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segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14991: O segredo de... (23): Histórias escondidas com o rabo de fora (Mário Vitorino Gaspar)

1. Em mensagem do dia 1 de Agosto de 2015, o nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) fala-nos de algumas histórias escondidas com o rabo de fora.

Caros Camaradas da Tabanca Grande

No dia 13 de Abril de 1966 apresentei-me com o Posto de Cabo Miliciano (promovido a 3 de Abril) no Regimento de Infantaria 14, em Viseu – deveria apresentar-me de manhã, mas só pelas 17H30 cheguei ao Regimento.
O Comandante do Regimento era o Tenente Coronel Carlos Faustino da Silva Duarte (antigo jogador de futebol e vencedor da Taça de Portugal em 1939). Este efectuou uma Reunião com os novos Sargentos e Oficiais novos que chegaram de manhã ao RI 14.
Fiquei na 1.ª Companhia sendo o Comandante o Capitão Amaral. O Comandante do Pelotão, sendo eu um dos Monitores, era o Alferes Miliciano Antunes. Foi para a Brigada de Trânsito posteriormente, e segundo as informações que possuo aposentou-se.
Eram Monitores um outro Cabo Miliciano Fernando e um Cabo Readmitido (PCAB/RD). Esta equipa manteve-se até Agosto de 1966. Integrado na Equipa de Natação do RI 14, treinava, mas não de início da constituição da mesma, visto não ter sido inscrito por me ter apresentado na Unidade tardiamente. Posteriormente vieram a saber que nadava, foi o próprio Comandante do Regimento o Tenente Coronel Faustino a incluir-me na equipa. Treinei o estilo de bruços.

Tudo corria às maravilhas, só que terminada uma das recrutas da minha Companhia tinha de dormir no campo para onde era transportado à noite e depois de dormir seguia de jipe para Viseu onde continuava os treinos. Isto era estranho, mas sucedeu.
No dia 4 de Julho tive de interromper os treinos, marchando para CIOE, em Lamego para frequentar o Curso de Operações Especiais, e após as provas e julgado no Anfiteatro recusei ser Ranger, regressando com mais 5 Cabos Milicianos a Viseu no dia 10. Integrado na equipa de natação, e como já não contavam com a minha participação, o Tenente Coronel Faustino, entusiasta do desporto, disse-me se me importava de treinar os 100 metros Costas. Estilo que nunca praticara, e aceitei por insistência. Difícil a missão. Teria oportunidades de conquistar um bom lugar nos 100 metros Bruços. Depois de treinarmos nas Piscinas do Luso e outras, a 20 de Julho partiu a equipa de Natação para Tomar, para participarmos nos Campeonatos de Natação da 2.ª Região Militar, na Piscina Vasco Jacob. De todos os nadadores do RI 14, só eu no dia 21 fiquei apurado para a final, terminando em 2.º lugar, mas quase todo o percurso comandei. O meu estilo de costas resumia-se à posição, não batia crawl, complicado por movimentar-me na água só com a força, e grande, de braços. O Júri eliminou-me, sendo o seu líder a figura da terra Vasco Jacob, nome da piscina. Disse ao Comandante Faustino que não me podiam eliminar, o estilo costas é costas, e não crawl. Após protesto decidiram haver razão da minha parte. A 22 de Julho foi o bonito, era a única hipótese. Teria ganho uma medalha se tivesse participado nos 100 metros Bruços.
Complicou-se tudo por cada um ter uma opinião. Como não era nadador do estilo era difícil fazer os 100 metros, teria de dosear as forças. Mas uns diziam para puxar os 100 metros. Era impossível, disse ser melhor quanto a mim puxar os primeiros 33 metros e fazer os segundos 33 metros descansando um pouco e aplicando-me na última volta. Insistiram tanto, cada um com a sua opinião. Explicava-lhes ser possível obter a medalha por ver que somente o nadador que tinha ganho a minha eliminatória me venceria. Confundiram-me e venci os 33 metros e os 66 metros e, passados uns metros rebento. Termino em 4.º lugar e ultrapassado no final da prova.

Todos preparados para seguirmos para Viseu, pergunto a um Tenente se não seria possível darem-me uma dispensa de fim-de-semana, apanhava uma boleia para o Entroncamento e tinha comboio para casa. O Comandante Faustino, um militarista, gostava da minha atitude e passou-me uma dispensa, escrita num papel, dizendo ao Tenente para se oficializar a questão em Viseu.

Aqui é que começa a história. 

Apanhei uma boleia numa viatura militar e apanhei o comboio. Tinha de me apresentar no dia 25, segunda-feira, mas fui ficando, até apanhar o comboio para Viseu no domingo seguinte, 31 de Julho, chegando ao RI 14 a 1 de Agosto.
Um fim-de-semana longo. Dez dias em casa, uma semana mais que essa tal dispensa.
Era o 1 de Agosto e chegado ao quartel começam todos: “Estás… f…”. O 1.º Sargento olhava-me muito sério, mas com vontade de rir, era daqueles que partilhava aquilo que trazia da terra, e lá ia um petisco, salpicão, presunto ou paio.
Dizia-me:
- E agora Mário?
Respondi:
- Agora bate chapas e tinta robbialac!
Disse-me:
- Estiveste de Sargento de Piquete, e quem te fez o Serviço foi o João!

O João era um Cabo Miliciano negro da Guiné.
Fui na direcção do Bar dos Cabos Milicianos. Curioso por ter sido o único quartel que o Cabo Miliciano tinha alguma coisa. Sucedia partilhar-se a Messe com a dos Cabos Milicianos, mas com divisórias, não fosse a moléstia.
Entretanto vejo o Alferes Miliciano Antunes, amigo e camarada. A nossa equipa na instrução, 77 recrutas cada vez, era uma máquina e sem óleo. Éramos os 4 indomáveis na instrução, desde Abril, sem paragens.
 Olhou-me, dizendo:
- Desta não te safas. Sabes que o João fez o Serviço de Piquete por ti, eu estava de Oficial de Prevenção, e tu nas putas… Não te safas não! Olha, amanhã estás de Serviço, novamente de Piquete, nunca pensei que fosses tu, mas ou o nosso Primeiro meteu água, não percebo, mas estás de Sargento de Piquete e eu de Oficial de Prevenção!
Interrompi-o e disse:
- O 1.º deve ter trocado o Serviço do João pelo meu. Como ele fez o meu Serviço, faço amanhã o dele!

Despedi-me a 4 de Agosto de todos. Chamado a frequentar o XX Curso de Minas e Armadilhas, a Tancos. Fiquei bem sensibilizado. O Tenente Coronel Faustino chamou-me e disse:
- Tentei livrá-lo, mas não foi possível. Estava apurado para os Campeonatos das Regiões Militares. Não me recordo das razões que levaram a que não ficasse inscrito logo na Reunião!
Respondi:
- Cheguei à tarde!
- Se chegasse de manhã, não teria sido chamado para Tancos!

Despedi-me com um aperto de mão. Segui para o Comando da Companhia, despedi-me dos Sargentos da Secretaria. Logo encarei com o Capitão Amaral, que disse:
- É bom rapaz, mas para um militar…

O camarada Antunes, parece ter chorado e abraçou-me.
De seguida foi um adeus e especiais cumprimentos para o Cabo Miliciano Fernando e o 1.º Cabo RD.

E a festa continuou. Em vez de me apresentar a 5 em Tancos, fui para casa e cheguei a Tancos de manhã. Espectáculo a chegada, gritavam em coro: “Estás feito e f… desta vez não… ”!

Velhos conhecidos, das Caldas, de Tavira, de Vendas Novas…
Perguntei quem recebia as guias e disseram ser um Sargento que estava sempre nos copos.
Disse:
- Vamos apostar? Entrego-lhe as guias, bebemos uns copos e o nosso amigo paga!

Apostámos uma rodada. O grupo não era pequeno. O Sargento estava junto da cantina e fui na sua direcção, ao ver-me diz:
- É você que falta? Só chega agora?
Respondi:
- Vai um copo?
Riu e disse:
- Onde é que ele está?

Bebemos o primeiro copo, depois o segundo, sem surpresa para mim pagou os copos. O vinho não era mau.
Começámos, não tenho a certeza o Curso nesse mesmo dia, mas só apresentação.
A 17 de Setembro terminámos.
Passei o Curso, mas foi um Curso com história, muitos Aspirantes e Cabos Milicianos chumbaram.

Por andar desenfiado, o Major da Secretaria no Regimento Artilharia de Costa (RAC) pôs-me de Sargento de Dia ao Regimento a 8 de Janeiro, partia para a Guiné a 11.
Dia 8 era domingo. O último domingo que devia estar com a família, fiquei de Serviço. Pagava 500$00, mas o Major fez tudo bem feito, ninguém pegou. Este Serviço era chato, era a bandeira e responsável pelos combustíveis.
Apresentei-me na parada, julgo que Tenente Ferro:
- Apresenta-se o Cabo Miliciano que vai entrar de Sargento de Dia ao Regimento e que parte para a Guiné na quarta-feira!
Respondeu:
- Vai partir para a Guiné e está hoje de Serviço? No final venha falar comigo!
Estando juntos, diz-me:
- Sabe, as braçadeiras põem-se e tiram-se, percebeu?
- Sim meu Tenente!
- Vamos ao rancho…

 Fui para junto da minha cama, tirei a braçadeira. Saí. Dei umas voltas e regressei. Fomos ao rancho, era bacalhau com grão. Nunca tinha visto tal. O Tenente exigiu ver o rancho não no tacho pequeno mas no caldeirão. As espinhas do bacalhau todo desfeito espetadas no grão.
Almocei com o Tenente que me fez a surpresa de encomendar bife com batatas fritas de um restaurante.

 Depois sucedeu mais uma asneira, talvez uma das piores da minha vida militar. Os carros que vinham atestar, entregava as chaves e dizia:
- Abasteçam-se!
Olhavam admirados e era encher e deve alguém ter dado com a língua que apareceu um número razoável de candidatos.
- É encher, encher!

O 1.º Sargento da minha Companhia (que era 2.º Sargento), dizia-me que tínhamos muito que fazer na Secretaria. Na Reunião com o Tenente, depois do jantar, combinou-se como seria feita a ronda. Disse-me que eu seria o último a fazer. Ninguém me acordou e mal abri os olhos e termina o Serviço, mudo de roupa e adeus RAC.
Voltei na quarta-feira, no dia 11 de Janeiro de 1967.

Chegada ao Largo de Bissau a 17. Transbordo para a LDM e barcaça, via fluvial, a vegetação quase a tocar-nos e com uma maçã golden, um ovo, um quarto de pão, uma laranja e destino incerto.
Estes atrasos terminaram aqui. Não existia espaço. Sentido das responsabilidades.
Quando fazia asneiras, ouvi mais de uma vez dos Oficiais:
- Isso era o que você queria! Não ganhei guerra nenhuma!

