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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22906: Notas de leitura (1409): Diário da Companhia da Loira & Zorba, por Manuel Neves Fonseca; Projecto Foco, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
É mesmo uma narrativa agropastoril, com o seu quê de fantasiosa, muitas considerações de índole política, começámos num mundo rural das décadas de 1950 a 1960, percorremos vários pontos do Leste da Guiné, pena é ter-se ficado tão pouco a saber sobre a vida em Madina de Boé naqueles 14 meses do João Bigodes e porquê o mistério de tratar a Ponta do Inglês como Mata do Inglês, foi provavelmente artifício literário de que se se socorreu o autor.

Um abraço do
Mário



Diário da Companhia da Loira & Zorba, por Manuel Neves Fonseca

Mário Beja Santos

Manuel Neves Fonseca, foi furriel da CCAÇ 1417 (1965/1967) e tece uma narrativa um tanto fantasiosa de um reencontro de dois antigos combatentes em ambiente agropastoril,  "Diário da Companhia da Loira & Zorba", Projecto Foco, 2020. Tudo começa na Aldeia da Ribeira, afetada pela desertificação, a poucos quilómetros de Espanha, ouve-se o pífaro do João Bigodes, o narrador, de nome Silvestre, mete conversa, o pastor Bigodes declara ter prestado serviço militar na Guiné entre 1965 e 1967, passou 14 meses em Madina de Boé. Reconhece a Companhia a que pertence Silvestre, este estava em Bajocunda. Fazem amizade, conversam muito, Silvestre leva João à Guarda, um médico deteta que ele sofre de stress pós-traumático, deverá tomar medicamentos, ao fim de dois meses sente-se retemperado. Os amigos conversam, Silvestre também fala de si, nasceu no sopé da Serra da Estrela, numa aldeia pobre chamada Monte do Bispo, a que na época tudo faltava, é um puro ambiente rural, a vida social comandada pelo toque do sino, em que o pároco contabilizava rigorosamente todas as presenças na missa dominical; assiste-se à fuga dos jovens e até de homens de meia idade para França. Silvestre descreve o trabalho de um serrador, e depois como se apaixonou pela jovem Clarisse, há entendimento mútuo, a jovem vive numa cidade, Silvestre deixa a aldeia, dizendo que quer ir trabalhar para Castelo Branco e aprender a ler e a escrever, escreve a Clarisse que vive em Lisboa, é chamado para a tropa, procura a morada de Clarisse, é recebido pelo irmão: “Então és o Silvestre, aquele que anda para aqui a escrever cartas doidas? Pois, escreve à vontade que ela não leu, nem nunca vai ler nenhuma, vai para o lixo estão lá todas, e agora desaparece”. E é dentro deste diálogo agropastoril que João fala do local onde nasceu e da família, história bem triste.

Estão agora a bordo do Niassa, descrição da viagem, chegada a Bissau, lembranças de uma cidade que para eles era uma pequena vila da província rural portuguesa. Sobem o Rio Geba numa lancha da Marinha. Em Bambadinca João e Silvestre separam-se, Silvestre segue para Fá Mandiga, João para a zona de Bafatá. Silvestre descreve Fá Mandiga, diz que aqui nasceu a luta armada, teria sido aqui que Amílcar Cabral congeminou o plano de revolta e foi buscar o apoio aos Balantas, destinou-se a esta companhia a intervenção da Mata do Inglês. E vai dar-nos pormenores sobre essa região da Mata do Inglês: extensa zona de arvoredo centenário, coqueiros, imbondeiros, diversos arbustos. A Mata do Inglês começava para lá do quartel de Bambadinca. E dá pormenores da primeira incursão militar da chamada Companhia da Loira, constituída sobretudo por madeirenses. “Foi-nos atribuída a missão de destruir um acampamento da guerrilha no interior da Mata do Inglês, a poucos quilómetros de um lugar chamado Xitole”. “Quando chegávamos a esses acampamentos da guerrilha, não encontrávamos mais do que palhotas limpíssimas, uns bancos de madeira, umas mesas improvisadas com um ou dois livros do ensino básico abertos numa dessas mesas dando-nos a indicação de que ali havia uma escola e que ali se ensinava português. O trabalho da tropa era incendiar as palhotas e deixar a escola intacta”. Descreve um cerco num desses acampamentos, tudo parecia de feição quanto ao fator surpresa, só que apareceu um guerrilheiro e deu o alarme, atacou-se em força, vomitaram-se as balas indiscriminadamente sobre tudo o que mexia. “A violência do ataque enfureceu a guerrilha e dias depois duas minas anticarro apanharam dois veículos de transporte de militares e civis que se deslocavam de Bambadinca ao Xime, três soldados mortos e uma dezena de civis, para além de feridos. Silvestre ficou chocado com o funeral dos soldados mortos, enrolados em lençóis brancos desceram à cova, a identificação foi escrita num papel branco, metido de uma garrafa de cerveja fechada com uma rolha de cortiça”.

Mudamos de lugar, João e Silvestre falam de uma operação em 22 de outubro de 1966, é então que ficamos a saber porque é que a companhia se chama Zorba, havia um soldado que se metia numa canoa, passeava-se no Rio Corubal, ao som desta canção, tinha um pequeno leitor de cassetes, ouvia o Zorba aos berros. “A alcunha da Loira deriva do facto do comandante da Companhia ser visitado de quando em quando por uma bela jovem, alta, cabelos loiros, suficientemente provocadora, pertencia à hierarquia do Movimento Nacional Feminino em Bissau”. Voltando à operação, foram resgatar um grupo de mulheres e crianças que se encontravam junto da fronteira da Guiné-Conacri, e que pretendeu sair da zona de influência da guerrilha. Passam tormentos, mas a operação resultou, mesmo com emboscadas e muitos outros perigos, chovia torrencialmente. Mal chegados ao aquartelamento, verificam que faltavam dois homens, regressa-se ao local da luta, o reencontro com os dois militares perdidos compensou tanto penar.

E os dois amigos em ambiente agropastoril vão agora falar de Madina de Boé e Bajocunda, João recorda a caminhada para Madina, os ferros retorcidos de viaturas destruídas nas bermas, a segurança dada por outros pelotões, a chegada a Madina com uma receção de morteiradas que iriam marcar a vida quotidiana da companhia Zorba. Silvestre aproveita para descrever a instalação em Bajocunda, participaram na remodelação das instalações, desde os abrigos ao arame farpado, havia então uma intensa atividade comercial, elenca os comerciantes, e dentro do diálogo dá conta que o tratamento do stress pós-traumático renasceu o gosto por viver, apaixonou-se pela Maria Florinda, o Silvestre pagou a boda e de imediato voltamos a Madina de Boé, há para ali um comandante de Nova Lamego de quem o Silvestre não tem boa imagem, aquele tenente-coronel deu-se ao desplante de informar o Comando-Chefe em Bissau de que a zona de Madina estava pacificada não era necessário qualquer apoio aéreo, aquele tenente-coronel Falhardo ostentava bravatas e pesporrência, determinou que o abastecimento de Madina de Boé seria patrulhado por uma companhia de 100 militares, chegados há dois meses de Lisboa, enquadrados por 28 militares da Companhia da Loira. Tudo vai correr mal, cinco carros atingidos por roquetadas, os guerrilheiros sentiram-se à vontade para saquear mantimentos, foi então necessário ripostar com uma companhia de paraquedistas. E João explica que foi assim que começou a adoecer, que quando veio para Portugal ainda teve pequenos trabalhos, andou com um carro frigorífico, descobriu a Aldeia da Ribeira, foi aqui que se sentiu feliz na vida de pastor. Silvestre mostra-se muito politizado, entrepelado por João sobre o que andaram a fazer naquela guerra, explica que andámos a defender os interesses da CUF através da Casa Gouveia, fala sobre o comércio na mão dos libaneses e sírios, na administração do território exercida maioritariamente por cabo-verdianos, a instituição militar vivia bem com aquelas guerras, delas tirava partido. E Silvestre volta a falar da sua vida em Bajocunda, onde teve uma paixoneta por Mariana Falé, que se veio a descobrir a ser um quadro do PAIGC, como aliás um dos mais importantes comerciantes da terra. Muitos anos mais tarde, Mariana veio a Portugal estudar Direito do Trabalho e encontrou-se com Silvestre, restavam uma boa amizade. E o livro termina em ambiente agropastoril, João ainda não está em condições de contar tudo quanto viveu, ainda há muitos acontecimentos encravados na sua mente, aguarda a libertação dessa dor, diz ao amigo que as explicações que lhe deu ajudaram-no a sair da escuridão onde se encontrava, só que os seus sentimentos continuam obstruídos, qualquer dia voltarão a conversar. E ponto final.


