontade em quaisquer circunstâncias”.

Na Guiné, ele vai recusar usar armas... De facto, não nunca teve G3 distribuída. Quando chegaram a Bissau, e houve distribuição do armamento, no Depósito de Adidos, em Brá, antes da partida em LDG para o Xime, ele esteve na fila, como toda a gente, mas, chegada a sua vez, disse delicadamente, ao segundo comandante que dispensava a arma... nem sequer saberia usá-la...

A presumível antipatia, pelo capelão, alimentada por esse major  - de resto, um professor da Academia Militar, com tiques prussianos, que nos obrigava a bater a pala, em plena parada de Bambadinca, como se fôssemos vulgares instruendos, a nós, operacionais da CCAÇ 12, já com mais de um ano de velhice, muito sangue, suor e lágrimas na Guiné! - já devia vir de longe, talvez da primeira homilia, em Viana do Castelo, aquando da formação do batalhão…

Perante o insólito desta cena, o major ter-lhe-á perguntado, diretamente, se ele não era "testemunha de Jeová" (Recorde-se que eram, na época, perseguidos por serem objetores de consciência). Provocação deliberada ? Piada de caserna ? Brincadeira de mau gosto?
- Não, meu comandante, sou um padre católico...

Esta frontalidade, que nada tinha de insolência, vai-lhe sair cara… ao ponto de um dia o mesmo oficial superior lhe perguntar, “à laia de graça”,  se tinha um pacto com os “turras”, dada a estranha coincidência de alguns ataques do PAIGC ocorrerem imediatamente a seguir à sua saída de um aquartelamento ou destacamento…


(9) Dizem que afinal o que tramou foram 
as suas célebres homilias da paz em tempo de guerra… 
Ou, nas suas próprias, o seu “pacto com Deus”… 
Terão ficado no ouvido de alguns zelotas as palavras de paz 
(, que só poderiam ser “dissolventes”, em tempo de guerra…) proferidas na capela de Bambadinca dia 1 de Janeiro de 1971… 
Alguém ia tomando boa nota… Mas haveria 
ainda mais “homilias da paz”… 
Foi, ao que parece, a  da Abril ou Maio, 
a famosa homilia de Abril ou Maio, 
que entornou o copo...

Eu já não já estava na Guiné, tinha regressado a casa em meados de Março de 1971... A CCAÇ 12, agora com novos “tugas”, periquitos a enquadrar os soldados africanos, juntamente com a subunidade de quadrícula do Xime (CART 2715), tinha feito prisioneiros, no região do Xime, possivelmente na zona do Poindon / Ponta do Inglês, como diz explicitamente o Carlos Rebelo, nos seus versos sobre o Romance do Padre Puim… Era população civil, incluindo mulheres e crianças, que viviam sob controlo do PAIGC, em condições miseráveis, diga-se em abono da verdade, esfarrapados, doentes, subnutridos…

Uma das mulheres tinha acabado de dar à luz, três dias antes da operação. Eram balantas, possivelmente oriundos de Samba Silate, destruída e abandonada no início do guerra, um dos mais tristes símbolos da guerra na leste. Foram levadas para Bambadinca. O grupo ficou detido numa espécie de galinheiro que havia perto da escola, que continuava a ser dirigida pela Profª Violete, cabo-verdiana, que tinha, lá em casa, a viver consigo, um puto, o Alfredo, de 15 anos, que irá mais tarde ser mencionado na ficha da PIDE/DGS do capelão, por alegadamente ser do PAIGC ou possível informador do PAIGC...

Era nesse galinheiro, na ausência de uma verdadeira prisão, que ficavam os prisioneiros, em trânsito para Bafatá, ou para Bissau (tratando-se e guerrilheiros: quanto aos civis, nem sempre era fácil a solução da integração nas tabancas balantas da região - basicamente, Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Balanta- , havendo crianças já nascidas no mato, e que nos olhavam aterrorizadas, quando o roncar das nossas GMC do tempo da guerra da Coreia...).

Bom, resumindo, parece que a CCS do BART 2917 não fornecia comida aos prisioneiros, maioritariamente mulheres e crianças. Ficaram à mercê da caridade da população local, de Bambadinca e Bambadincazinha, entre a qual havia simpatizantes do PAIGC, ou gente da mesma etnia...