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14981: O segredo de... (22): O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados (Domingos Gonçalves)

domingo, 2 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14961: Convívios (700): Encontro do pessoal da CART 1659 (Gadamael - 1967/68), a levar a efeito no dia 26 de Setembro de 2015, na Batalha (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 26 de Julho de 2015:

Caro Camarada Carlos 
Como o combinado, envio um Cartaz sobre o Almoço de Confraternização da CART 1659, realizar a 26 de Setembro de 2015, na Batalha.

Abraço
Mário Gaspar


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Nota do editor

Último poste da série de 28 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14939: Convívios (699): A Magnífica Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, 23 de julho de 2015 - Parte II: Três vídeos (LG) e mais fotos (de casais) (Manuel Resende)

sábado, 1 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14955: (In)citações (76): Fiquei chocado com a Guiné que conheci em 17 de Janeiro de 1967 (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 18 de Maio de 2015:

Caros camaradas
Mesmo sabendo do atraso da Guiné, fiquei bastante chocado. Chegámos à barra do porto de Bissau, na noite de 17 de Janeiro de 1967. Estranhamente, apercebi-me ter chegado. Mais parecia um pesadelo. Negros de tanga e descalços pediam de mão estendida. Comecei a escutar, descarregavam a bagagem, transportando-a. Pediam. Foi um grande primeiro choque, embora conhecesse um pouco sobre aquela realidade.

Ouvíamos uma língua que desconhecíamos. Aqui e ali escutávamos os palavrões, esses em português, daqueles nativos. Como já imaginava, aquelas gentes viviam num mundo bem diferente do nosso paupérrimo mundo português. Imagem que os transportava muitos anos atrás, sem evolução. Não tinham avançado no tempo. Atrasados sempre, e não por culpa própria.
Depois do temporal a bonança, ouvia-se dizer, mas tinha sido um choque maior para mim, choque ainda maior do que seria possível imaginar. Aquelas gentes continuavam analfabetas, e nem falavam o idioma português. Via-os estendendo as mãos implorando tabaco e dinheiro.

Avistava-se a iluminação de Bissau e o pessoal da minha Companhia unida, quem sabe se para se proteger. Houve que juntar a bagagem, tendo-se procedido ao transbordo para uma LDM e Batelão BM-1.
Ficámos espantados, visto julgarmos desembarcar na capital… Deram-nos uma maçã, um quarto de pão, uma laranja, um ovo e um destino incerto.

Depois de encaixotados avançávamos por via fluvial estreita, o mato quase que nos tocava. O capitão desconhecendo a paragem final e o tempo… O calor queimava o nosso interior e porque não existia comida, começaram a abrir as malas e comemos então uns nacos de presunto e de salpicão. Os pitéus salgados? A sede? Problemas. O calor ia aumentando à medida que amanhecia. Dormia-se aos solavancos e, só no dia seguinte fomos informados do nosso destino.
A fome e a sede apoderaram-se de nós. O pessoal começava já a sentir a mudança do clima, e depois dos vómitos, depois da saída de Lisboa, quando se tinha fome a comida já não existia e, a água escasseava. Havia quem comesse as cascas das laranjas, rindo talvez para disfarçar.

Avistámos uma povoação, na margem direita do rio, tendo o comandante de companhia talvez, através dos fuzileiros que nos acompanhavam, dito tratar-se de Cacine. Uma “avenida” de palmeiras, e cá bem à frente, militares gritavam:
- Salta que é periquito!

Com um pequeno barco os fuzileiros chegaram a terra, trazendo sacas. Verificámos serem laranjas, bem sumarentas, mas mais pareciam vinagre. Segundo diziam, tínhamos que nos apressar devido à maré. A mata nas margens era densa e nós éramos não só uns intrusos, mas também periquitos, termo utilizado para designar todos os militares que estavam no início da comissão. Muito embora as azedas laranjas não matassem a fome, de algum modo ajudavam a enganar o estômago.
O capitão, falando com os oficiais e sargentos informou que se juntaria a um pelotão uma secção, ficando destacados num local de nome Ganturé. Os restantes ficariam instalados em Gadamael Porto.

Feito um sorteio, tocou ao meu pelotão ficar no destacamento. Desembarcámos em Gadamael Porto, e o termo “porto” não tinha significado, visto não existir porto algum. Nem sequer um simples cais.
- Salta, salta periquito! – Ouvíamos, enquanto um aglomerado de militares pulava de contente.

Entendia aquela alegria, mas a verdade é que se éramos os periquitos, e a CCAÇ 798 é que saltava. Juntava-se a população civil, esta olhava-nos, não expressando alegria.
De imediato tivemos que carregar as malas e saltarmos para cima de uma caixa de uma GMC, que substituía o cais que não existia. Houve quem escorregasse e caísse no lodo. Os gritos continuavam, e as viaturas militares preparadas para transportarem o pelotão e a secção para Ganturé, começaram a andar. Não houve tempo para analisar aquele local isolado no mato, e enquanto uns recebiam instruções e continuava a descarga, nós avançávamos, também para local incerto. Alguém avisou não ser necessário picar visto existir movimento de viaturas durante todo o dia.

Ganturé em 1967

A Companhia de Caçadores 798, começava a embarcar na LDM e no Batelão. Para eles era a alegria do fim da comissão.
Depois de passado o casarão à esquerda, onde funcionava o comando, ultrapassámos o abrigo, que funcionava como porta-de-armas e, mais ou menos percorridos três quilómetros, cortámos à esquerda e eis à nossa vista a “colónia de férias”. Saíam já outras viaturas com os militares da companhia rendida, que gritavam sorridentes em altíssimos berros:
- Salta periquito, salta periquito...

Árvores de alguma altura abundavam. A população civil aproximava-se, querendo conhecer os novos vizinhos, enquanto um Alferes se apresentava. Tinha ido em rendição individual e ficaria ainda com a nossa companhia, segundo afirmado pelo próprio. Um militar, praticamente sem farda, disse ficar também connosco, aproximou-se de mim:
- Quer comer uns borrachos fritos?

Olhei-o admirado. Afinal aquilo não era assim tão mau. Até existiam uns pombinhos para comer!
- Onde estão eles?
- Oh Furriel, venha comigo!

Olhei para cima dos ombros e vi as divisas camufladas e retirei-as colocando-as no bolso.
Enquanto reparava que aquele 1.º Cabo, não vestia nenhuma roupa do exército: uns calções de banho e uns chinelos de enfiar nos dedos.

Fritados os borrachos e umas batatas, iniciei a minha primeira refeição em terras de África. E que pitéu! Não sabia a razão da escolha ter recaído sobre mim, o prémio daquela refeição acompanhada por cervejas de seis decilitros. O nosso 1.º Cabo que nunca me vira, confortava-me dizendo para eu não me preocupar, porque aquelas aves que comêramos não chegavam para todos, e estava-se a fazer o jantar, bacalhau com grão.
Fora um milagre, uma bênção. E depois da primeira fome, a primeira fartura, porque estava disponível para trincar a bacalhoada, logo que estivesse pronta.

Começámos a instalar-nos e o Alferes que ficara esclarecia-nos, acompanhando-nos.
Fiquei numa barraca encostada ao abrigo onde ficou a minha secção, coberta com chapa zincada. Era decerto um forno. Havia uma cama e um caixote de munições que funcionaria como mesa-de-cabeceira, sobre a qual via uma garrafa de cerveja cheia de gasolina com um pavio enfiado no buraco da carica. Era a iluminação da minha nova moradia.

Comecei por conhecer a população. Lindas bajudas. Converti-me.
Não entendendo patavina do que diziam. Prometi a mim próprio não contribuir para um palavreado que não entendia, mas repleta da asneira, em bom português. Todos senhores e senhoras, o nosso Soldado de igual modo tratado. Fui avisado, mas segui a caminhada. Escutava das Praças “U”, e nos Caçadores Nativos, frases em português. Não respondia a ninguém que me falasse que dialecto fosse.

Ensinei em dias o português. Eles sabiam-no. Foi o meu percurso. “Portuga”, nunca me chamaram, se o fizeram, não sei… Fui professor, ensinei. Fiz o meu papel e cumpri o meu papel. Tive imensos contactos com a população, comi a “bianda” nas mãos enrolada, só para fazer a vontade.

Em relação aos filhos que lá deixámos. Tenho conhecimento que sim. Casos que eles próprios o desconhecem. Alguém me ajude nesta descrição. Uma negra, bem negra e bonita, de Guileje (ou Mejo?), julgo ter sido em Guileje, tinha um filho branco. Era vestido pelos Oficiais e Sargentos. Se nasceu em 65, tem hoje 50. Diziam ser filho de um Capitão que o quis levar e a mãe não permitiu. “Mas «portuga», não”! Nem o autorizava. Visto tratar todos por você e senhor, tal não admitia. Tanto cá como na Guiné, sempre o trato foi você. Éramos iguais… é o único modo que conheço de tratamento.

Na Tabanca Grande, é Camarada. Também é verdade que existem Camaradas e camaradas.
Cumpri, mas não romperam esse cumprimento. Sou combatente e não ex-combatente. Devem-me os meses riscados com uma esferográfica “bic” no cinto, não nos pagaram. Alguns receberam.
Ninguém me venha dizer que foi pela Pátria, mas que pátria-mátria que não reconhece os seus filhos?
Paletes de amigos, é verdade, mas analfabetos ou não, mesmo não fazendo política me disseram, era o seu padre e confessor, mas perguntavam:
- Meu Furriel, o que fazemos aqui?

Palavras sábias…

Cumprimentos
Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14515: (In)citações (75): Perspectivas sobre o 25 de Abril (José Manuel Matos Dinis)

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14614: A bianda nossa de cada dia (6): O que bebíamos e comíamos na 1659, nem uma onça escapou (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 8 de Maio de 2015:

Camaradas e Amigos

Na CART 1659, minha Companhia, repleta de amigos, existia um Vaguemestre, meu Amigo, Augusto Varandas Casimiro. Curiosamente, o Cozinheiro era o 1.º Cabo Zacarias Salvador Branco e não existiam padeiros. Ninguém se lembrou que era imprescindível haver um padeiro.

Quando pisámos terras de Gadamael Porto, segui logo para o destacamento de Ganturé. Pediram-me para gerir o “rancho” de todo o pessoal e ao mesmo tempo para ser Gerente de Messe. No caso de Gerente de Messe combinou-se ser este cargo rotativo. Além de Atirador de Artilharia de G3 e de ter o Curso de Minas e Armadilhas, era Vaguemestre, com certeza apoiado pelo Casimiro.

No seguinte dia, já que a CCAÇ 798 deixara bastante pão, o Capitão numa reunião disse não haver na CART 1659 um Padeiro, e estava com dificuldades em resolver a situação. Existiam entretanto uns Soldados que diziam já terem visto fazer pão, e que estavam prontos a darem o seu contributo. Padeiro oficialmente não existia, ninguém sabia, nem sequer o Exército, que eu era padeiro, até com Carteira Profissional.
Nunca senti amores pela profissão do meu pai, muito embora se possa dizer ter nascido numa padaria. Se leram o texto sobre “O meu Pai”, já o sabem. Mas teria sido melhor para mim, dizer que era padeiro quando fui incorporado.
Verdade ou não? – É a pergunta que faço à Tabanca.