Ponta do Inglês, era o que restava em 2010 da casa de Inglês Lopes, encontrei muitas árvores com marcas de balas, o que mais me empolgou foi a beleza extasiante da Foz do Corubal
Artilharia de Bajocunda. Com devida vénia ao autor da foto
Ruínas de uma antiga caserna de praças, Xime, imagem do nosso blog
A retirada de Madina do Boé. Imagem do nosso camarada Manuel Caldeira Coelho (ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1589/BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68), com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22896: Notas de leitura (1408): "Aldeia Nova de São Bento: Estórias, Memórias e Gentes", de José Saúde: nota sobre o autor, introdução e sinopse

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22641: In Memoriam (414): José Manuel Matos Dinis (1948-2021), ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679, (Bajocunda, 1970/71), falecido ontem, dia 17 de Outubro de 2021

IN MEMORIAM

José Manuel Matos Dinis (1948-2021)
Ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71


Começa a ser dolorosa a cadência de postes publicados, no Blogue, na nossa série In Memoriam.

Ontem à noite, mais uma triste notícia, esta de todo inesperada e chegada pelo facebbok, a do falecimento, vítima de doença súbita, do nosso camarada e amigo José Dinis.

O Zé Dinis apresentou-se à tertúlia em 24 de Agosto de 2008, tendo participado em 6 Encontros Nacionais da Tertúlia, entre 2009 e 2016.

Entre as 227 entradas no Blogue, 72 são referentes à sua mais importante colaboração, a História da CCAÇ 2679.

José Manuel Matos Dinis, o primeiro de pé a partir da esquerda, com elementos da sua Secção
Das suas participações nos Convívios da Tabanca da Linha, que organizava em parceria como Jorge Rosales:
1.ª Foto - Com Hélder Valério Silva
2.ª Foto - Com Marcelino da Mata (já falecido) e Miguel Pessoa
3.ª Foto - Com o nosso editor Luís Graça
Monte Real, Junho de 2010, V Encontro da Tertúlia > José Manuel Matos Dinis e José Manuel Lopes

Aqui deixamos as nossas condolências aos seus filhos, restantes familiares e amigos próximos.
Nós, seus amigos e camaradas da Guiné, por aqui ficaremos a lembrar e a honrar a sua memória.
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Em tempo:

Informação do nosso amigo Hélder Sousa, em mensagem de hoje, dia 20:

Caros amigos
Informação recolhida junto da Servilusa, que tratará do funeral, indica que estará amanhã, 5ª feira, dia 21, a partir das 17:00 no Crematório de Alcabideche, numa das salas apropriadas para os velórios e que a cremação será no dia seguinte, dia 22, sexta-feira, pelas 12:00.
Abraços
Hélder Sousa

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22629: In Memoriam (413): Torcato Mendonça (1944-2021), ex-alf mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... Homenageando também um casal que sempre soube, em vida, amparar-se mutuamemnte, "na saúde e na doença" (Luís Graça)

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (152): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 > Da esquerda para a direita: (i) o alf mil António Pinto; (ii) o  Mário [Rodrigues]  Soares, comerciante de Pirada e "agente duplo", segundo era voz corrente; (iii) o alf méd médico (e grande intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes (1933-2012( ; e (iv) e o alf mil Spencer.

Foto (e legenda): © António Pinto (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Gabu >  Setor L6 > Pirada > c. 1973/74 > 14 de Fevereiro de 1974, ten cor cav, cmdt do batalhão e o célebre comerciante  Mário Soares (este em primeiro plano: dizia-se que tinham contactos privilegiados com os "dois lados da guerra", as NT e o PAIGC, ou pelo menos, as autoridades senegalesas).

O ten cor cav Jorge [Eduardo Rodrigues y Tenório Correia] Matias, cmdt do BCAV 8323/73, que estava sediado em Pirada (, o comando, a CCS e a 3ª C/BCAV 8323/73) faz aqui uma homenagem, emocionada aos bravos de Copá, o 4º pelotão, da 1ª C/BCAV 8323/73, comandado pelo alf mil at cav Manuel Joaquim Brás, e a que pertencia o António Rodrigues, e reforçada por mais uma secção, do 1º pelotão, comandada pelo fur mil Carlos Eugénio A. P. Silva.

Foto (e legenda): © António Rodrigues. (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. O célebre comerciante de Pirada, Mário [Rodrigues]  Soares era uma figura "intrigante"... Conviveu com vários camaradas nossos, ao longo da guerra, como o António Pinto (*) ou o Carlos Geraldes(**)... Dizia-se que tinha relações privilegiadas com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando para a PIDE/DGS e para o PAIGC. Ora, não temos provas disso. Está em causa a sua honra. 

Temos que ser cautelosos, não fazer juízos apressados sobre o comportamento dos comerciantes portugueses e outros (libaneses, cabo-verdianos...) que ficaram no mato, apesar da guerra. Em boa verdade, a tropa tinha tendência para pôr em causa a "lealdade" dos comerciantes, colocados num posição difícil no interior da Guiné.

Do Mário Soares sabe-se que tinha bons contactos no Senegal. E que  desempenhou o seu papel na história da indepência da Guiné-Bissau.  Foi através dele que o gabinete do Governador António Spínola consegiu chegar ao Leopoldo Senghor (como se depreende de um histórico depoimento do embaixador Nunes Barata, ex-alf mil, na altura, colaborador íntimo de Spínola,  de que a seguir reproduzimos um excerto; por lapso, chama-lhe António Mário Soares)...

Não sei o que é feito  dele, é provável que já não esteja entre o número dos vivos. Em 1974 já teria cerca de 40 e tal  anos, a avaliar pelas fotos acima reproduzidas,  Li algures (, já não posso precisar onde...) que ficou na Guiné, depois da independência, mas terá saído do país ainda no tempo do Luís Cabral, em novembro de 1975.  Sabemos, pelo Carlos Geraldes, que em 1964/65, era casado, tinha duas filhas e um filho e era natural de Lisboa. Luísa era o nome da esposa. A filha mais chamava-se Rosa, o filho do meio era José (e estudava em Lisboa) e mais nova, Eva Lúcia, tinha nascido em 11/9/1957.

Alguém dos nossos leitores ainda se lembra dele, do  Mário Soares ? Tem fotos e histórias dele ?

O seu nome era referido com muita frequência nas cartas que o Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66) mandava para casa, e de que foi publicada uma seleção no nosso  blogue, em 2009 (**).

O Carlos Geraldes conheceu o Mário Rodrigues Soares quando a sua companhia, a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Vão tornar-se amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E descreve-o logo nestes termos: "É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta." (Pirada, 15/10/1964). E defendo-o das suspeitas de colaborar com o IN.

Estamos a reler as suas cartas, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, prestável, com um vasto capital de  relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal). Nesta I parte, selecionámos excertos das cartas para a família, do período de Outubro de 1964 a março de 1965, e em que o Carlos faz referências ao seu "amigo M. Santos", pseudónimo de Mário Soares.

Segundo a historiadora Maria José Tístar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o comervciamte  António Mário Soares, estabelecido em Pirada, na fronteira com o Senegal, seria  um "agente duplo":  informador da PIDE/DGS,  e ao mesmo tempo informador do PAIGC.

Contrariamente ao Rodrigo Rendeiro,  comerciante de Bambadinca,  que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o Mário Soares terá ficado na Guiné independente mas terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, um ano e tal depois, em novembro de 1975. (***)

A CART 676 foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o CTIG em 8/5/1964 e regressou a 27/4/1966. Esteve em Bissau, Pirada e Bissau. Comandante: cap art Álvaro Santos Carvalho Seco.