O Puim, inteirado da situação, condoeu-se daquela gente e começou a visitá-los. Levava leite às crianças. E protestou contra aquela situação de injustiça. Era, de resto, um homem que não se calava, como não se calou quando o ex-furriel ‘comando’ João Uloma, da 1ª Companhia de Comandos Africanos, se deixou fotografar, com um cabeça cortada, na parada de Bambadinca... Perguntou o Puim, já não sabe a quem (possivelmente, ao captão Barbosa Henriques, instrutor, ou ao major Leal de Almeida, supervisor) se aquilo era digno de um exército civilizado... Se bem me lembro, esta cena passa-se em outubro de 1970, depois de uma operação a norte do Enxalé, e antes da Operação  Mar Verde (invasão de Conacri, 22/11/1970)...

Através de um intérprete, um polícia administrativo, as mulheres diziam que o Puim era "manga de bom pessoal", mesmo sem saberem qual era a sua função ou o seu papel naquela guerra... Seria, de resto, difícil explicar-lhes o que era um capelão e para que servia... Para elas, era apenas um tuga bom... Um “padre-capilon”, como diziam as lavadeiras de Bambadinca… 


(10) Numa das suas homilias, num domingo de Abril ou Maio, 
o Puim abordou este tema, doloroso, para ele... 
O tratamento dos prisioneiros nem sequer estava de acordo 
com a política, superiormente definida por Spínola, e consubstanciada no slogan “Por uma Guiné Melhor”... 

Terá sido a partir daqui que ele foi denunciado, possivelmente não já pela primeira vez, e que em Maio de 1971 surge uma famigerada "ordem de Bissau" (que ele nunca leu) para ele se apresentar no "Vaticano" (as instalações dos capelães militares em Bissau)...
O papel de Bissau (não se sabe por quem era assinado...), com a sua ordem de expulsão, estava nas mãos do segundo comandante do batalhão…

Nas conversas que tive  com o Puim, ele  nunca referiu a presença de nenhum agente da PIDE/DGS... Afirmava categoricamemente que quem passou a revista ao seu quarto (de resto, partilhado pelo alferes miliciano médico Vilar), quem mexeu nos seus objetos pessoais, na mala, e quem confiscou o seu diário (, que só lhe será devolvido, já depois do 25 de Abril, com uma única folha rasgada…)  foi o 2º comandante.

De qualquer modo, burocrática, meticulosa, ominipresente PIDE/DGS averbou esta cena no ficha do Puim... O que sugere, no mínimo, alguma promiscuidade entre a PIDE/DGS, a hierarquia militar... e até o “chefe do Vaticano” (, na gíria, era a sede da capelania militar, em Bissau).


(ii) Puim considerava-se duplamente maltrado 
pela instituição militar e pela hierarquia religiosa. 
À data era capelão-mor, no CTIG, o Padre Gamboa   
que tinha o posto de major, coordenando 
e supervisionando  todo o trabalho de capelania 
(Vivia, em instalações próprias, em Bissau, 
conhecidas por “Vaticano”).

Em Fevereiro de 1971, o Puim ainda tinha participado, em Bolama, num retiro espiritual, com os demais capelães da Guiné, dirigido pelo major capelão Gamboa. Houve discussão acesa, foi discutido o papel dos capelães na guerra colonial, a posição da Igreja, etc.

Admito que a PIDE/DGS (, com delegação em Bafatá e olhos e ouvidos em Bambadinca. ) estivesse por detrás de tudo isto, ou pelo menos acompanhasse e alimentasse o “processo” do incómodo capelão... Mas como o Puim era um oficial miliciano e ainda por cima capelão, é natural que Bissau tenha dado ordem para ser a hierarquia militar a encarregar-se do caso... e não armar escândalo. Afinal, os tempos já eram outros... ou ainda não. Spínola passa a ter, a partir de 13 de julho de 1971,  a PIDE/DGS ao seu serviço, ou pelo menos sobre a sua tutela e proteção, com a nomeação do inspector Fragoso Allas para chefiar a “corporação” em Bissau.


Vaana do Castelo, 16 de maio de 2009 >
Convívio do pessoal da CCS / BART 2917
(Bambadinca, , 1970/72) > Nas foto, da esquerda
para a dieeita, Benjamim Durães, Arséio Puim
e Jorge Cabral.