Disse que era Padeiro, mas que não queria voltar a ser, mas prontifiquei-me em colaborar na primeira fornada, acompanhado com os futuros padeiros. Fui uma noite só, depois surgiu a sabedoria “desenrascar sempre”.

Existia fabrico de pão, tivemos a sorte da farinha ser de muito boa qualidade. Farinha Francesa. Com o pano dos sacos, os civis aproveitavam para fazerem saias e os tais trapos enrolados. Que lindas fincavam! Carimbadas com marca da farinha francesa, e a tinta não saía.

Quanto aos cozinheiros, o 1.º Cabo Zacarias (que deve ainda morar na Charneca da Caparica e devia juntar-se à tabanca da “bianda”), há muito que não o vejo, ficou com a carga de uns tantos soldados-padeiros aprendizes para o apoiarem.

E as Messes? Em Ganturé existia uma: no início éramos dois Alferes Miliciano (um deles ficara lá, rendera um Alferes Miliciano da CCAÇ 798); 2.º Sargento e 3 Furriéis Milicianos. E tínhamos Messe e um Soldado Atirador cozinheiro desenrascado – os portugueses possuem essa bênção – são desenrascados. Para o “rancho” saquei ao Casimiro um bidão de azeite, penso que éramos abastecidos quase diariamente.
O prato principal era a famosa, e eu que nunca a vi com olhos, nunca desde criança gostei a “bianda”.
O vinho era entregue em barris e garrafões de 15/20 litros cada, tudo tara perdida. Os barris serviam para se fazerem cadeiras de baloiço.

É verdade que nos barcos retiravam vinho, mas faziam-no para o beberem na ocasião. Quando cumpri a comissão todo o vasilhame é de tara perdida.

Criança com uns 12 anos, sendo os meus pais proprietários de uma quinta, com vinha, vinho de qualidade, era a primeira pessoa a beber umas gotas de vinho, dizia: Este ano é bom! Os anos passaram e apurei mais o paladar, dizendo inclusive as razões.

Quando me apresentei no RI 5 nas Caldas da Rainha para o Curso de Sargentos Milicianos, pertenci a um grupo que percorreu todas, e muitas tabernas que lá existiam, sabia onde estava o melhor vinho. Na Guiné provei a primeira vez, não gostei, pior fiquei desconfiado. Com certeza que se tratava de vinho, nem sequer baptizado, antes anestesiante. Deixei de beber, não arrisquei. Ouvi falar de cânfora.
Pergunto: E a cerveja? O que continha a cerveja, diferente daquela que se bebe cá?

Quando fui transferido para Gadamael, fiquei a dormir junto do Furriéis Milicianos o Vaguemestre Casimiro e o Furriel Auto, o Guerreiro Justo, este malandro, que vai ler esta minha discrição, não era guerreiro, era Auto e seria justo? Decerto que sim. Um grande amigo.

Como não comia arroz, antes bianda, procurava refúgio no atum, mas um dia descobri que no armazém existia um monte de caixas, julgo ter perguntado o que estava naquelas caixas, e eram muitas. Então o que vi? Eram latas de borrachos com ervilhas, mas fora de prazo. A CCAÇ 798 deixou-nos, ou deixou uma alternativa que substituía a bianda. Devo ter sido eu a comer tudo, estavam todas as latas fora de prazo, mas em condições.

A sopa era um outro grande prato, alcunhámos a sopa de “365 dias”. Sempre e sempre lá estava ela, mandada pelo PAIGC. Estava… mascarada? Tipo Knorr. Lembro-me que um dia recebemos os chamados “frescos”, normalmente: frangos de aviário; sardinha fresca; ovos; tomate e não sei se mais algum outro comestível.

Iam surgindo menus novos – até em termos de boa comida – quando vi os tais ovos, resolvi, até por haver pão duro, pedir ao cozinheiro, ao grande cozinheiro, que fizesse Sopa à Alentejana. Foi um descalabro, e os ovos ganharam asas. Não foram aproveitados os ovos para outras refeições. Concluí mais tarde que os “frescos eram uma bênção dos céus”, eles vinham mesmo nos céus, e de helicóptero.

O “desenrascar” dava para cada um de nós fazer um copo. Uma garrafa de 6 decilitros de cerveja sagres vazia, um ferro e óleo queimado. O necessário para levar avante a tarefa. Enchia-se a garrafa até a altura que pretendíamos que o copo tivesse, colocava-se a vara de ferro ao lume até ficar incandescente, colocar o ferro no gargalo da garrafa e zás, lá estava o copo.

Quanto ao comer, muitas e muitas vezes “peixinhos da bolanha” e lá estavam os tais peixinhos. A acompanhar? Feijão-frade! Acho que foram algumas vezes uns destes peixinhos para Guileje e Mejo. Talvez até para Sangonhá e Cacoca.
No período em que havia pesca e caça dava para dividir pelas Companhias.

Quase sempre a comida tinha de ser inventada e passávamos maus bocados, sendo a cerveja para mim a alternativa, não alimentava o estômago mas a alma. Bacalhau carregado de cal, se não era cal, era parecido. Dobrada desidratada, era uma beleza. Depois e sempre ao almoço e ao jantar, fosse no Rancho ou na Messe lá estava a tal sopa.

Para não enjoar, vou tratar de recuperar o isqueiro Zippo do Movimento Nacional Feminino, e possuía 3 avariados, mas se conseguisse aproveitar um, era óptimo. E consegui. Uma oferta de um Furriel que se desenfiou, da CCAÇ 798, rendida pela CART 1659.

Virar a meio, à esquerda lá está o meu palacete

Quem ia de Gadamael para Ganturé, depois da entrada à esquerda lá estava a minha habitação, uma barraca de lama e capim coberta com chapa. Tipo forno de tortura. Mas tinha três isqueiros e restou um. Obrigado Furriel Miliciano da CCAÇ 798!

Vamos ver os tais utensílios. Tudo velho: colheres, pratos, tachos, panelas, garfos, facas e era… Improvisar. De caixote fazia-se um armário; uma mesa-de-cabeceira; um móvel para colocar a mala de cartão. Mas tinha de ficar por ali, mais não. Onde meter aquilo que tinha e espaço? Meus vizinhos, um abrigo improvisado de chapa de bidão; bidão; terra batida e o telhado de chapa de zinco.
Forno…Melhorias? Um tecto falso feito de capim e colocar capim sobre zinco… molhar quando há tempo.

Sucedia que apanhavam caça, uma alegria. Houve um período que comer havia, tanto peixe como carne do mato. As salsichas, se existindo era uma festa. Sardinha em lata. Atum, e que fartura do atum, então não que inventei (registado o invento) o prato:

“Atum de conserva assada no forno”.
Como fazer?
– Abrem-se as latas de 2,200 Kg cada uma de atum e parte-se ao meio o conteúdo de cada lata, na altura com certeza. Fica metade de cada lata, espalha-se as metades e tempera-se; um pouco de pimenta; cebola às rodelas; um pouco de azeite (o atum vem em azeite, portanto é pouco azeite) e leva-se ao forno velho e a cair num tabuleiro de chapa de bidão. Que cheirinho! Comer…

Gadamael Porto – SET68 Final da Comissão

Em Gadamael Porto criaram-se duas Messes: de Oficiais e de Sargentos e era nomeado um Gerente de cada Messe. Tocava a todos, era rotativo. Então e os utensílios da cozinha. Tabuleiros fortes, feitos na Oficina onde se encontravam os Mecânicos – esta era uma boa Equipa chefiada pelo Furriel Miliciano, algarvio de Loulé – um camarada – José Manuel Guerreiro Justo (acompanha o Blogue).

Os algarvios não têm terra, são “algarvios”. Portanto estamos em família porque o Camarada Joviano Neto Mendonça Teixeira é natural da Luz de Tavira. Andei por estas andanças em Agosto de 1965. Era terra de mulher bonita, gostava dos Milicianos.
Lembro quando cheguei ao CISMI, esperavam-nos um grupo de jovens morenas algarvias, dizia: Tavira tem bonitas raparigas e boa uva.
Lavar a roupa, engomar umas calças, o dinheiro não chegava. E a água? Uma bica 12 tostões e mais 6 tostões por um copo de água. Havia bom vinho, e subia.

Tudo era improvisado na Guiné. Os tais tabuleiros iam ao forno do pão, e era o único alimento de qualidade. É verdade que existiam uns naturais que iam à pesca e caça. A pesca quase sempre peixinhos muito pequenos. Apareceu lá um negro da Serra Leoa, falava com o tipo, em Francês, sempre desconfiei dele, ia à pesca mas já ao mar, trazia um peixe semelhante à pescada, a cabeça comprida. Deitavam fora as cabeças. Um dia disse para as guardarem e pendurá-las no alpendre, como vira em Sesimbra. Depois de aberta a cabeça, pendurada e seca. Era um pitéu.

A sopa era da boa, tão boa que todos os dias era sempre igual. Tínhamos um bom camarada, andava sempre connosco, o feijão-frade (duas caras, feijão preto e ciclistas). Nunca enjoei, e não vou contar os feijões que comi por unidade, mas por medida. Se a cerveja coubesse numa piscina Olímpica de 100 metros, os camaradas “ciclistas” davam para fazer um a um alinhados, em bicha de pirilau faziam a fronteira pelo menos de Portugal, este cantinho à beira-mar plantado.

A água era imprópria para consumo, mesmo filtrada. Logo no início da comissão deixei de bebê-la e substituí pela sempre bela cerveja de 6 decilitros. A comida repetida. Tendo reparado que nas operações em que levávamos ração de combate que a rapaziada não comia aquele triângulo de queijo. Disse ao Furriel Miliciano Vaguemestre que era melhor, quando na entrega das rações, ele perguntar se cada um comia o queijo. Guardava os queijos num caixote. Dava sempre para desenrascar, metiam-se 3 triângulos no pão e bebia-se 7 cervejas das tais, sempre as “bazucas”.

Um dia ao dar uma volta por Gadamael Porto, vi umas folhas juntas à paliçada. Perguntei a um Soldado se sabia o que era aquilo. Respondeu-me a gritar:
– Beldroegas, meu furriel!
Além de ter de descobrir as minas, descobrira a pólvora. Nunca se chegou a saber o nome daquele conjunto de beldroegas e “365 dias”. As folhinhas nadavam e numa colherada ia a verdura para o maneta. Saía-nos a sorte grande quando apanhavam caça. Num período, e longo ficámos sem abastecimento.

A “bianda” nunca foi para mim um problema, nunca gostei de arroz e de nabos. Curiosamente de nabos, nem duns nem doutros.
Um dia chego junto do Cozinheiro da Messe e digo-lhe que tínhamos de combinar o prato, respondeu-me que eram salsichas com arroz. Eu sabia, referi que o ajudaria a fazer o prato. Iniciámos a obra.
Em cada salsicha colocaram-se quatro palitos, ficando a mesma parecendo mais um animal com quatro patas, mas em pé. Tudo feito secretamente. Os pratos foram todos para a mesa com as salsichas e o arroz e ao mesmo tempo.
O pessoal, que andava em baixo e nem sequer tinha vontade de rir, desatou numa sonora gargalhada. Um grito. Riram.