1. Depoimento do embaixador João Diogo  Munes Barata:

[Alferes miliciano na Guiné (1970); secretário e, posteriormente, chefe de gabinete do Governador da Guiné, general António de Spínola (a partir de Maio de 1971); adjunto diplomático da Casa Civil do Presidente da República, António de Spínola (Maio a Setembro de 1974),  tendo no desempenho deste cargo, colaborado no processo de descolonização; delegado do MNE na Junta de Salvação Nacional]

(...) Com essa ideia, portanto, com a ideia de avançar no processo de descolonização, o general tentou estabelecer contactos com o Governo senegalês e, através dele, com o PAIGC. Os primeiros contactos foram feitos através do chefe da delegação da PIDE/DGS [em Bissau], o inspector Fragoso Allas e por Mário Soares. Mário Soares, não o Dr. Mário Soares, mas [António] Mário Soares um comerciante de Pirada, um homem que se chamava Mário Soares, mas que era comerciante em Pirada, uma povoação fronteiriça da Guiné com o Senegal. Esse comerciante ….

Eu lembro-me de um dia estar no meu gabinete no Palácio e de o senhor Mário Soares ir lá comunicar que já tinha estabelecido o contacto com o lado de lá e que, portanto, se podiam iniciar as negociações para uma ida, para um encontro do Governador com o presidente Senghor. Houve previamente um encontro. O general Spínola foi duas vezes ao Senegal (acompanhei-o em ambas as visitas).

A primeira, para um encontro com o ministro senegalês dos Assuntos Parlamentares, porque evidentemente o presidente Senghor, na altura, ainda não sabia bem quais eram as ideias do general Spínola e não quis, evidentemente, romper as exigências protocolares e, como chefe de Estado encontrar-se com o governador de uma província, de uma colónia. E mandou um ministro. (...) (****)


2. Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), que se tornou amigo do Mário Soares e visita frequente da sua casa... Reprodução de excertos das suas cartas com referência explícitas ao Mário Soares:


Parte I (outubro de 1964 - março de 1965) (*****)

Pirada, 15 de outubro de 1964


(...) Segunda-feira de manhã partimos para Pirada. (...)

Começámos logo por ser apresentados ao comerciante mais importante cá da terra, o Sr. Mário Soares, um grande amigalhaço de toda a tropa que por aqui tem permanecido. Acompanhado de um empregado que segurava um enorme cesto cheio de pão fresco acabado de sair do forno. Ali mesmo no meio da estrada, começou a distribui-lo pelos soldados que o recebiam boquiabertos de espanto. Não poderia haver melhor recepção de boas vindas. Um verdadeiro luxo.

(Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem) (...)

(...) Quanto à nossa casa é esplêndida. Tem um grande quintal, com um poço no meio e uma larga extensão cimentada debaixo de um enorme alpendre, encostado à casa, sob o qual tomaremos as nossas refeições, quando tivermos aqui a nossa Messe. A casa é fresquíssima e dorme-se aqui muito bem, pois não tem mosquitos! Faltam apenas os móveis, mas temos cá um carpinteiro indígena muito habilidoso que já nos está a fornecer mesas e cadeiras. Camas temos duas de casal, uma em madeira, outra em ferro, emprestadas pelo M. Santos. Os sargentos estão a dormir em camas de ferro militares, que trouxemos. (...)

(...) Quanto à luz eléctrica, por enquanto não está montada, embora tenhamos um gerador trifásico de 220 Volts, movido por um motor a diesel. Só estamos à espera de arranjar fio para fazer a instalação por toda a aldeia. Contamos que lá para Janeiro se possam pôr de lado os Petromax e se pense até na possibilidade de sessões de cinema com uma máquina de projectar do Sr. M. Santos.

É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta.


É o nosso Anjo da Guarda. Todos os dias manda cá o criado dele, o Demba, com uma garrafa de água filtrada e um termos com cubos de gelo, para que nunca nos falte água fresca no quarto. É um indivíduo que, mesmo aqui, longe da nossa civilização, não descura todos os pormenores de conforto para criar à sua volta um ambiente requintado e de um bom gosto que se julgaria inacreditável encontrar por estas paragens. 

Vive como um nababo indiano rodeado por uma família tranquila (a esposa e duas filhas) e que, pelo menos, aparenta a mais completa felicidade. Um verdadeiro achado que vim encontrar aqui neste fim do mundo mas, estou bem em crer, quase princípio do Paraíso.

Já começou a afluir gente vinda de todo o lado, até do Senegal, para se tratar no nosso posto clínico, pois a novidade de termos um médico na Companhia, depressa se espalhou. Aliás, a dois passos daqui, estão os nossos principais informadores, nas pessoas do chefe da polícia e outros funcionários administrativos da aldeia senegalesa nossa vizinha, com quem o nosso amigo M. Santos mantém fortes relações de interesses mútuos. São eles os primeiros a comunicar a presença de grupos armados que habitualmente passam por esta zona a caminho da região centro da Guiné, o Oio. Está até combinada uma jantarada em que eles serão nossos convidados. (...)

Pirada, 1 de dezembro de 1964


(...) Bafatá é uma vilória bastante razoável. Tem um clube que até dá cinema todos os dias. A energia eléctrica é fornecida por um gerador a diesel, um bocado velho e a luz está constantemente a ir abaixo. Mas é melhor que nada. Fui lá este fim-de-semana com o M. Santos e a família, e não deixei escapar a oportunidade de farejar um pouco de civilização.

Hoje também posso dizer:

- Olhem, sabem? No sábado fui ao cinema! Agora não são só vocês que me dizem isso em todas as cartas que me escrevem.

Por acaso até era um filme do Jerry Lewis, que já tinha visto, “Jerry, Primeiro Turista do Espaço”.

Jantámos em casa de um comerciante amigo do M. Santos e, no domingo, almoçámos em casa do Secretário da Administração, outro amigo dele e que, conforme vim a descobrir, depois, é de Viana! Falámos sobre a nossa terra, recordando os tempos em que andou no Liceu, que nessa altura seria ainda, evidentemente, o Liceu Velho.

Bajocunda, 8 de fevereiro de 1965

(...) Ontem, domingo, fui até Pirada, resolver alguns assuntos pendentes e aproveitei para rever os amigos que lá deixei, o M. Santos e a família, (...)

(...) O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele.

Quando finalmente regressei a Bajocunda já passavam das 23h00, hora propícia para eles andarem por aí a preparar alguma emboscada… mas felizmente, por enquanto ainda não se resolveram.
Na noite anterior tinha também visitado, de jeep, algumas tabancas por aqui perto, para dar uma impressão de que estamos sempre vigilantes a qualquer hora do dia e que podem confiar na tropa para os proteger, caso venham a ser atacados por algum grupo armado que, vindo do Senegal, resolva fazer política de terra queimada para assustar as populações e levá-las a abandonar este território, que é o que esta gente mais teme.

Quem me sugeriu a ideia para esse passeio nocturno, e até me serviu de guia, foi um comerciante de Bajocunda, o Sr. António Costa. Muito alto e muito gordo, este indivíduo de raça negra é também um grande bonacheirão que gosta imenso de beber e de receber visitas mas que no entanto não chega aos calcanhares do M. Santos, lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta.  (...)

Bajocunda, 22 de fevereiro de  1965


(...) O M. Santos, por várias vezes já me mandou recado para ir lá [, a Pirada,]  comer uns camarões ou umas sardinhas assadas mas, obviamente, nem tenho podido. (...)


Bajocunda  1 de março de 1965


(...) Ontem à noite, antes de jantar, estivemos em Pirada, eu o Gabriel e o Inácio (outro alferes da mesmo Companhia de Cavalaria, que gradualmente se está a juntar a nós em Bajocunda). 

O M. Santos recebeu-nos com a habitual cortesia mas não conseguimos ficar lá muito tempo, pois o capitão começou a resmungar pelo facto de terem vindo todos os oficiais de Bajocunda, de maneira que, a contragosto, tivemos de vir embora. Aliás, desde que apanhou aquele susto na estrada Bajocunda-Canquelifá, o capitão nunca mais foi o mesmo. (...)


Pirada, 15 de março de 1965


Estou de novo em Pirada, onde me sinto como em casa. Foi um verdadeiro alívio deixar Bajocunda pois não consegui afeiçoar-me aquilo de maneira nenhuma. 

Isto aqui, em Pirada, é muito mais airoso, há muito mais população, a Messe é fora do quartel e tenho o meu amigo M. Santos que continua a ser uma excelente pessoa.

Bajocunda ficou entregue a uma Companhia de Cavalaria e nós ficámos apenas com Pirada e Paúnca. É muito menos trabalhoso. (...)