Foto: Benjamim Durães (2009)

O Arsénio diz-me que foi sozinho para a aeronave que o esperava, na pista... Sem escolta. Sem alarido. Sem despedida. Sem lágrimas... Mas com a dor na alma, com revolta, com indignação. Os únicos que assistiram a esta cena, para além dos dois majores do comando do batalhão, terão sido o alf mil Abílio Machado e o sacristão, o 1º cabo Teixeira...


(12) O nosso camarada ainda teve uma semana em Bissau, 
a aguardar transporte, e outra semana em Lisboa, 
até ser reenviado para os Açores... 


Em Bissau, foi recebido por uma alta patente militar (que ele não consegue identificar, mas que até com ele um comportamento civilizado) bem como pelo seu superior hierárquico, o major capelão Gamboa... 

Em contrapartida, os amigos e camaradas de Bambadinca que na altura estavam de passagem em Bissau, fizeram-lhe um jantar de despedida, onde também esteve o 1º sargento Brito, já falecido… Não falou sequer com o seu bispo, mas voltou a paroquiar na sua Ilha, Santa Maria...

Mais tarde, quis fazer a experiência de padre operário, que estava na moda, na sequência do Concílio Vaticano II... Tirou o Curso de Enfermagem Geral na Escola de Enfermagem de Ponta Delgada, ao mesmo tempo que era pároco na freguesia de Santa Bárbara do Monte, da Ouvidoria das Capelas. 

Iria perceber, mais tarde, que as duas funções eram incompatíveis, ser enfermeiro e ser padre... Optou por ser enfereiro a temo inteiro e ser dispensado da condição sacerdotal pelo papa Paulo VI. Acabou por se enamorar de uma jovem enfermeira, mais nova, com quem viria a casar, e que é hoje a mãe dos seus dois filhos. O casal passou a viver definitivamente em Ponta Delgada. 

Como enfermeiro, trabalhou nos Centros de Saúde de Vila do Porto e de Vila Franca do Campo, durante 19 anos. Está aposentado desde 1996. Foi sacerdote durante 16 anos. Foi co-fundador e primeiro diretor, em 1977, de “O Baluarte de Santa Maria”. E continua a colaborar no centenário jornal de inspiração cristã, “A Crença” ser, propriedade da Matriz de Vila Franca do Campo, a cuja paróquia pertence. 

Em entrevista ao "Correio dos Açores", de 18/2/2018, confessa que viveu com intenso júbilo dois grandes acontecimentos históricos, o Concílio Vaticano II e o 25 de Abril; "Exerci a função de pároco durante 12 anos, em Santa Maria e em São Miguel, num período histórico e muito rico, marcado por dois grandes acontecimentos do século - o Concílio Vaticano II e a Revolução de 25 de Abril. Vivi entusiasticamente tanto o espírito de renovação da Igreja como a democratização política e social que caracterizou uma e outra efeméride."





(13) Não voltei a vê-lo mais, trocámos mails, 
publiquei lhe as suas memórias… Mas em maio de 2009, 
pareceu-me um homem sereno, de bem com a vida, 
orgulhoso dos seus filhos, um pai extremoso e dedicado, 
e ainda hoje um cidadão com sentido de missão 
e com os mesmos valores espirituais e éticos.


Decididamente queria, já na altura,  fazer as pazes com um certo passado, na Guiné, razão por que fez questão de   partilhar connosco as memórias, boas e más, daquele tempo.  Por certo, que já perdoou a quem o ofendeu, mas não esqueceu. Os seus antigos camaradas e amigos não esqueceram.

O que fizeram ao Puim não deixa de ser  uma grande pulhice humana... Afinal, o que ele fez (, protestar contra a situação dos prisioneircs civis)  estava em perfeito alinhamento ou sintonia com as orientações da política spinolista "Por uma Guiné Melhor"!... Ele era a nossa consciência crítica e honrou o melhor de todos nós…

O Puim, enquanto português, homem, cidadão, capelão e oficial do Exército Português, insurgiu-se, protestou ou chamou a atenção para a situação desumana, degradante, em que viviam, numa espécie de galinheiro, em Bambadinca, velhos, mulheres e crianças que foram "recuperados" de uma tabanca no mato, sob controlo do PAIGC (que "eles" chamavam, pomposamente, "áreas libertadas", na famigerada áreaa do Poindon / Ponta do Inglês onde demos e levámos muita porrada ao longo da guerra...)!

