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sábado, 22 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24497: Facebook..ando (31): Heróis dos anos 50 (António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68; natural de Avintes, V. N. Gaia)

1. O António Reis não integra formalmente a nossa Tabanca Grande. Tem apenas quatro referências no nosso blogue. Mas é um dos nossos, um  camarada da Guiné: foi 1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966-68. 

Tem pelo menos dois livros publicados com as suas histórias e memórias, incluindo0 aquelc cuja capa se reproduz abaixo (3ª edição agora aumentada e melhorada: "A minha jornada em África", Vila Nova de Gaia, Palavras & Rimas, 2015, 110 pp.). 

Teve a gentileza de, na altura.  nos mandar 3 exemplares do seu livro (*)

Da sua página do seu Facebook, sabemos que o António Ramalho da Silva Reis, de seu nome completo:

(i) trabalhou como Eletrotécnico na empresa TLP - Telefones de Lisboa e Porto; 

(i) andou na escola Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia; 

(iii) vive em Vila Nova de Gaia;

(iv) masceu em 28 de fevereiro de 1944, em Avintes, V. N. Gaia (a terra da famosa broa);
(v) é casado;

(vi) é seguido por 106 pessoas;

(vii) tem 18 amigos em comum com a Tabanca Grande Luís Graça.

Fica aqui o  convite para ele se sentar à sombra do poilão da Tabanca Grande, convite que já na devida altura foi feito por nós. Basta-nos uma foto atual e o seu endereço de e-mail.


Cápa do livro de António Reis, "A minha jornada em África" , 3ª ed. 
(Vila Nova de Gaia, Palavras & Rimas, 2015, 110 pp.). (*)


Com a devida vénia reproduzimos aqui duas postagens da sua pãgina do Facebook: 



Porto, rio Douro, ponte Dom Luís I.
Foto da página do facebook
 do António Reis (2023).
Com a devida vénia,,,
2. OS HERÓIS DOS ANOS 50

por António Reis (Facebook, quinta feira, 20 de julho de 2023, 11:15)


Em 1954, a minha escola tinha cerca de 40 alunos (só rapazes). Dois conseguiram chegar à 4ª classe, o Mário Sancho e o Isabelino.
 
Em 1955 éramos 4, eu, o Zé Bombeiro, o António Guedes e o Oliveira Santos.
 
Em 1956, centenas de miúdos com 12, 13 e 14 anos atravessavam a pé o tabuleiro de cima desta ponte, uns calçados, outros descalços. Um deles era eu.

Com as soletas enfiadas 
na cintura, só as calçava depois de ter 
atravessado a ponte, porque era proibido 
andar descalço no Porto, dava multa.

Profissão: moço de bate-chapas. | Local de trabalho: Campo 24 de Agosto. | Transporte: a pé, sempre a pé, cerca de 10 km, porque os moços ganhavam 5$00 diários e o meu transporte custava 3$30 para cada lado. Quer dizer que o que eu ganhava, não chegava para o transporte.

Horário: de segunda a sábado, das 8h às 17h. | O pior dia: sábado. Os moços não recebiam os 30$00  [ em meados de 1956, valeriam cerca de 16, 30 euros a preços atuais] e sem a limpeza feita, o que acontecia por volta das 19h (ainda conseguíamos chegar a casa antes da meia noite).
 
Quem não aguentava ia para moço de trolha. Eu fui para moço do Sr. Joaquim Bitangolo ganhar 11$00 diários
[ cerca de 6 euros a preços atuais, valor reportado a meados de 1956] e tive sorte, porque nunca o vi bater nos moços, o que era anormal.
 
E dizem que éramos alegres, felizes e contentes. Uma ova! Heróis e humildes sim, ou o Cardeal Cerejeira não tivesse dito a Salazar que o povo para ser humilde tinha que passar fome. (**)





Facebool > António Reis > Postagem de 21 de maio de 2023 > 

Antigamente havia uma canção que tinha na letra: "Ó Tono, ó Quim, ó Zé, se queres ser amigo vem à romaria". E então o Tono, o Quim e o Zé lá iam. Mas esta foto é de outra "romaria", e ai de nós que não fossemos a ela. Aqui os "foguetes" eram outros. Eu só os via e ouvia de longe, o Zé via-os em São Domingos, o Quim estava em Bissau mas ia a muitas "festas" destas (era Comando). Éramos 3 meninos a quem roubaram três ou quatro anos da nossa vida.

Saudades,  grande amigo Zé! Descansa em paz.

 

terça-feira, 11 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24469: Memória dos lugares (449): "Chez Toi" / "Gato Negro", uma das referências da "noite de Bissau" (Nelson Herberto / Mário Serra de Oliveira / José Diniz de Sousa Faro)

Guiné > Bissau > s/d > "Aspecto parcial e Câmara Municipal"... Bilhete postal, nº 133, Edição "Foto Serra" (Colecção Guiné Portuguesa")... Ao fundo, do lado direito vè-se a ilha de Rei,

Colecção de postais ilustrados: Agostinho Gaspar / Digitalizações: Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).



Guiné- Bissau > Bissau > c. 1975 > Novo mapa, pós-colonial, da capital da nova república, já com as novas designações das ruas, avenidas e praças, que vieram substituir o roteiro português: av 3 de Agosto, av Pansau Na Isna, etc. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). (*)

A av da Unidade Africana separava a antiga Bissau Colonial dos bairros mais populosos como o Cupelon (de Cima e de Baixo), mais conhecfido pelas NT como "Pilão".

Por exemplo, a rua Eduardo Mondlane (assiinalada com um traço a zul) era antiga rua Engenheiro Sá Carneiro:,  parte do Chão de Papel (av. do Brasil), atravessa a av. Amílcar Cabral, a artéria central ( a antiga av. da República,) e vai até ao Hospital Simão Mendes, ao cemitério municipal e à antiga zona industrial...

Era a rua dos Serviços Meteorológicos e da messe de sargentos da FAP (com a independência, foi a primeira chancelaria da embaixada da China.). Em frente aos Serviços Metereolgicos ficava o "Chez Toi" (restaurante, pensão, bar e "boite", mais tarde "Gato Negro").

 
Foto: © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Segundo o nosso amigo guineense, de origem cabo-verdiana, Nelson Herbert,  jornalista que trabalhou na VOA - Voice of America, e viveu nos EUA, estando hoje reformado no Mindelo, São Vicente, a casa de duas moradias que se vê à direita  na primeira imagem acima,  foi a antiga "boite" ou "cabaret" "Chez Toi" (mais tarde "Gato Negro", como antes terá sido "O Nazareno", restaurante e casa de fados)... 

Em frente era a "Estação Meterológica de Bissau".. Antes da independência, esta rua, que era perpendicular à avenida da República (que partia da praça do Império até ao cais do Pidjiguiti) chamava-se rua do engº Sá Carneiro (antigo subsecretário de Estado das Colónias que visitou o território em 1947, sendo governador-geral Sarmento Rodrigues). (***)

2. Mário Serra de Oliveira é outro dos nossos amigos (e camaradas) que conheceu este e outros estabelecimentos da noite  da velha Bissau Colonial, quer como empregado quer depois como empresário do ramo da restauração coletiva.

[Foto à direita: Mário Serra de Oliveira, ex-1.º cabo escriturário, nº 262/66, BA 12, Bissalanca, 1967/68; esteve destacado na messe de oficiais em Bissau, entre maio de 1967 e dezembro de 1968; depois, já como civil, entre janeiro de 1968 e agosto de 1981, como empregado e como emtrsário passou por diversos estebelcimentos: Café Restaurante Solmar, Grande Hotel, Pelicano,  Ninho de Santa Luzia (uma casa sua, que abriu em 14/11/1972), Tabanca, Casa Santos, Abel Moreira, José D’Amura e Oásis; trabalharia ainda  na embaixada dos EUA; é autor, entre outros, do livro "Palavras de um Defunto... Antes de o Ser"(Lisboa: Chiado Editora, 2012, 542 pp, preço de capa 16€]

 
Num extenso texto, reproduzido na Net,  ele fala da “boate” Gato Negro, que antes se chamava "Chez Toi" (**):

(...) "O dono era um locutor de rádio cujo nome creio que era Soares Duarte, uma figura avultada cuja mulher não sei se o suportaria em cima, na exclusividade!" (...)

Mudou de nome e de d0no:

(...) passou a chamar-se... "Gato Negro", cujo dono era o Chico Fernandes. E, aí, ele foi a Portugal de propósito a contratar gado novo – todas com um “Gato Negro” um pouco mais abaixo do umbigo... Algumas vinte, aptas para todo o serviço.

Recordo aqui, já eu com "O Ninho de Santa Luzia" aberto, principalmente às sextas- feiras, me telefonava – sim, tinha telefone naquela ocasião, podia era não trabalhar mas que tinha, tinha… para um almoço para 22 ou 23, depois das 3 da tarde. A ideia, era tentar afugentar os 'mirones'. (...)

(...) Que inocència, a do Chico!... O problema era que...havia tantos esfomeados de 'carne fresca' – mesmo que besuntada de outros  – que até parece que lhes dava o cheiro!...

Então, após já estarem a almoçar, vinham aqueles tipos que só faltava 'comerem-nas com os olhos'...  Ainda tive problemas com alguns, porque se sentavam mesmo em frente da registadora – local do meu trabalho mais assiduamente , e...a comentarem ' olha p’rá aquelas trancas,  caralho!'

 (...) Claro que eu não permitia provocações diretas! O respeitinho era muito bonito e eu tratava de fazer vingar o mesmo!... Enfim...longa estória." (...) (**)



3. Outro depoimento (há mais no blogue), este do nosso tabanqueiro José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70), em comentário ao poste P18910 (***)

(...) De facto no início de 1970 (março a  a junho) existia o Chez Toi onde eu e os meus camaradas da BAC 1 jnos untávamos para umas bebidas, era o tempo de partida para a Metrópole (17 de junho no C arvalhoAraújo).

 Nessa altura,  creio, foi quando mudou de nome e o gerente era um locutor da Emissora Nacional que esteve na Índia (Goa),  de nome Oliveira Duarte (?), ex-sargento.

 Era um local simpático, com bailarinas recrutadas nas "boites" de Lisboa. Um dos fadistas era o Marco Paulo, já com muito sucesso. Uma das bailarinas era a Luísa,  uma mocinha atraente que encontrei em Lisboa,  na "Cova da Onça" (Av da Liberdade). 

Como estávamos no fim da comissão (com 27 meses), não ficávamos muito tempo nesses locais de risco, passando o resto da noite no Bar do Biafra (QG-Stª Luzia) ouvindo as aventuras e desventuras dos 'Piriquitos' (era só cheiro a pólvora) em trânsito de e para o mato. (...)  (****)

_____________

Notas do editor:

(**) Blogue A Guerra Nunca Acaba Para Quem Se Bateu em Combate > segunda-feira, 21 de novembro de 2011 > Guiné, Bissau, Pelicano, Solmar, Nino de Santa Luzia, Tabanca, Meta, Chez Toi (Gato Negro) e a longa e atribulada missão de serviço do 'camarada' Mário de Oliveira, de 1967 a 1981

(***) Vd. poste de 10 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18910: Memória dos lugares (378): Restaurante, pensão e "boite", o Chez Toi fazia parte do roteiro de "Bissau, by night"... O estabelecimento situava-se na rua engº Sá Carneiro... Desdobrável publicitário: cortesia de Carlos Vinhal.