Pirada, 21 de março de 1965



Mais uma vez aqui estou a colocar, à pressa, a escrita em dia, à luz do Petromax, pois desta vez adiantaram o dia do Correio. Tenho de fazer serão para poder chegar a tempo. Mas não faz mal, amanhã só me levantarei lá para as dez da manhã.

Aqui dorme-se muito. Depois do almoço, dorme-se a sesta, quase sempre até às 4 da tarde. Depois quando há serviço para fazer, vamos até ao quartel. Quando não há, toma-se banho, jogamos o Ôri ou vamos a casa do M. Santos beber uns whiskies.

Autêntica vida de malandro! Quero dizer… de guerreiro! Porque de vez em quando também se vai para o mato a qualquer hora do dia ou da noite e fica-se por lá não importa quanto tempo, a dormir em que cama houver, ou mesmo até sem dormir!

E quando o Manel Jaquim [, o homem do cinema ambulante,]por cá aparece, lá tenho de pagar os bilhetes a uma data de gente muito simpática que me enche de mimos, interesseiros, claro!
-“Alfero Gérardis, bonito, boniiito… dimais!!!” – são os elogios que estou sempre a ouvir, por esta acção psico-social, actividade a que agora me dedico no intervalo das guerras. (...)

[Seleção, fixação, revisão de texto, e realces a negrito e a amarelo: LG]

(Continua)

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28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19286: FAP (113): Os pilotos do Lobo Mau (helicanhão), José Duarte Príncipe e Raul Coelho, foram quem identificou e sinalizou a ambulância russa do PAIGC, entre Copá e a fronteira do Senegal, quando estavam a dar proteção ao grupo do Marcelino da Mata, "Os Vingadores", em fevereiro de 1974 (Miguel Pessoa)


Guiné > Região de GTabu > Setor L3 >  Nova Lamego >  1974 > ; Ambulância do PAIGC, de fabrico soviético, capturada pelas NT em fevereiro de 1974. (*)

Foto (e legenda): © António Santos (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu >  Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > O fur mil mec auto Amílcar Ventura em ambulância capturada ao PAIGC [, entre Copá e a fronteira, em fevereiro de 1974, pelo Grupo do Marcelino da Mata e o Astérix, nome de guerra do cap paquedista Valente dos Santos, da CCP 122 / BCP 12,  BA 12, Bissalanca, 1972/74. Fotos do álbum de Amílcar Ventura, ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323 (Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74), natural de (e residente em) Silves. (**)

Foto (e legenda): © Amilcar Ventura (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS/BART 6523 (1973/74) >  O ex-1º cabo enf Alfredo Dinis, já falecido, junto à ambulância capturada ao PAIGC.

Foto do álbum do José Saúde, ex-fur mil op esp / ranger, CCS do BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), residente em Beja. (***)

Foto (e legenda): © José Saúde  (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Gabu > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 >  Mais uma foto da ambulância capturada ao PAIGC, de matrícula FF554CN.  Foto do álbum do camarada António Rodrigues, um dos bravos de Copá, ex-soldado condutor auto, da 1ª CCAV do BCAV 8323 (Bajocunda e Copá, 1973/74) (****)

Foto (e legenda): © António Rodrigues  (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Miguel Pessoa,  com data de hoje, 17h36:

Caros editores

Li no blogue o texto do José Saúde sobre a famosa ambulância “sacada” ao PAIGC e trazida pelo Marcelino da Mata para o nosso território (Poste 19283) (***).

Sabendo de uma versão mais apurada do acontecido, resolvi contactar o José Duarte Príncipe, o piloto do helicanhão que esteve envolvido directamente neste episódio e, porque não quero falar por interposta pessoa, pedi-lhe um comentário ao que ali foi escrito.

Aqui fica a sua resposta. Para que conste.

Abraço.
Miguel Pessoa

José Duarte Príncipe.
Foto: cortesia da sua  página do Facebook
2. Mensagem do José Duarte Principe, hoje piloto da aviação comercial, ref, ex-alf mil pil, AL III, Bissalanca, BA 12, 1972/74,  recebida e retransmitida pelo Miguel Pessoa:

Caro Miguel Pessoa:

Em resposta ao teu mail,  fui fazer uma visita ao blog que me enviaste e constatei que a história está incompleta (***).

De facto, o Marcelino participou com os seus "muchachos" no transporte e escolta à ambulância, inicialmente até Piche e depois até Bissau. (Esta segunda hipótese é apenas um palpite da minha parte, porque eu e o Raul Coelho estávamos em destacamento em Nova Lamego e aí permanecemos, não acompanhando portanto o seu trajecto até ao destino final.)

Efectivamente, a descoberta foi feita por mim e pelo primeiro cabo Cardoso, cuja destreza no canhão era sobejamente conhecida .

O avistamento do veículo aconteceu durante uma acção de apoio de fogo e reconhecimento da área em que o Marcelino estava a operar na picada entre Bajocunda e Daifa,  no pressuposto de existir armamento abandonado pelo PAIGC no trajecto entre as duas povoações .

Foi com alguma dificuldade que conseguimos identificar o veículo, porque estava coberto com um camuflado - o que inicialmente, pela silhueta, nos pareceu um carro de combate parecido ás nossas Panhards.

Depois de algumas manobras á vertical,  pedi ao Cardoso para fazer um tiro, com o intuito de acalmar algum "meliante"  que estivesse por perto e com vontade de nos "abonar".

Para grande surpresa nossa, como o tiro bateu relativamente perto do alvo, levantou-se o referido camuflado,  pondo assim a descoberto a tal silhueta, que mais não era que uma ambulância, por sinal muito parecida com as antigas Comet,  de fabrico inglês.

Depois disto, em contacto com o grupo do Marcelino, foi-lhe dada orientação por mim para o local que curiosamente era em território senegalês, bem encostadinho à fronteira que dividia os dois territórios.

A tarefa de recuperação do veículo não se apresentava fácil, porque a vegetação era densa em direcção á nossa fronteira e era necessário transpô-la o mais rapidamente possível para evitar surpresas ou encontros indesejados.
Marcelino da Mata, alferes graduado, c. 1974.
 Foto: DN - Diário de Notícias,
de 4 de janeiro de 1998 (com a devida vénia)

Para isso, foi necessário munir o grupo com uma motosserra que o Raul Coelho tratou de ir buscar a Nova Lamego, enquanto eu continuei a dar proteção ao grupo, não fosse o diabo tecê-las.

Quando o Raul chegou com o tão desejado equipamento, ficou ele a dar protecção á rapaziada, enquanto eu voltava à "rasquinha" de combustível para Nova Lamego para abastecer e substituir o Raul Coelho que também já estava perto do "bingo" (nos limites de combustível).

O resto foi uma alternância entre os dois na protecção ao Marcelino, que durou até ele conseguir chegar à picada e prosseguir depois duma forma mais rápida com destino a Piche, onde a ambulância permaneceu até ser enviada para Bissau dias depois.

Esta tarefa terá demorado seguramente parte de toda a manhã, entrando pela tarde,  até estarmos todos num estado de esgotamento apreciável.

Curiosamente descobri no Facebook o MMT do Exército que conduziu o veículo ao longo de todo o trajecto. Infelizmente não consigo as fotos que me enviou durante o nosso diálogo, porque ele desistiu de ser facebookiano e eu não guardei a preciosidade que as fotos representavam.

Espero que esta "seca" sirva para te esclarecer dos acontecimentos tal como foram vividos na altura.

Duarte Príncipe.


3. Comentário do editor LG:

Miguel, vem mesmo a propósito, o depoimento do teu amigo e nosso camarada José Duarte Príncipe... Nada como ir à fonte...O José Duarte e o Raul Coelho, pilotos de AL III, e os respetivos 1ºs cabos apontadores de canhão (O Cardoso e outro camarada, de que não sabemos o nome) é que são os heróis desta história, sem com isso queremos tirar o mérito ao grupo do Marcelino da Mata que trouxe o "ronco", a ambulância russa, até pelo menos Nova Lamego.

Eu já tinha ido recuperar um poste do Carlos Fernandes, de há oito anos atrás, em que ele diz ter feito parte do Grupo do Marcelino da Mata, "Os Vingadores", na qualidade de guarda-costas do cap pára Valente dos Santos ...e ter participado nesta operação (Op Gato Zangado)... O mérito da descoberto é do piloto do helicanhão, parece não haver dúvidas... E imagino que terá sido preciso muito sangue frio, persistência, coragem e perícia por parte dos pilotos... voando tão baixo.(*****).