Também segundo o que me lembre faltava o correio. Nem a avioneta nem barco. Em toda a guerra foi o pior. Logo de seguida, estou no cais, por nós construído, mas enganados com promessas de 18 meses de comissão. Prometeram no início se fizéssemos o cais eram 18 meses e juraram.
Estando no cais vejo algo. Sonho? Então não está um civil a tirar a pele a um animal que não reconhecia. Olhei para aquela carne fresca, perguntei se não vendia. Respondeu que “cá presta”, foi o que percebi, e insisti. Levou o bicho para a Messe, e segui com uma bonita pele nas mãos.

Disse para assar as pernas e o resto era para guisar noutra refeição. Assisti a todo o trabalho do Soldado Lima.
Temperou, cebolas ainda existiam. Levaram os tabuleiros de chapa de bidão. Neste período já tínhamos outro conforto. Os copos feitos de garrafas de cerveja tinham sido substituídos por copos de inox. Pratos e talheres tudo de inox. Não tomávamos banho de púcaro. Tínhamos duches ainda improvisados mas os bidões estavam sobre estacas, altos e com torneiras. A Companhia quase que podia tomar banho à mesma hora. Tínhamos terminado de acabar as obras da Sala do Soldado, foi já no fim e pouco gozámos. Em suma: condições mínimas existiam, mas víveres no fim. O Capitão gritava para Bissau. Os barcos não chegavam. Sofríamos nós e Mejo, Guileje e Gandembel. E ataques, com muto mais frequência a Ganturé. Os pescadores e caçadores não saíam.

Bem, o Capitão aproxima-se de mim e diz, “então Mário, onde foi buscar a carne. Cheira tão bem”. Respondi “se gosta, venha almoçar connosco”. Tive entretanto conhecimento pelo civil que me entregara a carne que o bicho caçado era uma onça, e que eu insistira mas que a carne de onça não é boa para comer, embora não fazendo mal nem morresse quem a comesse. Fui àquilo que denominavam de Enfermaria e estava lá o Furriel Miliciano Enfermeiro José Jorge Fernandes Durães (desconheço o seu paradeiro. Se estás a ler um grade abraço!). Contei o que se passava e respondeu-me que pode a carne não prestar mas não mata ninguém.

Chegou a hora do almoço. Cheirava bem, o pessoal ansioso e vem a comida para o prato. Espeto o garfo e a carne separava-se. Comem, até que o Durães diz, “Justo, compraste a pele e por que razão não compraram a carne do bicho”. O Capitão respondeu que o Justo é que havia comprado a pele, e que ele morria se comesse a carne de uma onça. O Durães diz, rindo: - “Então morra por que é o que está a comer”.

Os barcos não chegam e o Capitão informa o Batalhão que o moral da Companhia está em baixo, se não chegarem víveres não saímos de Gadamael nem de Ganturé.
Chegam frescos de Bissau, penso que só frango, um frango por cada um. Entregam na Messe uns 19 frangos e grandes.
Chamei o Soldado Cozinheiro Lima e disse que eram todos assados no forno e um para cada. Alegria total, alguns quase que deitavam frango pelos olhos, um dia bem passado. Quando o Capitão tomou conhecimento veio zangado dizer “e agora, comeram um frango que era para quatro refeições, o que comem agora”. Respondi que continuávamos a comer o que havia antes.

Bem chegaram os víveres, barcos carregados de tudo. Tivemos o prazer de comer naquele dia.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14598: A bianda nossa de cada dia (5): Se a vida era boa em Lisboa, em Bissau nem tudo era mau... Do arroz de todas cores ao vinho verde alvarinho "Palácio da Brejoeira"... (Hélder Sousa)

terça-feira, 5 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14572: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (13): Uma da nossa Intendência

 1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2015, o nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos mais um texto para publicarmos na sua série "A minha guerra a petróleo:



A MINHA GUERRA A PETRÓLEO

13 - Uma da Nossa Intendência

Vou contar esta história tal como me foi contada no longínquo ano de 1968. Não tive possibilidade de verificar se foi assim que tudo se passou, embora tivesse sido contemporâneo, em Cacine, da CART 1659. Por isso corro o risco de exagerar um ou outro pormenor ou, talvez pelo contrário, de deixar para trás algo que foi importante.

A CArt ocupava Gadamael e era comandada pelo Cap. Mil.º Art.ª Mansilha, advogado de profissão, mas que, pelas vicissitudes a tantos outros sucedidas, ali fora parar. Nesse tempo a Intendência fornecia vinho às unidades em dois tipos de embalagens: barris de 50 litros ou garrafões de vidro – transparentes, para o branco, e verdes-escuros, para o tinto – com 10 litros de capacidade, rolhados com uma tampa de plástico, e protegidos por uma espécie de grandes aparas de madeira muito fina e ligadas por arames. Depois de vazios, estes invólucros não eram devolvidos e, por isso, eram frequentemente usados em funções decorativas. Os barris, desmontados e devidamente serradas as suas aduelas, serviam para a construção de pequenas mesas, cadeiras (por vezes de braços), bancos e outros “móveis” que embelezavam e tornavam mais cómodas as “salas de convívio”, “quartos”, “refeitórios”, etc.. Aos garrafões estava consignado um papel mais decorativo, especialmente aos transparentes que, depois de pintados por dentro, serviam de jarrões com pinturas “modernistas”. Quer uns, quer outros, podiam depois receber na estreita boca, folhas de palmeira ou outros arranjos de flores secas e constituir motivos de decoração. A técnica de pintura era, como é de calcular improvisadamente engenhosa. As tintas eram cuidadosamente introduzidas na boca do garrafão e ficavam a escorrer lentamente na parede interior deste e, consoante a posição em que o garrafão fosse posto, surgia uma decoração a várias cores e com formatos que o “pintor” não controlava, mas que lhe permitia obter um efeito muito original.

Ao que parece o vinho de garrafão era debitado a um preço mais elevado que o do barril, mas tenho para mim que a qualidade de ambos os produtos se equivalia e não era possível detectar pelo paladar a embalagem de origem do néctar em apreço.
Por razões que não consegui determinar a CArt 1659 não consumia vinho de barril.

Era frequente surgirem pequenas falcatruas com o vinho durante o transporte, muitas vezes só detectáveis já no momento da distribuição. Quem observasse o interior de um pipo podia, às vezes encontrar pequenos pauzitos, espécie de palitos, cravados em locais “estratégicos” entre as aduelas dos barris que tinham permitido a saída de algum líquido para uma ou outra garganta mais sequiosa.

A violação dos garrafões era mais difícil. Só pela cápsula de plástico que cobria a rolha e uma boa parte do gargalo. Era, porém possível abri-lo, consumi-lo na totalidade e voltar a rolhá-lo com engenho e entregá-lo como genuíno chá de parreira. Era uma técnica mais difícil de aplicar e daí talvez a opção de fornecimento da unidade de Gadamael/Ganturé.

Porém, um dia aconteceu o impensável. Alguns garrafões apareceram rigorosamente atestados… de água. Que fazer neste caso? Havia a possibilidade de se realizar um auto que já não seria de recepção e que, portanto, a Intendência dificilmente aprovaria. No fundo, era a palavra da Unidade contra a do Órgão Logístico distribuidor, cuja palavra, à partida, faria fé.

Mas a CArt não terá seguido apenas esse caminho.
O capitão Mansilha ordenou o envio dos garrafões com a água para a delegação do Laboratório Militar, em Bissau, pedindo uma análise ao respectivo conteúdo. O laboratório, não sabendo a origem do produto remetido, deverá ter pensado que se tratava de água proveniente de alguma fonte ou poço situado na zona de acção da companhia e, pouco tempo depois, respondeu que se tratava de água imprópria para consumo e com matérias orgânicas pútridas em suspensão.

O capitão Mansilha escrevia bem, ou não fosse advogado, e redigiu uma nota a reclamar junto da Intendência contra o fornecimento que esta fizera, nomeadamente informando que o estômago do seu pessoal não era propriamente um tubo de ensaio.
Claro que a “insolência” teve resposta através da ameaça de que, se se voltasse a repetir uma situação idêntica, seria dado conhecimento superior, para o correspondente procedimento disciplinar.

De novo a clarividência e a argúcia do advogado brilhou com uma resposta que, em linhas gerais, podemos sintetizar assim:
- Não há necessidade de incómodo para apresentação do assunto a instâncias superiores pois, da próxima vez – se tal se verificar – será a própria companhia que o fará.

Volto a dizer que não tenho qualquer elemento que me prove que as coisas se passaram exactamente assim. Todavia, algo de parecido terá sucedido, uma vez que o “Jornal da Caserna” publicação satírica que se publica em todas as guerras e mais ainda nas “guerras a petróleo”, registou o evento, o que dá um certo fundamento à notícia que nunca terá chegado a ser uma informação de boa classificação.

Mem-Martins 28 de Abril de 2015
JAPC
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13493: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (12): Como vejo o 10 de Agosto de 1972

sábado, 2 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14555: Blogoterapia (267): Num Ápice, fico Anestesiado, a Mente o Obriga (Mário Vitorino Gaspar)

1. Em mensagem do dia 26 de Abril de 2015, o nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), enviou-nos um texto de sua autoria como o título Num Ápice, fico Anestesiado, a Mente o Obriga.


“Eu me retiro com a consciência tranquila,
sentindo que cumpri meu dever,
de alguma forma,
com meu povo e meu país”.

Nelson Mandela


Foto: © Alexandre Miguel Marques Gaspar - Filho do Mário Gaspar


Num Ápice, fico Anestesiado, a Mente o Obriga
Mário Vitorino Gaspar

Comando… uma patrulha; segurança ou emboscada, os sentidos multiplicam-se.
Atento ao mínimo pormenor. A distância diminui. Pequena anã.
Os olhos ampliam as imagens. A pica beija o chão, meigamente bate. Se somos agressivos, rebenta. O coração cadenciado, melhor relógio do mundo. Depressa, não! A pica presa, como a vara do pastor.

Surge o inimigo, arde-me o fogo. O coração é mero sino manejado por um sacristão aprendiz. Num ápice, fico anestesiado? Mente… A mente desperta, som de trompete. Cerebral. Controlo!

Na mão enterro o medo. Invade a nudez do suco que morde o meu ser. Tem calma! Vislumbro, e logo de seguida… Oco o tempo sábio, trémulo de hora! Branco, tom pintado de nitidez. Carrego o corpo ser e saber. Crispa fogo… Coração, relógio solto de ponteiros das horas. Dentada no coração que chora.
Olho gigante cresce, visão global:
Mortos? Feridos? Evacuações, o radiotelegrafista tem de informar:
– Nenhum morto! Sete a evacuar!
– Disparo certeiro… E verdade verde pintada esperança.

Mas qual a memória, que matemática e fotografia? Os olhos munidos de lentes. Maquinetas fotográficas, certa memória…. Pausa… A liberdade só, regressa voando e mora dentro de mim.
Transformo-me em ave que voa na pauta.
Música nascida na pureza de musicais notas libertas:
Num Ápice, a anestesia morta, a mente sorri.

