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sexta-feira, 8 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19562: Notas de leitura (1156): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (76) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
É certo e seguro que virá o dia em que se procederá a um estudo minucioso sobre a Casa Gouveia e a Sociedade Comercial Ultramarina, as duas grandes empresas funcionarão nas últimas décadas da Guiné colonial.
O BNU foi gradualmente interessado em fazer crescer o seu capital na Sociedade, atenda-se ao importante relatório elaborado em 1957 por Castro Fernandes, sem ambiguidades defendia que o BNU devia entrar numa concorrência mais agressiva com a Casa Gouveia, e preconizava negócios. O que a documentação permite registar são perdas sucessivas até anteriores ao início da luta armada, depois desta gerara-se uma situação artificial que eram as importações para os contingentes militares, mas não havia ilusão que os objetivos fundamentais à volta do descasque de arroz, do coconote, da mancarra, das experiências com o caju, o fabrico de óleo, tudo aparecia ameaçado. E a documentação também permite verificar que os últimos negócios em companhias de pesca e de cervejas não iriam ter um futuro lisonjeiro, tudo se esbarrondou e no caso da CICER com muitas culpas para a governação da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (76)

Beja Santos

É chegado o momento de apreciar no acervo da documentação avulsa do Arquivo Histórico do BNU o que nele consta da Sociedade Comercial Ultramarina.

Importa esclarecer que esta Sociedade se constituiu em 19 de fevereiro de 1923, o seu capital social foi engrossando ao longo do tempo e se inicialmente era de 2 mil contos em 8 de janeiro de 1968, por incorporação de créditos do BNU e da Sociedade Nacional de Sabões, em partes iguais, o capital social foi elevado para 46.500 contos. A participação do BNU correspondia, à data de 1968, a aproximadamente 44% do total.

A Sociedade dedicou-se ao comércio em geral e à exportação, teve uma existência atribulada, com prejuízos sucessivos que chegaram a totalizar, no termo do exercício de 1967, a uma verba aproximada de 40 mil contos, além de ter o ativo deteriorado, por ausência das devidas amortizações e provisões.

Chegou a ser prevista a liquidação da Sociedade, mas a partir de 1968 passou a apresentar alguns lucros e assim foi reduzindo o prejuízo acumulado para cerca de 32 mil contos em 1972. Houvera recuperação. Em janeiro de 1973, o Conselho do BNU autorizou novos financiamentos, sob a forma de novo crédito destinado a determinados investimentos ou para adiantamentos sobre vendas, desdobramento de crédito para compra de mancarra, etc.

Terá talvez interesse vermos o relatório de 1963, ano em que eclodiu a luta armada. Começa por se dizer que os acontecimentos político-militares que afetaram o Sul da Província tiveram graves repercussões na cultura do arroz, nas transações comerciais, nos transportes, nos encargos e no sossego das populações. O total dos prejuízos verificados em consequência das pilhagens e destruições feitas pelos agitadores atingiu os 3.777.369$60. A estes prejuízos diretos haveria que adicionar o decréscimo de receitas resultante da paralisação e redução de certas atividades. Haveria também a contar com o agravamento da tributação fiscal. A campanha de arroz processara-se normalmente. Relativamente ao coconote, as fracas cotações dos mercados internacionais tinham-se repercutido no preço de compra ao produtor. Houve decréscimo em relação às compras de anos anteriores e no que respeita ao arroz também a baixa foi substancial, o Governo fora forçado a proceder à importação para ocorrer às necessidades da população. Registava-se um aspeto positivo, e assim se escreveu: “Se por um lado se reduziu a actividade de descasque de arroz em virtude da baixa de produção verificada, podemos anunciar, após a conclusão das morosas e indispensáveis obras na central de vapor a reentrada em funcionamento da nossa fábrica de óleos, estando a aumentar consideravelmente a colocação no mercado interno do óleo de amendoim e do sabão produzidos nas nossas instalações”. Propunham-se medidas cautelares, no contexto da subversão: “As especiais circunstâncias em que actualmente vive a Província, criando à empresa dificuldades de várias ordens que se não pode prever quando terminarão, parecem justificar a utilização, embora discutível do ponto de vista técnico, dos saldos de todas as contas Amortizações e Provisões na redução do saldo dos prejuízos do exercício de 1960”.

Em 28 de abril de 1966 apresenta-se aos acionistas o balanço do ano anterior, assim se inicia o texto:
“Apesar do esforço militar desenvolvido na Província no ano de 1965, vários factores em que sobressaem o auxílio efectivo dado aos rebeldes pelos Estados vizinhos, o apoio internacional de carácter político e financeiro de que beneficiam e a vulnerabilidade das nossas fronteiras impediram uma melhoria da situação com reflexos sensíveis na vida económica da Província. Pelo contrário, os reflexos da agitação e da repressão nos anos anteriores fizeram-se sentir profundamente na cultura e comercialização dos produtos agrícolas que se situou em 50% do volume normal. Infelizmente, no seu conjunto, prevê-se um agravamento para o ano em curso do qual, nesta data, já estamos a sofrer as incidências de ordem financeira”.
Dava-se conta da compressão de despesas, do afastamento de alguns empregados, do atraso nas reparações nos barcos, na privação de transportes em meios terrestres. O afluxo crescente de tropas trouxeram aspeto de prosperidade comercial em Bissau, era facto que o comércio florescia graças à importação de bens de consumo destinados aos europeus. A Sociedade Comercial Ultramarina procurava reduzir o saldo negativo e informava-se que a cerveja Sagres ocupava o primeiro lugar nas importações. Decrescera a campanha da mancarra em 1965, felizmente que o preço internacional do coconote já era mais favorável, importava-se maciçamente arroz mas as dificuldades saltavam à vista, como se redigiu: 
“As nossas instalações fabris, dada a falta de matéria-prima, trabalharam durante uns curtos períodos ao longo de todo o ano, bem se podendo dizer que o fizeram com o duplo intuito de não dispensar pessoal e de não encerrar uma das duas instalações fabris com significado na vida da Província. A necessidade de mantermos as oficinas em funcionamento para prestação de serviços às nossas frotas de transportes e reparação urgente de edifícios, assim como a utilização de armazéns de produtos ultramarinos impediriam, em qualquer caso, o encerramento do Bloco Industrial e a completa supressão dos encargos com a sua administração, guarda e conservação”.

A situação da Sociedade degradara-se e muito, explicava-se porquê:
“Três anos de guerra na Província causaram até agora a esta empresa avultados prejuízos que atingem a dezena de milhares de contos, sendo 4 mil de prejuízos directos resultando de actos de terrorismo e das operações militares de repressão. Em consequência de se terem agravado ultimamente os reflexos da situação política e militar na vida económica da Província e na actividade da empresa, agravou-se a situação de tesouraria desta Sociedade, em condições que causam estrangulamento na sua actividade comercial.
Nestas condições, considerando que o BNU é o principal e mais directo interessado nos resultados desta empresa, pelo que eles significam como possibilidade de amortização de passivo e pagamento normal de juros, foram iniciadas diligências junto da respectiva Administração com vista a ser encontrada uma solução que alivie a empresa temporária ou definitivamente de alguns dos seus encargos financeiros.”

Bem elucidativa é a ata do Conselho de Administração da Sociedade com a data de 20 de março de 1970. O administrador fez uma larga e pormenorizada exposição da sua recente visita à Guiné, assistira à inauguração do descasque de Bafatá. Era crescente a importação de mercadorias, caso das importações de cerveja e combustíveis. Mas não era eludível a situação bastante crítica em que se encontrava a Sociedade, com o elevado dispêndio de gastos gerais, o equipamento estava decrépito, afora alguns bacos e o descasque de arroz, o resto era um amontoado velhíssimo de máquinas e motores, totalmente arruinados. O quadro geral era assumidamente lastimável: a fábrica de óleo não estava operacional e não era competitiva; a fábrica de sabão, além de primitiva, não tinha condições de subsistência; os descasques de mancarra, todos com mais de dez anos, estavam quase arruinados; a estrutura humana dos serviços que funcionava na Província era um dos males maiores da Sociedade, com uma única exceção para o gerente, experiente e probo, com invulgares qualidades de trabalho. Enfim, impunha-se repensar o funcionamento da empresa em novas linhas mestras e propunha-se que no futuro imediato as operações da empresa tivessem as seguintes direções: compra de mancarra, descasque e venda de ginguba; importação de cerveja; importação de combustíveis; fornecimento direto às Forças Armadas; comercialização de mercadorias cujo prazo de crédito exceda o da venda e liquidação; e fretes fluviais.

Em 1972, apresenta-se uma súmula da situação económica e financeira da Sociedade, começando por se dizer que havia uma baixa margem de lucro nas mercadorias, uma deterioração da margem de lucro nos produtos ultramarinos, não se dera a recuperação financeira que se esperava a partir de 1967, eram solicitados mais apoios ao BNU. A Sociedade Comercial Ultramarina entrara na Sociedade Vinícola da Guiné, auguravam-se grandes vantagens, registavam-se atrasos de pagamentos das Forças Armadas, pediam-se mais créditos em conta-corrente.

Estamos com a documentação avulsa praticamente esgotada. Iremos no derradeiro texto referir o que consta no acervo sobre a CICER – Companhia Industrial de Cervejas e Refrigerantes da Guiné, uma participação do BNU para a edificação de um monumento aos mártires do colonialismo, ainda existe um dossiê com data de outubro de 1974 acerca do novo edifício para a delegação de Bafatá, as negociações do Governo da Guiné-Bissau para a nacionalização da Sociedade Comercial Ultramarina e os impostos a pagar pelo BNU referentes ao ano de 1974. Seguir-se-ão as conversações entre o Governo da Guiné-Bissau e a Administração do BNU para a transferência do BNU de Bissau para o novo Estado da Guiné-Bissau.

(Continua)

Fotografia da década de 1920. 
Imagem retirada da Wikimedia Commons, com a devida vénia.