Agradece muito, da minha parte, ao José Duarte Príncipe. Acabo de publicar a sua versão, preciosa, neste poste da série FAP... E já agora fica aqui o convite para ele (e o Raul Coelho) se juntarem aos bravos da Guiné, de terra, ar e mar, e dar-nos a honra, aos vivos e aos mortos, de sentarem à sombra do nosso poilão... (*******)

PS1 - O Carlos Fernandes, nosso grã-tabanqueiro, alega ter sido eliminado dos páras (CCP 122) pela "Aeronáutica Militar" (sic) em novembro de 1973... Não diz porquê... Passou para o exército e depois foi guarda-costas do Asterix (o Valente dos Santos)... Sabes algo mais sobre este camarada Carlos Fernandes, ex-1º cabo pára, também da CCP 122 / BCP 12, que andou por lá entre finais de 1971 e agosto de 1974 ?...  Vd. aqui entrevista sua ao DN, Diário de Notícias, de 4 de janeiro de 1998. Nâo tenho há muito notícias dele.

PS2 - Em complemento, o Miguel Pessoa diz.me que o Duarte Príncipe e o Cardoso formavam a equipa do Lobo Mau (Helicanhão). O Raul Coelho também pilotava na altura um Helicanhão, AL-III.  Devia também um apontador. Não era habitual haver uma parelha de helicanhões numa operação.  Mas nesta operação (Op Gato Zangado) talvez se justificasse. Quanto ao Carlos Fernandes, o MIguel não tem ideia dele.
______________

(**)  17 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14156: Casos: a verdade sobre... (3): Jaime Mota (1940-1974), combatente do PAIGC, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, morto em 7 de janeiro de 1974, em Canquelifá por forças da CCAÇ 21 - Parte III (Luís Graça / José Vicente Lopes / José Manuel Matos Dinis)

(***) Vd. poste de 12 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19283: Memórias de Gabú (José Saúde) (73): Ambulância apanhada ao PAIGC (José Saúde)

(****) Vd. poste de 3 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14214: Memórias de Copá (5): Janeiro e Fevereiro de 1974. (António Rodrigues)

(*****) Vd. poste de 21 de outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7150: Tabanca Grande (249): Carlos Fernandes, ex-1º Cabo Pára (CCP 122, 1971/74) e ex-elemento do Grupo Os Vingadores, do Alf Grad Marcelino da Mata

(...) Luis Graça, o que de momento me leva a enviar estas palavras é para falar a respeito da notícia sobre a Ambulância, que foi capturada entre Copá e a Fronteira [com o Senegal]. Eu estive nessa operação, eu e o capitão Asterix (que não era o António Ramos, mas sim o Valente dos Santos).

Nessa altura, ou seja entre fins de 1973 a agosto de 74, quem fez parte do COE , foram o Major Veiga da Fonseca, do Exército, já falecido, e o Capitão Pára Valente dos Santos de quem junto uma foto de grupo, onde estou eu e o Valente dos Santos (...) . Foi tirada em Bula a quando da entrega das Boinas Vermelhas. Foi o nosso grupo o primeiro a usar tal cor de boina.

Hoje a Boina, que o Marcelino usa nesta foto , que também junto (...) , fui eu que lha ofereci, antes de ter vindo viver para a Madeira. Dei-lhe o crachá bem como os emblemas do grupo, os Vingadores.

Pois nessa operação, que teve por nome Gato-Zangado, em Fevereiro de 74, saímos de Bajocunda, andámos toda a noite... A operação consitia em armadilhar as linhas de água, com as "Bailarinas" e as "Viúvas Negras", pelo Alferes Tarro, do Exército. Eu fiquei encarregue de lhe fazer a segurança, a esse Alferes.

Já tinhamos colocado algumas armadilhas na zonas de água e estavamos no nosso descanso, quando aparecem dois sujeitos da população do PAIGC, com uns baldes, para irem buscar água, dentro do território deles. Aí começa a caça ao inimigo. Houve uma troca de tiros e, na perseguição, encontrámos caixotes de Armamento, granadas de RPG, bem como Armas.

Foi pedido apoio aéreo, na retirada do material, e foi numa das voltas do héli-canhão, que se deu com algo escuro, que de cima não deu para ver o que seria. Foi com base na informação do piloto do héli, que deparámos com uma viatura tipo Ambulância que se encontrava tapada, camuflada com árvores cortadas, com o sistema de ligação estragado. Foi o Marcelino que conseguiu colocá-la a trabalhar, depois de pedir combustível a Bajocunda, que era o quartel mais perto. Depois a Ambulância foi levada até Massacunda, local onde estava uma coluna de mantimentos para Copá e Bajocunda.(...)


(******) Último poste da série > 24 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19133: FAP (112): Há aviões... e aviões, há o Cessna 152 e o Dornier, DO 27 (E. Esteves de Oliveira)

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19113: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (4): José Manuel Matos Dinis (ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71)


Comentário, de 16 do corrente, do 
Magnífica Tabanca da Linha, 2012:
O Zé Dinis no uso da palavra. 

José Manuel Matos Dinis, ao poste P19106 (*)

(i) ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71;

(ii) nosso grã-tabanqueiro  de longa data, nosso querido amigo e camarada;

(iii) tem cerca de 220 referências no nosso blogue;   

(iii) depois do seu regresso a casa, a Cascais, em janeiro de 1972, vindo da Guiné, rumou até Angola, em maio de 1972;

(iv) viveu  e trabalhou na Lunda, na melhor empresa angolana na época, a famosa Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, com sede no Lundo;


 
Sobre o tema [, a "cunha" na tropa](*), nunca fui de pedidos ou de obtenção de vantagens, e encarei tudo na tropa como a minha fatalidade, comum a tantas outras.

Antes de ser mobilizado, estagiava num importante hotel de Lisboa, local onde se alojava quase semanalmente um governador civil de uma cidade do Norte, homenzarrão, mais gordo que forte, que falava grosso, e era amigo do Salazar, que visitava regularmente. 

Durante as primeiras férias que aqui passei, e em visita ao pessoal do hotel, aquele senhor encontrou-me no salão e dirigiu-se-me: 
− Ó rapaz, que é feito de ti, que há tanto tempo não te vejo? 

Respondi que estava na Guiné em missão de soberania, ao que ele logo acrescentou: 
− Oh, oh, e porque é que não me disseste nada?

Fiquei a saber que, por vezes, pode valer a pena pedir qualquer coisa. Naquel altura, já era tarde, e eu já estava comprometido pela camaradagem.  (**)

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18512: CCAÇ 1586, "Os Jacarés" (Piche, Ponte Caium, Nova Lamego, Beli, Madina do Boé, Bajocunda, Copá e Canjadude (1966-1968): Subsídios para a reconstituição da sua história (Jorge Araújo) - Parte I





Guiné > Bissau> Cais > 9 de Maio de 1968 > Preparativos para o regresso à metrópole da CCAÇ 1586 a bordo do T/T Niassa (fotos gentilmente cedidas pelo camarada ex-fur trms Aurélio Dinis, da mesma unidade).


Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 

(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue desde março de 2018; 
criador da série "D(o) outro lado do combate"




Companhia de Caçadores 1586, "Os Jacarés"  (Piche, Ponte Caium, Nova Lamego, Beli, Madina do Boé, Balocunda, Copá e Canjadude ((1966-1968):  Subsídios para a reconstituição da sua história - Parte I



1. INTRODUÇÃO

Com algum atraso, mas ainda a tempo de cumprir com os objectivos de partida, o presente trabalho surge na sequência da publicação no blogue de dois postes: o P18149 e o P18158, ambos em memória do Alferes QPAugusto Manuel Casimiro Gamboa [, foto à esquerda, cortesia da Academia Militar[, pertencente à CCAÇ 1586 (1966/1968), e da referência à emboscada que o vitimou, em 14 de dezembro de 1967, na estrada entre Canjadude e Nova Lamego.

Ele é também, por um lado, um modesto contributo escrito (subsídio) visando ajudar na reconstituição da História desta Unidade (a possível) e, por outro, a concretização da promessa feita em comentário ao segundo texto, uma vez que, de acordo a informação dada pelo nosso colaborador permanente José Martins, especialista em Arquivo Histórico Militar do Exército (Guerra do Ultramar), "no volume 7.º da CECA [Comissão para o Estudo das Campanhas de África], consta que [da CCAÇ 1586] não existe História da Unidade".