(****) Último poste da série  > 25 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24009: Memória dos lugares (448): a "Esnoga", a sinagoga portuguesa de Amesterdão (séc. XVII) e a história incrível da sua comunidade

sábado, 8 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24459: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (3): Um tiro de misericórdia!

Contos com mural ao fundo (3)> Um tiro de misericórdia! 

por Luís Graça


1. Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o seu nome, para bem da tua higiene mental.

Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite. (Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e,  onde se bebia uísque marado, "de Sacavém", e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha, peludas,  que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, como os felinos, pintadas de um verniz vermelho horroroso. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.)

O raio da espelunca de Bissau tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi, “Em tua casa” … Convidativo ao voyeurismo: "entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa, não importa que seja a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa"… Era já uma antevisáo do bar de alterne...

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de patacão, que não viam há meses um pedaço de chicha (leia-se: carne de fêmea, branca, “comestível", em linguagem de "cabra-macho"), o Chez Toi devia ter um especial encanto que tu nunca conseguiste saborear nem descortinar…

Enfim, trazia aos machos solitários, tugas, que vaguegavam por Bissau, como baratas tontas,  algumas vagas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa e Porto, que o resto era paisagem, no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato, tão triste, tão desolador, tão deprimente, tão… (Porra, já chega!)

Uma deusa chamada Sophia tinha, em 1962, descrito no seu  “Livro Sexto” (um livrinho de poemas de cento e poucas páginas),  esse país liliputiano, onde quem mandava era um velho abutre:

“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas, / A podridão lhe agrada e os seus discursos / Têm o condão de tornar as almas mais pequenas.”

Já não sabes como lá foste parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Indicação do turismo local, ou de um algum "proxegeneta" da 5ª Rep (o café  Bento), enfim, não te recordas. Para o caso também não interessa. Andavas desenfiado, há uns dias, em Bissau, antecipando o gozo do início da licença de férias na Metrópole. Tu e outro gajo da tua companhia. Aguardavam o avião da TAP para Lisboa. Tinham vindo com alguma antecedência, de noite, no "barco turra", rio Geba abaixo, outra pequena grande aventura...

Sim, era assim que se dizia: o gozo da licença de férias!... Eram as primeiras férias pagas da tua vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Farias questão de dizer, mais tarde, já "paisano", que não tiveste problemas de consciência nem devolveste, à Pátria, o dinheiro, sujo, de “mercenário”, saudação a que tiveste direito à chegada, num dos primeiros grafitos que te lembras de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa: “Não sejas otário, / muito menos mercenário; / isto vai mal, / diz não à guerra colonial”).

Otário, mercenário?!
... Confessaste depois que te sentiste mal. Insultado, mesmo com as tuas reservas em relação à puta da guerra em que estavas metido. Sentiste que era um insulto a quem, como tu e os teus soldados, não deram o salto para o estrangeiro de fora, e cumpriam em África, longe de casa, uma missão em nome da Pátria, a qual estava acima de todos os regimes... Santa ingenuidade, a tua!

Estava-se em plena época das chuvas, talvez julho de 1970, já não te recordas bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E tu deixavas para trás um ano de intensa atividade operacional. Nessa noite foste dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, arranhava o francês de praia ou, pelo menos usava expressões, coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris que tu nunca viverias. ) Mas o bas fond em Bissau era, para a tropa-macaca, o Pilão, com má fama e bom proveito.

2. Abra-se aqui um parênteses, para explicar que tu tinhas feito uma aposta, tu e o teu parceiro do Chez Toi, coisas de machos solitários, bravatas, que fazem parte dos ritos de passagem da rapaziada da época: ir "dormir uma noite ao Pilão", antes de embarcar no avião da TAP; o primeiro a “desemparar a loja" e a "cavar", pagava o almoço no restaurante Pelicano, no dia seguinte. Era um teste de resistência, de virilidade e de coragem física... Pobres diabos!...

Ficaram os dois numa espécie de "casa da mariquinhas” lá do sítio, de toscas tabuinhas e telhado de zinco, e cada um foi com a sua “bajuda", cabo-verdiana, os quartos lado a lado, e com a "saída de emergência" por ali perto, mentalmente assinalada, para o que desse e viesse... Trajavam à civil e andavam... desarmados.

Às duas da noite, tu levantaste-te, vestiste as calças, deixaste a nota de 100 pesos que havias combinado com a rapariga, em cima do caixote que servia de mesinha de cabeceira, e saíste...

A atmosfera era sufocante, o zinco transformava as casas em estufa quente, as paredes de tabique deixavam passar os ruídos, de fora e de dentro, e sobretudo não aguentaste o choro de uma criança que dormia debaixo da cama, ao lado do balde do mijo, e em quem tu nem sequer tinhas reparado quando entraste, à luz mortiça de uma vela... Era demais para o teu estofo!...

Bateste à porta do outro quarto onde estava o teu parceiro, três toques secos, com os nós dos dedos, como combinado, e, passada meia hora, regressavam os dois, ao Chez Toi, meio "almareados" (o termo era do teu companheiro de viagem, oriundo do baixo Alentejo, Ourique ou Odemira, já não te lembras ao certo) e bêbados de sono.

3. Logo por azar nessa noite alguém arrombara a porta do teu quarto no Chez Toi, forçara o cadeado da mala de cartão e fanara-te uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, Old Parr e Dimple, para oferecer a quem devias favores, lá na terra, eram toda a riqueza que tu levarias a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionavas comprar no Taufik Saad na véspera do embarque.

Foste de imediato falar com o gordo do gerente do Chez Toi, que estava a aviar copos ao balcão. A conversa tornou-se logo desagradável: sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa, o gerente começou por pôr em dúvida a tua versão. Mas acabou por aceitar ir averiguar o sucedido, face aos veementes protestos, teus e do teu parceiro de aventuras...

As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, ali do "chão de Papel", que fazia o serviço de quartos. Em Bissau, não havia criadas, só criados, como no resto da África colonial ou pós-colonial.

Gerou-se algum burburinho. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque ou gin tónico na mão, juntaram-se a ti e ao teu solidário parceiro do Pilão.

O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais. Toda a gente, afinal, se sentiu lesada...

Tu e o sabujo do gerente já tinham chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque, que andava a servir às mesas, suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum álibi (nem porta, a não a ser a principal, para fugir). Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de insultos de teor racista:

– Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... A culpa é do Caco Baldé, que obriga aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, provavelmente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que tu, mas mais entroncado. Estava visivelmente eufórico, para não dizer embriagado. 
Tiveste então a infeliz ideia de o tentar acalmar, respondendo cilizadamente à sua provocação:

– Ó amigo, vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com os meus camaradas que arriscam todos os dias a vida…

O tipo não te deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça, de garras afiadas, direitinhas à tua carótida… Foi a primeira (e única) cena de porrada, de luta corpo a corpo, em que tu te viste envolvido no teatro de operações da Guiné… De facto, nunca tinhas sentido o "inimigo" tão perto, olhos nos olhos… Foram os dois ao chão, mas os gajos do conjunto (caixa, guitarra elétrica e voz) continuaram a tocar, no meio da algazarra, o "All you need is love"...

Providencialmente foi nessa altura que “ele” apareceu, fardado... "Ele", o teu anjo da guarda... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-te daquela situação de embaraço, apuro e aflição.

Escusado será dizer que o teu agressor também eram afinal,  militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, ou em trânsito para o mato, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar prontamente até ao cais apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a "ramona"… Quando te deste conta, eram já três ou quatro da madrugada…




Excerto do desdobrável publicitário do "Chez Toi", restaurante, pensão e "boite", sita na rua eng Sá Carneiro. Exemplar da coleção do nosso coeditor Carlos Vinhal. Data: Bissau, 15 de fevereiro de 1971. Parece que em 1973 também era conhecido por "Gato Negro"...

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



4. “Ele”, o teu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que "o teu conhecido de Tavira", com quem de resto tu ainda tinhas umas velhas contas por saldar…

Resumidamente, aqui a vai a tua versão dessa história que te estava atravessada e que remontava ao quarto trimestre de 1968, em Tavira.

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da instrução da malta, levaste dele uns socos valentes nos queixos. Tu tinhas adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto "nem a aleijar nem a ser aleijado"… Esperavas, com a tua ingenuidade e boa-fé, que o teu parceiro, com mais cabedal do que tu, 10 ou 12 cm mais alto do que tu, entrasse no jogo do faz-de-conta… Como muitos dos instruendos do CISMI faziam, de acordo com um "tácito código de honra" mais ou menos assumido, se não por todos, por muitos, para quem Tavira era apenas mais uma estaçáo do calvário...

Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. E que pontuava. Estava sobretudo  obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos três melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar, como era o seu sonho…

Ficaste-lhe com um pó dos diabos!... Ainda hoje te doem os queixos da “porrada” que apanhaste, segundo confidenciaste mais tarde… Não tinhas, pois, grandes razões para te lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabaste por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as vossas duas companhias para a Guiné. Trocaram um olá, meio embaraçados ou "encavacados", já o navio tinha passado as Canárias.

– O que lá vai, lá vai. Boa sorte! – foram as únicas palavras de despedida que vocês disseram um ao outro, nos Adidos, em Bissau, depois de relembrarem o episódio de Tavira.

– Sem ressentimentos! E agora, que Deus e os santos te protejam!– terás gracejado tu.

5. Voltaste a reencontrá-lo, por um bambúrrio, nessa noite, no Chez Toi. Afinal, iam ambos de férias. Ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. 

Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem que esperavas encontrar precocemente envelhecido, como alguns dos antigos combatentes que tu conhecias, uns já viúvos, solitários e amargurados, a lidar mal com a reforma, as doenças da idade e os fantasma do passado. Mas, não, o Carvalho (era o seu apelido) tinha ganho um novo fôlego, uma "alma nova",  entregando-se agora às delícias da natureza (fazia visitas guiadas no Parque Natural de Montesinho).

(...) “Talvez não acredites, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não conseguia, aliás ainda não consigo…

“Sem surpresa, vejo agora que afinal alguns gajos também tinha o seu… diário secreto. Num dos últimos almoços da nossa companhia, lá em baixo, no Sul, tínhamos combinado levar fotos e papéis da Guiné e houve vários camaradas que trouxeram os seus apontamentos, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… No meu caso, eram simples notas,  esboços, rabiscos, até recortes de jornal e revista e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida quotidiana das tabancas por onde andei… Uma forma, afinal, de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo. (Acho que tinha algum talento para a ilustração, que acabei por não desenvolver, depois da "peluda".)

“Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...

“Sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa), tive a veleidade de retomar os meus papéis. Mas a escrita é algo de muito penoso. E eu, afinal, prefiro dar os meus passeios pela serra.

“Tentei voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Não acreditas, mas não tenho mail. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros, pelos meus filhos e netos, pelos amigos, pela malta do grupo dos amigos de Montesinh0

"Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no 'front office'. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província, até me fixar na minha terra natal (sou daqui perto de Bragança, da mesma aldeia da nossa amiga comum que que te deu o meu número de telemóvel. no posto de turismo).