Evacuar. A morte espreita, numa nesga de entre o matagal.
– Não vejo! – Vomita o meu Soldado.

O helicóptero cai na terra perdida. A enfermeira florido sorriso:
– Espreite o céu que ri, rios de água nascente. Vê?

Olho sangue vermelho. Ferida espetada. De aço…Responde o herói Soldado:
– Tão linda que é! Flor… E branca neve algodão.
– Sete a evacuar…

O helicóptero esconde-se nas nuvens. Esvoaça… Esperança.

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14351: Blogoterapia (266): O Senhor M. Proust escreveu milhares de páginas "À la recherche du temps perdu"... Será que nós estamos escrevendo milhares de postes, à procura da juventude "perdida" na guerra? (Vasco Pires, ex-alf mil art. cmdt do 23º Pel Art. Gadamael, 1970/72)

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14548: Bibliografia de uma guerra (72): Do meu livro “O Corredor da Morte”, rebentamento de uma mina PMD 6 (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 30 de Abril:

Cara Camarada Gigelda e todas as Enfermeiras Paraquedistas:
Tive sempre enorme admiração pelas nossas Enfermeiras Paraquedistas. Como costumo dizer as Mulheres de “M”, Mulher-Mãe; Mulher-Esposa; Mulher-Noiva; Mulher-Namorada; Mulher-Irmã; Mulher-Madrinha de Guerra e Mulher-Enfermeira. 
Penso que a Mulher-Enfermeira deveria ter uma outra atenção por parte do poder político. 

Aproveito a oportunidade e presto a minha humilde HOMENAGEM À NOSSA CAMARADA GISELDA PESSOA E A TODAS AS NOSSAS AMIGAS ENFERMEIRA PARAQUEDISTAS.
Mário Vitorino Gaspar


No Capítulo 15 do Meu Livro “O Corredor da Morte”, consta a determinado momento:

“Dia 15 de Janeiro de 1968 (…), tinha sido chamado na véspera ao capitão que considerou a utilidade de irmos buscar o correio a Sangonhá, assim patrulharíamos a zona. (…).

As tabancas alinhavam-se à direita. Aproximavam -se os Soldados Nativos e as Praças “U”.
Dei um nó no lenço que colocara ao pescoço. Um lenço de seda que me dera a minha namorada quando estivera de licença em Portugal. Era também “ronco”, como lhe chamavam os nativos.
O cabelo estava demasiado comprido. Gostava assim. Além disso, a barba. Há quantos dias que não a fazia.
O camuflado, uma miséria, parecia que velhice o engolia aos poucos. Tinha que me confundir com os negros no mato. Assemelhava-me, talvez.

Com o pessoal todo preparado, encaminhámos os nossos passos para a “porta de armas”, se é que poderíamos chamar àquilo tal nome. Seriam duas secções e os Caçadores Nativos e as Praças “U”. O total seria de uns quarenta homens. Não ia qualquer Oficial, seria eu a comandar.

Logo que passada a porta de armas, ficámos automaticamente com as distâncias controladas. Nunca íamos a monte, nem sequer era necessário dizer-se. As picas avançavam ao solo, massacrando-o com ato delicioso. Os arames rompiam pela terra. O trilho estava seco. A pica chocava no terreno, procurando um objecto que impedisse a perfuração. Eram as “carícias” daqueles arames de ferro, instrumentos improvisados. Eram sem dúvida nenhuma os melhores detectores de engenhos explosivos.

À frente ia o guia, logo a seguir, a uma distância de sete ou oito metros, um soldado. Separava-nos por volta dos sete metros da frente para trás. À esquerda e à direita. Todos a picar. Eu seguia o guia, Praça “U”, que picava, com uma certa minúcia. Tinha notado, já há algum tempo, que dois soldados que iam à minha frente depois de eu recuar, mais parecia quererem brincadeira. Algo de estranho se passava entre os dois. Saltei para a berma direita, colocando-me entre os dois fiz sinal para terem cuidado. Mudei-me logo para de trás dos dois soldados e continuei a picar.

No meio daquele silêncio profundo, senti um frio percorrer-me o corpo. O cérebro, a espaços, estagnara oco. Nem o vento, as folhas ou viva força da natureza.
- Vamos a ter cuidado - disse-lhe em voz baixa - é picar como deve ser.

Olharam-me, quase como envergonhados, sorrindo de seguida. Transportava, como todos, a G3 sobre o ombro esquerdo, enquanto a mão direita segurava a pica. As Praças “U” e os Caçadores Nativos batiam com a pica na terra que parecia ser acarinhada pelo arame. Continuei a avisar os dois soldados que me antecediam. Afastei-me para a berma contrária. O silêncio preocupava-me.
Olhei para trás. Estavam algo eufóricos. Desconhecia o motivo de tal. Seria a correspondência? Não sabia explicar. A verdade é que a alegria é contagiante. Estávamos na guerra, ali não havia espaço nem tempo para a nostalgia daquelas paragens sufocantes e doentias. O meu lenço de seda estava encharcado em suor. Coloquei o nó mais à frente. Notava a anormalidade de comportamento nos dois soldados da minha secção, colocados na berma do lado direito.

A uns vinte metros à frente, do mesmo lado, o guia parou por instantes, enquanto picava. Os dois soldados seguiam-no, ouvindo aquilo que a Praça “U”, transmitira baixo. O soldado que vai à minha frente espeta a pica, com raiva. Um estoiro. Um rebentamento forte. O guia foge para a frente. Apontei-lhe a G3, não sabendo explicar tal acto.
- Alto! – Gritei-lhe – Para aqui já!

O militar negro parou e aproximou-se de nós. Num ápice todos se lançaram para a berma. Era o conhecimento prático, os ensinamentos daquela guerra de guerrilha. O guia estava entre nós.
- Mina! – Gritou o soldado que vinha na minha retaguarda, respirando fundo.

Eu era o único que continuava de pé. Rebentando mina, armadilho ou fornilho, acontecia haver uma forte probabilidade de emboscada. De pé e o coração rompia do peito martelando-o, mas como sempre, mais lúcido, uma lucidez difícil de explicar. Numa fracção de segundo. Mais calmo que anteriormente. Também não entendo. A serenidade fazia parte integrante do “eu”. Era talvez como se tivesse ingerido um calmante. O cérebro respondia na íntegra. Deixei de tremer. Transformara-me como por milagre, num ser diferente.

Ouvi gritos que penetravam não só nos ouvidos, mas também no corpo e no espírito. Excluindo eu e o guia todos tinham sido atingidos pela mina. A minha experiência como especialista de explosivos, minas e armadilhas dizia-me que era, mais uma vez, uma PMD 6, vulgarmente conhecida por “saboneteira”. Uma antipessoal, que possuía mais o efeito psicológico. O que parecia estar pior era o soldado que ia à minha frente, com o rosto menino, coberto de sangue. Fechava os olhos. O camuflado estava repleto de estilhaços e também de sangue que haviam atingido também o rosto, na zona da vista. Sofria. Aquele sangue do corpo jovem molhava o trapo.
O outro que o seguia era quase o vivo espelho do primeiro, com mais estilhaços talvez. Continuava a não entender porque teria picado com tanta violência. Quereria matar a mina? Gritei para o radiotelegrafista, depois de pedir a um soldado que o chamasse:
- Aqui já! - Fiz sinal ao condutor para virar a viatura.
- Informe Gadamael Porto que temos evacuações para fazer, umas seis ou sete.

Disse ao radiotelegrafista com calma: - Não é grave!

A GMC tinha já dado a volta. Havia que evacuar os feridos. O soldado que tinha sido atingido no rosto, desabafou, com dores:
- Estou cego, cego..., não vejo nada, merda. Estes filhos de uma puta nem nos deixam ir buscar o correio!

Não via as lágrimas, elas agarravam-se ao sangue que continuava a correr do seu rosto.

- Calma rapaz, vamos para Gadamael, não fazemos aqui nada, as evacuações não podem ser feitas daqui! – Disse eu.

Aproximei-me dos feridos. Um gemia em tom demasiado baixo:
- É pá como vai isso? – Perguntei-lhe sorridente, pretendo incutir-lhe a calma e fé que necessitava, enquanto pedia ao telegrafista que pedisse as evacuações.

- Sinto picadas nas pernas. São os mosquitos todos da Guiné que me chupam o sangue – respondeu.

O sangue manchava os camuflados. Julgava serem os três únicos que necessitavam de evacuação, muito embora outros tivessem sido atingidos. A mina era de fraca potência. Feita de madeira, com algum arame. Disse para o condutor:
- É a abrir sempre até Gadamael, não é necessário picar... – Disse-lhe em altos berros.

Logo que arrumados na caixa da GMC, a mesma arrancou, com sete feridos e mais quatros homens. Uma secção de Ganturé, chegava com três viaturas. Subimos todos e com alguma velocidade, chegámos ao cruzamento. A secção de Ganturé saiu e continuámos até Gadamael Porto. Não era necessário picar. Gadamael estava à vista. Já se viam os militares da nossa companhia de calções e tronco nu. A GMC estava junto daquilo a que chamavam pista. Todos aqueles a evacuar estavam deitados em macas.

O furriel enfermeiro e o auxiliar enfermeiro encontravam-se junto dando o apoio, limpando os ferimentos e retirando os camuflados. O primeiro soldado atingido, e o que estava em situação mais grave, estava mais sereno. Aproximei-me, eram cinco corpos.
Um murmúrio aqui, outro acolá, nasciam das gargantas daqueles jovens, mas homens de verdade. Homens com um “H” grande.
Ouvia-se o roncar dos helicópteros. Eram dois.

O meu cabelo comprido foi sacudido pelo ar em movimento. Vento.
O capitão estava junto do primeiro helicóptero. Desceu a enfermeira paraquedista de calça camuflada e camisola de um branco lavado. Sobressaíam uns seios rígidos. A enfermeira era de cor branca. A única branca naquele local afastado da civilização. Uma mulher branca, era impensável. Bem torneada!
Aproximou-se das macas, balanceando as ancas.
- Como está? – Perguntou ao soldado que tinha sido atingido na vista.
- Está bem?
- É muito boa! – Respondeu rapidamente o soldado.

Via-se um sorriso naquele homem. Já havia ganho esse estatuto há algum tempo. O capitão, referiu:
- Não ligue, ele não sabe aquilo que diz!
- Já estou habituada! – Respondeu a enfermeira com um sorriso.

Os helicópteros levantaram dos torrões da pista e desapareceram no horizonte”.
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Nota do editor

Último poste da série de 30de Abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14545: Bibliografia de uma guerra (71): E agora? O que é que vou fazer?, do livro "Guerra na Bolanha", de Francisco Henriques da Silva, Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14479: (Ex)citações (271): Também estive na Op Bola de Fogo, de 8 a 14 de abril de 1968, no apoio à construção do aquartelamento de (e depois nos reabastecimentos a) Gandembel (Mário Gaspar, ex-fur mil MA, CART 1659, Gadamael, jan 67 / out 68)

1. Comentário de Mário Gaspar ao poste P14478 (*):

Camaradas e Amigos

Estive lá, nessa Operação…Esqueceram-se da CART 1659 ? (*)

Em determinadas circunstâncias fico bastante magoado, escrevi um livro, “O Corredor da Morte”, sem a intenção de ser Prémio Nobel, mas para falar sobre aquilo que me atormentava e atormenta que é o escândalo da História da Guerra Colonial não ser contada e ficar escondida e perdida. 