Bolas, não eram "TURRAS"!... Era população civil, desarmada, andrajosa, miserável, esfomeada, apavorada... As crianças tinham nascido no mato e entravam em pânico ao ouvir o roncar de uma GMC...no quartel.

Muito provavelmente estes "pobres diabos" foram trazidos pela minha CCAÇ 12 em abril de 1971... Eu tinha acabado de chegar à metrópole, há coisa de um mês e tal...

Xitole > CART 2716 > o capelão Arsénio Puim
com o David  Guimaraes, ex.fur mil at ifn MA.
Foto do David Guimarães (2005)
Mais do que falar, o Puim sabia ver, observar,  ouvir. E tinha uma grande curiosidade pela cultura da Guiné, incluindo o(s) seu(s) crioulo(s). Ele tinha, contrariamente à maioria de nós, uma extraordinária “sensibilidade socioantropológica” que o levava a conseguir “confidências” da população  civil que os operacionais, como eu, dificilmente conseguiriam  a obter. Estou-me a lembrar, por exemplo, das suas conversas do “Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz”…  

Tinha, além disso, um espírito ecuménico, tendo participado inclusive em cerimónias religiosas, com outras confissões, em que se orou pela paz.


(14) Deixem-me acabar o meu depoimento com o meu aplauso 
a este antigo “padre capilon” (, para além de meu camarada…):   
como escrevi há anos, ele mereceu, nesse tempo, 
o meu apreço por, no cumprimento da sua missão castrense e espiritual, nunca ter  descurado as suas obrigações 
como pastor da Igreja de Cristo...

Ele não era (ou não quis ser apenas) um capelão militar, um padre fardado, ao serviço de um exército em guerra... Já confessei que não o conheci nessa qualidade: nunca o vi nem ouvi a celebrar missa, nunca rezei com ele, nem sequer lhe pedi conselho ou ajuda espiritual, embora hoje eu tenha pena de o não ter conhecido melhor, a nível do seu múnus espiritual.

O que eu quero sublinhar é que a sua atenção, solicitude, disponibilidade, carinho, amor, solidariedade, caridade, compaixão - chamem-lhe o que quiserem! - também contemplava as mulheres, as crianças, os homens, os velhos da população civil, independentemente da cor da pela, da religião, da etnia, da origem...

A grande diferença em relação a nós, militares, operacionais ou não, com os nossos 22, 23 ou 24 anos, é que o Puim  ganhava-nos em maturidade humana, em sensibilidade sociocultural, em abertura ao outro, em generosidade mas também em frontalidade e coragem moral... Ele convivia com a população, e escrevia no seu caderninho notas sobre esses contactos... O famoso caderninho que lhe seria mais tarde confiscado e depois devolvido e que, conforme já sugeri ao Miguel, deveria ser passado a livro…

No dia em que celebramos os seus 84 anos de vida, nós, eu e os demais membros da Tabanca Grande, de que ele faz parte de pleno direito, só lhe podemos desejar muita sa+ude  e longa vida porque ele merece tudo… 

Que Deus, Jeová, Alá e os bons irãs da Guiné o protejam, a ele e à sua família… e a todos nós, para que,  para o ano,  lhe possamos estar juntos, ou ao alcance de um clique, e   voltar a cantar os “parabéns a você” e a reiterar os nossos votos de amizade e camaradagem.

Luís Graça, ex-furriel miliciano,  
armas pesadas de infantaria, 
CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 
maio de 1969 – março de 1917); 
fundador e editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

PS – Arsénio, fico muito sensibilizado por esta carinhosa iniciativa dos teus filhos. Foram eles que prepararam tudo, em segredo. Acho que é uma bela prenda de aniversário. És um sortudo, mas tu bem o mereces.
_____________

Nota do editor:


(*) Vd poste de  14 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - P750: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

Último poste da série > 9 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20957: (In)citações (160): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (a): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)


sábado, 9 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20957: (In)citações (160): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (a): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > REgião de Bafatá Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região)

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3). A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole.

De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) (onde ficavao quarto do alf mil médico Arsénio Puim) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).

Em frente ao edifício em U, um poco mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14).

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). Ver o resto das legendas aqui.



Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Muita saúde longa vida, Arsénio Puim,
porque tu mereces tudo! (1ª parte)

por Luís Graça




Luís Graça, Contuboel,  junho de 1969
Que eu saiba, em toda a história da guerra colonial , ou pelo menos no teatro de operações da Guiné, houve pelo menos dois casos de capelães militares que foram "expulsos" das fileiras do exército... 

Não sabemos ao certo por quem, se o bispo castrense (que era brigadeiro) ou a hierarquia militar (personificada no Comando-Chefe, os generais Arnaldo Schulz, em  1968, e António Spínola, em 1971, respetivamente), com a inevitável “mãozinha” da polícia política ...

Eu diria antes que foram dois erros de "casting" (sem que isto nada tenha de ofensivo para com os visados)... 


Mário de Oliveira
Um deles é o padre Mário de Oliveira, que será sempre, até morrer, o padre Mário da Lixa... Foi capelão, por escassos meses,  do BCAÇ 1912 (que esteve sediado em Mansoa, 1967/69)... 

O outro caso de um capelão "expulso" das fileiras do exército português foi o açoriano Arsénio Puim (que deixou, de resto, o sacerdócio em finais dos anos 70): foi capelão, por um ano, do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). E é sobre ele que eu quero falar, a pedido de um dos seus filhos, o mais novo,  o Miguel Puim, economista. E o pretexto são os seus 84 aninhos de vida (*)…

(1) A imagem que eu tenho do Arsénio 
Puim é a da serenidade. 
Na Guiné podia confundir-se com reserva 
e até timidez, hipoteticamente associada 
à sua origem insular e à sua condição 
sacerdotal. Mas havia ali, também, 
na sua maneira de ser e estar, 
algo da bonomia açoriana.

Arsénio Puim
Para muitos de nós, ali em Bambadinca, no pior setor do leste da Guiné, marcado pela guerra pura e dura, a açorianidade era algo que nos era estranho e distante. Na minha CCAÇ 12, havia um furriel madeirense do Funchal. Os Açores não ficavam na rota dos novos “navios negreiros” que, desta vez, em sentido inverso, levavam para a Guiné “carne para canhão”. 

O Puim foi dos primeiros açorianos que eu conheci.  E foi um lídimo representante do melhor que o povo açoriano tem, a começar pelo seu amor à liberdade, à verdade e à justiça. Mas não me lembro de alguma vez ter falado com ele da sua vida pessoal ou dos seus Açores.

"En passant",  havia companhias madeirenses e açorianas, no TO da Guiné, unidades homogéneas na sua composição: as praças eram "ilhéus", em geral enquadradas por "contimentais". Por razões, dizia-se, que eram de natureza "economicista", mas eu sempre desconfiei que o exército sabia que o "terroir", o chão, a geografia, o "caldo de cultura", também talhava os homens de maneira diferente, do mesmo modo  que produzia diferentes vinhos, com diferente "corpo e alma" … Sim, porque os vinhos também têm alma...

Curiosamente, o Puim não fazia gala da sua condição de açoriano, nos seus contactos com a população civil.

(2) Afinal, o alferes miliciano 
capelão Puim era mais capelão 
do que militar. Era, aliás,  
o mais civil, o mais paisano, 
de todos nós.

Nunca o vi armado, nas colunas logísticas, quando se deslocava, com frequência,  entre a sede do batalhão, em Bambadinca, e as unidades de quadrícula (Xime, Mansambo, Xitole) e os seus diversos destacamentos (Enxalé, Missirá, Ponte dos Fulas)… 

Ou quando se deslocava a Bafatá, o único ponto do interior onde havia um cheirinho de civilização e onde ia confraternizar com os missionários italianos do PIME (o Pontifício Instituto para as Missões Exteriores). 

Mesmo fardado, via-se que não fora talhado para a tropa. E muito menos para a guerra, com o seu cortejo de violência(s), que atingia(m) tanto os combatentes como as 
opulações de um lado e do outro.
Horácio Fernandes

Tínhamos uma certa deferência para com os médicos e os capelães, se bem que capelão militar fora ele  o único que eu conheci. Confesso que não me lembro, em Bambadinca, do meu primo Horácio Fernandes (o seu bisavó e a minha bisavó, do clã Maçarico, nascidos por volta de 1860,em Ribamar, Lourinhã, eram irmãos)...

Havia falta de médicos e capelães, no teatro de operações da Guiné. Mas os médicos, ao que parece, faziam mais falta, tanto no mato como no Hospital Militar de Bissau, o HM 241 (que, feliz e infelizmente ao mesmo tempo, foi um a grande escola para os jovens médicos mobilizados para a Guiné).