 Enfim, uma vida a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil, de especulação, corrupção e negociatas, trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes das agências a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…

"É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Municipal. Voltei a Bragança, sim, bom filho à casa torna. A minha mulher é professora primária e reformou-se primeiro do que eu... 

"A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade como Lisboa ou Porto. Lisboa, por exemplo, deprime-me. Lá sinto-me como um lobo solitário, encurralado, apanhado pelo Fojo do Lobo.

"Pois é, voltei à folha de papel A4, e ao caderno de linhas, como na 4.ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou me arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de básquete, tal como fui um não menos candidato falhado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.


"Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei, antes da tropa, com um conhecido advogado aqui da praça que, depois do 25 de abril, haveria de chegar a deputado por um dos partidos do arco do poder. Eu fazia a biscatagem de aprendiz de solicitador. Bati muitos requerimentos em papel selado…

“Ainda te lembras do papel selado?!... Quando o chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um 'Vou-te embrulhar em papel selado!'…


“Mas agora acabou. A minha velha máquina de datilografia está arrumada a um canto.  Foi das primeiras máquinas portuguesas, a aparecer no mercado,  com teclado HCESAR. Não me perguntes a marca... Messa, dizes tu?...Ah, sim, seria uma Messa... De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.

"Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro com as minhas memórias da Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.


“Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invetiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.

"Nasci em 1947  
  como tu, suponho, somos da mesma colheita, não?! – muito longe do mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira, o cardeal-patriarca de Lisboa ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.

"Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher mais nova do régulo, que tinha muitas)… 

"Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais, e em que fui educado na catequese e no seminário. Tive uma educação cristã, como toda a gente na minha terra. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí!).

“Matei, não matei?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. Na realidade, matei, na guerra; não sei das balas que disparei; a matar, de certeza, foi apenas por razões humanitárias, ou em autodefesa... Matei, sim, conscientemente, para abreviar o sofrimento de um  homem ferido de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.

'Medo?', perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, algumas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN, em que estávamos mais expostos. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. Perdi cedo as ilusões!...


"Se bem te lembras,  fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive,  foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo, na margem esquerda do Rio Corubal, não longe já da foz… Ainda era 'periquito' e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanas da companhia, 'meias-lecas', filhos da mãe...

"Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lados de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Estavam em contraluz, não nos viram... Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta (ou biafada, não te sei dizer ao certo),  mais ou menos da minha estatura, estava por um fio… 

"Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava à beira de um ataque de nervos, e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o 'turra' ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu, nem sequer o sacana do alferes 'ranger', comandante do meu pelotão.

"Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão, o 1.º pelotão, olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. 

"Ainda 'periquitos' com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.

"Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista como eu, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos 'jagudis' e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV, a DO 27, com o sacana do major de operações do batalhão de Tite, nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar por sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...

"Nos olhos do 'turra' pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, 'tuga', dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'

"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera e sangrara de imediato, havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas era bom caçador.)

"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava, na bandeira por que lutava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror, piedade e compaixão...


"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz. E nunca mais usei aquelas botas, conspurcadas!

"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDM que nos esperava no tarrafo, no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no Leste. 

"Durante semanas, os olhos vidrados do 'turra' não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de 'Furriel Ca...rrasco'. (Como eu gaguejava um pouco, quando me enervava, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...

"É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. Só vias o rosto dos prisioneiros ou de um ou outro guerrilheiro abatido junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate.

“Só mais tarde, muito mais tarde, li o conto do Miguel Torga, 'O Alma Grande', o gajo de manápulas compridas que era chamado, na aldeia, para apressar a morte dos moribundos. Chama-lhe eutanásia, se quiseres. Neste caso, ele usava o travesseiro para sufocar o moribundo. Tudo isto a pedido da família, que devia ser cristã-nova, e que queria evitar com isso que viesse o abade com os últimos sacramentos, a extrema unção…

"Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma vez ou duas vezes. Numa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da política do Spínola. E isso deu-me algum consolo. Noutra ocasião, o capitão que achava que eu daria também um bom torcionário, e poderia  pôr a 'cantar' um  gajo suspeito da população...  Recusei-me, indignado, o suspeito, um mandinga,  foi entregue à PIDE de Bafatá.

"Não, nunca usaria a faca de mato, se é isso que queres saber. Daquela vez (e única, juro) preferi o tiro na nuca... Fiquei com má fama, dentro e fora da companhia. E, no fim, nem uma merda de um louvor me deram, a começar pelo safado do capitáo, que depois meteu o chico...

"Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo 'uppercut' que te ia pondo KO... Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defender melhor... Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti. E acho que estamos quites,  pensando no apuro de que eu te livrei em Bissau, no tal Chez Toi... (já não me lembrava do nome).

"Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos, nem sequer à minha mulher. Um deles até é juiz, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de perder a sua estima... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... Há um pacto de silêncio em relação âs merdas que cada um fez... Hoje tratam-me pelo meu apelido Carvalho (sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o 'Furriel Ca...rrasco', que era uma coisa que me irritava solenemente. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.


(...) "Como te disse, deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, transmontano como eu, o 'Alma Grande',  da colectânea 'Novos Contos da Montanha', se não me engano... 

"De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do 'abafador', a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos ou terminais... E em que só se chamava o médico, como ainda acontecia na minha aldeia, no tempo dos meus avós e dos meus pais... para passar o atestado de óbito!”...

6. Despediram-se com um grande abraço apertado, com a promessa de tu voltares, em setembro, a seu concelho, para ele te levar a  ver e a ouvir a brama dos veados no Parque Natural de Montesinho... 

Ele por lá ficou, em Bragança, a fazer aquilo que lhe dava gozo, que era ser guia da natureza e levar grupos a descobrir a sua região... Tu voltaste ao Porto, não sem ficares por um bom par de horas, ao longo da autoestrada, a A4, com um nó na garganta não menos apertado que o teu abraço...

© Luís Graça (2019). | Última revisão: 7/7/2023
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Nota do editor:

sábado, 10 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24383: Blogues da nossa blogosfera (182): Uma "mulher de armas", a holandesa Noraly (nome de guerra, "Itchy Boots") que, com a sua especial Honda CRF 300 L Rally, acaba de atravessar a Guiné-Bissau


Guiné-Bissau > 31 de maio de 2023 > Região de Cacheu > Vista, de drone, da ponte de São Vicente, construída pela empresa portuguesa Soares da Costa, financiada pela União Europeia, e inaugurada em 2009... Fotograma, com a devida vénia, do vídeo  da "youtuber" Itchy Boots, que merece as nossas palmas...


Ver Vídeo: 22' 17'' no You Tube > Itchy Boots. 




1. Mensagem do nosso amigo e camarada Valdemar Queiroz

Data . quinta, 1/06, 14:22 (há 8 dias)

Assunto -  Preciso falar PORTUGUÊS aqui na GUINÉ - BISSAU |S7E36| - YouTube

Luís, uma pérola enviada pelo meu filho, que vive na Holanda, como sabes, casado com uma holandesa (ou neerlandesa).

A loirinha  (do vídeo) é uma "ganda maluca". Fiquei com pena de ela, vinda do Senegal (Zinguinchor) não ter entrado pela fronteira de Pirada que passaria por Paúnca (onde eu também estive).

Em Bissau estão a arranjar a Avenida, e a Bissau-Velha está em bom estado de conservação.

Para fazer viagens destas é preciso ter muito gosto por aventuras.

Valdemar Queiroz

Clicar aqui; https://www.youtube.com/watch?v=A1FWR7tZf4E



2.  Comentário do editor LG:

Valdemar, acabo de ver, com legendas em inglês... Tiro o quico à valente holandesa (ou neerlandesa), "youtuber", mundiamente conhecida por Itchy Boots (à letra, "botas que coçam", como são as botas e o restante vestuário dos motoqueiros). Vou publicar, com um link para o vídeo no You Tube. Obrigado ao teu filho. Luís.

O canal no You Tube chama-se Itchy Boots (nome de guerra, registado, da aventureira solitária, "motoqueira", "filmaker", holandesa, Noraly, que em 2018 mandou o emprego às urtigas e decidiu correr mundo na sua Honda especial, superartilhada e equipada com a melhor tecnologia de imagem, incluindo um drone)...

Alguns dados estatístícos sobre os seus conteúdos no You Tube: 

(i) tem cerca de 1,7 milhóes de subscritores;

(ii) disponibiliza 567 vídeos;

(iii) regista mais de 343 milhões de vizualições

(v) tem na página pessoal em www.itchyboots.com

(vi) tem blogue, página no Facebool com mais de 200 mil seguidores, etc.;

(viii) e, claro, tem também bons patrocínios...

Descrição da autora no You Tube (em inglês e português)

I've ridden 140.000 kilometers solo around the world and still counting! 

My name is Noraly, I'm Dutch and passionate about motorcycles, traveling and adventuring. 

In 2018, I quit my job, sold my belongings and have been traveling the world fulltime by motorcycle since then. Over 40 countries later, I am in North Africa, making my way down South. 

My loyal companion is named Alaska, because I rode her all the way up to the northern tip of Alaska before coming to Africa. She is a Honda CRF300L Rally with tonnes of modifications! I share my adventures here on YouTube every Wednesday and Sunday! 

Welcome to the channel and I hope you'll enjoy the ride! Let's go!

Já andei  140 mil quilómetros sozinha ao redor do mundo e continuo a fazer quilómetros! 

O meu nome é Noraly, sou holandesa e apaixonada por motos, viagens e aventuras. 

Em 2018, deixei o meu emprego, vendi os meus pertences e, desde então, viajo pelo o mundo inteiro de moto.

Mais de 40 países depois, estou no norte da África, seguindo para o sul. A minha fiel companheira chama-se Alasca, porque eu a montei até à extremidade  norte do Alasca antes de vir para a África. Ela é uma Honda CRF300L Rally com montes de modificações! 

Compartilho as minhas aventuras aqui no YouTube,  todas as quartas-feiras e domingos! 

Sejam bem-vindo ao canal e espero que gostem do passeio! Vamos lá embora!  

(Traduçáo / adaptação livre: Google Translate + LG)


3. Sobre a viagem Ziguinchor-Bissau (via ponte de São Vicente) de final do mês de maio de 2023

"Preciso falar PORTUGUÊS aqui na GUINÉ - BISSAU |S7E36| (Ou seja, Temporada  7 - Regresso a África ! Episódio 36 - Guiné-Bissau) (Tem já cerca de 432 mil  visualizações) 

31/05/2023 BISSAU

In this video I am crossing the border into Guinea-Bissau. Guinea-Bissau was under the rule of Portugal for many centuries and Portuguese is still the official language here. By far the majority of the locals speak Creole or other languages, but since I don't speak those languages, I have to try my best Portuguese here. 

Want to learn how to use drones, GoPros and 360 cameras to film your solo motorcycle adventure? Check out: www.itchyboots.com/academy 

Here I teach all my filming techniques including getting drone shots while riding! 

Gear & Equipment that I use in this season:  
https://www.itchyboots.com/blog/gear-and-equipment-season-7


Follow my journey on: www.itchyboots.com


Neste vídeo  |S7E36, Temporada 7 / Episódio 36|  estou a  atravessar a fronteira para a Guiné-Bissau. A Guiné-Bissau esteve sob o domínio de Portugal durante muitos séculos e o português ainda é aqui a língua oficial. Mas a maioria dos habitantes locais fala crioulo ou outras línguas. Eu, como não falo essas línguas, tenho que tentar o meu melhor português aqui. 