Ao editar o livro, já o poderia ter feito em 1996, e tinha editora, pretendi narrar, principalmente as situações em que participei, nunca como observador. O livro surge por solicitação, e nunca me preocupei com o português usado, mas com o que sentia e sinto. Cometi erros e assumo. Se existir uma outra edição, possivelmente vai existir, porque fiquei engasgado, atravessado na garganta, [farei as necessárias correções].

Vamos acreditar nas historietas que nos narram, ou seremos nós que devemos fazer a História ? Se não tivermos capacidade para o fazer,  vamos pedir ajuda a um amigo. Editei o livro para que surjam outros rostos para escreverem sobre as experiências do “G” de Guerra e “G” de Gadamael Porto, Guidage,  Ganturé, Guileje,  Gandembel e outos “G”. Ser chamariz.


Sobre a “Operação Bola de Fogo”, falo resumidamente
no meu Livro “O Corredor da Morte”,  nas páginas 172 e 173. Pois estive na “Operação Bola de Fogo”, de 8 a 14 de Abril de 1968, a Implantação de um aquartelamento no “corredor de Guileje” ou “corredor da morte”, Gandembel. 

Almocei, jantei e bebi cervejas, com o Furriéis Milicianos que iam abastecer-se a Gadamael Porto. Estivemos (eu também) nas descargas de todos os reabastecimentos e material destinados às forças empenhadas na operação e à montagem do novo aquartelamento, e apoiámos ao transporte dos mesmos até Guileje, com viaturas e respectivos condutores, em todas as colunas que, de Guileje, se efectuaram para Gandembel. Depois seguiu-se a Operação “Boa Farpa” a 5 e 6 Junho  (Reajustamento do dispositivo e escolta à coluna de reabastecimento no itinerário Guileje-Gandembel e inverso). Tivemos um condutor ferido e evacuado. 

A CART 1659 fez com a CCAÇ 1621, 12 colunas de reabastecimento de Abril a Julho de 1968 a Guileje. Na 11.ª coluna, efectuada em 28 de Junho, fomos vítimas de uma emboscada na via Ganturé-Guileje,  tendo o PAIGC sofrido 8 mortos confirmados e feridos. 

Na 12.ª coluna, efectuada em 26 de Julho de 1968, a CART 1659 foi vítima no rebentamento de uma mina A/C e accionada uma outra de que resultou e destruição de 1 viatura GMC e 1 ferido grave e 7 ligeiros, para as NT. Tenho fotos dele e do Cruzamento, num dia que apoiámos Guileje após um ataque do PAIGC. 

Sobre a construção da padaria em Gandembel foi o Soldado n.º 00747866, António Manuel Magalhães Mendes Cerejo, que era da minha Secção,  que colaborou no mesmo. Um bom soldado reguila, atrevido, mas um grande soldado. Conheci-o bem, ajudei um pouco para que melhorasse. Sei que foi um bom elemento que debaixo de fogo ajudou a construir o forno. 

Terminámos a Comissão em Outubro.
Tenho muito que contar, mas só pretendo dizer que sinto-me honrado por ter conhecido alguns desses homens, o sofrimento. Contarem os segundos de não escutar um simples tiro. Estive tempos infinitos no Cruzamento de Guileje para Gandembel. 

Escrevam, cada um de vós tem um pouco de história. (**)

Mário Vitorino Gaspar, 
Furriel Miliciano da CART 1659,
Gadamael Porto, de JAN67 a OUT68

__________

Notas do editor:


terça-feira, 31 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14421: Blogpoesia (409): Meu Soldado Herói (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 21 de Março de 2015:

Caros Amigos e Camaradas
Neste sábado 21 de Março – Dia Mundial da Árvore, da Floresta e Poesia.
Agora mesmo me lembrei ser o Dia Mundial da Poesia, fui à luta, sem armas, apontei para o teclado, após o almoço e disparei.
 Saiu isto…

Um abraço
Mário Vitorino Gaspar


Meu Soldado Herói

Mário Vitorino Gaspar

“O Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate".
Antero de Quental, Sonetos

O Soldado Herói renasceu,
soluços arejados, ténue nevoeiro…
Corre, voa, voa primeiro…
Sorri beijos de nudez, voa ao céu.
És poesia, flor do poeta que passa.
Meu Herói Soldado de raça.

És alma, onda e luz,
tudo que gosto e gozo,
semente do grito valoroso,
nesta terra que reduz
as vozes e sons de quem exprime.
Meu Herói! És elo bem sublime!

Neste vazio de oca solidão,
nutres pelo inimigo, tua presa,
amor e sílaba de acesa tristeza.
A guerra existe! E será razão?
Seja extinta, está na hora
de amar, amar e sem demora!

Viaja nas nuvens, voa, anda cá:
Liberdade, Paz… Chegou o dia!
Deus… Deus, bem nos olhos lia
nos céus azuis, longínquos de lá...
Soldado, o sonho da paz, espera!
Nutres paixão e amor… e venera.

Canta, sorri cheiros de flores,
dá beijos e beijos de amor tanto!
Musicalidade, lágrimas de encanto,
cheiros de rosas floridas de amores.
Colorido volume de cor pintado:
Meu heróico guerreiro Soldado...

Decretada a paz, suculenta verdade
sumarentos rios e correntes de prata.
O mundo assinará pinceladas na acta:
– Paz, amor e sonoro suco da liberdade!
O Soldado ria o coração… E apertava
nas mãos os sonhos que sonhava.

Vamos escrever voos de aves no ar,
rir e pintar pétalas entre os espaços…
Soldado bebe sumo de beijos e abraços.
Ama sempre e semeia o verbo amar,
navega nos versos de marés cantando.
Corre, salta e pelo mundo voa amando.

Soldado! A arma que rói vida. Sei…
Tira-lhe os suores, e bem arrumada.
Não esqueças, jamais a vejas humilhada,
diz perto dela: descansa sempre te amei...
Meu Soldado olha os céus lá em cima.
Paz, Amor e Liberdade nos anima.

Anos somados. Velhos como os trapos?
Sonhar amigos perdidos, gravados na memória
Será conhecida e não esquecida sua história.
Homens de honra, pais, avôs e ainda aptos.
Negaremos Praça ao Soldado Desconhecido!
Lembrado só e sempre como Soldado querido!
____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14403: Blogpoesia (407): "Saio sempre de madrugada" (J.L. Mendes Gomes)

terça-feira, 17 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14379: (Ex)citações (266): Considero, e para ser objectivo, que todos se estão borrifando para a Guiné-Bissau (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 9 de Março de 2015:

Camaradas e Amigos
Como tenho estado doente, e infelizmente continuo, e os prognósticos não são animadores, só agora li o apelo à participação na primeira "sondagem" do ano… do Blogue.
A questão é um pouco complicada: “Os afectos, e se em relação aos guineenses, levamos hoje a dianteira a russos, chineses, cubanos, suecos e outros que apoiaram o PAIGC no tempo da guerra colonial".
Vantagens? Tinha! Afectos? Sim! Namorava uma sueca loira de olhos azuis desde os 13 anos, não esqueço o nome, recordo mesmo a morada. Ingrid Margaretha Gustavsson. Amava-a e outras também, uma brasileira (Telma Valério) e outras conhecidas na nossa praça.
Pela G3, uma adoração muito quente, aliviava-se sempre de munições, fazia-lhe festas, dormia comigo e andava sempre untada; e os pedaços de capim; clips.

Considero, e para ser objectivo que todos se estão borrifando para a Guiné-Bissau, e teria sido bom que não tivessem metido o “bico” como fizeram. Levantei minas soviéticas; namorei uma sueca com quem estive para me casar; os chineses sempre estiveram presentes nas Histórias de todos os países, devo ter fotos dos meus tios na América na construção dos caminhos-de-ferro, surgirem em todas as partes; os cubanos andaram por Gadamael Porto, e causaram pânico.

Tudo de bom para os camaradas de Gandembel, que tanto sofreram, considero que deveriam aparecer mais no Blogue. Recordo que Gandembel; Gadamael; Ganturé; Guileje; Guidage e outros possuíam o “G” de guerra; os americanos se tiveram conhecimento do resultado de uma pesquisa que uma empresa portuguesa fez aos solos de Gadamael, julgo que em 1967, estava lá e comiam na Messe de Sargentos. Se a De Beers descobrir que existem diamantes na Guiné, é bem provável que apoie Guiné-Bissau. A De Beers, até possui o lema “Um diamante é para sempre”. Não vejo ninguém a interessar-se pela Guiné.

E Portugal penso que só se preocupa com os euros que “dá”, talvez também na defesa dos portugueses que têm lá o ganha-pão. Sinto tristeza em verificar nas reportagens, que nada é recuperado do nosso “império”. Em Gadamael o cais abandonado e os dois edifícios dos colonos destruídos, não recuperados. Viaturas das NT destruídas são as suas estátuas. O Homem Grande dorme e dorme e a mulher “pequena” trabalha como escrava, sempre a pilar.

Portugal não leva vantagens porque somos uma cambada de tesos, e os outros estiveram lá para nos tirarem os miolos. Os recados que nos davam: minas e até fictícios avisos escrevinhados: “Emboscada a 200 metros!

E já que falamos, por que não contar esta.
Um ou dois dias após rebentamento de uma mina no itinerário Cruzamento de Gadamael/Ganture e no troço para Sangonhá, fui informado que tenho de armadilhar uma determinada zona. Estávamos a chegar ao local, vinha na frente a picar, vimos algo de estranho no solo. Alguma da rapaziada pretendia avançar, disse que não, picámos até ao local. O que se encontrava à nossa frente? Seis a sete maços de tabaco cubano. Disse para montarem segurança, e manterem distância de mim. Não me pus a levantar os maços de tabaco cubano, piquei sempre e um por um todos tiveram o mesmo tratamento. Depois de bem picado, baixei-me e passei uma palha de capim por debaixo do primeiro maço para verificar se estava armadilhado. Levantei o maço, tinha uns cigarros. Tratei de todos de igual modo.
O que pretendia o PAIGC unicamente era dizer que tinha feito “ronco” e tínhamos caído numa mina. Os maços ao abandono só pretendiam dar esta informação. Já tinha visto que à frente esta um papel no solo. Depois de levantar um a um os maços e de os colocar no bolso (existia uma com 7 cigarros, os outros tinham 2/3/4 cigarros). A segurança estava a distância de não ser atingida caso algum engenho explosivo rebentasse. O papel tinha mais ou menos escrita a seguinte mensagem: “Furriel Mário Gaspar, estamos à tua espera na fronteira e entrega-te, nada te faremos”. Tudo com péssimo português. Guardei e cheguei a trazê-lo para casa, mas nunca mais o vi.