Imagem extraída do livro Guiné – Alvorada do Império, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.
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Nota do editor

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sexta-feira, 1 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19543: Notas de leitura (1154): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
Caminhamos para o último punhado de documentação avulsa do Arquivo Histórico do BNU.
Hoje passa-se em revista as decisões tomadas quanto às propriedades do BNU na Circunscrição de Fulacunda, mais de 1% do território guineense, todas elas encravadas num Quínara em efervescente guerra, a Casa Gouveia doou o que tinha para uma cooperativa agropecuária, a governação do BNU, no final de 1973, quis fazer uma cessão a 15 anos. A guerra não parecia abrandar o ritmo dos negócios, o Governo criou o Hotel Nuno Tristão em Bissau, constituíra-se a CICER - Companhia Industrial de Cervejas e Refrigerantes da Guiné e a Companhia de Pesca e Conservas da Guiné em fevereiro de 1974 já estava completamente paralisada, apareceu e desapareceu.
Veremos seguidamente um pouco da história da Sociedade Comercial Ultramarina, constituída em 19 de fevereiro de 1923 e que paulatinamente se transformara numa das jóias da coroa do Banco.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75)

Beja Santos

Desde muito cedo que o BNU na Guiné passou a ser detentor de dezenas de milhares de hectares, tornou-se um banqueiro com assinaláveis propriedades rústicas, centradas na região de S. João, Tite, Fulacunda e Buba, mais de 1% do território. Num documento de indiscutível importância histórica, os apontamentos de António Júlio de Castro Fernandes, administrador do BNU e um dos próceres do Estado Novo, elaborados depois da viagem que fez à Guiné de março a abril de 1957, é levantada a questão e preconizada uma gama de soluções para a rentabilização destas propriedades, refere Castro Fernandes nas suas notas a natureza dos solos, fala na organização de seis blocos de propriedades, invoca mesmo um estudo elaborado pelo engenheiro José Teles Ribeiro.
Este, a propósito da valorização das propriedades do BNU, escreveu o seguinte:
“Os terrenos do BNU integram-se na designação de ‘Propriedades Perfeitas’ o que, segundo os termos do regulamento de concessões, garante ao proprietário o domínio directo, o domínio útil e a faculdade de venda; em contraste com a concessão por aforamento em que o foreiro tem exclusivo direito ao domínio útil, pertencendo o directo ao Estado e revertendo o terreno a este desde que não esteja devidamente aproveitado no prazo de tempo para tal afixado. Daqui resulta o alto interesse e valor das propriedades do BNU e a necessidade de os valorizar ao longo dos anos, mediante uma ocupação agrícola gradual em vez de a deixar ir desvalorizando pelo abandono das mesmas à acção devastadora do indígena.
Essa desvalorização terá de assentar necessariamente na ocupação das melhores parcelas dos terrenos por culturas de carácter arbóreo, não só por serem as que permitem uma maior extensão ocupada com o mínimo de investimentos, mas também porque, ao contrário das culturas arvenses de cultura anual, se traduzem por uma ocupação quase definitiva.

Com base no conhecimento das condições ecológicas locais, consideramos preferenciais as seguintes culturas:
Caju – árvore bastante rústica, podendo ser semeada directamente no terreno definitivo, é a que se traduz numa ocupação mais económica, dada a inexistência de granjeios.
Coleira – Com elevados rendimentos por árvore, poderia ser usada na ocupação dos terrenos mais ao Sul.
Coqueiro e palmeira – Viável nos terrenos baixos e húmidos, onde seja possível a obtenção de água superficial ou subterrânea.
Cafeeiro – Embora ainda não definitivamente estudado, parece admitir-se como provável uma boa adaptação da variedade ‘robusta’.”

Anteriormente, o BNU encarregara um perito alemão, E. W. Boesser, a quem Castro Fernandes também alude, a fazer um estudo sobre as possibilidades económicas destes terrenos, mormente na região de Quínara. O seu relatório debruça-se sobre a natureza dos terrenos e o que eles podem produzir.
O que escreve tem bom recorte literário, ele procura enquadrar e pôr em consonância os dados naturais de solo, clima e planta:
“A ciência que se ocupa com estes factores, com as suas interdependências e influências mútuas é a fitogeografia, no seu ramo da ecologia vegetal; e quando se respeitam propositadamente as condições especiais que se constituem e põem, quando as actividades e finalidades económicas do Homem terão de ser relacionadas com aqueles factores básicos da vida vegetal, com os quais querem ser postas em harmonia e produtiva efectuação recíproca, é de falar em fitogeografia aplicada.”

É muito expressivo em tudo quanto escreve, está muito atento aos “rios” e à sua importância nas explorações, pensa logo na cultura do arroz e nas formas de mangal de alto fuste e equaciona as quatro entidades naturais da paisagem, falando das áreas marinas dos rios comenta os solos lodosos que podem ser transformados em terras de arroz.

É técnico, e tudo quanto redige tem essa matriz, mas a sua escrita é muito elegante, falando de rios, mangais, lalas, população vegetal, a organização da selva, solo dos matos secundários, linhosas secundárias, rematando: “Um facto muito remarcável é que em todas essas variantes de vegetação, desde a espessa floresta secundária, de aspecto quase virgem, até à mais clara savana arborizada, se encontram sempre ora numerosamente ora de modo mais disperso, em todo o caso porém em aparente prosperidade, palmeiras de óleo”.

E tece um enquadramento entre essa paisagem e o habitat:
“Embutidas naquela paisagem, variada em si, de floresta, bosque e parque, acham-se as pequenas roças dos indígenas de data recente que no decurso de poucos anos já serão reconquistadas pela savana e pelo mato. Somente nas proximidades das aldeias ou tabancas e especialmente nas penínsulas dos arredores de S. João de Bolama observam-se extensas áreas de cultura, continuadamente exploradas e por isso quase completamente desnudadas”. E em jeito de conclusão dirá que aqueles terrenos colinosos oferecem condições para a vida vegetal, não haverá qualquer impedimento essencial à concentração desejável das produções.

Atenda-se que nas reuniões do Conselho Geral do BNU ocorridas em 10 e 16 de maio de 1957, Castro Fernandes lembrou estes terrenos, que em conversações havidas com a Sociedade Nacional de Sabões, esta chegara à conclusão não estar interessada em tal compra, comentou detalhadamente o documento elaborado em 1954 pelo fitogeógrafo E. W. Boesserg, referiu que a Casa Gouveia estava a fazer em Bolama uma exploração agrícola e que o próprio Governador fazia constantemente apelos ao desenvolvimento. Fez comentários ao punhado de notas que enviara a todos os membros do Conselho, enfatizou a situação cambial da Província, manteve a sua enorme expetativa no florescimento da Sociedade Comercial Ultramarina e por fim versou assuntos sociais do BNU na Guiné como as moradias para os empregados, beneficiações no edifício da sede e a compra de dois bungalows destinados aos empregados do Banco na Praia de Varela.

A agricultura associada ao comércio passou a ser uma tónica dominante da presença do BNU na Guiné, em qualquer relatório ela virá a ser tratada com realço.
Veja-se o relatório da visita de inspeção à Filial de Bissau em 13 de dezembro de 1968, estamos no auge da luta armada:
“A agricultura, outrora a base da economia da Guiné, não pode hoje ser considerada como elemento efectivo do desenvolvimento desta Província. A situação criada à região levou o agricultor a concentrar-se nos grandes centros comerciais ou em tabancas onde efectivamente encontra a protecção das Forças Armadas mas, em contrapartida, depara com solos fracos, sem grandes possibilidades.
E ao natural afrouxamento das culturas tradicionais – milho, mandioca, sorgo e arroz – também não será completamente alheio o facto de, por razões de defesa, haverem sido chamadas largas centenas de homens para as milícias e que deixaram assim de prestar o seu contributo braçal à agricultura.
Não se torna por isso difícil explicar a necessidade em que se viu nos últimos anos a Província de, tradicionalmente exportadora de arroz, embora de quantidades reduzidas, passar a importar grandes quantidades deste cereal para sustento das populações.
As indústrias existentes, reflexamente, têm também na actual conjuntura uma muito menor influência na economia da região se atendermos a que a matéria-prima – a mancarra, o coconote e o próprio arroz – escasseou pelos mesmos motivos apontados.
Se dantes dizíamos que a economia assentava basicamente na agricultura, hoje podemos afirmar que a Guiné encontra relativo equilíbrio orçamental no comércio importador, que passou a desfrutar de grande prosperidade – melhor diríamos, a viver uma fase de autêntica euforia – na medida em que se lhe proporciona um maior poder de compra trazido pela presença dos grandes efectivos militares, de 1963 a esta parte. Esta situação, como não podia deixar de ser, provoca um desnível muito acentuado na sua balança comercial”.

O BNU, tal como a Casa Gouveia, vão gradualmente perdendo esperanças de pôr a agricultura dos seus terrenos a funcionar. E tomar-se-ão decisões drásticas, em 1973, ambos os empórios oferecem aqueles prédios rústicos para cooperativas.

No Arquivo Histórico do BNU encontra-se uma informação que tem a data de 9 de julho de 1973 em que toda a questão é repertoriada: a posse daqueles cerca de 44 mil hectares na Circunscrição de Fulacunda, propriedade do BNU desde 1927, por efeito de execução hipotecária; a tentativa de criar uma sociedade em Bissau, à qual seriam vendidas as propriedades, para devida exploração agropecuária, que, afinal, não chegou a constituir-se; a ocupação e controlo das propriedades por parte dos terroristas; em situação análoga se encontravam na Guiné cerca de 15 mil hectares de terrenos pertencentes ao grupo CUF que vieram a ser doados à Província em abril de 1973, para serem explorados pelas populações, em regime comunitário; o General Spínola conversara com a administração do BNU tendo ficado verbalmente assente que o Banco faria a doação dos terrenos; o General Spínola enviara agora uma minuta de escritura onde se sugeria uma doação ao Governo da Província com uma importância destinada à instalação da cooperativa agropecuária, que teria a designação de Cooperativa do Quínara; quem assinava a informação dava o parecer que apenas se deveria doar os terrenos e não conceder qualquer subsídio ou, quando muito, conceder um subsídio simbólico de 100 ou 200 contos e se a Cooperativa precisasse de auxílio do Banco, estabelecer-se-ia um crédito.

Em 8 de fevereiro de 1974 temos uma última referência a estas propriedades, numa documentação avulsa onde também se fala da CICER, da Companhia de Pesca e Conservas da Guiné e do Hotel Nuno Tristão em Bissau. Quanto às propriedades de Fulacunda, escrevia-se que o Conselho do Banco considerara, em 10 de outubro de 1973, ser preferível fazer uma cedência gratuita do direito de uso pelo prazo de 15 anos, atribuindo um subsídio de 10 mil contos. Quanto à CICER, aqui temos a primeira referência a esta sociedade fundada em 21 de dezembro de 1971, tendo como principais acionistas a Sociedade Central de Cerveja, a Companhia União Fabril Portuense, a Cuca de Angola e a Fábrica de Cervejas Reunidas de Moçambique, Lda. Para satisfazer diversos encargos com a construção da sua fábrica em Bandim, a CICER solicitou, em julho de 1973, créditos, o apoio do BNU no final desse ano de 1973 somava 54 mil contos. A Companhia de Pesca e Conservas da Guiné, dizia-se já em fevereiro de 1974, era um empreendimento que não ultrapassara a fase de arranque, a sociedade estava paralisada e sem meios para funcionar, o crédito concedido pelo BNU era de cerca de 8 mil contos. Quanto ao Hotel Nuno Tristão, era um empreendimento que o Governo da Província chamara a si, o previsto hotel constaria de um edifício de três andares, com 53 quartos e 7 suites, cujo custo estava orçado em 26 mil contos. Para cobertura da parte financeira, o Governo solicitara ao BNU um empréstimo de 20 mil contos a liquidar em 15 anuidades. O BNU concedia o empréstimo a liquidar em 24 semestralidades.