À época, havia já em curso um tendência para a  descristianização da juventude portuguesa, ou pelo menos, um crescente desapego de práticas religiosas como o ir à missa.   O Puim tinha consciência disso e sabia que o seu papel de “padre da Igreja no Exército”  “não era fácil nem isenta de contradições numa situação de guerra”.

(3) Quando regressei a casa, 
em março de 1971, ele ainda lá 
ficaria dois escassos meses,
 em “imbecilburgo”, como eu chamava 
à nossa pobre Bambadinca, 
mas já com bilhete marcado 
para a metrópole. 


Walther P38, de fabrico
alemão.
Cortesia de
Wkimedia Commons

Era uma questão de oportunidade, dizia-se à boca pequena. Também teria ele a sua “noite das facas longas”, como os pobres cães vadios que um dia abatemos um a um, com tiros da tenebrosa Walther da Wehrmacht nazi, em correrias loucas na parada, porque não nos deixavam dormir, aos operacionais de Bambadinca...


Só nos voltámos a ver, eu e o Puim,  38 anos depois, em 24 de maio de 2009, na casa dos seus filhos, na altura estudantes universitários, um no Técnico, outra na Nova. E confirmei essa impressão inicial: continuava a ser um homem calmo, sereno, sábio, sem uma única ruga de rancor ou amargura, muito menos, ódio,  pelos seus "inimigos" (, uma palavra que nunca lhe ouvi). 

Já não era padre, em 2009, ou melhor, era pai de dois rapazes e profissional de saúde,  era enfermeiro, em Ponta Delgada.


(4) Na época, em 1970/71, 
altura em que convivemos 
em Bambadinca, ele tinha 
já dez anos a mais do que nós, 
e portanto, outra maturidade. 
Antes de vir para a Guiné, 
enquanto se formava o batalhão, 
esteve na Serra do Pilar, 
no RAP2 - Regimento de 
Artilharia Pesada 2, 
em Vila Nova de Gaia. 


V. N. Gaia, Serra do Pilar > RAP2 >
Foto de António Tavares (2015)

E aí houve uma função de capelania que o marcou: empilhavam-se os caixões, vindos do ultramar, com os restos mortais de militares naturais do Norte.

Nessa altura, ele realizou mais de 60 cerimónias religiosas, por todo o Norte, acompanhando os nossos camaradas mortos até à sua última morada, confortando o padre local, as famílias e as comunidades locais, num ambiente de grande consternação e  comoção.

Ainda em 2009, confessou-me, não conseguia esquecer essas emoções fortíssimas de dor e de luto, o odor característico dos féretros que vinham, teoricamente, chumbados, hermeticamente fechados, mas alguns apresentavam fissuras, ruturas, e exalavam um cheiro enjoativo, empilhados na grande sacristia, mal iluminada, da igreja do Pilar

“Foram mais de 60 funerais que fiz nestes três meses - 2 ou 3 deles apenas as caixas dos ossos - nas mais diversas e recônditas aldeias do norte de Portugal. Um sacrifício dramático da nossa juventude, merecedor de muito respeito e dignidade, mas que não podia deixar de fazer pensar qualquer pessoa” – escreveria mais tarde, num os postes da sua série "Memórias de um alferes capelão", publicada no blogue.

(5) Nesse longo fim de semana, 
falámos várias vezes ao telefone 
e encontrámo-nos uma vez… 
Era um domingo. 


Ele explicou-me como é que chegara a capelão… Disse-me que fora contra a sua vontade, mas teve que obedecer a uma ordem do seu bispo, como  acontecia em todas as dioceses...  A capelania militar era uma forma cínica mas airosa dos bispos se livrarem, por uns tempos, dos seus padres mais incómodos… Recorde-se que o ambiente já era do pós-Concílio Vaticano II...

Dado o seu nome à Cúria Castrense, veio parar ao Continente.  Na Academia Militar, ali à Rua Gomes Freire, em Lisboa, vai frequentar o 3º curso de capelães militares, entre 22 de setembro e 25 de outubro de 1969... O total de participantes foi de 59… O Mário de Oliveira tinha frequentado o 1º e seguira para a Guiné, ao serviço do BCAÇ 1912.  