O leitor quer aprender a usar drones, GoPros e câmeras 360 para filmar a sua aventura a solo de moto? Confira: www.itchyboots.com/academy 

Aqui eu ensino todas as minhas técnicas de filmagem, incluindo tirar fotos de drone enquanto ando! 

Máquinas e equipamentos que uso nesta temporada:  

4. Segundo a Noraly diz, antes de entrar pela fronteira norte da Guiné-Bissau, vinda de Ziguinchor,   passou 9 meses no Brasil, há largos anos, fala português (embora esteja esquecido,,,), e também espanhol... 

É uma mulher atraente, empática, simpática,  aventureira, corajosa, apaixonada pela aventura e pelas motos todo o terreno, dotada para este tipo de desporto-aventura, poliglota (além da língua materna, é fluente  em inglès e no Senegal falou também francês...), comunicadora excecional, contadora de histórias e realizadora de vídeos.  

Imaginamos que tenha um staff de apoio, mas não sabemos quem faz o quê... 

Por favor vejam o vídeo (que tem maios de 22 minutos)  com legendas em inglês ou em português, em ecrã grande... (Ativar as legendas, nas "definições", na barra inferior, do lado direito do vídeo.)

E obrigado à "Itchy Boots"... pelas imagens fantásticas que nos mostra do norte da Guiné-Bissau, região do Cacheu, rio Cacheu, ponte de  São Vicente, além da velha, renovada, cidade de Bissau... Enfim, um país que continua no nosso coração e a quem desejamos as melhores (a)venturas.  

Boa continuação da viagem !... Cuidado com as "minas & armadilhas"... E alguns delas são as "ideias estereotipadas" que se tem dos países e da sua história... (LG)
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Nota do editor

(*) Último poste da série > 14 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24142. Blogues da nossa blogosfera (181): Lista de provérbios crioulo-guineenses (página do professor Hildo Honório do Couto, departamento de Linguística, Universidade de Brasília) - II (e última) Parte (M a U)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 – P24367: (Ex)citações (427): Retratos de existências em tempos de conflito armado. O existencialismo humano (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Retratos de existências em tempos de conflito armado

O existencialismo humano

Comecemos pelo princípio do existencialismo humano, ou seja, pela existência de um qualquer ser vivo, mesmo mínimo que ele seja, numa esfera chamada Terra. Exploro, ainda que sinteticamente, que nós, indivíduos pensantes, sentimos e agimos de acordo com os momentos vividos, uma vez que esta transversal veracidade cujas linhas, embora oblíquas, se mantêm análogas ao longo das nossas vidas.

Numa visão ampla de compassivas existências, interpreta-se, filosoficamente, que na espécie humana subsistem, em certas ocasiões, sensações de pavor e ansiedade perante um mundo aparentemente absurdo que o rodeia, mas que, entretanto, se vai moldando ao longo da sua formal viagem terrena.

Esta cosmopolita e pressuposta tese filosófica, onde, por vezes, se vinculam presumíveis interrogações, eleva-nos para uma dissertação de ideias que nos transportam para o princípio da humanidade, onde o “homo erectus” foi paulatinamente transformando-se, ganhando novas formas de vida, novos pensamentos, novas estruturas físicas, envolvendo-se em lutas guerreiras, lutas que visavam superiorizar-se ante o adversário, conquistou novos terrenos, criou as suas pátrias, os seus credos, religiões e cores, bem como o seu próprio idioma, sendo nós uma consequência lógica de uma transformação humana de todo imparável.

Aliás, numa pesquisa persistente sobre a espécie humana, julga-se que ela terá cerca de 6 milhões de anos, sendo os seus primatas oriundos do noroeste de África, onde o seu habitat natural terá tido lugar numa floresta tropical. Relativamente ao termo “humano”, no contexto da evolução humana, alude-se ao género “homo”.

Após este pequeno introito, o qual se prende com o nosso crescimento, físico e intelectual, ao longo dos anos que levamos de existência, puxo a fita cinéfila atrás e revejo-me na Guiné, onde os galões amarelos e as divisas estabeleciam ordem hierárquica. E eis que, num impulso previamente controlado, reencontro-me com o inesquecível momento aquando ousei, uma tarde, dar banhos na piscina destinada aos oficiais do QG, instalações estas situadas por detrás dos nossos alojamentos alcunhados então como o “Biafra”, mas cuja piscina era também franqueada à classe de sargentos, julgo eu.

A banal filosofia de vida que na altura perfilhei, assimilava-se a uma espécie de “infiltração num trilho armadilhado”, porém, joguei com o facto de que em Nova Lamego, Gabu, não existir tal benesse, por isso a minha atrevida ida ao local foi tipo de uma enlouquecedora emboscada que surtiu efeito. Não houve “assalto à mão armada”, tão-pouco “mortos e feridos”, mas puros instantes de entretinimento.

Resumindo: todos éramos singelos militares que cumpríamos uma comissão militar obrigatória numa terra distante que nos fora literalmente imposta, uma vez que éramos, afinal, numa liturgia considerada sem fronteiras, originários de antigos guerrilheiros de um tal “homo erectus” e que o tempo transformou. Segue-se mais um pequeno texto, onde as aventuras em solo guineense proliferavam.

Ida à piscina do QG, em Bissau

O dia, como sempre, estava divinal. Sol e calor q.b. prometia uma ida a banhos para refrescar ideias de um corpo que se deparava com uma sufocante temperatura que não dava tréguas a um furriel miliciano que, ocasionalmente, se encontrava na capital. A visita a Bissau, embora curta, apresentava-se oportuna para uma escapadela à piscina dos oficiais que, por acaso, estava também franqueada à classe de sargentos.

Lembro que a piscina ficava por detrás das instalações de sargentos no Quartel General (QG). Sei que a minha presença em Bissau ficou a dever-se ao facto de me encontrar de férias e esperando pelo dia da viagem que me trouxesse, por 30 dias, à então metrópole. Tudo isto se passou nos primeiros dias do mês abril de 1974.

Não sei de quem terá partido a ideia de uma tarde a banhos em águas calmas e sobretudo refrescantes. Um camarada, certamente, propôs o desafio e a malta não rejeitou a experiência que contou para o enriquecimento factual das minhas aventuras guineenses.

A piscina, na sua estrutura física propriamente dita, continha bons espaços de lazer e de desporto. Recordo, com saudade, o campo de voleibol, por exemplo. Ressalta-me à mente os improvisados jogos entre camaradas. Os despiques exacerbados protagonizados por militares que pertenciam, quiçá, a especialidades ou a secções diferentes em horas de pleno ócio.

Anoto que esses jogos poderiam ser jogados por equipas de piriquitos organizados que casualmente por lá terão passado. Porém, a minha conceção nessa visita à piscina do QG, encaminhou-me para uma visão mais ampla, isto é, depreendi que toda aquela rapaziada, essencialmente alferes, cheiro-me a gente que se conhecia mutuamente para além de outros oficiais com patentes mais elevadas que olhavam o novo visitante como um mero intruso. Olhares enviusados, alguns de esguelha, que espelhavam reinar num trono meramente sonhado. Deixai-os em paz, senhor! Teremos, eu e o camarada que me acompanhava, comentado.

Perante a benesse não me fiz rogado e eis-me a saltar para a água da piscina. Depois veio o salto do meu camarada. Nadámos, apanhámos um pouco de sol e retirámo-nos, ficando a dúvida para os graduados superiores quem seriam os dois marmanjos que invadiram aquele espaço porventura “armadilhado” e se retiraram rumo ao “Biafra” dos sargentos!

Nas minhas memórias conservo histórias hilariantes de uma Guiné onde os contrastes de patentes militares traçavam irreverentes poderes e, simultaneamente, desusados princípios, onde a pressuposta guerra dos galões se sobrepunha, e de que maneira, ao contingente das divisas.

Mas tudo isto são narrativas passadas, porque também sei que o pessoal da cidade era portador de uma conduta diferente daquela que constatávamos no mato. Existiam, e é verdade, hierarquias militares que marcavam posições diferenciadas e quanto a isso nada a dizer, melhor, a contradizer. Era a lei do mais forte que imperava.

Recordo de uma ocasião passar por Gabu um amigo meu, tínhamos sido companheiros de futebol no Sporting, o Luís Guerreiro, era soldado, e levá-lo à messe de sargentos, sendo que a sua presença foi bem acolhida. Disse de quem se tratava e não houve o menor problema, não obstante o Luís, a princípio, duvidar da fartura que lhe coloquei à sua disposição.

Numa outra ocasião, na cidade de Bissau, encontrei um velho amigo que era da PM que fingiu não me conhecer. Pomposo, tipo mandão, tentou entrar num trilho pressupostamente desconhecido e fazendo jus à braçadeira que ostentava no braço procurou amedrontar-me com uma pergunta tipicamente baixa e sem algum nexo aparente. Se a memória não me falha o gozo da brincadeira era o crachá de Operações Especiais/Ranger colocado no meu ombro esquerdo. Respeitosamente olhei-o de frente, olhos nos olhos e disse-lhe: “primeiro bate-me a respetiva continência e depois falamos”. O rapaz viu que meteu água e a conversa enveredou por um outro tipo de palavreado.

Contrastes... o mato era mato, a cidade era a cidade!

Um abraço, camaradas 

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

17 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24228: (Ex)citações (426): Recordações dos Comandos Africanos em Paunca, em setembro de 1970 (Valdemar Queiroz e Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 11, 1969/70)

terça-feira, 16 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24319: Homenagem a dois 'guineenses' de adoção e paixão, o algarvio António Camilo e o nortenho Xico Allen (1950-2022): "Diário da Viagem até à Guiné-Bissau por terra e por ela", em 20 dias (Herculano Prado). II (e última) Parte: de 26 de setembro a 6 de outubro de 2017; 11 dias : Bambadinca, Xime, Ponta do Inglès, Ponta Varela, Bafatá, Saltinho, Cussilinta, Quebo, Mampatá, Bafatá, Gabu, Bijagós, Bissau... Lisboa

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bubaque > c. 1973/74

Foto (e legenda): © Rui Vieira Coelho (2014). Todos os direitos reservado. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > O Rio Geba... o estreito (do Xime para montante) e o largo (do Xime para jusante)... c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Mas normalmente, as embarcações (civis) iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas chegavam a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito). Foto do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné-Bissau >  Região de Bafatá > Saltinho > Abril de 2006 > Um olhar de esperança no futuro ?... É, pelo menos, o que gostaríamos de adivinhar neste olhar inocente de uma criança às costas de sua mãe...

Foto: © Hugo Costa (2006). Todos os sireitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Da margem esquerda (Xime) à margem direita (Enxalé): a canoa ainda continua a ser um meio fundamental de "cambança"

Fotograma do vídeo A Outra Guiné /The Other Guinea, de Hugo Costa, legendado em inglês. Vídeo (9' 27''). Ficha técnica: produção: Universidade do Porto, 2012; realização: Hugo Costa e Tiago Costa: diretor de fotografia: Hugo Costa; som: Hugo Costa... Duração: 9' 27''. (Deixou de estar disponível "on line", inclusive na página do Facebook do Hugo Costa, possivelmente pela reprodução de músicas sujeitas a direitos de autor.)