Não estando expressas as razões da ausência documental da sua História no AHM, não é difícil presumir como uma forte possibilidade, , quiçá a mais provável, que ela teve como principal causa a divisão física e logística permanente dos seus efectivos e as responsabilidades que lhes foram atribuídas em cada um dos locais onde esteve instalada, num total de oito, como se indica em título e como se assinala no mapa abaixo.

Para além desta probabilidade (suspeita), que naturalmente não podemos comprovar, uma outra variável poderá ter influenciado também a sua não transcrição para o papel, na justa medida em que estamos perante um colectivo militar metropolitano que muito sofreu ao longo dos vinte e um meses da sua comissão (de agosto de 1966 a  maio de 1968), fazendo fé nos factos que conseguimos apurar, entre eles os seus mortos e feridos.

Será que foram estas as principais causas?

Ainda assim, admitimos a hipótese de terem existido outras razões/causas para além das que acima presumimos. Mas só o saberemos, em definitivo, se algum elemento da CCAÇ 1586 tiver a resposta certa a esta questão. Vamos esperar que tal aconteça ou que no aprofundamento deste projecto de investigação possamos chegar lá.

Porém, perante a caracterização sumária do quadro supra, compreende-se (compreendo) perfeitamente as dificuldades em se estruturar/organizar as suas memórias, pois foram, certamente, muitos os factos e ocorrências que mereceriam ficar gravadas como testemunhos históricos da sua presença na região do Gabu, situada a Leste do território da Guiné, e que não foi possível centralizá-las ou juntá-las, passando-as a escrito, devido à dispersão dos seus efectivos nas diferentes frentes das muitas missões.

Lamentamos que assim tenha sido.

Porque não fazemos parte desse colectivo de camaradas (ex-combatentes), estes sim fiéis depositários das suas memórias durante aquele período ultramarino, enquanto principais personagens fazedores da sua história, esta narrativa não podia deixar de não ser corolário da consulta realizada a diferentes fontes de informação, escrita e oral, onde cada referência encontrada e relato obtido dos directamente envolvidos, se considerou relevante para a concretização do objectivo geral, ou seja, o início de um processo de reconstituição da História da CCAÇ 1586.

Dessa análise global e da sua triangulação, como metodologia da investigação, procurou-se caminhar na busca do que considerámos fidedigno, idóneo, exacto ou válido, enquanto sinónimos do mesmo valor, deixando à reflexão de cada leitor o que se pode considerar, inquestionavelmente, genuíno ou, pelo contrário, uma trapalhice (propaganda), uma vez que circulámos por ambos os lados do combate.

Em função do já pesquisado e dos resultados obtidos, decidimos dividir o trabalho em diferentes partes, sendo esta a primeira, onde se divulgam aspectos relacionados com a sua mobilização, locais das principais actividades operacionais e quadro das baixas em combate.


2. MOBILIZAÇÃO E LOCAIS DAS MISSÕES NO CTIG


Mobilizada no Regimento de Infantaria n.º 2 [RI 2] , em Abrantes, a Companhia de Caçadores 1586 [CCAÇ 1586] embarcou no Cais da Rocha, em Lisboa, a 30 de julho de 1966, sábado, zarpando rumo a Bissau a bordo do N/M Uíge, numa altura em que a cronologia da guerra registava já três anos e meio.

Aí desembarcou a 4 de agosto, 5.ª feira, sendo destacada para o sector do Batalhão de Caçadores 1856 [BCAÇ 1856], assumindo a 8 do mesmo mês a responsabilidade do subsector de Piche, substituindo dois pelotões da Companhia de Caçadores 1567 [CCAÇ 1567], e guarnecendo o destacamento da Ponte do Rio Caium com um pelotão, até 21 de setembro de 1966.

A partir desta data assumiu, também, funções de unidade de intervenção na zona de Nova Lamego, reforçando diversas localidades, entre elas:

(i)  Nova Lamego, de 10 de outubro de 1966 até princípios de dezembro desse ano;

(ii) Béli, de 25 de janeiro a 15 de abril de 1967;

(iii)  e Madina do Boé, de 10 de fevereiro a 1 de maio de 1967.


A 6 de abril de 1967 foi rendida no subsector de Piche, assumindo o subsector de Bajocunda no dia seguinte [7abr1967], rendendo a Companhia de Caçadores 1417 [CCAÇ 1417] e guarnecendo Copá com um pelotão, mantendo-se integrada no dispositivo de manobra do Batalhão de Caçadores 1933 [BCAÇ 1933] e posteriormente do Batalhão de Caçadores 2835 [BCAÇ 2835].

Entre 28 de outubro e 4 de dezembro de 1967, integrou, com um pelotão, o sector temporário de Canjadude.

Foi rendida no subsector de Bajocunda a 27 de abril de 1968 pela Companhia de Caçadores 1683 [CCAÇ 1683], embarcando em Bissau, de regresso à metrópole, a 9 de maio de 1968, 5.ª feira, a bordo do N/M Niassa, com a chegada a Lisboa a acontecer a 15 de maio, 4.ª feira, ou seja, seis dias depois [adap. do P3797, José Martins, ex-Fur Trms CCAÇ 5 (1968/1970), nosso colaborador permanente].


 3. MAPA DOS LOCAIS ONDE A CCAÇ 1586 DESEMPENHOU AS SUAS DIFERENTES ACTIVIDADES OPERACIONAIS


No mapa abaixo, sinalizadas no interior de elipses, encontram-se os locais onde a CCAÇ 1586 desempenhou as suas diferentes actividades operacionais.


Infografia: Jorge Araújo (2018)



4. QUADRO DE BAIXAS DURANTE A COMISSÃO


No âmbito da pesquisa realizada, foram identificadas e agrupadas por datas as baixas contabilizadas pela CCAÇ 1586 durante a sua comissão, cujo quadro se apresenta de imediato.

A organização do quadro, segundo esta metodologia, corresponde à ordem da descrição dos factos conhecidos sobre cada causa ou ocorrência, e que daremos conta ao longo das próximas narrativas.


Infografia: Jorge Araújo (2018)

Sitografia consultada:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/

http://www.apvg.pt/

http://ultramar.terreweb.biz/ (com a devida vénia)

(Continua)
______________

Obrigado pela atenção.
Com forte abraço de amizade,
Jorge Araújo.
16JAN2018.

PS - Este é o primeiro dos textos que estavam em atraso, o da CCAÇ 1586, na medida em que me comprometi a dar uma ajuda na reconstituição da sua HU, que não existe. Entretanto, fui convidado para participar no seu Convívio Anual que se realiza em Abrantes, a 19 de maio de 2018. Já lhes pedi um cartaz para fazer a sua divulgação na «Tabanca».

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16131: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte III: A vida na mina Munguanhe 2

Terceira crónica enviada a 18 do corrente;

Olá Luís, boa noite!
Aqui vai a parte 3 das memórias da Diamang. Espero que estejam do teu agrado, pelo menos revelam episódios autênticos, ainda que susceptíveis de interpretações bárbaras. É que ter feito a tropa na Guiné era muito diferente de trabalhar atrás do sol posto nas longínquas terras do leste de Angola.

Com um abraço
JD


[ O José Manuel Matos Dinis, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, nosso grã-tabanqueiro e adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha, Jorge Rosales, depois do seu regresso a casa, a Cascais, em janeiro de 1972, vindo da Guiné, rumou até Angola, em maio de 1972, para ir viver e trabalhar na Lunda, na melhor empresa angolana na época, a famosa Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, com sede no Lundo. Aqui casou (por procuração), aqui viveu e trabalhou, aqui nasceu o seu primeiro filho... Desafiámo-lo justamente a falar da sua experiência angolana em meia dúzia de crónicas memorialísticas. Ele aceitou galhardamente o desafio.]


1. As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte III: A vida na mina Munguanhe 2
.
A mina de que me tornei responsável, e que já descrevi em pinceladas rápidas, era o Munguanhe-2, uma colina explorada sob o método clássico, com o desmonte de cascalho por padejamento, linhas para vagonetas que transportavam o cascalho para uma lavaria de "pans". Os meios mecânicos empregues eram escassos, e a rentabilidade ficava muito longe das minas mais rentáveis. Imagino que se mantinha este modelo de exploração, porque, apesar da escassa produção diamantífera, era mínimo o desperdício e não deixava de ser rentável. Agora não me ocorre o valor médio da produção diária, que talvez não excedesse os 20 quilates em pequenas gemas.