“Tirado à sorte” (sic), coube ao Puim  o BART 2917 e a Guiné... 

Esse 3º curso de capelania militar não foi, contudo, pacífico:   ao que parece, terá havido “contestação do sistema” por parte de alguns capelães... No fundo, angústia e perplexidade sobre o papel do padre no seio das forças armadas, em plena guerra colonial, cuja legitimidade já era posta em causa por alguns… 

E essa contestação terá sido liderada pelos açorianos, entre eles o Arsénio Puim, um homem que de resto, enquanto cidadão e como cristão, nunca escondera que lutava pela liberdade e pela justiça... Não altura, ele não me falou que tinha já ficha na PIDE/DGS, por ter apoiado a candidatura da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, nos Açores, donde constava, entre outros, o nome do então cap Melo Antunes, casado com uma açoriana. (Não chegaria a apresentar-se a escrutínio, por oposição da hierarquia militar à presença do seu nome.)

Podia-se ter ficha na polícia política pela simples suspeita de se ser do "reviralho", da "oposição" ou "contra a situação". E, para mais, um padre, um pastor de almas, numa época em que a Igreja começava a apresentar fissuras no seu bloco de apoio ao regime e à guerra colonial. Ser catalogado de "católico progressista" começava a ser perigoso, ou no mínimo suspeito, e como tal inconveniente… 

(6) Dei-lhe, ao Puim, nesse domingo, 
um longo e sentido abraço,   
retomando um contacto 
de há quase 4 décadas atrás... 


Capela de Bambadinca, em segundo plano.
Foto de Benjamim Durães (2010)
Por mor da verdade, devo dizer que, em Bambadinca, não éramos  íntimos: eu não ia sequer à missa, tal como o Machado, mas o Machado (, o “Machadinho”)  às vezes ainda dava uma ajuda  ao Puim, tocando o órgão na capela de Bambadinca…

E depois havia a segregação socioespacial própria da tropa: ambos vivíamos (quero dizer, eu às vezes dormia…),no edifício do comando de Bambadinca, em U, mas separados: ele na ala dos oficiais, nós na ala dos sargentos… Ele entrava no bar de sargentos, eu nunca pus os pés na messe de oficiais, nem por bons nem por maus motivos.

Não posso, por isso, testemunhar a importância do seu papel na assistência religiosa e no apoio psicológico, moral e espiritual aos militares  do setor L1 (Bambadinca). Sei que esse papel foi-lhe requerido em momentos difíceis do batalhão como, por exemplo, na sequência da Operação Abencerragem Candente, no subsetor do Xime, em que perdemos 6 camaradas, e 9 foram gravemente feridos, em 26 de novembro de 1970. O Puim ajudou os camaradas do Xime, da CART 2715, a fazer o luto. Mas essa companhia nunca mais foi a mesma, a começar pelo jovem capitão, O Vitor Amaro dos Santos.


(7) Sei que era uma pessoa querida 
entre os homens do batalhão 
e subunidades adidas (como era 
o caso da minha africana CCAÇ 12), 
com uma presença discreta 
mas frequente nos quartéis 
do mato. 


CCAÇ 12, 2º Gr Comb, c. 1969/70.
Foto de Humberto Reis (2006)
Não me lembro de o ter visto muitas vezes nos nossos ruidosos convívios no bar de sargentos de Bambadinca, onde se bebia, cantava e jogava-se à lerpa  até às tantas… Onde se bebia, às vezes demais, se praguejava, se diziam obscenidades, se invetivava Deus e o Diabo, e até se cantavam ou cantarolavam “canções proibidas” à média luz… Não faltavam violas nem vozes… (No outro lado, cantava-se o fado,  jogava-se o bridge, havia senhoras, o ambiente era de ordem, decoro e respeitinho…)

O ambiente do mal afamado bar de sargentos de Bambadinca (que às vezes era extensiva ao “Bataclã” de Bambadinca, fora do arame farpado…)  não deveria ser muito do agrado do comando do batalhão. Mas tinha que nos gramar, aos operacinais da CCAÇ 12, porque éramos nós (e os Pel Caç Nat 52 e 63), quem lhes defendia as costas e fazia os "roncos"... De qualquer modo, o Puim não era de noitadas nem muito menos de tainadas, pautando o seu comportamento por um padrão de isenção, frugalidade, imparcialidade, austeridade e até de pudor.