Cortesia de Albano Costa e Hugo Costa (2013). Edição e legendagem da imagen: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

 
Guiné-Bissau > Região de Gabu > Gabu > 16 de dezembro de 2009 > A rua comercial da nova Gabu, onde então já havia banco (agência do BAO - Banco da África Ocidental) e multibanco... Em 2009, a velha "rainha do Gabu" havia já destronado a "princesa do Geba", do nosso tempo, Bafatá, a cidade "colonial" mais encantadora da Guiné... Mudam-se os tempos, mudam-se os lugares: aqui falava-se mais francês do que português, e corriam muitos CFA, escreveu o João Graça, médico e músico, que viajou por estas paragens...  

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Bafatá   > Bafatá > Abril de 2020 >  Hospital
 
Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2020) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda (e última) parte da publicação do diário da viagem à Guiné-Bissau, feita "por terra e por ela" (sic), em 20 dias, de 18 de setembro a 6 de outubro de 2017, por 4 portugueses, em dois jipes, o António Camilo, o Xico Allen, o Herculano Prado e a esposa, Luzinha, prima do António Camilo (que foi fur mil da CCAÇ 1565, Bissau, Jumbembém, Canjambari, Bissau, 1966/68).

O diário, da autoria de Herculano Prado, chegou-me, reencaminhado em 2018, quatro 
 anos antes de morrer, pelo Xico Allen (1952-2022).  

O Herculano Prado, hoje advogado, foi fur mil, CCAÇ 3550 / BCAÇ 3885 (Zambué, Tete, Moçambique, 1972/74). Não é membro da nossa Tabanca Grande, mas já foi convidado para a integrar, não só por esta viagem e a publicação deste texto (em duas partes), como pela ligação (profissional e afetiva) à Guiné (desde pelo menos 2010), e a amizade que criou e manteve com dois dos nossos tabanqueiros, o António Camilo e o Xico Allen (1952-2023).

Depois da morte do Xico, julgámos que seria oportuna a publicação deste "diário" no nosso blogue, partindo do pressuposto que era vontade dele que o texto fosse publicado no nosso blogue, com a anuência (pelo menos tácita) do Herculano Prado. 

Por outro lado, já aqui o dissemos, esta é a viagem que alguns de nós já fizeram, e que a maioria gostaria de ter feito em vida, e que por uma razão ou outra (a começar pelos problemas de saúde e segurança) nunca fez nem já chegará a fazer.

O texto, infelizmente, não veio acompanhado das fotos da expedição. Por esta ou aquela razão, as fotos nunca chegaram. Tivemos de recorrer por isso ao arquivo do nosso blogue. Mais uma vez deixamos aqui a manifestação da nossa gratidão ao Herculano Prado. E damos-lhe os parabéns pela excelència do texto, que ganha em vivacidade, fluência e objetividade (e que por isso seria uma pena ficar na "gaveta"...). 

Enviamos, entretanto, um alfabravo fratermo ao Camilo (de quem não temos tido notícias) desejando-lhe saúde e longa vida para poder continuar a fazer as suas expedições à Guiné-Bissau onde tem casa (em 2017, ao que parece, era a sua 22ª viagem). 

Em comentário do poste P24311 (*), o Carlos Silva, outro conheced0r da Guiné-Bissau,  comentou: "O Camilo, foi à Guiné depois da comissão, antes de 1998. Creio que em 1992 (?). E vários camaradas já lá tinham ido antes do Xico Allen e do Camilo. O Herculano, meu colega, está equivocado neste aspecto".

Por fim, fica aqui uma saudação especial à Inês Allen, que também já fez esta viagem por terra (um pouco mais longa, porque partiu do Porto). A nossa recém-tabanqueira (nº 875) é uma dugna sucedora do espírito aventureiro e solidário do seu pai.

DIÁRIO DA VIAGEM À GUINÉ BISSAU 

POR TERRA E POR ELA

  © Herculano Prado (2017)

8º dia, segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Após uma viagem tão desgastante e sempre a levantarmo-nos cedo, aproveitamos para dormir até mais tarde.

A primeira coisa que fiz foi tomar um antibiótico, porque se acentuou a dor que tinha no ouvido esquerdo, deduzindo que a tontura que tive em Saint Louis era devida a esta infeção.

Depois procurei o telemóvel, que já não via desde que tínhamos partido de Marraquexe, para lhe colocar um cartão local. Tinha-o desligado porque, em fevereiro, quando fizemos um cruzeiro nas Caraíbas, apesar de não ter feito chamadas, quando regressámos a Portugal tinha uma despesa de sessenta euros, gerada pela própria rede. Não o encontrei, nem até agora, concluindo que deve ter ficado em Marraquexe. Não fiquei muito preocupado, porque quando o desliguei retirei-lhe o cartão, para que não fosse ludibriado pelo sistema, colocando-o na pequena carteira que uso, há muitos anos, no bolso das calças. A preocupação, contudo, reapareceu quando constatei que o cartão não estava na carteira, tendo-o perdido ou ficado no bolso dos calções que utilizei durante a viagem. Quando procurei os calções informaram-me que tinham sido levados juntamente com a outra roupa para lavar… O meu azar acabou por se transformar em sorte, porque ainda fui a tempo de recuperar os calções e encontrar o cartão que estava dentro de um dos bolsos.

Depois do almoço, o Camilo levou-nos a visitar a região, tendo passado por muitos locais que marcaram muita da juventude portuguesa dos anos sessenta a 1974. Estivemos na Foz do Corubal com o rio Geba, em Xime, Ponta do Inglês e Ponta Varela. Passamos na Ponte do Rio Udunduma, vendo-se ao lado a do tempo colonial, já em ruinas, por onde passaram milhares de soldados e onde as nossas tropas sofreram muitas baixas. 

Eu, que também fiz a guerra, ainda que em outras paragens, em Moçambique, comovi-me ao visitar sítios que me foram referidos pelo Camilo e pelo Francisco, que cá estiveram na Guerra, pois imaginava o que sentiram e viveram os camaradas de armas que por cá passaram.

A minha mobilização foi para Moçambique, onde estive de Maio de 1972 a Agosto de 1974, integrado na Companhia 3550, pertencente ao Batalhão 3885, sediado no Fingoé. 

A companhia 3550 tinha a sede no Zambué e um destacamento no Zumbo, que distava cem quilómetros da sede. No mapa de Moçambique é fácil localizar o Zumbo, por ser a primeira terra moçambicana a ser banhada pelo rio Zambeze, junto à antiga Vila da Feira, atual Luangwa (15º 37`S, 30º 23` E), na Zâmbia, na foz da margem direita do Rio Aruangua, que divide os dois países.


9º dia, terça-feira, 26 de setembro de 2017

Este dia foi destinado a continuar a visitar os locais mais emblemáticos desta zona, começando por Saltinho e conhecer a casa que o Camilo tem no Clube de Caça, que fica junto à ponte Craveiro Lopes, sobre o rio Corubal, que foi visitada durante a construção pelo General Francisco Higino Craveiro Lopes, Presidente da República, em 1955.

Do Clube de Caça, localizado no antigo quartel da tropa, tem-se uma boa vista sobre a ponte e sobre o rio, que vai com um grande caudal. Do Outro lado do rio tem uma povoação grande ,onde visitei o régulo Suleiman, que foi soldado do meu primo Fernando, alferes Mota, quando cá cumpriu serviço militar. 

No bar do Clube, antigo bar dos oficiais ainda lá encontrámos um quadro de fotos da época feito pelo nosso companheiro de viagem, o Xico Allen, quando por cá passou em 1998. Depois passámos por Aldeia Formosa, atual Quebo, descendo a Buba, aonde almoçamos “ração de combate”, no Hotel da Dona Gabi, que se encontrava ausente para Bissau, utilizando uma das mesas que nos foi cedida, tendo sido recebidos pelo marido. 

De seguida regressámos a casa do Camilo, em Bambadinca, continuando a passar, agora sem riscos, por locais de tão triste memória, para aqueles que aqui fizeram a guerra.


10º dia, quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Mais uma vez nos levantámos cedo para, desta vez, irmos visitar Bissau e para o Camilo e o Francisco tratarem de vários assuntos. O Francisco trouxe duas ofertas de 50,00 e umas canadianas para serem entregues a dois antigos faxineiros, enviadas por dois antigos combatentes. Um deles, numa viagem que fez à Guiné, encontrou um desses faxineiros - em Moçambique chamávamos-lhes “mainatos” -, deficiente motor, que se locomovia encostado a um pau, do qual se condoeu, tendo prometido que lhe enviaria umas canadianas, promessa que foi cumprida, através do Xico Allen.

Durante a estadia, porque o Camilo conhecia o Tenente Coronel Sado e o Engº Agrónomo Constantino, que me tinham sido referidos pelo meu primo Fernando, o ex-Alferes Mota, para lhes apresentar cumprimentos e para lhes pedir ajuda, no caso de necessidade, encontrámo-nos com eles na Pastelaria Império. Foi um encontro agradável, que serviu para troca de cumprimentos e para o Engº Constantino, falar da sua boa experiencia vivida na minha cidade, Vila Real, quando lá frequentou o curso de agronomia. Fiz entrega a cada um de uma garrafa de vinho Cancellus Premium, que trouxe de Bambadinca a contar com um possível encontro, na convicção de que esta oferta seria do agrado do meu primo.

Porque, desde que saímos de Saint Louis, não tive oportunidade de aceder à internet, procurei encontrar um estabelecimento onde fosse possível, o que não consegui na Império, nem na Pensão Coimbra, onde pretendíamos almoçar, tendo, por isso, ido almoçar ao Hotel Ancar (antiga Solmar) aonde, para além de simpático almoço de buffet, consegui aceder ao Citius para consultar os processos que ainda tenho. Tinha uma notificação de um saneador.

Depois do almoço eu e o Francisco mantivemo-nos no bar do hotel, aproveitando a capacidade do Hi-Fi, cuja qualidade era inferior à que tínhamos encontrado no Diamarek de Saint Louis.

O Camilo e a Luzinha chegaram quando estava a começar uma grande ventania, que levantava poeira, mais parecendo que estávamos no deserto. Já tinham tratado da estadia nos Bijagós e comprado a viagem de barco para quatro pessoas. Também já tinham ido buscar o peixe que tínhamos comprado no porto e que tinha ficado para arranjar e para colocar na arca que levámos para esse efeito.

Porque eu pretendia ver o Basileia – Benfica para taça dos campeões, que começava às 18,45 horas locais, e entre Bissau e Bambadinca são 105 quilómetros, tivemos que regressar.

Quando chegámos a Bambadinca procurámos um sitio onde fosse possível ver o jogo, até que encontrámos um barracão onde supostamente daria o jogo, conjuntamente com outros, tendo pago a quantia de 150 francos CFA (um euro vale 650 CFA ), mas não conseguimos passar da entrada tal era a quantidade de pessoas que ali estavam para ver. Dos cinco écrãs que estavam ligados, um era o Sporting – Barcelona e num quinto procuravam um jogo que, provavelmente, seria o do Benfica. Em face destas condições e porque o Camilo só nos iria buscar depois do jogo terminar, eu e o Xico Allen fomos a pé para a casa do Camilo, que distava dois quilómetros.