Alguns dias depois já identificava parte do pessoal pelos nomes. E uma ocasião tive uma atitude que lhes caiu muito bem. Faltou um elemento que me parecia bom trabalhador, e durante a chamada que antecedia o inicio dos trabalhos, o Muriandambo, capataz principal, referiu que aquele elemento tinha a mulher muito doente. Pedi que alguém me indicasse a aldeia onde morava, e lá fui em busca da doente. Eram pessoas humildes que aceitavam com resignação a doença, mas vi que tinha uma grande chaga na perna, e soube que teria sido vista pelo feiticeiro. Com ajuda entrou para o carro, e levei-a ao posto médico. Na ausência do Julien Martan (fonética afrancesada de Júlio Martins), ausente na ocasião, pedi a um auxiliar para ver a doente com a maior brevidade. Limpou-a, desinfectou-a, entregou-lhe alguma medicação, e recomendou que lá voltasse mais tarde. Levei a senhora de volta à aldeia, e voltei à mina para reiniciar a tarefa do diária. Lembro-me de que tive boas notícia dela.

Outra ocorrência:
no dia de pagamento de salários, pagamento que se efectuava no refeitório onde o Tomás se deslocava acompanhado de uma espécie de burra com o dinheiro, observei que alguns metros adiante, ainda na área da mina, estavam uns tipos desconhecidos. Indaguei quem eram, e logo soube que se tratava dos credores de algum pessoal, que lá iam receber o produto da venda de aguardente. Dirigi-me a eles e disse que não os queria ali, que fizessem a cobrança nas aldeias. Saíram sem ripostar, mas no fim do dia o Muriandambo demorou a contar-me que esses homens preparavam ali perto os destilados, e que alguns homens gastavam logo uma boa parte dos salários, o que gerava grandes perturbações com o pessoal, pois as mulheres, perante a escassez de dinheiro, fugiam de casa, e eles faltavam alguns dias ao trabalho para as resgatarem. Assim, constatei que os consumidores do "marufo" ficavam duplamente prejudicados, pois gastavam boa parte do salário na compra da bebida, e deixavam de receber o correspondente aos dias em falta. Isto, sem contar com as relações afectadas. Ainda me referiu que ficavam mal vistos na aldeia por causa das dificuldades resultantes do consumo da bebida. Notei, portanto, algum preconceito ou ressentimento contra os elementos socialmente menos bem comportados. 

Em outra ocasião faltaram dois elementos no dia do pagamento, e guardei os salários de cada um em envelope. O André Pihia, um rapaz ainda jovem e que mostrava competência e era capita da lavaria, assistiu a tudo, e à guarda dos envelopes numa gaveta da secretária, e teve uma tentação maldosa. Depois do serviço arrombou a janela e furtou os envelopes. No dia imediato, quando cheguei e constatei a situação, logo inquiri o Zé Manel, que me deu a informação do sucedido e ficou ao meu dispor para me indicar o caminho da aldeia. Levava comigo uma faca de mato, para alguma eventualidade. O André não ofereceu qualquer resistência, entrou no carro, e levei-o ao Cambulo, para trabalhar na administração o necessário para repor os valores roubados. A razão tinha sido a mais ingénua que possamos imaginar: comprou cerveja e deu uma festa para os vizinhos. Assim, à novo-rico.

Tomei, então, a decisão de ir ao Cambulo, que era a sede do concelho, e pedi à polícia para tomar conta dos destiladores, o que veio a acontecer, embora, agora, não possa afirmar se tudo ocorreu com bons ou maus resultados, mas houve destruição ou apreensão das destilarias. Pelo menos a cobrança à boca de cena deixou de acontecer. 



Angola, Lunda, Diamang, c. 1972/74 >  A nossa cozinheira: repare-se no penteado e nas mutilações de enfeite.

Fotos (e legenda): © José Manuel Matos Dinis (2016). Todos os direitos reservados.

No refeitório também me informava se o pessoal gostava das refeições servidas, na base da carne e do peixe seco estufados em óleo de palma, que acompanhavam batata, batata-doce, ou milho, e constatei que eram pratos do agrado geral. Também observei que alguns trabalhadores cobriam numa folha larga de um arbusto o conduto que lhes calhara em sorte, e levavam para partilha da família. Dei indicação à cozinheira para aumentar a quantidade aplicada, e ao Muriandambo para alternadamente distribuir a sobra do rancho pelos trabalhadores, de modo a que não houvesse prejudicados. Passei a requisitar mais uns quilos de alimentos, e não me levantaram problemas. Nas áreas exploradas e de terras removidas, incentivei ao plantio de batata-doce e milho para melhoria dos consumos domésticos.

A vida na mina corria-me com prazer, e por vezes ainda arranjava alguns minutos para me sentar à beira rio e observar a natureza, sobretudo a vida dos bicos-de-lacre, pássaros pretos com o bico da cor do lacre, que havia em quantidade, esvoaçavam bastante e cantavam com alegria permanente. Mas uma ou outra vez, com a ajuda do Zé Manel, o guarda nocturno, aprendi a caçar um jovem crocodilo que vivia no canal, e caía numa laçada colocada no fim de uma frágil paliçada, onde era atraído com um peixe ou um bocado de carne. Depois deixava-se ficar sem tentar deitar a baixo as canas que o "prendiam". Era muito novo, e de comprimento teria apenas cerca de um metro ou um metro e vinte. Obviamente, tirávamos o laço de corda, e o bichinho quase se habituou àquela rotina que lhe garantia alimento e repouso ao sol. Por uma ou outra vez vi a repetição da cena, o que seria impossível quando encorpasse.

O Pereira da Silva era quem me dava apoio técnico, quando necessário, mas algo raramente. Porém, houve uma ocasião em que me senti atrapalhado, quando não preparei a defesa com drenagem adequada à expansão da exploração, e as intensas chuvas fluíram para uma zona mais baixa e longínqua, junto de uma roda-de-canto, onde as vagonetas curvavam para as novas áreas de "cortes" que iam entrar em exploração. Foi problemático, e o recurso às duas bombas hidráulicas não se mostrava suficiente pelo tempo que levavam a empurrar a água lamacenta para um diferente nível de encontro com o canal. Houve voluntários para entrarem na água e manobrarem as vagonetas com água pela cintura, o que se tornava penoso e perigoso. Felizmente não aconteceu qualquer acidente, que poderia materializar-se no corte de dedos do pé, ou outra coisa mais inesperada. 

Para todos aqueles que referem a preguiça dos africanos, deixo aqui este exemplo de como era o contrário que normalmente acontecia, pois diariamente havia trabalhos de pá, pica e barra-mina para desmonte de terra, que não eram pera-doce, tanto sob o grande calor africano, como sob efeitos das magníficas tempestades locais e o peso dos volumes deslocados
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Depois do horário de trabalho, quando chegava a Cassanguidi, onde estava a viver na Casa de Trânsito, estacionava o carro entre esta e a casa do Pessoal. Mal me apeava, chamavam-me para partilhar algum petisco e beber uma cerveja. Uma ocasião, ou porque éramos mais do que os habituais, ou porque estaríamos com mais apetite do que era habitual, o petisco estava a acabar, quando o Pereira da Silva teve uma ideia para salvar a situação. Chamou-me, para ir à sua casa buscar umas bifanas que estavam temperadas e no frigorífico. 
– Eu, porquê eu? Porque é que não vais lá buscar as bifanas? – perguntei-lhe. 
– Porque se eu lá for, a Manuela (a mulher do Pereira da Silva era a professora D. Manuela) não vai deixar-me sair, e como ela confia em ti, és a solução para prolongarmos o petisco. 

Convencido, fui a casa daquele simpático casal e, de facto, a Manuela, embora indignada e preocupada com algum excesso do marido, entregou-me as bifanas e recomendou que o marido zarpasse em meia-hora. Assim, cumpri as duas missões, sem outra responsabilidade com o cumprimento da combinação por parte dele, para além da comunicação que lhe fiz. 

Outra vez, ainda na sequência do relato de outras convivências, foi combinado sairmos à noite para caçar. Alguém trouxe um Land-Rover, um farol, e lá fomos, talvez com uma ou duas caçadeiras. abalámos por uma picada. Também farolinei, mas a única peça que avistámos foi o que nos pareceu um gato selvagem. Demos meia-volta e acabámos a comer um qualquer petisco antes do agravamento da noite. 

Um ou dois dias depois fui abordado pelo Mascarenhas, um caçador indómito e com fama justificada, que disse ter observado o meu gosto pela caça, pelo que estava a propor uma saída para o Canzar, onde pretendia caçar. Precisava de mim, para prevenir qualquer acidente e não ficar isolado nas lonjuras do mato. Para os menos lembrados, recordo que na época não havia telemóveis e não havia disponibilidade de rádios. Desculpei-me com o argumento verdadeiro de que não era caçador.

A passagem dos dias naquela área angolana fica mais ou menos documentada, pois havia hábitos repetitivos, e até dos álbuns fotográficos, dizia-se, que estavam cheios de retratos de comezainas e piqueniques. Aos domingos, a malta solteira tinha por costume encher uma mala térmica, carregar um saco de carvão, e uma quantidade sempre generosa de carnes e cervejas, para abalarmos em direcção a um local engraçado (um refeitório de mina, ou uma queda de água), onde se preparava a refeição, bebiam-se uns copos, e depois, uns sonecavam, outros jogavam cartas, e todos ouviam com mais ou menos atenção, a transmissão de um jogo de futebol do campeonato metropolitano. 

Eu faltava a estes encontros com alguma frequência, para deslocar-me ao Dundo, onde, aos sábados de tarde e à noite, havia farra entre a malta solteira. Nos domingos tomava o banho matinal, e apresentava-me em casa de quem me convidava para o almoço e jantar, e passava as tardes em cavaqueira com os donos da casa e os visitantes que recebessem.

Este ramerrame era-me agradável, e com o passar dos dias, convencia-me de que a África seria sempre a minha casa. Durante as tardes de domingo no Dundo sentia-se a normal tranquilidade de uma vida económica e social pacífica, onde eram comentadas diversas iniciativas de acordo com as potencialidades e o cada vez maior progresso que as populações experimentavam e exigiam. 

A guerra, que praticamente não se sentia, nem sequer era abordada. Era o desenvolvimento social e económico que mais interessava à comunidade de privilegiados e dirigentes, para além do nascente interesse pela actividade da Bolsa de Lisboa. Abrira uma dependência bancária em Portugália, e os funcionários percorriam os diferentes caminhos da Diamang para captação de recursos, com vista à constituição de depósitos à ordem e a prazo, bem como de outros produtos de dívida que, no conjunto, eram importantes instrumentos para o desenvolvimento da economia angolana.

Mas um dia passei por um percalço completamente inesperado. Um dia fui chamado ao grupo para receber um telefonema do Puto [Portugal]. Em minha substituição ficou um mecânico, que praticamente não saiu do escritório. Mas,  pouco depois de ter saído, o sub-chefe do grupo terá visitado a mina, e pareceu ter falado ao pessoal da exploração em modos normalíssimos para um nortenho do Puto, mas ofensivos para eles. 

Demorei duas horas desde que saí até ao meu regresso. Ainda falei durante uns cinco minutos com quem me substituíra sentado no escritório. Quando ele saiu dirigi-me à lavaria, e sofri o primeiro choque: a metragem com indicação das vagonetas ali transportadas não evoluíra praticamente desde que eu saíra. O problema era da exploração, informaram-me. Constatei que a lavaria continuava a trabalhar com material da reserva. Ao aproximar-me do declive do inicio da linha até aos cortes, reparei que não havia qualquer vagoneta no percurso. Explorava-se o corte mais próximo, e quando nele entrei, vi com grande admiração, o pessoal deitado ao sol, ou em amenas conversas, e as vagonetas fora da linha e viradas sobre o cascalho. 

Imediatamente vi o "filme"do homem do norte, e a decisão reactiva de fazerem uma greve com o desplante de ali terem ficado à espera do almoço. Num clique pensei sobre a quebra da disciplina, ou era reprimida imediatamente, ou poderia degenerar em futuras acções de protesto com o risco de se tornarem incontroláveis. Eu já sabia na época que os trabalhadores rurais eram muito ingénuos, mas que no geral aceitavam a penalização dos seus actos irreflectidos ou mauzinhos. Como também me corre o sangue nas veias, tive uma reacção que, provavelmente, ninguém esperaria, e subitamente, a xutos e pontapés, murros e pedradas, corri pelo meio deles numa acção de distribuição que deviam ter pensado que estava possuído pelo diabo.

Ao jantar, o Maia perguntou-me o que se passara na mina, pois ia lá falar-me e ficou assustado com as correrias desordenadas à frente do jipe. A título de segredo pessoal que garantiu, contei-lhe o que ocorrera, e só me restava esperar pelo dia seguinte para avaliar do efeito produzido. De manhã cedo, pela hora da chamada, e antes do horário de trabalho, o espaço sob o telheiro da lavaria estava cheio de gente para a habitual conferência de assiduidade. Chamei um por um, olhava-os, e no final não havia faltas, com excepção do Mualufuma Casaco a quem, por conselho do administrador do Cambulo, paguei 15 dias de ausência ao trabalho. Mandei-os para as tarefas sem mais palavras. 

O dia correu como normalmente, e sobre o episódio da véspera não houve mais conversas, mas devem ter intuído que não vacilava pela boa ordem na execução e desenvolvimento dos trabalhos. Quando recebi o correio com os mapas da verificação da véspera, o teor do material explorado era semelhante ao que vinha sendo registado, e não me preocupei. 

Esta narrativa podia tê-la omitido, mas acho-a importante, na medida em que na época as circunstâncias angolanas poderiam sugerir algo como prova provada da violência colonialista. O que pretendo é que se possa saber como o relacionamento poderia assemelhar-se ao de uma escola do ensino primário do nosso tempo e à assunção de responsabilidades por todos os intervenientes de um processo laboral. Alguma coisa pode ter mexido naquelas mentes, talvez com idêntica correspondência relativamente aos correctivos dados pelo professores nas escolas, de que muitos de nós reconhecemos o merecimento. Em boa verdade, não houve de nenhuma parte qualquer expressão de ressentimento, e os dias prosseguiram com canções que ritmavam o esforço que cada um, e todos em conjunto desenvolviam.

Por um desses dias o Chefe do Grupo encontrou-me no regresso a casa, e depois dos simpáticos cumprimentos próprios de um homem de bem com a vida, adiantou que o Director-Técnico tinha visitado a mina. Admirei-me, e questionei porque não mandaram chamar-me. Que o Director teria preferido assim, apesar da visão apenas parcial. Quando o interroguei sobre a impressão daquele Director-Técnico, pessoa de renome firmado na longa experiência e nas decisões técnicas que tomava, respondeu que tinha manifestado agrado com o que vira, e eu senti ter passado por um primeiro e importante exame profissional.

No próximo episódio farei uma incursão sobre algumas "estórias" de camanga, em correspondência ao desejo do estimado "cólon" Rosinha.


[Sugestões para ilustração fotográfica: Diamang: um espaço virtual dedicado à Diamang e à Lunda  >  Minas e lavarias da Companhia de Diamantes de Angola ]

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Nota do editor:

Postes anteriores da série > 

6 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16055: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte I: de Cascais até à Portugália / Dundo...

(...) Em Janeiro de 1972 tinha saído da tropa, dava passeios e namorava pelo litoral de Cascais, onde outros casais nos faziam concorrência. Os meus amigos estavam na vida militar, acabavam os cursos, ou já tinham iniciado actividades profissionais. Já não era como antes, quando a malta se reunia como seita para a paródia, ou para entusiásticas futeboladas. Namorava com envolvimentos familiares, e tinha a obrigação de procurar definição de vida. Não queria trabalhar debaixo de um tecto, e por isso, ficava excluída uma preparação profissional que tinha iniciado antes da tropa.(...)

12 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16080: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte II: Um "estado dentro do estado"...

(...) Mas afinal, que negócio é esse dos diamantes? É um "fétiche", direi eu. De facto, os diamantes servem para muito pouca coisa, e os que servem, são os industriais, precisamente os de menor valor. Os outros, os que cintilam de brilhos e são usados como adornos, não prestam para nada. Mas valem muito dinheiro, são atributos de riqueza e de poder. Destas razões é que resulta o grande fascínio ou interesse pelos diamantes. (...)