Caminhamos para o final da documentação avulsa, temos ainda pela frente o grande dossiê da Sociedade Comercial Ultramarina, dela se falará já a seguir.

(Continua)

Navegação à vela nos rios. Imagem extraída do livro Guiné – Alvorada do Império, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.

Tocadores de “Mutaro”. Imagem extraída do livro Guiné – Alvorada do Império, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.

Farol do canal de Pedro Álvares, Bijagós. Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Notas do editor

Poste anterior de 22 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19516: Notas de leitura (1152): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (74) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19526: Notas de leitura (1153): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19516: Notas de leitura (1152): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (74) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à apresentação de apontamentos coligidos por Castro Fernandes, Administrador do BNU, após uma visita que ele fez à Província, entre 9 de março e 8 de abril de 1957.
Bem estribado sobre a situação política, alerta para o fenómeno separatista que começa a soprar na África Ocidental francesa; refere o contencioso entre o Governo e o Perfeito Apostólico; dá-nos um dos retratos mais crus alguma vez feitos sobre a sociedade guineense; inventaria os recursos económicos, levanta o véu sobre a competitividade que ele desejaria que fosse mais forte entre a Sociedade Comercial Ultramarina e a Casa Gouveia; aborda a questão cambial, as propriedades do Banco, ainda vê solução para o aproveitamento dessas dezenas de milhares de hectares, repertoria as riquezas de subsolo que se conheciam, fala das conversas que teve em privado com o Governador Silva Tavares.
Em suma, um apanhado de notas de grande valor que a historiografia não pode doravante ignorar.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (74)

Beja Santos

Continuamos com os apontamentos coligidos pelo punho de António Júlio Castro Fernandes, administrador do BNU, com o pelouro de Cabo-Verde, Guiné e S. Tomé. Permaneceu na Guiné de 9 de março a 8 de abril de 1957 e deixou-nos um documento com incontestável valor histórico. Bem documentado, com acesso à cúspide das instituições, deixa-nos um assombroso retrato do meio social, compendia os recursos económicos à luz dos interesses da época, deixa o aviso de que se vão operar mudanças na África Ocidental francesa e que a Guiné tem que deixar o estado de colónia-feitoria, pela primeira vez, em documento de administrador, fica bem claro que o BNU tem um desafio pela frente que é concorrer com a CUF por via da Sociedade Comercial Ultramarina, como ele diz, “obra do nosso Banco”.

Deixa para o fim dos seus apontamentos um capítulo sobre os problemas que diretamente interessam ao BNU e inclui nas notas soltas referências às condições mineralógicas, juntando mais elementos sobre a Sociedade Comercial Ultramarina e a exploração agrícola da Casa Gouveia.

Detalha a situação cambial, o que faz o Fundo Cambial da Província, concluindo que fica explicada no seu largo comentário a razão pela qual a conta da Sede algumas vezes dá a perceber uma posição favorável que não existe, e procura justificar o motivo da desnivelada posição de coberturas da Filial. Enuncia as propriedades do Banco, é um assunto a que se terá que voltar, pois no Arquivo Histórico do BNU há referências sobre as propriedades rústicas do Quínara e relatório sobre as possibilidades económicas desta imensa propriedade sita na circunscrição de Fulacunda. Por razões de coerência e de legibilidade quanto a este património, trata-se adiante tudo em conjunto.

Falando das condições mineralógicas, diz que há bauxite na região de Boé. Informa que do lado francês estava a proceder à extração uma empresa canadiana e que do lado da colónia portuguesa a dificuldade parecia ser o transporte até ao rio Buba, dificuldade que poderia ser suprida com uma pequena linha de caminho-de-ferro. E comenta que a casa holandesa N. V. Billiton Maatschappij estava a projetar na região.

Observa, a propósito da ilmenite, que os franceses estavam a explorar as areias da praia ao Norte do Cabo Roxo, junto da foz do Casamansa. Os trabalhos hidrográficos levavam à conclusão que a ilmenite abunda na Guiné Portuguesa. Diz igualmente que as análises dos calcários de Bissau revelaram a existência de nódulos de fosfatos de cálcio em percentagens que indicam a conveniência de se fazerem ulteriores trabalhos de pesquisa.

Como estamos já em notas soltas, escreve lapidarmente o seguinte:
“No plano político, disse-me o Governador, são poucos os elementos com que pode contar. O Governador é, disse-me, intransigente quanto aos princípios fundamentais: não nomeia, não distingue pessoas que não sejam de absoluta fidelidade a esses princípios. Não se importa que discordem do Governo da Província ou do Governo Central neste ou naquele ponto, ou mesmo em muitos pontos, mas têm de ser fiéis aos princípios. Reviralhistas e comunizantes abundam na Guiné (A. A. Silva, Mário Lima, etc.). O nosso consultor jurídico, Dr. Pina, foi nomeado Presidente da União Nacional.”

E cita afirmações do Governador na sessão do Conselho de Governo em que foi aprovado o orçamento:
“A Brigada de Estudos Hidráulicos da Guiné além do melhor aproveitamento do rio Geba como via de comunicação, tem como um dos seus principais objectivos estudar o aproveitamento nos terrenos marginais do referido rio e a forma de proceder às respectivas drenagens e irrigação. Para esse efeito, está prevista já para este ano a construção de uma estação agronómica. Essa estação será construída em cooperação com os Serviços de Agricultura, de forma que ambos os Serviços utilizem mutuamente os respectivos conhecimentos e experiências. Essa estação deverá ainda ser construída tendo em mente que ela deverá vir a reverter para os Serviços de Agricultura, passando a ser a Estação Agronómica da Guiné.
… Ainda no que concerne a fomento agrário, entrar-se-á, este ano, através do Plano de Fomento, pelo caminho da defesa, enxugo e recuperação de terrenos, indo, aliás, de encontro às solicitações dos indígenas.”

Refere, e tem seguramente significado, a exploração agrícola da Casa Gouveia, em Bolama:
“Nos viveiros do Nato Fula existem 18 mil coqueiros já muito desenvolvidos e 30 mil cocos em viveiro coberto, dos quais grande parte dará transplantação na próxima época das chuvas.
Fazem-se experiências de plantas de cobertura com objectivo de evitar a erosão e o domínio do capinzal inútil. Experimentaram-se também os pés de rícino, estudando-se a melhor época da sementeira.
Em Sã-Muriá existem plantações com 6 mil palmeiras de samatra e 23 mil coqueiros – início de uma grande exploração futura. A exploração conta com 250 trabalhadores voluntários, com salário, alimentação, alojamento e assistência médica. Esta exploração, escreve-se na imprensa local, constitui uma novidade prometedora, um caso única na vida agrícola da Província através dos tempos!”

Estamos agora chegados à questão do património do Banco em terrenos. A riqueza do BNU distribuía-se pelas áreas administrativas de S. João, Tite, Fulacunda e Buba, constituindo um conjunto de seis blocos, abrangendo uma área total próxima dos 44 mil hectares. Castro Fernandes tece os seguintes esclarecimentos para a governação do BNU:
“Tendo havido conversas aqui em Lisboa, acerca do eventual interesse da Sociedade Nacional de Sabões em adquirir para si ou para a Sociedade Comercial Ultramarina estas propriedades, procurei antes de mais nada averiguar se o negócio teria ou não viabilidade.
Coincidiu estar na Guiné o Engenheiro Agrónomo Teles Ribeiro, encarregado pela Sociedade Nacional de Sabões de estudar o assunto.
Uma primeira conversa com o Eng.º Teles Ribeiro levou-me logo a concluir que o assunto não interessaria à Sociedade Nacional de Sabões. Com efeito, esta empresa parece estar interessada nas possibilidades de exploração agrícola na Guiné – sobretudo de palmares, coqueiros, rícino e, eventualmente, de arroz. Para tanto, encarregou o Eng.º Teles Ribeiro para proceder ao estudo da possibilidade dessa exploração.
O critério que preside ao estudo a que o Eng.º Teles Ribeiro está procedendo consiste em não adaptar determinados terrenos às culturas que interessam à empresa, mas sim o de escolher terrenos próprios para essas culturas. Prefere, já se vê, propriedades perfeitas a concessões, em todo o caso como ainda é possível adquirir propriedades a $20 o hectare, só escolherá terrenos em condições óptimas.

As propriedades que as casas grandes possuem na Guiné – como a Casa Gouveia – não tiveram, aquando da aquisição, o objectivo de fazer exploração agrícola, mas objectivos exclusivamente comerciais. Pretendeu-se que o indígena, trabalhando – por sua conta – nessas propriedades, lhes vendessem, e não a outros, os respectivos produtos.
Os antigos donos das propriedades que hoje pertencem ao Banco deviam ter tido os mesmos objectivos.
É certo que a consciência que hoje na Guiné se vai tendo dos problemas, força as Casas grandes a darem o seu concurso à valorização económica da Província. O facto de haver, como há, propriedades pertencentes a comerciantes completamente ao abandono, é motivo de críticas que se publicam. Assim é que em artigo publicado no jornal ‘Bolamense’ se denunciam asperamente estas situações: ‘… não, senhores agricultores, na maior parte casas comerciais de grande vulto aqui e na Metrópole, assim não está certo. As vossas terras são enormes e estão praticamente abandonadas sem valor económico algum’.

A CUF apercebeu-se já da situação e lançou-se decididamente na valorização das suas propriedades. E o facto é tão saliente que em entrevista concedida à imprensa pelo Governador da Província, referindo-se ao facto, disse: ‘A exploração agrícola da empresa A. Silva Gouveia, Lda., é um empreendimento de grande vulto. Já estão plantados dezenas de milhares de coqueiros e existem em viveiros muitas outras dezenas de milhares de coqueiros e palmeiras. Está planeada a plantação, segundo me dizem, de centenas de milhares de coqueiros e palmeiras. É uma iniciativa de largo alcance para a Guiné… Quero crer que a iniciativa frutificará… O difícil é sempre principiar’.