Antes do jogo terminar, o Camilo disse-me que faltavam dez minutos para terminar o jogo e que o Benfica estava a perder 2 -0. No dia seguinte, quando nos levantámos disse-me que o Benfica perdeu 5-0. Custou-me a creditar…


11º dia, quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Saímos por volta das horas 10 horas para visitarmos Bafatá, cidade natal de Amílcar Cabral. Na parte colonial, alguns dos edifícios da época estão a ser utilizados por serviços públicos e outros estão em degradação. O que resta da cidade dá par ver que era uma muito bonita e que foi importante na histõria da Guiné. O Camilo vai-nos fazendo a historia de cada uma das grandes casas, pois ele conheceu a cidade no seu apogeu.

No regresso passámos por Gabu para a Luzinha comprar panos africanos. O mercando nativo é vasto e tem de tudo o que é expetável existir num sitio com muitas limitações.

Infelizmente, comprou muitos tecidos e alguns vestidos nativos…

É uma pena ver que tantos anos após a independência, nada tenha evoluído. A Guiné continua a ser um pais adiado, não se vislumbrando grandes saídas. Mesmos a fonte da sua economia - o caju - pode vir a ser abalada quando as enormes plantações que têm sido feitas no Vietname começarem a inundar o mercado

Não tendo pela Guiné a afetividade que tem aqueles que cá passaram parte da sua vida, tenho pena que a independência, que era inevitável em face das pressões internacionais e do desgaste que a guerra estava a fazer na sociedade portuguesa da época, não tenha trazido vantagens para as populações.

Começo a ter saudades dos meus cinco amigos de quatro patas: a Sacha, uma labradora de 10 anos; o Handy, um Waimaraner de sete anos; a Estrela, uma Serra da Estrela de seis anos; o Aires, um Serra D`Aires de cinco anos e, por fim, o Lobo, um pastor Alemão de nove meses.

Pela primeira vez tive tempo para ler, começando um romance histórico, Vela Sagrada, escrito por um escritor árabe Abdelaziz Al-Mahmoud, situando-se na época em que os portugueses chegaram à India e destabilizaram, não só o comércio de especiarias, que mudaram de rotas, mas também o poder político e militar da região, dominado pelos árabes.

Durante a tarde levantou-se uma ventania a que não estamos habituados, seguida de chuva intensa, que quem viveu na Guiné tao bem conhece.

Antes de nos deitarmos, fizemos a mala para partir no dia seguinte para a ilha de Bubaque, onde ficaremos quatro noites.


12º dia, sexta-feira, 29 de setembro de 2017


Saímos por volta das sete horas para fazermos os 105 quilómetros que nos separam de Bissau onde tínhamos a viagem marcada para Bubaque, às 15 horas.

Antes de partirmos, depois de chegarmos a Bissau o Camilo tratou do que era preciso para fazer uma pintura num dos jeeps. Fomos almoçar à pastelaria e, enquanto fazíamos tempo para a partida para Bubaque, fui tomar café ao Ancar para tentar aceder à Internet, não o tendo conseguido.

Porque pretendíamos marcar o nosso regresso a Lisboa, fomos à TAP, saber dos preços, que ficavam por quantia superior a € 400,00 por pessoa. Como eram muito caros, achamos por bem consultar as duas companhias que cá operam. Uma marroquina, que faz preços mais em conta, mas como teríamos que perder algumas horas em Casablanca acabámos por comprar na Euro Atlantic Airways, por cerca de € 300,00, por bilhete, para o dia 20 o Camilo comprou por cerca de € 150,00.

Depois, porque a Luzinha pretendia comprar uns panos pintados, que fazem quadros de parede, andámos à procura nas ruas perpendiculares à Av. Heróis da Pátria, que começa na Praça do Império e desce atá ao porto. O comercio foi deslocalizado para um parque distante do centro o que veio dar àquelas ruas um abandono ainda maior. Algumas estavam piores do que em 2010, apesar de algumas já estarem alcatroadas.

O palácio do quartel general, situado na Praça do Império, que, quando lá estive, em 2010, estava esburacado de balas, desde a altura em que assassinaram o General Nino Vieira, já está reparado, dando um ar mais digno àquela Praça.

Os bilhetes, que pagámos como residentes, ficaram em 40 000 CFAS, o que equivale a € 62,00.

O barco partiu às 15 horas e chegou às 19 horas, sem sobressaltos, porque o mar estava calmo.

O Xico Allen ficou em Bissau, para tratar de assuntos pessoais.

Depois de atracarmos transportámos a nossa bagagem para a Casa da Dona Dora. O que encontramos era um pouco diferente do que imaginava pelos relatos da Luzinha, feitos através de informações que recolheu do Facebook.

A luzinha, o Camilo e uma helvética que veio connosco no barco e que, também, ficou na Casa da Dona Dora,  foram beber um gim à Kasa Africana, enquanto eu fiquei a tentar pôr o diário em dia.

Deitamo-nos cedo e, contra o que era habitual, dormi razoavelmente.


13º dia, sábado, 30 de setembro de 2017

Por volta das oito horas fomos avisados pelo Camilo para nos despacharmos porque tinha encontrado um amigo, chamado Quintim, que é o diretor do Parque Nacional Marinho de João Vieira e Poilão, que ia em trabalho para uma outra ilha, e que estava à nossa espera para nos levar. Tomámos o pequeno almoço à pressa, nem me deixaram acabar o galão, pois uma oportunidade destas não era para desperdiçar.

No barco fomos várias pessoas, tendo duas ou três ficado numa primeira paragem do barco e nós ficámos numa praia, na Ilha de Canhabaque ou Ilha da Rocha, enquanto os técnicos iam fazer o seu serviço, recuperando-nos no regresso, por volta da hora de almoço.

Quando descemos do barco ficámos encantados com a temperatura da água, ao nível da melhor que já encontrámos, comparando-a com a das Filipinas, Indonésia, Cabo Verde, Caraíbas, Cuba, S. Tomé, por serem as mais quentes aonde já estivemos. Se em Saona, nas Caraíbas, existe a que é considerada a maior piscina natural do mundo, esta praia e a piscina que a rodeia, na ilha de Canhabaque, não lhe fica atrás e a água é incomparavelmente mais quente. Estivemos horas dentro de água e poderíamos continuar indefinidamente pois não chegaríamos a ter nenhuma sensação de desconforto. Uma maravilha! Avançámos pelo mar dentro, sempre com água pela cintura.

O barco recolheu-nos por volta da 13 horas, e quando estávamos na viagem de regresso, receberam um telefonema de um dos técnicos, que iriamos recolher, informando que estava atrasado, tendo-nos sido posta a hipótese de nos virem trazer a Bubaque e depois regressarem , com o que nós não concordámos pelos incómodos que lhes causaríamos e porque, para nós, a espera era a possibilidade de ficarmos mais algum tempo naquelas águas maravilhosas.

Enquanto esperávamos pelo recomeço da viagem, voltámos para a água, que continuava a ter altura da minha cintura, com a variante de os nossos pés pisarem lodo em vez de areia. Aquilo que, inicialmente, parecia um transtorno, porque nos enterrávamos, passou a ser um privilégio quando nos apercebemos de que estávamos a pisar, aquilo a que Luzinha chamou “ uma mina” de ameijoas, combé. Começámos a apanhá-las por distração e, passado pouco tempo, com a colaboração do condutor do barco, apanhámos uma grande quantidade, que acabámos por colocar num saco de supermercado, dos resistentes. 

Num calculo, por baixo, deveríamos ter apanhado mais de dez quilos, que transportámos para a Casa da dona Dora, para comermos no dia seguinte, porque, para o jantar desse dia, já tínhamos encomendado três robalos grandes, grelados, a uma nativa que tinha um grelhador à porta.

Nos primeiros dias de Guiné não teria comido em tal local – uma mesa colocada na rua de terra batida - mas agora, depois de me aperceber de que as pessoas são limpas, apesar da falta de qualidade das habitações, deixei-me dessas esquisitices ou então continuaria a comer “ ração de combate”, na gíria de combatente.

O peixe que foi servido com batatas fritas, salada e pão acompanhado de cerveja, estava bom e foi em quantidade suficiente que deu para quatro pessoas e para uma dúzia de amigos de quatro patas, que interesseiramente nos fizeram companhia. As festinhas que lhes fiz deu para mitigar as saudades, que cada vez são maiores, dos cinco amigos, que ansiosamente nos esperam em Vale da Laranja / Rio Maior.

Quando regressámos à “nossa casa”, a Glória, uma filha da Dona Dora, que está atualmente à frente do negócio, porque a mãe e irmã estão há um ano em Lisboa, conseguiu disponibilizar-me o sinal Hi-Fi, permitindo-me, assim, aceder ao Citius. Tinha duas notificações, das quais só tive acesso a uma. Espera-me trabalho, quando na próxima sexta-feira chegar a Lisboa. É por estas limitações e preocupações que deixei de aceitar a quase totalidade dos clientes que me procuram.

Não consegui receber nenhum dos setenta e-mails, que ficaram retidos.

Combinámos uma viagem ao outro extremo da ilha, para as 9,30 horas, com o dono de um transporte, que veio ter connosco ao hotel.


15º dia, domingo, 1 de outubro de 2017

Tomámos o pequeno almoço e ficámos a aguardar que nos viessem buscar, o que aconteceu por volta das 9,30, para nos transportarem a Bruce. Fomos recolhidos por um triciclo de caixa aberta com dois bancos de cada lado, que nos transportou a Bruce, no outro lado da Ilha de Bubaque e que dista 24 quilómetros do nosso “ aquartelamento” – a casa Dora. 

Foram quarenta e oito quilómetros por estrada, ida e vinda, na gíria chamamos-lhe picada, que deu para apreciar a paisagem verdejante, com algumas plantações de arroz, de milho e de outros produtos, Após muitos solavancos chegámos e encontrámos uma praia maravilhosa, a perder de vista, de águas tépidas e calmas. Passámos horas na água, tal como temos feito sempre que há oportunidade. Deu para explorar as redondezas, encontrando um pequeno curso de água, que faz uma piscina natural, antes de correr, devagarinho, para a praia, que deve secar no tempo seco. Continuámos a encontrar rochas vulcânicas, o que não me deixa qualquer dúvida quanto à origem destas ilhas, apesar de haver quem conteste esta evidência.

Aqui, em Bruce, um jovem local construiu um edifício de oito apartamentos, suites, espaçosos e modernos, dignos de qualquer bom lugar, que têm apoio de restaurante e bar. Com aquele mar em frente é um local a ter em conta para quem queira passar umas férias calmas e com conforto. O único contra são as viagens: quatro horas de barco, com saída de Bissau e os 24 quilómetros de “picada”. Também estão a ser construídos outros apartamentos, ainda que mais modestos, mesmo ao lado, que poderão, a preços mais módicos, prestar os serviços essenciais.

Quando chegámos, cruzamo-nos com duas portuguesas que cá estão a prestar cooperação, no seu período de férias e que tinham ficado num dos apartamento. Falámos-lhes da nossa viagem, o que as deixou desejosas de um dia também a poderem fazer.

Parte do regresso foi feito por outro caminho, incluindo a pista aérea, que também serve de campo de pastagem às muitas cabras que as populações próximas possuem.