Quer dizer que estavam bem informados de todos os nossos passos, nunca entendi muito bem a razão de estar lá o meu nome, mas talvez o perceba, ou por outra, percebo. Nunca contei esta a ninguém… Acredito que nada me faziam e que me obrigavam a ir à rádio denunciar a minha entrega, mas caso quisesse me colocariam nos braços da minha linda sueca.

Em suma, ninguém está interessado… Afectos? E Portugal é mais por Portugal se sentir obrigado. Talvez um dia surja a América. Se pretendem minério de ferro, a olho vivo, quando estudava penso que se falava em petróleo.

Um abraço à Tabanca Grande
Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14335: (Ex)citações (265): Sondagem: Mudei muito. Quem é que não mudou? (Juvenal Amado)

domingo, 15 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14369: Meu pai, meu velho, meu camarada (43): Foi um grande homem, sempre pronto a ajudar, principalmente os pobres (Mário Vitorino Gaspar)

 


1. Em mensagem do dia 3 de Março de 2015, o nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), enviou-nos este texto de homenagem a seu Pai Joaquim Dias Gaspar.



Meu Pai, meu Velho, meu Camarada


Meu Pai

(… ) “Pai. Quero que saibas,
cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra,
luz fina a recordar-me de mim,
ténue, sombra apenas.”

José Luís Peixoto


O meu pai, Joaquim Dias Gaspar, nasceu na aldeia de Casegas, concelho da Covilhã. Era um dos nove irmãos. Família de padeiros – trabalho fulcral da família – e depois de um trabalho árduo, iam crianças ainda, a pé, meu pai e meus tios frequentemente à Covilhã, transportar grandes quantidades de carvão para ser vendido, visto terem nascido numa terreola muito pobre. Os seus habitantes viviam do trabalho na agricultura, na pastorícia, da venda do carvão, eram almocreves e trabalhavam noutros ofícios. Mas a fonte principal de trabalho vinha da emigração para outros países, procurando igualmente trabalho nas colónias portuguesas.

A partir do século XX começaram muitos dos seus habitantes a trabalhar nas Minas da Panasqueira, isto devido procura do volfrâmio, para as ligas metálicas do armamento, motivado pela 2.ª Grande Guerra Mundial, muito embora esta empresa mineira tenha iniciado a laboração em fins do século XIX.

Três dos meus tios emigraram para a América, trabalhando na construção dos caminhos-de-ferro. Aqueles que emigravam, normalmente voltavam à sua terra natal, comprando com o dinheiro amealhado, terrenos de cultivo, pinhais e construindo as suas casas no povoado. Foi o sucedido com estes meus tios. O meu pai tinha três irmãs que viveram sempre na aldeia. Os outros partiam para Lisboa e arredores, e sendo padeiro analfabeto, meu pai, ainda criança, partiu no comboio a caminho do Poço Bispo, onde trabalhava um irmão. Como era um óptimo trabalhador, esteve com outros patrões – e os tempos eram difíceis para se conseguir sobreviver sem emprego – mas nunca esteve desempregado.

Casou-se, e enviuvou, a mulher faleceu com a tuberculose, não tendo filhos da mesma.

Trabalhava no Poço de Bispo e conheceu a minha mãe, filha de um abastado comerciante, ficando a morar numa casa que dava para o apeadeiro dos Olivais, onde nasceram os meus irmãos, na freguesia de Santa Maria dos Olivais.

E um dia, o meu pai, que se encontrava na padaria onde trabalhava, foi confrontado por um cauteleiro amigo, que lhe queria vender jogo, era o único vício que tinha: comprava uma cautela por semana, e àquele cauteleiro. Este insistiu, insistiu, e o meu pai sempre a recusar.

Meu Pai, Mãe, irmãos e eu (Bebé)

E um dia, o meu pai, que se encontrava na padaria onde trabalhava, foi confrontado por um cauteleiro, que lhe queria vender jogo, era o único vício que tinha: comprava uma cautela por semana, e àquele cauteleiro. Este insistiu, insistiu, e o meu pai sempre a recusar. Vestia ainda roupa de trabalho, calça e casaco branco. Foi para casa descansar. Depois de dormir e regressar ao trabalho, surgiu o cauteleiro, que lhe diz baixinho:
- Senhor Joaquim tem a sorte grande!

O meu pai respondeu:
- Como posso ter a sorte grande se a cautela que me vendeu está branca?

O cauteleiro retorquiu:
- Então veja no seu bolso!

É quando o meu pai vê que realmente tinha uma cautela dobrada no bolso do casaco.
- Tem aí a sorte grande! – Disse o cauteleiro.

E era verdade, o meu pai ganhara o primeiro prémio da lotaria. Falou com o patrão – o Castanheira de Moura, um industrial com sucesso – e este deu-lhe sociedade. Mas, porque não recebia lucros, decidiu depois de analisar a situação, propor a venda da quota e trabalhar por conta própria. Teve de solicitar a um amigo um empréstimo monetário e tomou de trespasse uma padaria em Sintra. Não tinha clientela, mas como bom trabalhador e com a ajuda da minha mãe – que se encontrava grávida – conseguiu diminuir a dívida.

Mas estávamos em plena 2.ª Guerra Mundial e havia dificuldades em comprar farinha, que não era fornecida pelas moagens em quantidades exigidas. O meu pai comprou uma mula e uma carroça, e percorria toda a zona saloia procurando moleiros que lhe vendessem tal preciosidade.
Nasci eu.
Um outro industrial, invejando o sucesso do meu pai, fez queixa às autoridades. O meu pai tinha de comparecer em tribunal. Revoltado, faltou. Trespassou a padaria em Sintra e foi para À-dos-Loucos, no alto de Alhandra, tendo de seguida tomado de trespasse uma padaria em Alhandra, com pouca clientela.

Como a minha mãe herdara uma quinta em À-do-Barriga, concelho de Arruda dos Vinhos, dividia a sua vida, trabalhando na padaria – que progredia de dia para dia – e na quinta, onde trabalhava o resto do tempo. Era um industrial analfabeto mas em progressão, e pouco tempo lhe restava para descansar. Entretanto, eu com doze anos, ensinei-lhe a ler e a escrever, tendo feito o exame da 3.ª classe, comprou um carro e construiu uma vivenda na quinta. No dia que comprou o carro, comprou lotaria na Rua Arco da Bandeira, junto ao cinema Animatógrafo, tendo-o acompanhado. Entretanto viu-se obrigado a entrar para uma Sociedade por quotas, no Concelho de Vila Franca de Xira, depois de nós, os três filhos, nos termos recusado a fazermos a vida como industriais de panificação. A vida foi dura, para um padeiro duro, beirão e analfabeto, que teve sempre com ele uma mulher – a minha mãe, e minha heroína – que inteligente como era lutou com ele.

Na véspera da minha partida, com destino à Guiné – pelas 24 horas do dia 10 de Janeiro de 1967 – quando me despedia da minha mãe, e contra tudo o que pensava, a minha mãe manteve-se serena, e pela primeira e única vez vejo o meu pai chorar. Julgava que ele não tinha lágrimas, e que simplesmente lhe jorrava no corpo o suor, sobre as massas, quando enfiava pazadas de pão no forno. Mas o meu pai chorou, e eu como combatente… Chorei para o interior. Sofreram os 22 meses da minha comissão.

Anos depois, no Hospital de Santa Maria – após operação à próstata – perguntou-me:
- Quando estiveste na Guiné sofreste, não sofreste? - Sabes que no dia que foste com o pai comprar o carro me saiu um prémio grande na lotaria?

Calei-me. Ele foi um grande homem, sempre pronto a ajudar, principalmente os pobres que não lhe podiam pagar o pão. Um dia, meu pai pediu que ficasse na padaria. Estava no interior e vi um pobre tirar um pão de dezassete tostões do balcão e deixei que ele o levasse. Disse ao meu pai e respondeu-me:
- Era um pobre não faz mal.

A minha mãe morreu, e passado não muito tempo, meu pai foi-lhe fazer companhia.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14354: Meu pai, meu velho, meu camarada (42): 1.º Cabo Manuel de Assunção Peres (1912-1997), meu sogro, que fez tropa em Elvas... Um dia, quando teve uma curta licença para férias, foi a pé até Castro Verde (, o que em linha reta são mais de 200 km)... (José Colaço)

domingo, 1 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14310: (Ex)citações (264): Sondagem: Ao fim destes 40/50 anos, mudei muito, física e psicologicamente - Resposta múltipla (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 24 de Fevereiro de 2015:

Caros Camaradas e Amigos
Envio-lhes este texto, escrito à pressão.
Eu, trapezista Mário Vitorino Gaspar, executei este número, e sem rede, saiu um pequeno e escasso rascunho de resumo do tema solicitado.

Cumprimentos à Tabanca Grande, e um grande abraço de amizade
Mário Vitorino Gaspar


Ao fim destes 40/50 anos, mudei muito, física e psicologicamente 
(Resposta múltipla)

Jorge Rosa Pedreiro, Manuel Ferreira Jorge e eu

Passados que foram 47 anos do dia em que terminámos a Comissão, e chegámos ao cais de Alcântara desembarcando no paquete Uíge, a minha Família que era a CART 1659, separou-se. Sendo oriundos de diferentes pontos do país, só por mero acaso existia um encontro.

Recordações não faltavam, tinha memorizado cada um dos camaradas. Diariamente encontrava-me, nos dias de hoje, com eles. Vendo-lhe os rostos, esqueço os nomes. Se lembro os nomes esqueço os rostos de jovens que éramos.

No Livro “O Corredor da Morte", escrevi:
“Os intervenientes, portanto Oficiais, Sargentos e Praças não possuem rosto, nem nome, embora em alguns casos se possam reconhecer”.

Encontro-me com o Jorge em Massamá. Igualzinho ao Amigo Manuel Ferreira Jorge que bebera comigo tanta cerveja. E os belos momentos passados. O Natal festejado a 23 de Dezembro, porque a 25 íamos ser vítimas de um ataque em Gadamael Porto do PAIGC, quando passava das 3 da manhã trajados com as túnicas dos muçulmanos, e ajoelhados junto à cama do Capitão, pedimos:
– Alá, Alá… Vinho para cá!...

Quando ouvia o meu nome da boca de alguém, parecia ter visto um desconhecido.

– Mudei assim tanto? – Perguntava-me o camarada.
Ficava quedo, tristonho e envergonhado.

Quando mirava o homem que pronunciara o meu nome, perguntava:
– Conhecemo-nos?
– Eu sou!…

Abraçava-o, respondendo:
– Passou tanto tempo, mas afinal és…

Teria eu mudado? Não, decerto que não! Fulano reconheceu-me, porque não o reconheci? Eu mudara, estava mais maduro. Casara, era pai.

Psicologicamente? Não era a mesma pessoa. Diferente daquilo que fora. A guerra? Talvez tenha influenciado, sou rígido, frio por vezes… Desconfiado, muito desconfiado. Ai, ai daquele que se aproxima por detrás, pareço ter radares. Os meus olhos observam os passos perdidos na retaguarda. Reajo e parece mais querer esbofetear o agressor. Mas não é decerto um agressor. É um amigo.
– Nunca faças isso… Viste bem o que poderia dar?

Mas, outras vezes, encontros diferentes:
– Conheço-te perfeitamente, és o… Não digas nada...

Após o sinal positivo do velho amigo:
– Sabia que eras tu! Estou mais gordo. Estou muito contente por te ver. Como vai a tua vida, o que fazes?

Ficava imensamente feliz.

Tenho de confessar não ser aquele ser sonhador. Deixei de ler; de ir ao Cinema e Teatro; não escrevo uma linha. Tudo aquilo que adorava fazer, abandonei.

Preocupado com o bem-estar da Família, o trabalho é uma outra Família, mas nada que se compare à Família da Guiné: aos camaradas da Companhia e todos os amigos dos aquartelamentos que percorria operacionalmente: Guileje; Mejo; Sangonhá; Cacoca; Cameconde; Cacine e, mais tarde Gandembel.

Encontros houve, reconheci o camarada de imediato. Era uma festa, voltavam as cervejas fresquinhas, sempre fresquinhas. Depois o adeus e…

Um dia não reconheci o meu grande amigo Jorge Pedreiro, um técnico da Indústria Vidreira da Marinha Grande, no único almoço de confraternização organizado pela CART 1659, os sempre ZORBAS. “Os homens não morrem” era o lema.
Olhava para ele, que diariamente confraternizava comigo na fome, na sede, na solidão. Olhei-o. Mas quem é? Ele também não me dirigiu a palavra, possivelmente julgara que estava zangado. Zangado com o mundo sim, com ele nunca. Quando o reconheci juntei a alegria com a tristeza. Muito contente de o ver. Estava diferente, muito diferente, mas arreliado por não o reconhecer. Como podia esquecer o Pedreiro? Verdade seja dita, no dia do Lançamento do meu Livro “O Corredor da Morte”, não reconheci alguns camaradas. Custa-me ter voltado a não reconhecer Jorge Rosa Pedreiro. Pedi-lhe desculpa, não mereço perdão!
Perdoou-me, há pouco tempo falámos…
Acho que mudei. Não tenho o direito de esquecer os meus amigos.

Na minha vida, em primeiro lugar a Família, e em segundo os Amigos.

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14307: (Ex)citações (263): Eu respondi à sondagem "4. Não, não mudei muito"... Mas acho que mudei, não sei se para melhor, se para pior (Hélder Sousa, ex-fur mil, trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14302: Recordando a Operação Revistar (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 11 de Fevereiro de 2015:

Caros Camaradas:

Envio-lhes a “Operação Revistar”, quando da sua preparação, mereceu decerto a atenção devida, até pela ambição do projecto. Destruição de acampamentos; capturar o chefe Nino Vieira e apanhar armamento e documentação do PAIGC. Era obra…

Enquanto a NT, principalmente os nossos Comandantes Militares, planeavam a Acção mortífera, o “nosso deles” Serviço de Informação, funcionou ao contrário. O informador “jogava com um pau de dois bicos”, toda a Guiné sabia, e mais que eu… talvez até o nome da Operação.

Grande fracasso! E como existe medo de se contar a verdade, surge a mentira. Vivi tudo isto.
Estive dias beliscando papéis no Arquivo Histórico-Militar. Encontrava um, faltava-me outro, mas reuni estes elementos. Tenho fotocópias de tudo, poderia ter escrito mais. Gostava de saber por que razão camaradas da CCAÇ 1620 não respondem aos meus mails, e um até foi mal educado, porque nem sequer lhe tinha dito quem era já me tinha respondido que “não queria comprar nada”.

Por que razão na História da Unidade da CCAÇ 1620 não falam desta Operação?

Um abraço
Mário Vitorino Gaspar




OPERAÇÃO REVISTAR

Acabado de gozar Licença na Metrópole, em Bissau só se falava de uma Operação a efectuar no Sector 2, onde a CART 1659 estava agregado em termos operacionais por ser no caso uma Companhia Independente.

Escrevi uma carta à minha mulher que “estava já farto de Bissau, porque aqui só se fala em guerra”. Sou chamado ao Quartel-General, encontrava-me hospedado no Hotel Portugal, e lá me foi dito que tinha de partir com urgência para Gadamael. Respondi que não tinha transporte nos barcos tão depressa, e disseram para ir ao aeroporto que partiria de avioneta para Gadamael Porto. 

Pouco descansei, seguimos com um Grupo para Mejo a 30 de Novembro. A CCAÇ 1591 partiu para a Operação. O ambiente, passado pouco tempo era escaldante, tínhamos conhecimento do que se ia passando. Surgiam muitos evacuados por insolações. Analisei militarmente a situação e concluí que iríamos todos os que fazíamos a segurança a Mejo, chamados a intervir na Operação. 

Comecei por escrever cartas de despedida para os familiares, namoradas e amigos. Entreguei-as em mão a um camarada Furriel Miliciano de Mejo, pedindo-lhe que as guardasse, e no caso de não regressar que as colocasse no Correio. Conhecia bem Mejo, Quartel onde estava destacada a CCAÇ 1591, comandada pelo Capitão de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete. O então Capitão Cadete já era meu conhecido do CISMI, em Tavira. Tinha sido o meu Comandante do Pelotão da Especialidade de Armas Pesadas, Especialidade que iniciara a Agosto de 1965. Ele na altura era Alferes, a famosíssimo Alferes Cadete, tão conhecido por todos os Sargentos Milicianos.

Mas a “Operação Revistar”, e segundo o que se pode ler na História da Unidade da CART 1613, destacada em Guileje, não se desenrolou de 1 a 3 e de 6 a 7 de Dezembro de 1967, já teriam sido efectuadas outras Operações Secundárias da “Operação “Revistar”, por parte da CART 1612, com Montagem de uma base de fogos em Nhacobá (com Pelotão de Morteiros 1086, Pelotão de Milícias 137 e CCAÇ Nativos). Causaram ao IN 5 feridos confirmados. As NT sofreram 1 morto, 3 feridos graves e 6 ligeiros. 

Também existem sinais da intervenção da CCAÇ 1622, Patrulhamento e Emboscada no “Corredor de Guileje” onde as NT foram flageladas à distância. Isto no dia 27 de Novembro de 1967.

A CCAÇ 1622 viria a ser a maior vítima da “Operação Revistar”, que tinha por objectivo a Acção ofensiva em diversos acampamentos do PAIGC e o aprisionamento do chefe Nino Vieira. Participaram na “Operação Revistar”, a CCAÇ 1622; CCAÇ 1591; CCAÇ 1624 e CART 1613.

No dia 3 (de dezembro de 1967), teve a Companhia, 3 feridos (um Oficial, um Sargento e um Soldado; 18 evacuados por esgotamento físico e dois por doença).

No dia 6, repete-se a Operação, e para além das Companhias que tinham estado na 1.ª Acção no terreno, foram reforçados com a minha CART 1659 e CCAÇ 1620.

Na História da Unidade da CCAÇ 1620, nem uma linha sobre a “Operação Revistar”, entretanto esteve lá.

Na História da Unidade da CART 1659 consta:

“De 1 a 3 e de 6 e 7 de Dezembro de 1967, feita a Operação Revistar, uma Acção ofensiva na Península de Salancaur, tendo as forças da CART 1659 colaborado numa primeira fase, montando segurança ao aquartelamento de Mejo. Numa segunda fase, participaram da operação juntamente com as forças da CART 1613 e CCAÇ 1591, 1622 e 1624. Os objectivos previstos não foram atingidos devido ao esgotamento físico das nossas tropas”.

Na História da Unidade da CCAÇ 1591, repetem-se as dificuldades que a NT teve ao percorrer matas fechadas, calor intenso o que provocou o agravamento do estado físico das NT. Termina dizendo que a Companhia acusou, notoriamente, as 5 noites ao relento, dormindo no chão e a falta de alimentação capaz, antes de iniciar a Operação.

Na História da Unidade da CCAÇ 1624, repete-se o mesmo, só com mais 15 evacuações (1 Oficial e 1 Sargento), não existindo condições para se concluir a Operação.

No dia 7 de Dezembro encontrei-me com o Comandante da “Operação Revistar”, o Capitão Luís Carlos Loureiro Cadete. Estranho,  por nunca nos termos encontrado, quando ia tantas vezes a Mejo e a sua CCAÇ 1591 as visitas que fazia a Gadamael Porto. Olhou-me, e reconheceu-me. Mesmo junto da bolanha, com a zona a atingir escondida, faziam-se evacuações. O helicóptero ali perto, e foi ele que iniciou a conversa. Perguntou-me o que pensava da Operação.

- Quem está a sobrevoar sobre nós a todo o momento, e que ao mesmo tempo nos localiza? -  perguntei eu.

Respondeu que era o Comandante da Operação. Falei-lhe que toda a Guiné, de certeza sabia daquela Operação, e qual a razão do Comandante da Operação não pisar terra e ver o estado de espírito das NT.. Com certeza que o PAIGC se juntara todo na Península de Salancaur. Respondeu-me que, segundo informações recolhidas,  o PAIGC tinha 20 Canhões S/R, apontados para a bolanha, bolanha essa por onde entraríamos.

Segundo o que se dizia, Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos actuariam do lado oposto da bolanha, depois de nós iniciarmos o avanço. Logo após os primeiros passos cairiam sobre nós e poucas possibilidades de sobreviver. O Capitão chamou o Comandante a terra, saiu de um helicóptero com um camuflado acabado de sair do Casão, muito gordo.

Passado pouco tempo dão-nos ordens para irmos para Mejo. Caminhada rápida. Lembro-me que nem um gole de água bebera do cantil. Perguntei a todos se tinham sede. Ninguém quis. A dentadinha na palha verde do capim era eficaz, molhava os lábios. Rindo, depois de ouvir de todos que não queriam água, despejei o cantil sobre a cabeça. Chegado a Mejo, pedi as cartas ao Furriel Miliciano, meu camarada e rasguei- as. Bebi a minha dose de cerveja. Seguimos de imediato para Gadamael.

Não se entende a razão de logo no dia seguinte o Capitão de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete foi em coluna auto para Cacine, e no dia 10 embarcou com destino a Buba, via Bolama. Buba (curiosamente era a Sede do Sector 2 em termos operacionais). Foi afastado devido ao fracasso da Operação Revistar? Não sou capaz de encontrar uma outra resposta. Não conheço nenhuma rendição nestes termos.

Sobre a actividade da Força Aérea nada é focado, mas que a aviação esteve lá não me podem negar. Dias antes já actuava, e em força, bombardeando constantemente a Península de Salancaur.

Em relação aos motivos que levaram que a Operação não fosse concluída, todos falam em desgastes nas NT.

Estavam Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos do lado contrário da Bolanha? E a aviação?

Uma Grande Operação falhada. Quem foram os culpados?

Estes também foram para mim dias horríveis, 7 dias consecutivos que não esqueço.

Nota: - Pena que o Blogue não tenha camaradas destas Companhias. Ou tem? Colaborem para tentarmos encontrar uma resposta. Assim se pode colocar a verdade na história da Guerra Colonial.

Mário Vitorino Gaspar