Vai descrevendo os blocos das referidas propriedades, fala em solos vermelhos em S. João, dizendo tratar-se dos mais equilibrados da Província, ali se cultiva amendoim, os solos dão sinais nítidos de cansaço. Noutro bloco, o maior, encontra-se uma maior diversidade de tipos de solos, que vão dos vermelhos aos amarelos, caraterizando-se estes últimos pelo aparecimento de uma couraça laterítica. Há propriedades com palmeiras, ocupadas por floresta aberta, e depois de fazer esta exposição, Castro Fernandes deixa as seguintes notas:
“O problema das propriedades do Banco põe-se, a meu ver, em três hipóteses: venda; o seu abandono à acção devastadora do indígena; a sua valorização ao longo dos anos, mediante uma gradual ocupação agrícola.
Não sendo – como não é – viável a primeira, decido-me abertamente pela terceira.
Quanto a mim, esta valorização teria de assentar na ocupação das melhores parcelas dos terrenos, por cultura de carácter arbóreo. São as que permitem uma maior extensão ocupada com o mínimo dos investimentos. Sem as que – ao contrário das culturas arvenses de carácter anual – se traduzem por uma ocupação definitiva.
Estou convencido que a valorização dos terrenos – agora sem valor – se poderia fazer através do coqueiro e da palmeira (viável nos terrenos baixos e húmidos), do caju (árvore muito rústica, que pode ser semeada directamente no terreno definitivo e que permite uma ocupação extremamente económica, dada a inexistência de granjeiros), da coleira (com elevados rendimentos por árvore e que pode ser utilizada na ocupação dos terrenos mais a Sul) e, eventualmente, do cafezeiro, que, embora ainda não definitivamente estudado, tudo leva a crer ser viável uma boa adaptação da variedade robusta. No que se refere às lalas existentes e ainda não ocupadas pelo indígena, seria, a meu ver, caso para se pensar o seu aproveitamento para a exploração orizícola através de combinações a encarar”.

É este o essencial dos pontos abordados neste importante relatório. Está enxameado de notas políticas e revelação de conversas. Veja-se o caso da ilha de Canhambaque:
“Foi o Governador quem primeiro me falou no assunto, revelando a maior hesitação sobre o caminho a seguir. O intendente Santos Lima pensa que a solução consistiria em transferir para lá a colónia penal que está instalada nas lhas das Galinhas e, com esse pretexto, mandar uma companhia militar que meteria aquilo na ordem. O Administrador de Bissau entende que tal medida seria um disparate. Segundo diz, a ilha é um palmar densíssimo que permitiria uma luta de guerrilhas semelhante à Indochina”.

Vamos seguidamente passar em revista o essencial do muito que se escreveu sobre as propriedades do BNU, o que se disse sobre as possibilidades económicas, e como a luta armada tudo veio atrapalhar de modo que em 1973 o BNU encontrou uma forma airosa de se desfazer de um acervo de terrenos que se tinham tornado economicamente inúteis.

(Continua)

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A doutoranda Lúcia Bayan, estudiosa da etnia Felupe, mais uma vez revela a sua generosidade oferecendo-nos imagens relacionadas com a sua investigação, desta feita um marco que assinala a presença de fuzileiros do DFE 2 junto do Cabo Roxo, desconhecia completamente estas imagens, creio que nos prestou um ótimo serviço para enriquecimento do mais valioso acervo fotográfico que existe da Guiné Portuguesa.

Uma curiosidade para os militares portugueses que estiveram em Varela. Esta foto é do marco fronteiriço nº 184, junto ao Cabo Roxo, a ponta mais ocidental da Guiné-Bissau, que hoje é mais senegalesa que guineense. O marco foi refeito, em 1962, por militares portugueses (Fuzileiros DFE 2)

Foto do farol português, agora desactivado, no mesmo Cabo.

Imagem de um mapa do Ministério do Ultramar, de 1953, com o marco fronteiriço e o farol assinalados.
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Notas do editor

Poste anterior de 15 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19496: Notas de leitura (1150): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19505: Notas de leitura (1151): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19496: Notas de leitura (1150): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Duas razões para mim de muito peso seguem com este apontamento que submeto à vossa leitura. Não conheço nenhum texto de índole política, social e económica tão influente como estas notas elaboradas em 1957 pelo administrador Castro Fernandes, figura gradíssima do regime de Salazar. No fundo, é uma solene advertência de que tudo tem de mudar, estão a acontecer coisas na emancipação de África, mesmo ali à volta da Guiné, atenda-se à franqueza do diagnóstico e atue-se, antes que seja tarde.
A outra razão é de caráter muito pessoal, e pode abranger todos os camaradas da Guiné que porventura tenham conhecido Mato de Cão. Veja-se a imagem da estação no rio Geba, com ela convivi de agosto de 1968 a novembro de 1969, com uma frequência inusitada, uma regularidade quase diária. Montava-se a segurança num ponto alto, e em certas ocasiões subia a passagem, para que os barcos, civis ou militares, me identificassem, era ali que pedia boleia para Bambadinca, para mim e para os meus. Que impressão tão forte me provoca esta imagem!

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73)

Beja Santos

Os apontamentos elaborados pelo Administrador António Júlio de Castro Fernandes, a propósito da sua visita à Guiné Portuguesa entre 9 de março e 8 de abril de 1957 são uma peça de indiscutível importância não só pelo leque dos assuntos versados, a crueza de opiniões e a formulação de conceitos coloniais, a análise económica e o punhado de sugestões que apresenta para revigoramento da Sociedade Comercial Ultramarina. Iniciou a apreciação dos recursos económicos dando prioridade, como era óbvio, à mancarra. Segue-se agora uma apreciação do coconote.

A palmeira de azeite produz óleo de palma, coconote e vinho de palma. E é minucioso ao dizer que “o óleo de palma é extraído da polpa que envolve a amêndoa, o coconote é a amêndoa, o vinho é extraído da ferida feita junto ao cacho”. Diz mais: “A palmeira abunda na zona do Litoral. Maciços mais extensos: Arquipélago dos Bijagós, Cacheu e S. Domingos. Cobre uma área aproximada de 90 mil hectares”. Fala sobre a tonelagem exportada de óleo de coconote e de óleo de palma. E fala concretamente do que viu: “Tive ocasião de em diversas tabancas e moranças assistir à preparação do óleo de palma. Entre Teixeira Pinto e Cacheu, vi uma das instalações administrativas para o descasque do coconote e esmagamento da polpa. O indígena utiliza o descascador mas recusa o esmagamento ou trituração da polpa”.

A única fábrica de óleo de palma que existe é a de Bubaque, diz adiante e lança números sobre a mesa, não descurando comentários próprios:
“O coconote ocupa o segundo lugar na exportação da Província. O descasque é feito, geralmente, pelo indígena – é mal feito e à custa de um esforço perfeitamente estúpido. Além da fábrica de Bubaque, existem algumas britadeiras (umas administrativas, por utilizar quase todas; outras particulares). O desinteresse por parte do indígena na utilização destas britadeiras tem sempre a mesma causa – paga-se por preço inferior ao razoável o coconote bruto adquirido ao indígena (os detentores das britadeiras querem lucros elevados para a rapidíssima amortização do capital investido nas maquinetas).”
A única produtora de óleo de coconote já estava fechada, mas entrara em negociações com o BNU. E tece um comentário final:  
“O comércio do coconote faz-se como o da mancarra. Os mesmos processos, a mesma técnica. O coconote compra-se através de todo o ano, o indígena tem as suas reservas para ocorrer às necessidades mais prementes. As pontas são de maio a Outubro. Neste negócio do coconote, a grande vantagem está ao lado dos que possuem descasques de arroz.”

Entrando na apreciação do alimento preferido pela população guineense, esclarece:  
“Reputa-se em 70% da superfície total os terrenos susceptíveis de serem aproveitados para o cultivo do arroz.
É impossível determinar com rigor a produção, sobretudo em virtude do contrabando para o Senegal, Guiné Francesa e Gâmbia. Calculando-a pelo rendimento por hectare, admite-se uma produção de 90 mil toneladas”.
E enumera a produção pelas diferentes regiões da Guiné. Havia fábricas de descasque, eram três: a Casa Gouveia, a Sociedade Comercial Ultramarina e Mário Lima. E informa que “Os donos do descasque são também comerciantes que, por intermédio das suas redes de lojas ou por contratos com os comerciantes – intermediários, adquirem a maioria da produção não exportável por contrabando. Todo o arroz descascado fica, assim, em seu poder, sendo vendido em Bissau, nas suas próprias lojas”. E dá conta de um outro pormenor, além do arroz descascado há o arroz de pilão, este não pode ser misturado com o arroz descascado mecanicamente.

Vê-se que Castro Fernandes está seriamente documentado e possui informação atualizada:
“Segundo o Governador, a cultura do arroz é uma cultura colectiva que não pode ser levada a efeito em pequenas propriedades individuais. O arranjo das terras, a construção dos diques, exige o trabalho de toda uma organização. É o trabalho das tribos que é exercido, principalmente pelos Balantas. Diversas causas têm desorganizado o trabalho tribal, tornando impossível, quando tal se dá, o cultivo do arroz. É o caso dos Papéis da Ilha de Bissau. Solicitado para toda a espécie de trabalhos, foi-se desorganizando, desarticulando a tribo e não são as mulheres e as crianças que podem proceder aos amanhos e cultivo dos terrenos. O problema consiste em recuperar terrenos, pondo-os em condições de se fazer a respectiva cultura e, ao mesmo tempo, em não desorganizar a tribo, só recrutando homens para o coconote e outros trabalhos, na fase da cultura que as mulheres podem fazer. É esta a orientação que o Governo da Província está a imprimir aos milhares e milhares de hectares que se estão recuperando. Ao Estado compete fomentar a cultura, criando os meios necessários para tal: recuperação de terrenos, organização e defesa do trabalho tribal, obras de rega e de defesa, auxílio ao indígena (tractores, plantas, etc.). O indígena – acrescentou o Governador – tem a compreensão exacta do problema. Os velhos queixam-se de que lhe vêm buscar os rapazes, desorganizando por completo a única forma de exploração possível do arroz.
O caso do Sr. Álvaro Boaventura Camacho funciona estupendamente porque, justamente ele é verdadeiramente o régulo, fazendo os indígenas nas suas propriedades um trabalho tribal.
As propriedades do Sr. Álvaro Camacho – em casa de quem estive hospedado – estão situadas na região de Tombali, circunscrição de Catió. É chão de Nalus, mas – graças à fixação operada através de 30 anos pelo Sr. Camacho – predominam os Balantas. A produção do arroz nesta circunscrição estima-se em 20 mil toneladas. Em Cufar (a 15 quilómetros de Catió) tem a residência e em Cantone os armazéns de arroz, fazendo-se daqui o respectivo embarque. Os indígenas cultivam o arroz nas propriedades do Sr. Camacho que lhes compra o produto, vendendo-lhes os que necessitam”.

O Administrador Castro Fernandes irá ainda debruçar-se sobre os produtos têxteis, a cana sacarina, o gergelim e purgueira, o rícino, o cajueiro, as plantas alimentares, a exploração florestal, a borracha, a pecuária, a cera e o mel, a pesca e as indústrias. Há observações relevantes: até agora, a cultura algodoeira tinha sido um fracasso, bem como a sumaúma; acreditava-se que a cana sacarina tinha viabilidade económica, o Governador não parecia particularmente entusiasmado, seria de atender ao gravíssimo problema do fabrico e consumo de aguardente (“O Balanta, que só trabalha 4 meses por ano, anda bêbado os outros 8 meses. As mulheres já dão aguardente às crianças”), o Governador dissera a Castro Fernandes estar a procurar por formas indiretas diminuir sucessivamente a produção de aguardente; o gergelim e a purgueira tinham largas possibilidades de expansão na Guiné; o cajueiro constituía pela proteção do solo um conectivo à desmedida agricultura de sesmeiro; a Guiné, reconhecia-se, tem condições francamente boas para uma eficiente exploração florestal, mas era indispensável um esforço de repovoamento ordenado com espécies úteis; as possibilidades da pesca eram ainda desconhecidas e dizia-se no relatório que a tentativa de J. da Silva Peralta era, por enquanto, extremamente tímida e limitada; quanto às indústrias, à parte das instalações da Sociedade Comercial Ultramarina e da Casa Gouveia e da instalação da Sofuil em Bubaque, pouco havia a assinalar. Em síntese, uma indústria extremamente rudimentar.

No capítulo dedicado às perspetivas, o conjunto de observações merece todo o destaque:
“Conseguirá a Guiné Portuguesa passar do estado de colónia-feitoria?
Existe uma certa evolução, ao menos nas ideias, no sentido de passar da simples exploração do existente para a criação de verdadeira riqueza.
Há hoje um interesse, todos os dias crescente, pela Guiné havendo sinais de que não só as grandes firmas (refiro-me à CUF) se preparam para investir capitais em explorações tecnicamente bem estudadas, como se anunciam certas tentativas interessantes. Receio, porém, que algumas delas fracassem (tenho sérias dúvidas, por exemplo, quanto à fábrica de borracha) e que tal fracasso desencoraje os outros.
Mas não nos fiquem dúvidas de que o que está, como está, se não poderá manter por muito mais tempo.

Os Serviços Agrícolas locais têm uma missão extraordinariamente importante, mesmo decisiva, a cumprir. Mas organizar-se como estão – servem menos do que para nada.
Além de não haver bom pessoal (tecnicamente), o quadro é mais do que exíguo e pessimamente dotado. Ainda por cima a terra é pouco desejada, os que vão para a Guiné têm um único objectivo – sair da Guiné, serem transferidos para outra Província (conquanto que não seja para Cabo Verde). De modo que não há, nem pode haver, continuidade. Um estudo, uma experiência iniciada hoje, é interrompido, fica pelo caminho, perdendo-se o que porventura se tinha obtido.
Os nossos vizinhos do Senegal conseguiram já, quer na mancarra, quer no arroz, resultados apreciáveis, tanto na selecção, como no aumento do rendimento, como na obtenção de variedades apropriadas às diferentes características de solos e climas.

Mas não basta organizar capazmente os Serviços Agrícolas – embora seja essencial e urgente fazê-lo – é necessária, para que se obtenham os resultados que importa obter, uma perfeita cooperação do produtor e do comerciante. Educação do indígena (que tem de começar por o não roubar), disciplina do comércio (que hoje facilita as fraudes e desleixe do indígena – comprando tudo quanto apresenta, por mais inferior que seja o produto). A justificada má fama da mancarra e do coconote guineenses no mercado mundial é apenas o resultado da nossa incapacidade em comerciar com decência – incapacidade que advém, ao fim e ao cabo, do regime de monopólio em que vivem as empresas compradoras da Metrópole. Como os lucros dão para tudo – para comprar pelo mesmo preço a mancarra e as impurezas que contém – os importadores da Metrópole não fazem questão. Como assim é, os pequenos comerciantes não discutem com o indígena, aceitam o que este lhe trouxer. Por outro lado, rouba-o quanto pode o que, por si, justifica as fraudes que o indígena – em legítima defesa – pratica. É uma cadeia, uma pouca-vergonha, é uma verdadeira praga, uma autêntica calamidade…

Que as coisas melhoram, sente-se. Que têm de melhorar é axiomático – a menos que queiramos estar, dentro em breve, a braços com as maiores dificuldades.
A Guiné já não é hoje inteiramente uma quinta da CUF. Para tanto, em muito contribuiu o crescimento da Sociedade Comercial Ultramarina, obra do nosso Banco a que é de inteira justiça ligar o nome do Sr. Visconde de Merceana. Oxalá o enfraquecimento, ou mesmo a queda, desta empresa não venha fazer-nos andar para trás. O BNU nada ganharia com isso – muito pelo contrário – e a Guiné também não.
A consciência dos problemas – que é por agora o resultado verdadeiramente positivo da evolução económica da Guiné – obrigará a CUF se quiser manter a sua posição, a investir dinheiro da Guiné e a pôr ao serviço do progresso da Província a sua técnica e os seus quadros. De contrário, terá – a curto prazo – desgosto e desgosto sério. O mesmo se põe para os outros grandes, cada um dentro da sua escala.

A Guiné, repete-se, continua ainda no estado de colónia-feitoria. Mas tudo indica que as coisas se vão modificar.
Não pode o Estado arcar sozinho com o peso de transformar a Guiné – mas para que se saia da pura ‘economia de resgate’ tem de, por processos indirectos, obrigar os que querem a carne a terem o seu contrapeso de osso.”

(Continua)

Imagem de uma Festa da Luta Felupe (Eran-ai), tirada em Sucujaque, em 8 e 9 de Abril de 2012, enquanto em Bissau decorria o golpe de Estado. 
Fotografia cedida por Lúcia Bayan, investigadora do povo Felupe, a quem agradecemos a gentileza.


Imagens tiradas de As comunicações e os aproveitamentos hidráulicos da Guiné, Angola e Moçambique, Agência-Geral do Ultramar, 1961.
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Nota do editor

Poste anterior de 8 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19481: Notas de leitura (1148): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19490: Notas de leitura (1149): O litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974), por António Duarte Silva; Revista Análise Social, n.º 130, 1995 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19481: Notas de leitura (1148): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
A franqueza, por vezes brutal, o completo desassombro, o rigor dos números e das propostas, deixam-nos estupefactos. Estes apontamentos que Castro Fernandes, figura lídima do Estado Novo, envia à governação do BNU em 1957, não poderá deixar insensíveis os estudiosos da História da Guiné.
Castro Fernandes não mascara as situações de conflito, os enredos e as intrigas, o que pensa sobre o funcionalismo e os comerciantes, o que há de bom e de mau na exploração dos recursos económicos. Salta à vista que está muitíssimo bem documentado e veremos que quando refletir sobre os problemas que interessam diretamente ao BNU, tem soluções na manga. Não se conhece, ao tempo, documento mais importante sobre o que era a Guiné e os remédios para a desenvolver, numa perspetiva colonial.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72)

Beja Santos

Os apontamentos elaborados pelo Administrador António Júlio de Castro Fernandes depois da sua viagem à Guiné, que ocorreu entre março e abril de 1957, trazem uma outra iluminação sobre conceitos coloniais, instituições, pessoas, potencialidades económicas e até o sistema financeiro. É, não vale a pena iludir, um relevantíssimo documento que abre também caminho a sabermos mais sobre as propriedades do BNU na Guiné e o que era esperado por este Banco quanto à Sociedade Comercial Ultramarina.

Falou largamente sobre o contencioso do Perfeito Apostólico com o novo Governador, Álvaro da Silva Tavares, não descurando a observação de que, fruto da intensa islamização, não era o mais acertado recorrer às escolas das missões, mas sim às escolas laicas para incrementar a alfabetização.
E esboça um retrato do atual Governador:
“Foi Delegado do Procurador da República na Guiné durante quatro anos, Juiz no Bié e em Luanda, Procurador da República junto da Relação de Goa, Secretário-geral do Estado da Índia. É um homem novo, de 42 anos, bastante culto, com uma boa leitura, e manifestamente inteligente. Conhece a Guiné e os seus problemas. É muito trabalhador. Pareceu-me, apenas, hesitante ao passar do pensamento à acção – tem talvez o defeito de examinar as soluções por todos os lados de forma que encontra sempre razões para ter receio de as adoptar…
Não é fácil a sua tarefa: actua num meio extremamente complicado, não tem colaboradores, tem de se mover numa orgânica que, a meu ver, não corresponde hoje às necessidades das Províncias Ultramarinas”.

Tenho para mim que alguns dos parágrafos mais elucidativos sobre a vida colonial guineense saíram do punho de Castro Fernandes quando ele fala do meio social. Recorda que a população civilizada da Guiné é constituída por 1500 metropolitanos, 1700 cabo-verdianos, 4000 guineenses e uns 500 libaneses, núcleo de cidadãos concentrados nas cidades e vilas.
São todos ou comerciantes ou funcionários:
“Os comerciantes são, acima de tudo, traficantes – o indígena é, dizem, a principal riqueza da Guiné. O comércio tem por missão explorar esta riqueza. De resto, o indígena já o sabe e tanto que o Balanta diz para o branco ‘furta me ma piquinino’.
Os funcionários são, de uma forma geral, do pior que há. Só vão para a Guiné ou os castigados ou os que não têm classificação para serem colocados noutra Província ou como ponto de passagem para outro lado. Como nível cultural, não vão além do Reader’s Digest, como nível social está pouco acima, se está, do possidonismo da pequena burguesia das nossas vilórias. Claro que há excepções e que talvez eu exagere um pouco a caricatura – assim, fiquei espantado ao saber que os discos de música clássica se esgotavam logo que eram postos à venda; encontrei algumas pessoas com certo interesse e até com boas maneiras, mesmo no Interior.

A intriga é, além do consumo do whiskey por parte dos homens e da canasta por parte das senhoras, o entretenimento favorito dos cidadãos e cidadãs de Bissau. Serve de pretexto desde os negócios sentimentais até ao corte dos vestidos.
A vida – apesar de os ordenados dos funcionários serem pequenos – é contudo agradável no aspecto da comunidade. Um Chefe de Posto, que é evidentemente pessoa modesta, geralmente de extracção social modestíssima, vive confortavelmente: tem uma boa casa, a geleira repleta de boas coisas (com conservas de frutas, sumos, fiambres, etc.), sipaios para todos os serviços de casa, etc. Os Chefes de Circunscrição são principezinhos. Tanto uns como outros são presenteados largamente – quer pelos indígenas, quer pelos comerciantes – e conseguem fazer economias que geralmente estoiram durante as licenças graciosas passadas em Lisboa.

Em Bissau vive-se bem. Como as exigências não vão muito além da boa mesa, têm-na farta. E todos têm automóvel. E bons aparelhos de telefonia com gira-discos moderníssimos. E fatos de bons tecidos. E vestidos janotas. E perfumes e águas-de-colónia. E casas agradáveis… embora de péssimo gosto.
De resto, sem este mínimo de conforto, a vida seria impossível – dada a hostilidade do clima.
Este quadro, apenas esboçado, dá ideia das dificuldades de encontrar pessoas capazes de levarem a cabo uma obra de grande envergadura.
Os vícios inerentes a um meio como este não podem facilitar uma acção que pretenda sanear a vida económica e política da Província, criando maior riqueza ou preservando a que existe.
Salvo o devido respeito – que é muito – pelos que conhecem profundamente os problemas ultramarinos, afigura-se-me que o principal drama da Guiné (como de Cabo Verde), no aspecto da categoria dos funcionários técnicos, reside principalmente na existência dos dois quadros, o metropolitano e o ultramarino.

Examinemos, por exemplo, os serviços da agricultura. Do Instituto Superior de Agronomia sai todos os anos uma fornada de agrónomos. Todos procuram ingressar nos quadros do Ministério da Economia, onde são colocados como agrónomos de terceira classe com ordenado modesto de entrada, mas onde lhes é possível exercer outras actividades ligadas à profissão. Vão para o Ministério do Ultramar, normalmente, os que ou não tiveram possibilidade de ficar por lá ou os que têm necessidade, logo de entrada, de um ordenado maior. Destes, os que podem vão para Angola ou Moçambique, os outros, pobres deles, vão parar com os ossos à Guiné ou a Cabo Verde. E, então, sucede que o Director dos Serviços Agrícolas, por exemplo, da Guiné ou não tem categoria para o lugar, porque é fraco profissionalmente, ou porque não teve a prática necessária para desempenhar eficazmente tal cargo.
A meu ver, a Guiné, como Cabo Verde, como provavelmente São Tomé (limito-me às Províncias do meu pelouro) só terão resolvido o seu problema de pessoal técnico quando os funcionários, todos do mesmo quadro, forem destacados em comissão durante um certo período (refiro-me, já se vê, ao pessoal dirigente). No estado actual das coisas, não me admira que o Engenheiro-Agrónomo Director dos Serviços Agrícolas da Guiné vá pedir ao Agrónomo-Chefe de Ziguinchor que lhe dite um relatório sobre a mancarra…
Quanto aos quadros – a sua exiguidade é perfeitamente lancinante. Basta dizer que à Repartição dos Serviços de Agricultura e Veterinária está consignada, no orçamento deste ano, a verba de 2 mil contos”.

E desloca a sua análise para outro estrato social, os comerciantes:
“Os comerciantes, à parte os quatro grandes – de que me ocuparei na devida altura – ou são libaneses ou gente sem nível e sem preparação.
Não existe um comércio diferenciado, constituído por indivíduos com iniciativa, recursos, capacidade.
Na Guiné desagua o aventureiro ou o desiludido. Sujeitos que para ali foram tentar a vida e que se limitam, com maior ou menor êxito, a explorar o indígena, comprando-lhe os produtos que vendem aos grandes, e vendendo-lhes o que podem. Mais pormenorizadamente me ocuparei adiante da forma como o comércio é exercido. Neste capítulo, limito-me a denunciar o baixo nível social desta classe”. E conclui: 
“De modo que, o meio social da Guiné Portuguesa é constituído pelo funcionalismo – de uma forma geral mau, embora se devam apontar algumas excepções (e honrosíssimas), sobretudo no pessoal das missões encarregadas da execução do Plano de Fomento, no quadro clínico da Missão do Sono, na Missão Geoidrográfica, etc. – e pelo comércio cujo nível já se denunciou. O restante são empregados onde predominam os cabo-verdianos”.

Seguir-se-á um apanhado detalhado sobre recursos económicos. Logo o amendoim ou a mancarra. Constitui o principal produto de exportação da Guiné, a produção é da ordem das 35 mil toneladas e a exportação de sementes de amendoim para a Metrópole em 1952, foi também de 35 mil toneladas. A produção tem vindo a aumentar de ano para ano, tendo passado para o dobro desde 1926/30 a 1946/50. A Guiné Portuguesa é o quarto exportador do continente africano e o principal abastecedor da Metrópole. A cultura da mancarra é feita inteiramente pelos indígenas em regime de rotação. A área de maior produção coincide com a circunscrição de Farim e parte norte de Bafatá a Gabu. O aumento da produção não deve fazer-se à custa do actual equilíbrio do meio natural, isto é, o aumento da produção pelo incremento da destruição vegetal e pelo encurtamento dos pousios conduzirá à senegalização dos solos. Este aumento, que pode crescer consideravelmente, tem de ser feito pela progressiva melhoria das sementes, pela sua distribuição ao indígena, pela armazenagem do produto, pela adaptação de técnicas culturais mais perfeitas.

O amendoim é quase todo embarcado para o exterior por descascar. A casca representa em peso 25% da semente. Só a Casa Gouveia possui um descasque no Ilhéu do Rei. A Sociedade Comercial Ultramarina é a única que possui uma instalação para produzir óleo de amendoim. Esta situação da exportação da mancarra em casca é hoje única em toda a África. A exportação da ginguba (mancarra descascada) teria como vantagens óbvias uma considerável economia no transporte, uma melhor selecção do produto, mão-de-obra que ficava na Província. Tem sido preconizado que o indígena fosse obrigado a apresentar ao comércio o produto sem casca, ou que o descasque se efectuasse em pequenas máquinas instaladas nos centros de compra mais afastados dos pontos de exportação.
O problema da selecção de sementes e da construção de celeiros para o seu armazenamento começa agora a ser encarado.
O comércio da mancarra obedece aos princípios em que assenta todo o comércio da Guiné: exploração do indígena, corrupção de funcionários, concorrência desenfreada.

Existem na Guiné quatro grandes casas exportadoras – Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina, Barbosas, Nosoco – logo seguidas por Aly Suleiman, que é um pequeno exportador e, ao mesmo tempo, vendedor à Casa Gouveia, além de mais umas seis firmas. As grandes firmas operam, essencialmente, por duas formas: através das suas operações ou lojas estabelecidas no interior, pela compra do produto aos intermediários, pequenos comerciantes independentes espalhados pela Província. A compra ao indígena faz-se por dois processos: ou vão directamente às tabancas ou o indígena vem às lojas vender o produto (na generalidade, os pequenos e médios comerciantes queixam-se da faculdade que a todos é concedida de comprarem a mancarra nas tabancas; argumentam que se o indígena fosse obrigado a vender a mancarra nas lojas, compraria panos, contas, etc. e que, assim, recebem o dinheiro e, pago o imposto, gastam o resto em aguardente; além de que tal prática facilita a concorrência”.

O relator refere os preços de compra ao indígena em várias localidades da Guiné e observa igualmente que o negócio consiste sobretudo em cada um assegurar-se da maior quantidade possível de produto.

E esta análise de recursos económicos irá continuar com o coconote, arroz, produtos têxteis, e muito mais.

(Continua)

Imagem de uma Festa da Luta Felupe (Eran-ai), tirada em Sucujaque, em 8 e 9 de Abril de 2012, enquanto em Bissau decorria o golpe de Estado. 
Fotografia cedida por Lúcia Bayan, investigadora do povo Felupe, a quem agradecemos a gentileza.

Aeroporto de Bissalanca, anos 1950

Imagem de uma guineense, retirada de um postal à venda no eBay.
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Notas do editor

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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19459: Notas de leitura (1146): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (71) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Pôs-se termo ao expediente do gerente de Bissau quanto à evolução da luta armada, a partir do momento em que ele se limitou a enviar para Lisboa os Boletins Oficiais das Forças Armadas, deixámos de ter uma outra maneira de olhar os acontecimentos, cortou-se com a pluralidade.
O documento de Castro Fernandes, não hesito em classificá-lo assim, é uma das peças mais relevantes que constam do Arquivo Histórico do BNU.
Figura proeminente do regime de Salazar, vai produzir nestes apontamentos observações sulfúreas, não esconde que vem aí uma nova era e que não se pode iludir o separatismo. E se neste texto dá nota negativíssima ao Perfeito Apostólico, o que iremos ler a seguir sobre o meio social encerra alguns dos parágrafos mais eloquentes da descrição do colonialismo guineense.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (71)

Beja Santos

Concluída a viagem pelo expediente “Acontecimentos Anormais”, em síntese, a documentação enviada pelo gerente de Bissau para a governação em Lisboa sobre a eclosão e desenvolvimento da luta armada entre 1962 e inícios de 1964, temos agora por diante um conjunto de tarefas que culminarão com a cessação de funções do BNU na Guiné, tendo dado lugar ao Banco Nacional da Guiné-Bissau.

De 9 de março a 8 de abril de 1957, António Júlio de Castro Fernandes, o administrador do BNU com a tutela da Guiné, viaja à Província e produz uma coletânea de apontamentos que, atrevo-me a dizer, é um dos documentos fundamentais para análise sociopolítica e económica da década de 1950, e em certos domínios lança luz para tudo quanto se vai passar no tumultuoso itinerário que leva à saída das forças portuguesas em 1974. Daí a ênfase se irá fazer a um documento que, em termos historiográficos, estimo como incontornável, como se verificará.

O administrador, antigo Ministro da Economia, e mais tarde figura de proa da União Nacional (foi presidente da Comissão Executiva), elabora os seus apontamentos a partir da situação política que constatou.
Saltando imediatamente os considerandos geográficos, demográficos, por demais conhecidos, vejamos o que o administrador observa sobre a população dita civilizada:
“A grande maioria da população civilizada é constituída por comerciantes e funcionários. Há apenas um reduzido número de indivíduos exercendo profissões liberais e artes ou ofícios. Os ponteiros, quando não são puramente comerciantes, têm pequenas culturas, principalmente de cana-de-açúcar, feitas com mão-de-obra indígena.
Não há qualquer diferenciação de funções entre os civilizados por grupos rácicos: brancos, mestiços e negros constituem uma sociedade homogénea. Os libaneses dedicam-se exclusivamente ao comércio. Trata-se de uma sociedade burguesa, sem quaisquer preocupações de ordem intelectual. Vive este pequeno grupo em permanente emulação e intriga”.

E quanto à outra população:
“Não existem na Guiné elites nativas cultural e politicamente europeizadas, desligadas da minoria civilizada que dirige a vida da Província. Muitos régulos e chefes que mantêm o seu estatuto mas receberam forte influência europeia conservam uma ligação harmoniosa quer com a sociedade civilizada, quer com a sociedade indígena. Não há elites negras repelidas pela sociedade europeia e pela sociedade africana. Na Guiné Portuguesa não há elites nativistas, política ou culturalmente. O indígena quando tem razões de queixa é sempre contra determinada pessoa e não contra a sociedade civilizada”.

E tece o primeiro comentário que se prende com o mundo envolvente e as ideias separatistas:
“A situação geográfica da Guiné, encravada na África Ocidental francesa, não deixa de criar preocupações quanto às ideias separatistas que dominam o território francês e que podem ou infiltrar-se ou, quando tais infiltrações não sejam relevantes, ser postas no plano internacional.
O Perfeito Apostólico, sobretudo na sua paixão contra o Governador, mostra-se extremamente preocupado com as infiltrações que, segundo afirma, são já gravíssimas. Segundo me disse, não tardará que a Guiné Portuguesa constitua um caso idêntico ao de Goa.
O Governador, por seu lado, considera a nossa situação no plano internacional, no que diz respeito à Guiné, de extrema gravidade. Em sua opinião, é insustentável a nossa afirmação de que não temos colónias, de que a Guiné não é uma colónia, enquanto se mantiver a distinção legal entre cidadãos e indígenas. Para uma população de 509 mil indígenas, há 8,3 mil cidadãos, dos quais 360 são estrangeiros. À pergunta que nos farão qual a população da Guiné no seu total, a resposta de 518 mil indivíduos dos quais só 15% são cidadãos – conduz, naturalmente, à conclusão de que se trata de uma colónia, digamos nós o que dissermos. Em sua opinião, esta distinção entre cidadãos e indígenas deveria acabar: todos seriam cidadãos, embora uma parte desses cidadãos vivessem em regime tribal, respeitando o Estado o direito próprio de cada tribo, protegendo-os e educando-os por forma a que venham a gozar os benefícios da civilização. Claro que tal regime traria como consequência que todos os indígenas que soubessem ler e escrever teriam direito de voto. Tal perspectiva não o atemoriza – pelo contrário. Prefere um eleitorado disperso e sobre o qual os administradores possam exercer a sua influência a um eleitorado concentrado, muito fácil de manobrar pela oposição. Perguntando-lhe eu se a Guiné Portuguesa poderia vir a constituir um problema idêntico ao de Goa, respondeu-me ‘Pior, muito pior, porque na Índia temos uma obra em profundidade com 500 anos e aqui, na Guiné, não temos nada’.”

Segue-se uma descrição no campo das intrigas envolvendo o topo das instituições da colónia:
“Durante o interregno Melo e Alvim (fora Governador até 1956) exerceu a encarregatura do Governo o Inspector Superior Capitão Abel Moutinho. Pondo de parte o que dizem de bom, de mau e de péssimo, a respeito do Capitão Abel Moutinho, não restam dúvidas de que o senhor pretendeu ser nomeado Governador. Para tanto, foi organizando os seus quadros, formando à sua volta um grupo que o obviava e através do qual dirigia a Província. Também me não restam dúvidas – até por documentos que vi – que o seu orientador era o Perfeito Apostólico. Naturalmente que, por outro lado, foi preocupação do encarregado do Governo desmantelar o quadro que lhe era hostil. E, à cabeça, investiu com o Intendente (Chefe dos Serviços da Administração Civil), Santos Lima. Para tanto, instaurou-lhe um processo disciplinar com três fundamentos: actividades nativistas com ligações com os separatistas de Dakar, hostilidade à situação, irregularidades administrativas. O processo, para a instauração do qual contribuiu activamente o antigo Comandante Militar Neves e Castro, agradou ao Perfeito Apostólico – só por escrúpulo me não atrevo a dizer que foi por ele inspirado – e tinha como finalidade desmantelar com o Santos Lima o grupo que, de qualquer forma, lhe estava ligado.

A nomeação do Dr. Silva Tavares caiu como uma bomba no grupo Abel Moutinho. Este, em vez de desistir da almejada nomeação, tentou e tenta ainda – sempre através dos seus sequazes, tornar impossível a acção do Governador, obrigá-lo ou a estender-se ou a desistir. Para tanto, criaram-lhe – no intervalo entre a nomeação e a posse – todas as dificuldades possíveis.
O Perfeito Apostólico não escondeu nunca a sua hostilidade ao novo Governador. E marcou desde logo a sua posição, não esperando o Governador quando este chegou à Província e não assistindo à sua posse – claro que pretextando impedimentos pouco plausíveis.
Entretanto, o processo de Santos Lima foi seguindo o seu curso, mesmo antes da chegada do novo Governador tinham caído, por ausência de qualquer fundamento, as acusações de nativismo e hostilidade política. O Intendente foi reintegrado nas suas funções – ficando o processo disciplinar reduzido a duas ou três acusações sem a menor importância (Posso afirmá-lo, porque me foi facultada a leitura do processo). Como o Governador não investiu contra o Santos Lima e, pelo contrário, lhe deu e continua a dar consideração correspondente ao lugar que ocupa – embora tenha mandado que o processo siga o seu curso normal – tal atitude serviu de pretexto para o Perfeito Apostólico o atacar violentamente. Digo violentamente porque a mim mesmo me disse que a amizade do Governador pelo Santos Lima – homem desonesto e inimigo declarado das missões – era um autêntico escândalo. A verdade, porém, é que o Governador não é, nem deixa de ser, amigo do Santos Lima. O Governador não pode – só para satisfazer o Perfeito Apostólico e os amigos de Abel Moutinho – tratar mal, desprestigiar o Intendente. A hostilidade do Prefeito Apostólico manifestava-se um pouco em surdina, não se exibia publicamente. Até que surge o pretexto… Apareceu na Guiné um sujeito de Cabo Verde, dizendo-se vendedor de livros. Foi ao Gabinete, pedindo facilidades. O Chefe do Gabinete escreveu um cartão para o Director do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, enviando-lhe o indivíduo e dizendo-lhe se os livros podiam interessar ao Centro. E é tudo… e foi um trinta e um. O camarada era propagandista de uma seita protestante e os livros aparentemente de cultura geral tinham o veneno na cauda. O Perfeito Apostólico escreveu uma carta violentíssima e malcriadíssima ao Governador, este responde-lhe em termos (li toda a correspondência e o relato do Governador para o Ministro – não me ficando dúvidas sobre a fragilidade do terreno em que o Perfeito se colocou).

A hostilidade agora é feita à luz do dia – por parte do Perfeito. Assim: do próprio púlpito da catedral, na presença do Governador, o Perfeito leu uma prática desancando-o e mandou que essa prática fosse lida em todas as igrejas da Guiné (os padres, porém, apenas a resumiram); quando o Governador chegou da Costa do Ouro, o Perfeito não assistiu nem à recepção nem à transmissão dos poderes (eu estava presente e vi que todos os padres estiveram no aeroporto); recusou – sempre com pretexto de doença ou ausência – o convite para assistir ao banquete que o Governador me ofereceu; pretextando uma pane, que certamente não houve, não veio ao cocktail que o Banco ofereceu; no dia da minha partida, foi ao cais mas despediu-se logo para se não encontrar com o Governador. Não esconde a sua má vontade. Acusa o Governador de seguir uma política económica errada, acusa-o de não favorecer a acção missionária, dificultando a sua missão, acusa-o de proteger o desqualificado Santos Lima, e muito mais.
Em minha opinião, a atitude do Perfeito Apostólico, além de indefensável, é erradíssima.
Pessoalmente, acho o Perfeito Apostólico uma pessoa muito simpática, activo, devotado – mas falta-lhe altura intelectual. É, por outro lado, um apaixonado, um violento, um recalcado. Não me parece que esteja à altura da missão extremamente oficial que lhe cabe.

A evangelização exige, num meio como a Guiné, uma técnica muito especial e que, a meu ver, não reside na imposição. Pretende o Perfeito que a coisa se passa através da acção policial ou governativa – mas de tal sorte que o antipático recaia apenas nas autoridades. Assim, a islamização da Guiné – que não constitui apenas um problema religioso, porque pode vir a constituir – e já constitui – um obstáculo à integração do indígena na comunidade nacional – é assunto que tem que ser encarado com uma delicadeza muito especial. Os islamizados (são os indígenas mais evoluídos) querem aprender a ler e a escrever, mas se forem instituídas escolas católicas mandam os filhos para o território francês. A única forma de actuar é pois instalar escolas laicas – o que constitui pretexto do ataque do Perfeito Apostólico contra o Governador, acusando-o de favorecer escolas não pertencentes às missões…”

E a seguir o administrador Castro Fernandes ajuíza um novo Governador e dá-nos um quadro espantoso do meio social.

(Continua)

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Notas do editor:

Poste anterior de 25 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19435: Notas de leitura (1144): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (70) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19449: Notas de leitura (1145): Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19435: Notas de leitura (1144): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (70) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
É com pesar que nos despedimos das cartas confidenciais do gerente de Bissau que tinham como assunto "Acontecimentos Anormais". O que ele vai revelando um pouco antes e durante a fase de afirmação da subversão na Guiné é material de consulta obrigatória para futuros trabalhos historiográficos. Senão, vejamos: a forma minuciosa ou meticulosa como vai descrevendo os tumultos na região Sul, a partir do segundo semestre de 1962 e a desarticulação económica na mesma região ao longo de 1963; graças a fontes informativas privilegiadas, e na ausência de informação oficial, revela o alastramento da subversão, deixando bem claro que em fevereiro de 1964 a agitação ocupava na quase totalidade a zona Sul, uma boa mancha acima de Mansoa e com uma sólida implantação na região do Oio e a passagem do rio Corubal com muita agitação na margem direita do Geba, acima de Bambadinca, mas também na região do Xime, já havia barcos flagelados no Corubal, em breve o Corubal ficará intransitável até à região do Saltinho.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (70)

Beja Santos

Em 29 de novembro de 1963, a carta confidencial do gerente de Bissau para Lisboa traz uma novidade em primeira mão, uma novidade que afetará doravante as informações que ele nos vinha prestando graças às suas fontes, e que, por razões que jamais saberemos, deixarão de existir.
Escreve o seguinte:
“O Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné convocou os representantes da Imprensa e Rádio para lhes participar a criação do Gabinete de Informações que passará a dar periodicamente comunicações oficiais sobre os acontecimentos militares, nesta Província.
Disse que as nossas Forças Armadas têm actuado o melhor possível na repressão ao terrorismo, embora sem os êxitos espectaculares que todos desejariam pois se trata de uma guerra muito difícil e de características muito especiais no condicionamento geográfico deste território. Afirmou que os comunicados a distribuir serão sempre lacónicos e sóbrios, visto que todos devem compreender as limitações a que estão sujeitos os problemas e actividades ligadas com operações de guerra e por conseguinte com a segurança militar. Deu ainda conta de uma digressão, que acaba de fazer por todo o Norte da Província e as impressões lisonjeiras colhidas quanto ao portuguesismo e lealdade das populações autóctones.
Esta medida há muito reclamada e cuja falta se fazia sentir foi, como não podia deixar de ser, bem recebida pelo público que poderá agora ser informado periodicamente do que de verdade se vai passando no campo militar e vem pôr ponto final aos inúmeros boatos e maledicências que aqui corriam acerca da actuação das nossas Forças Armadas na Guiné”.

E daí o gerente reproduzir o texto integral do Boletim Informativo das Forças Armadas da Guiné, correspondente ao período de 1 a 24 de novembro, onde são referidas ações de limpeza dos locais onde se fazia sentir a atividade terrorista, dava-se relevo à região do Oio, a duas flagelações a embarcações no rio Corubal, continuando a decorrer o tráfego marítimo normalmente em toda a Província. Havia manifestações de lealdade às autoridades portuguesas, houvera agradecimento em Tite e Bissorã, de modo expressivo. Dava-se relação dos mortos e de um acidente com um avião da Força Aérea, em voo de experiência, no qual perdera a vida um Oficial.

Em último lugar, o gerente fazia uma referência detalhada ao sistema de policiamento às instalações do BNU em Bissau e explicava porquê:
“Além dos valores afectos ao Tesouro, tem ainda depósitos obrigatórios, espólios, e, como banco central, depósitos à ordem, as disponibilidades financeiras dos particulares, independentemente de vultuosa carteira de letras, e algo mais. Competia-lhe ter à guarda todos os valores da Província da Guiné, daí a necessidade de acautelar ao extremo a defesa dos valores confiados. Requerera-se à PSP um dispositivo de vigilância forçado e comentava-se: “Tendo em atenção os antecedentes de alguns elementos da corporação implicados em elementos subversivos, se com dois agentes de segurança indígenas o policiamento não oferecia garantias dada a pouca confiança neles depositada, tornou-se agora, apenas com um, mais precário ainda. Aliás, toda a gente estranha tal anomalia, sabendo-se que, em caso de emergência, será o Banco um dos primeiros alvos a atingir, pois, como em 16 de Março do ano passado informámos, do diverso material subversivo apreendido a elementos do PAIGC, estava incluído o nosso ex-contínuo Inácio Soares de Carvalho, constava, entre outras, a planta do edifício do Banco”.

Em 6 de dezembro, o gerente iniciava a sua correspondência para Lisboa transcrevendo o Boletim Informativo das Forças Armadas correspondente à última semana de novembro. Continuava-se em contraguerrilha no Oio, as Forças Navais mantinham-se no desempenho das missões de fiscalização das águas territoriais e interiores, atuava-se na Península de Cubisseco, onde fora capturado vário material de origem russa e checoslovaca.
E dava informação da vida económica da Guiné:
“À margem dos acontecimentos militares, participamos que a abertura da próxima campanha de mancarra foi superiormente marcada para o dia 15 do corrente. Nas actuais condições anormais, é imprevisível qualquer estimativa acerca da produção daquele produto, mas admite-se que uma pequena baixa. Devido à presente situação, prevê-se que a nova campanha não decorra normalmente, contando-se com as arremetidas dos terroristas que tudo tentarão para perturbar o seu bom êxito. Estão previstas medidas de protecção aos mercados, ‘cercos’ e armazéns e cobertura militar ao transporte da mancarra para os portos de embarque”.

A derradeira correspondência desse ano data de 28 de dezembro, inicia-se com transcrição de informação oficial das Forças Armadas, dando-se relevo a uma festa de confraternização que se realizara em Aldeia Formosa, com a presença dos homens grandes de Forreá e Contabane, que servira de pretexto às manifestações mais calorosas de portuguesismo.

O que se segue é uma mistura de informação económica e de dados confidenciais, nesta altura o gerente de Bissau ainda possui um confidente ao alto nível e escreve:
“À margem dos acontecimentos militares, acentuamos que a presente campanha de mancarra há pouco iniciada está a decorrer com normalidade, não se tendo registado até agora qualquer acto de terrorismo tendente a perturbar o andamento regular dos trabalhos em curso a ela ligados.
As medidas militares previstas, iniciaram-se ontem com a instalação em Binta, porto do interior da Guiné servido pelo rio Cacheu, de um pelotão destinado a proteger os armazéns num local existentes e o embarque do produto para a Metrópole.
Como nota saliente da última semana, temos a registar a fuga em 23 de Dezembro de 4 naturais da Província, funcionários das repartições da Alfândega, Correios e Fazenda, presumindo-se com destino ao território vizinho do Senegal a fim de ali se juntarem aos elementos naquele país instalados e pertencentes aos partidos ‘libertadores’.
Como corolário deste acontecimento, a PIDE prendeu uma trintena de indivíduos que se preparavam também para iniciar a fuga com a mesma finalidade. Interrogados, declararam uns que apenas pretendiam mudar de situação, outros que se propunham frequentar cursos com bolsas de estudo atribuídas para o efeito”.

A carta enviada a 3 de janeiro traz uma informação que nos ajuda a compreender como se alastrara a luta subversiva. Até agora, as informações martelavam continuamente acontecimentos ocorridos no Sul e na região entre Mansoa e Bissorã, com destaque para o Oio. Ora na primeira carta de 1964, e reportando-se a acontecimentos ocorridos na última semana de dezembro, havia já referências a ataques a Amedalai e Cutia, ações de nomadização no Oio e na região do Xime tinha sido surpreendido um numeroso grupo de terroristas bem como em S. Belchior, não longe de Enxalé. Decididamente, a Frente Leste dava sinais de vida. Tinham sido igualmente localizados acampamentos terroristas em Fulacunda e destruído um paiol junto à lagoa de Bionra.

Em 17 de janeiro, a transcrição do comunicado oficial já fala das três Frentes, não as enunciando explicitamente: o PAIGC fizera explodir três fornilhos no Oio e assaltara viaturas civis, igualmente emboscara; no Sul fizera rebentar um fornilho; em Chicri, no regulado do Cuor, tinham sido localizadas casas de mato e destruídas. Sem nunca falar na operação Tridente, o gerente refere que estava em curso uma operação de grande envergadura destinada a libertar parte do território da Guiné há tempos sob o domínio terrorista. “Segundo consta, um dos objectivos a atingir é a ilha de Como, ao Sul da Província que, como em tempos informámos V. Exas., se encontra solidamente guarnecida. Para apreciarem de perto a anunciada ofensiva, encontram-se no teatro da luta o senhor Ministro da Defesa e altas patentes das nossas Forças Armadas. Por indícios chegados ao nosso conhecimento, a citada operação terá a duração aproximada de três semanas”.

Data de 22 de fevereiro a última carta do gerente de Bissau cujo teor aqui interessa repetir, por ainda não estar a sua informação completamente condicionada às informações oficiais, e o que nos diz tem nalguns pontos foros de ineditismo:
“Como facto saliente à margem dos acontecimentos militares em curso no território desta Província, há a registar a presença nesta cidade de uma comissão da FLING (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné), com sede em Dakar, constituída por Cesário Carvalho Alvarenga, antigo Chefe de Posto de Pecixe e que há anos fugiu para o Senegal, Ernestina Silva e Gano Umasú.
A FLING, segundo depoimento do seu secretário-geral, Emanuel Lopes da Silva, feito em fins de Julho do ano passado em Conacri numa reunião com uma ‘missão de boa vontade’ constituída por representantes oficiais de países africanos: a Argélia, as Repúblicas da Guiné e de Leopoldville e o Senegal, encarregada de verificar qual era o mais representativo dos vários partidos que, instalados em Dakar e Conacri, têm como propósitos ‘a emancipação de Cabo-Verde e da Guiné’, replicou a Amílcar Cabral, também secretário-geral do PAIGC, que o seu partido possuía também na República de Sekou Touré um ‘estado-maior e um campo de treino’, alegando que as ‘formações militarizadas’ da FLING haviam penetrado por mais de uma vez em território da Guiné, nomeadamente na região entre Varela e S. Domingos.
Não obstante ter-se chegado à conclusão que no território senegalês o partido mais importante era a FLING, a ‘missão de boa vontade’ resolveu recomendar, depois de votação, que fosse reconhecido como único movimento verdadeiramente representativo da luta contra o colonialismo português na Guiné ‘chamada’ portuguesa, o PAIGC.
Apesar disso, foi o partido banido que enviou à Guiné a comissão que veio conferenciar com o Senhor Governador da Província, certamente com autorização do Governo Central, e que tranquilamente, sob as vistas estupefactas do agente da PIDE, desembarcou no aeroporto da cidade vindo de Dakar.
Do resultado e objectivos das conversações nada, como é lógico, sabemos”.

(Continua)

Este marco está situado nos arredores de Suzana, mais ou menos a meio da estrada que liga Suzana ao porto de Buadje. Foi mandado construir pelo Administrador de S. Domingos para comemorar a chegada à Guiné. O marco foi colocado no local onde, segundo a tradição Felupe, Deus (Emit-ai) colocou o primeiro casal Felupe. A inscrição do marco diz o seguinte:
“Foi aqui que o primeiro Felupe ergueu a sua casa de tardição V Centenário 1446-1946”
Imagem e texto amavelmente cedidos por Lúcia Bayan, a fazer doutoramento sobre a etnia Felupe.

A Igreja de Catió, imagem inserida no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954, obra hagiográfica dedicada ao Governador Mello e Alvim.

Imagem que consta do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão
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Nota do editor

Poste anterior de 18 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19414: Notas de leitura (1142): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (69) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19425: Notas de leitura (1143): Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra (1) (Mário Beja Santos)