À noite, comemos parte das ameijoas, que aqui se chama combé, arranjadas pela Glória, a dona do Aparthotel Canoa, mais conhecido por Casa da Dona Dora. Estavam ótimas.

Depois do jantar fui ver o jogo do Marítimo 1 – Benfica 1, que acabou por me dar mais uma desilusão. Quando não estamos habituados custa mais…


16º dia, segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Por volta das dez horas, aproveitando mais uma visita ao Parque Nacional Marinho de João Vieira e Poilão, fomos com a equipa do Diretor, Quintim, visitar as quatro ilhas mais no interior do Atlântico: João Vieira, Cavalos, Méio e Poilão, em trabalho de dinamização e sensibilização.

Fizemos uma paragem em Cavalos, para deixar o Diretor, que iria lá ficar até sábado e continuámos até Méio, onde parámos e aproveitámos para nos banharmos nestas águas maravilhosas. 

Continuámos para a Ilhéu de Poilão, que é a ilha mais ocidental do Arquipélago de Bijagós, sendo talvez por isso que é um santuário para as tartarugas marinhas, que aí vêm desovar. Estivemos com os técnicos que lá prestam serviço na monotorização das tartarugas e a prestar-lhes apoio no seu regresso ao mar, quando ficam presas nas rochas ou quando estão cansadas, depois do esforço de porem uma média de cento e vinte ovos, em cada postura. 

O chefe da equipa, biólogo, que esteve recentemente em Bragança a frequentar um curso, desta área, fez-nos uma exposição sobre o Instituto da Biodiversidade das Áreas Protegidas, no qual se insere o Parque Nacional Marinho de João Vieira e Poilão.

Quando nos preparávamos para piquenicar, coincidindo com o almoço dos nossos anfitriões, fomos obsequiados com a oferta de um prato de arroz com peixe, que estava muito bom. 

De seguida visitámos os locais de desova das tartarugas, sendo bem visíveis os enormes buracos dos últimos nascimentos. Indicaram-nos os locais, que se encontram identificados por datas, para onde transferiram os ovos, que se encontravam em locais ao alcance das ondas.

No regresso passámos pela Ilha de João Vieira, onde se encontra a sede do Instituto. Estivemos duas horas a banhos. Antes de regressarmos, por volta das 17 horas, ainda vimos o Museu do Parque, uma pequena sala, que contém elementos da fauna existente no Parque. Foi um viagem de regresso que demorou cerca de duas horas.

Durante o regresso vimos grande quantidade de golfinhos, que vinham saltar ao lado do barco, quando batíamos na chapa. Foi um momento muito gratificante.

Depois de jantarmos as sobras do almoço, pagámos os bilhetes da viagem de regresso, que tiveram a amabilidade de nos levar ao Aparthotel. Antes nos irmos deitar, pagámos a estadia, porque, no dia seguinte, deixaríamos os quartos por volta das sete horas, para apanharmos o barco às oito horas. Como aquela hora ainda não haveria pequeno almoço, a Glória, não vou chamar-lhe dona, porque é uma jovem de trinta anos, arranjou-nos uns bolos feitos por ela.


17º dia, terça-feira, 3 de outubro de 2017

Levantámo-nos pouco antes das sete para irmos apanhar o barco que nos traria de regresso a Bissau, puxando, no meu caso, uma mala de porão que tinha as minhas coisas e as da Luzinha.

Um dos jovens, que nos acompanhou nas visitas ao Parque, veio-se despedir de nós, tal como prometera na véspera. A contar com essa despedia, deixei-lhe ficar dois polos e uns calções safari, dos que tenho utilizado e demos-lhe uma pequena gratificação, para lá da que já havíamos feito coletivamente.

Fomos transportados num dos barcos que faz a ligação Bubaque a Bissau, sem comodidades, dado só ter meia dúzia de cadeiras, sendo a maioria dos assentos bancos sem encosto. Para atenuar este incómodo passei para a parte superior do barco, aonde descobri uma cadeira sem pernas, que coloquei em cima de um pneu, que partilhei com o Camilo, diminuindo o incómodo que foi a viagem, de mais de quatro horas e meia, aproveitando para continuar a leitura do livro Vela Sagrada. Foi a uma das piores partes da viagem!

Quando chegámos ao cais, tínhamos o Xico Allen à nossa espera com o jeep, que o Camilo conduziu de imediato, confirmando o que já sabíamos: o Camilo só cede o volante quando já não consegue resistir ao cansaço. Mas desta vez a condução foi curta, porque o Camilo ficou no Banco para levantar dinheiro e o Xico transportou-nos até ao Restaurante Ancar, para esperarmos por ele, pois este era o local que nos permitiria aceder ao Hi-Fi. Deu para fazer algumas consultas, mas continuo sem receber e-mails.

Como não gostámos do bufete do restaurante, fomos almoçar à Pastelaria do Trovão, onde comi uma bifana com batatas fritas e ovo, antecedido de umas moelas, que a Luzinha e o Xico condimentaram com piripiri. Como tinham gostado muito da primeira vez que lá comemos, o Xico, enquanto estivemos nas ilhas, comprou gindungo (piripiri) em verde, que deixou na pastelaria para uma empregada da casa preparar. Depois dividirá com a Luzinha, na sexta-feira, quando partirmos para Lisboa. Passado muito tempo de espera o Camilo lá chegou do Banco. Vinha esfomeado. A fome ainda poderia ser maior se, durante a viagem, não lhe tivesse dado um ovo cozido, que trazia para quando eu tivesse fome.

Depois do almoço regressámos a Bambadinca, tendo-nos cruzado com o Sr. Jorge que ia para Gabu aonde está a construir um armazém e outras instalações. Na viagem, várias vezes ultrapassámos o Sr. Jorge e fomos ultrapassados por ele, devido às paragens que fomos obrigados a fazer, talvez por culpa do piripiri que a Luzinha comeu.

A Luzinha, para o jantar, fez uma ótima sopa de abóbora, batata doce, cebola e de outros vegetais, acompanhado com umas rodelas de chouriço, que trouxemos de Portugal.

Antes de dormir, estive a escrever o diário.


18º dia, quarta-feira, 4 de outubro de 2017


Depois de tantos dias a levantar cedo, levantámo-nos calmamente. A Luzinha preparou o almoço: arroz de tomate com peixe frito. A refeição foi acompanhado com o vinho RedVelvete, de 2015, produzido pela Adega Alonso, de Alijó, propriedade da família do meu amigo Tozé Alonso, que era uma “boa pomada”, seguido de café, de moscatel de Alijó da mesma Casa e de Wiskey Teachers, uma garrafa antiga que trouxe da minha garrafeira.

Depois de bem bebido e quando se preparava para uma sesta merecida, e eu me encontrava a ler a Vela Sagrada, no alpendre, duas nativas vieram pedir ajuda ao Camilo, para levar ao médico a menina que as acompanhava e que aparentava ter seis anos, que está com a barriga inchada. A barriga da menina tinha duas grandes cicatrizes devido à operação que lhe foi feita em 2014. Perante esta situação, acabou o descanso do Camilo e do Xico, que foram levar a menina ao médico a Bafatá, sem a certeza de que lhe possa ser prestada ajuda. Se o Camilo não o fizesse, a menina ficaria sem assistência, porque aqui não existe Serviço Nacional de Saúde, nem ambulâncias acessíveis, nem postos de saúde adequados. O Camilo e o Chico saíram às 15 horas e passadas mais de duas horas ainda não regressaram. A menina poderá precisar de cuidados mais especializados que só existem em Bissau, que dista daqui 105 quilómetros por más estradas. Por muito boa vontade que o Camilo tenha, não pode estar a substitui uma função do estado guineense. São seis horas e o Camilo e o Xico acabaram de chegar. 

Estamos desolados! O médico que atendeu a menina, um espanhol dos Médicos Sem Fronteiras, que já anteriormente a tinha visto, referiu-lhe que não havia nada a fazer, que o problema é do fígado e que a menina está condenada… Ao olharmos para aquela menina, de olhos tristes, não podemos deixar de sentir um grande mal estar, por nos sentirmos impotentes perante esta crueza da vida!


19º dia, quinta-feira, 5 de outubro de 2017


Como tínhamos programada uma vista ao Saltinho, para lá almoçarmos, levantámo-nos mais tarde, sem as correrias que foram habituais ao longo destes dezanove dias. Só em Saint Louis, onde fizemos uma paragem reparadora e ontem, que ficámos em Bambadinca, ainda que com os incómodos que o Camilo e Xico tiveram, não fizemos visitas ou não estivemos ocupados com programas.

Chegámos a Saltinho por volta da 11,30 horas. Trouxemos almoço, para almoçarmos no Clube de Caça, que já foi referido na primeira visita, porque o Clube só abre para clientes, quando são feitas reservas. Contamos que depois das três horas nos tragam as famosas ostras, que até o meu primo Fernando me disse que são imperdíveis.

Como gostei deste local, trouxe o portátil para, na explanada em frente ao bar, ouvindo o barulho que as águas do Corubal fazem ao passar pelos rápidos do Saltinho, pouco antes de passarem pela Ponte Craveiro Lopes, procurar a inspiração que me falta, para escrever um texto mais digno de quem o possa ler.

A Luzinha acabou de chegar com um nativo do tempo da guerra, o Mamadu, ex-fuzileiro da nossa tropa, segundo diz, que reconheceu o alferes Mota de entre o grupo de fotos que tenho no portátil, tirados na festa dos meus sessenta anos.

Depois do almoço e enquanto esperámos pelas ostras, depois de tirar mais umas fotos, fomos tirar uma sesta nos quartos do Clube.

O Camilo veio dar-nos a notícia de que devido à altura das marés não puderam apanhar as ostras, o que para nós foi uma frustração e para a Luzinha um alívio, por não gostar de ostras.

No regresso a Bambadinca, o Camilo levou-nos a passar pelo interior da Tabanca de Mampata e, posteriormente, levou-nos aos rápidos de Cussilinta.

Antes de nos deitarmos deixámos as malas feitas, para irmos cedo para Bissau, porque apesar da partida estar marcada para as 15 horas, é necessário fazer o chec-in com seis horas de antecedência e porque para fazer a viagem até Bissau são necessárias mais de duas horas


20º dia, sexta-feira, 6 de oubro de 2017


Acordámos cedo, porque o calor húmido, apesar da ventoinha ficar ligada durante toda a noite, faz-nos sentir como se estivesse-mos numa sauna. Mesmo depois de tomarmos banho, com água fria, a transpiração regressa e só quando iniciámos a viagem para Bissau, com as portas do jeep abertas, para sentirmos os odores da mata, o calor abranda, tornando a viagem menos incomoda.

Durante a viagem aproveitámos para comprar amêndoa de caju, em quantidade que dará para satisfazer alguns amigos e a gulodice que eu e Luzinha temos por este produto.

Antes de chegarmos à cidade, ao passarmos ao lado do aeroporto, fizemos o check-in, ficando sem esta preocupação, o que nos permitiu fazer as últimas compras calmamente.

A Luzinha comprou  mancarra (amendoim) e duas papaias grandes. Enquanto o Camilo foi pagar o bilhete de avião para regressar no dia vinte, fomos mais uma vez ao Ancar para aproveitar o ar condicionado e para aceder ao Hi-Fi. Deu para aceder, mas, mais uma vez, não pude consultar os meus e-mails. Acabámos para ir almoçar à pastelaria do Trovão, antes do Camilo nos trazer ao aeroporto. O gindungo que o Xico deixou para preparar estava pronto, tendo-o divido com a Luzinha.

Ao passarmos pela máquina de controlo, a funcionária pediu-me um sumo e, como não lhe dei nada, mandou-me para uma mesa aonde estavam sentados dois funcionários, que me pediram para mostrar o que levava, ao mesmo tempo que me pediam dinheiro.

São três horas da tarde, estamos no aeroporto, à espera do embarque, com uma sauna ainda pior da que sentíamos em casa do Camilo, porque ali, à noite, tínhamos as ventoinhas ligadas, que atenuavam o calor.

Finalmente, entrámos no avião da Euro Atlantic, um boeing 767 – 300ER, com boas condições. Já são 4,20 e o avião nunca mais parte…. Partiu às 4,30 horas e chegámos a Lisboa por volta das 9,15 horas. Tendo em atenção a diferença de hora, mais uma em Portugal, demorámos quatro horas e pouco.

O serviço da Euro Atlantic é bom e a Luzinha comeu a refeição, coisa que poucas vezes acontece nos aviões.

Porque as bagagens só nos foram disponibilizadas por volta das 22,30 horas, o Xico Allen já não tinha transporte para o Porto, ficando em nossa casa.

Enquanto a Luzinha preparava o quarto para o Xico e uma refeição ligeira, acedi à Internet para consultar o Citius, constatando que tinha duas notificações: uma cujo prazo para apresentar testemunhas terminaria daí a uma hora, por sorte já as tinha apresentado, e a outra a terminar na segunda, para apresentar originais de documentos, no tribunal de Portimão, porque o juiz deve ter problemas de visão e não consegue ler as cópias que enviei. Isto vai alterar tudo o que tinha programado, porque teremos que ir no domingo pernoitar na Praia da Rocha, para, no dia seguinte, me deslocar ao escritório do cliente, em Albufeira, a fim de recolher os originais e entregá-los. Só pensávamos ir buscar o meu carro mais tarde, depois de matarmos saudades, ficando com disponibilidade emocional, para repousarmos mais uns dias no Algarve.

O Xico deixou-nos às sete, para apanhar o Alfa das oito, depois de chamarmos um táxi, porque não tínhamos o comando para abrir a porta da garagem, que se encontrava no meu carro, em Lagoa, aonde o tínhamos deixado.

O Xico Allen, que não conhecíamos, durante estes vinte dias de viagem , ganhou o direito de fazer parte do nosso grupo de amigos.


PS: No sábado, dia 7, fomos para Vale da Laranja aonde nos esperavam os nossos cinco amigos. Ficámos lá essa noite e no dia seguinte fomos para o Algarve, para dar cumprimento à notificação. Enquanto me encontrava no escritório do cliente, aproveitei para contactar a Virtual, firma informática de uma sociedade do Zé Miguel, meu cunhado, que, com a qualidade que lhe é reconhecida, à distância, resolveu o problema existente com a minha conta de e-mail, que se mantinha desde os primeiros dias da viagem.

Aproveitámos a nossa ida ao Algarve para levarmos o Lobo, o pastor alemão, a fim de o socializar, tendo excedido as nossas expectativas. Na praia do Alvor, o Lobo, depois das hesitações iniciais, tomou o seu primeiro banho de mar e conseguiu enfrentar as ondas.

Regressámos na terça, a tempo de ver o Portugal – Suíça, porque, apesar da água do mar estar como poucas vezes a encontrámos no Algarve, achámos por bem regressar, até porque, para além de já termos saudades das nossas rotinas em Lisboa e em Vale da Laranja, a mãe da Luzinha tinha uma consulta para hoje, na qual lhe foi marcada a operação, para transplante da córnea.


APRECIAÇOES FINAIS

Antes das apreciações gerais não posso deixar de agradecer ao Camilo tudo o que nos proporcionou. Sem ele, esta viagem nunca teria existido e nunca teria sido tao variada e completa, para além de nos acolher na sua casa em Bambadinca e por nos ter mostrado e explicado os locais que são referidos neste diário. Obrigado Camilo!

Também queremos agradecer ao Xico Allen, pela sua amizade e por todo o apoio que nos prestou, nomeadamente por ter feito a maior parte da condução, especialmente nos troços mais difíceis.

Esta foi a viagem da nossa vida: pela duração, pela diversidade de situações vividas, pelas muitas emoções sentidas. Não foi uma viagem muito difícil, porque íamos acompanhados por dois veteranos, conhecedores de todos os locais por onde passámos.

Durante a viagem, passámos por países e regiões muito dispares, bem percetíveis pelo que nos era dado apreciar nos contactos que fomos tendo com as suas gentes, nos locais em que parámos e que visitámos.

Marrocos foi uma agradável surpresa, começando por Tânger, aonde já tinha estado em 1980 e pelo que conheci de Casablanca quando lá estivemos em 2015. Casablanca e Tanger, tal como as grandes cidades de Marrocos, são cidades tipicamente ocidentais, com exceção das partes tradicionais do mundo muçulmano, como a Medina, o Kasbah e as mesquitas no lugar das igrejas.

Marrocos é um pais muçulmano, situado em Africa mas que se considera mais europeu do que africano, com o que concordamos, pois é diferente dos outros do mesmo continente e que tem a sorte de ser governado por uma monarquia esclarecida. O atual rei, Mohammed VI, filho de Hassan II, tem seguido uma politica de desenvolvimento, bem patente na rede viária e na construção civil, procurando eliminar os bairros da lata, como foi visível ao longo do percurso. Dentro de dois anos já terão o TGV, segundo nos disseram e acreditámos, tendo em atenção o estado avançado dos trabalhos. Devido ao seu poderio, a anexação dos territórios do Sara Ocidental poderão ser irreversíveis.

Mauritânia é um pais desértico e porque não tem petróleo é pobre, bem patente na aparência das suas gentes e dos pedidos que nos faziam, quando parávamos para meter combustível. A sua capital, Nouakchot, é cheia de contrastes. Tem partes agradáveis e limpas e outras com o lixo espalhado pelos passeios. O Hotel onde ficámos é de grande qualidade e quando lá pernoitámos estava praticamente vazio.

Senegal, por já fazer parte da região subsariana, não é tão pobre como a Mauritânia – tem mais condições naturais para se viver -, mas a pobreza é bem visível.

Em Saint Louis, cidade costeira, que, no tempo da colonização francesa chegou a ser a capital do Senegal, ficámos impressionados com a pobreza e sujidade que encontrávamos. As pessoas coabitavam com o lixo, as cabras, os burros, galinhas e outros animais. Também foi aqui que passámos um dos melhores dias da viagem, no Hotel Diamarek, bem juntinho à praia.

A Guiné, apesar de ser um país pobre, não é um país miserável, como me pareceu ser a Mauritânia e o Senegal que conhecemos, mas continua a ser um país adiado. As suas gentes são simpáticas, mas indolentes, por natureza, o que, associado ao clima quente e húmido e à impreparação das pessoas, contribui para esse atraso. 

Para além destes fatores endógenos, muito contribui a corrupção e a frequente instabilidade política. Por outro lado, também lhe faltam fontes de energia, porque, sendo um país plano, não tem centrais elétricas, tendo que recorrer a geradores e a painéis fotovoltaicos, que são dispendiosos e por isso leva a que a energia elétrica seja distribuída de forma intermitente. Em Bambadinca, a luz é produzida por painéis fotovoltaicos e é distribuída só à noite e com pouca capacidade.

Estive em Bissau em 2010, no âmbito de um protocolo antigo celebrado com o Governo da Guiné e os Jogos Santa Casa, para darmos apoio ao desenvolvimento dos Jogos Sociais na Guiné. Apesar dos apoios que íamos dando, inicialmente em material e dinheiro, sentíamos que nada estava a ser feito, mas os pedidos de apoio em dinheiro continuavam, o que me fez duvidar que tais verbas se destinassem para o desenvolvimento dos Jogos Sociais. Por isso, propus ao Administrador daquela área que o melhor seria ir à Guiné para, in loco, aferir dos apoios necessários e, a partir daí, começar a dinamização que fosse necessária. Quando lá cheguei fiquei na Pensão Coimbra e no dia seguinte vieram levar-me, num carro posto à disposição pelo Secretário de Estado da Juventude e Desportos, com quem reuni mais tarde no seu gabinete, com a presença do seu Assessor e do meu anfitrião, o futuro diretor. 

Enquanto estava a decorrer a reunião, ocorreu um facto, que nos deixou estupefactos: entraram pelo gabinete dois chineses para prestarem assistência ao ar condicionado, sem pedirem licença nem cumprimentarem ninguém, o que me levou a comentar, talvez de forma inapropriada, que estávamos na presença dos novos colonizadores.

Antes desta reunião fomos visitar as instalações onde funcionaram as Apostas Mútuas ( Totobola) do tempo colonial, aonde ainda se conseguia vislumbrar a antiga designação. O edifício, apesar de em tempos ter sido enviado dinheiro para a sua reparação, estava um autêntico pardieiro, esburacado, sem forro no telhado, sem cofres para guardar o que fosse necessário, sem as bolas para fazerem os sorteios. Em suma, eram um barracão onde nada existia que pudessem dar credibilidade à existência de um jogo oficial, apesar de serem vendidos alguns bilhetes na rua, por engraxadores, apondo um carimbo nos bilhetes antigos, que lhes tínhamos fornecido. Numa sala, em que nem cadeiras existiam para as pessoas se sentarem, foram-me apresentadas umas quatro, que eram as que supostamente lá trabalhavam e para as quais precisavam de dinheiro para lhes pagar.

Na reunião com o Secretário de Estado referi-lhe toda a disponibilidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através do seu Departamento de Jogos, mas para isso o governo da Guiné teria que mostrar interesse, começando por criar legislação própria e arranjar umas instalações, com alguma dignidade porque aquelas, já eram impróprias. 

Apesar das promessas, saí da Guiné convicto de que nunca mais lá voltaria, porque não acreditei que a minha colaboração viesse a ser necessária. Apesar dessa convicção, ainda elaborei um projeto de decreto-lei e uns estatutos, que poderiam servir de apoio para a criação da legislação necessária. A instabilidade politica inviabilizou a possível boa vontade do Secretário de Estado.

A Guiné continua a ser delapidada pelas potencias mundiais naquilo que lhes interessa. A China, nos últimos anos, veio buscar muitos milhões de metros cúbicos de madeira, a coberto de protocolos, que pouco contribuíram para o seu desenvolvimento. Só pararam devido às pressões da Greenpeace, acabando por deixar muita madeira cortada pela mata, como nos tem sido dado observar.

Os pedidos de dinheiro, que nos foram feitos em alguns controlos policiais e no aeroporto, dão uma ideia da fragilidade institucional e social da Guiné Bissau.

Arquipélago dos Bijagós, com as suas muitas ilhas, mais de oitenta, e as suas águas maravilhosas, tem condições excecionais para o turismo, que poderá vir a ser uma das fontes de maior rendimento do pais.

A Luzinha pretende voltar aos Bijagós, mas é minha intenção, apesar de ter adorado os Bijagós, visitar novas paragens, quando tiver oportunidade. Com tanto para ver, não gosto de repetir destinos.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos: LG]
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Nota do editor: