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sábado, 13 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21896: Os nossos seres, saberes e lazeres (437): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (6): A despedida de Óbidos, regresso a Lisboa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Diz o anexim que o que é bom nem sempre dura, ensina a experiência que assim é, felizmente que regressámos desta viagem com vontade de a continuar, talvez noutra estação do ano, por aqui andámos com a prudência que exigia o tempo de pandemia, guardando imagens que vão do castelo às igrejas, das livrarias aos museus, cirandou-se pelos arredores, desde as Caldas da Rainha até Peniche, contemplou-se o mar, aqui por definição com densa neblina e de ondas bravias, a intimidar os banhistas. Assentou-se em grupo que há muita coisa que merece ser revista, talvez com outra luz, põe-se a hipótese de se regressar na primavera e por ali andar, entre o Santuário do Senhor Jesus da Pedra, um dos ícones barrocos de Óbidos, percorrer as muralhas, já que a cerca é tão bela e dá um pleno desfrute dos telhados do casario, visitar a pousada e as livrarias, está prometido e por isso se sugere a quem nos lê e que não conheça devidamente este sítio que o ponha na agenda, ele é merecedor da visita de todos nós.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (6):
A despedida de Óbidos, regresso a Lisboa


Mário Beja Santos

É nosso desejo aproveitar o princípio da tarde fazendo um périplo rápido por algumas das riquezas que mais nos impressionaram em igrejas, livrarias, museus, o castelo e a sua espantosa cerca. Fomos diretos ao Museu Municipal tentar ver com outros olhos a bela pintura de Josefa d’Óbidos, mas não só, o museu conserva no seu acervo outras preciosidades. Coisa curiosa, terá sido outrora este espaço Paço do Concelho como se lê no livro Linha do Oeste: “De pequena casa, onde apenas cabiam duas arcas, uma mesa e um banco, este local de audiências dos juízes medievais da vila e de reunião da vereação substituído nas assembleias magnas pelo próprio adro da igreja que lhe ficava em frente, veio a dar lugar no século XVI a um edifício de maiores dimensões e de maior dignidade arquitectónica localizado, ao que tudo indica, no espaço hoje preenchido pelo Museu de Óbidos”. São alguns dos vestígios artísticos do seu passado fluorescente que aqui se conservam. Falando da arte da pintura entre os séculos XVI e XVII, Vítor Serrão, o indiscutível especialista no Maneirismo, recorda que o conjunto de pintura dos séculos XVI e XVII se distribui por diversas igrejas, conventos, palácios, museus e demais coleções públicas e privadas da região estremenha definida pelos concelhos Caldas da Rainha, Óbidos, Alcobaça e Peniche, constitui sem dúvida (em termos plásticos, documentais, iconográficos e históricos, pela diversidade de testemunhos, estilos e épocas) um dos mais interessantes do nosso país. Não se pode cingir toda esta arte a Josefa d’Óbidos, há Diogo Teixeira, Belchior de Matos e mesmo Baltazar Gomes Figueira, não podendo ser esquecido André Reinoso. Vamos ver algumas dessas preciosidades.
Vale a pena dar de novo a palavra a Vítor Serrão: “A paleta de Josefa é sempre peculiar, saborosa, inventiva e acesa de sensibilidade: o seu cromatismo é cálido, sensual e luminoso, o claro-escuro é assaz correto na transposição de zonas de sombra e nas gradações de luz esbatida, e as ingenuidades de debuxo das figuras dilui-se no preciosismo da decoração garrida e barroca com que se envolve”. Reconheça-se como estas naturezas-mortas são primorosas, não são?
Já se disse que este museu foi anteriormente a residência do pintor Eduardo Malta, um retratista muito procurado no seu tempo. Aqui se mostra o retrato da sua mulher, guardo dele a recordação de um grande desenhador, como se sabe os artistas preferem o quadro a óleo por razões financeiras, muitos deles não escondem que a sua paixão passa pelo desenho. Malta aceitou encomendas oficiais, uma delas foi a Exposição Colonial do Porto de 1934. Aqui se mostram dois desenhos de traço inatacável, consegue deslumbrar-nos pela captação da pose, a dimensão do porte, tudo com pequenos recursos de um lápis que viaja a dar formas ou a sublinhar aqueles aspetos que ele considera que devem ser o foco da nossa atenção, ainda hoje contemplo com prazer desenhos como estes.
A mulher de Eduardo Malta
Régulo Mamadu Sissé, desenho de Eduardo Malta
Abdulai Sissé, filho do régulo, desenho de Eduardo Malta

Há no centro da vila o Museu Abílio de Mattos e Silva, dele já falámos, foi um cenógrafo muito procurado e pintor atraído pela escola modernista. Há obras suas no Museu Municipal de Óbidos, vila que ele tanto apreciava, fez uma doação dos seus trabalhos, merecem ser vistos.
Quadro de Abílio Mattos e Silva

Saímos do museu e vamos cirandar pelo castelo e cerca, é impressionante pelas suas linhas majestosas, lembremo-nos que por aqui andaram romanos e que o primeiro rei de Portugal apostou em Óbidos como lugar defensivo, exigências da Reconquista, a mourama costumava fazer razias, havia que lhes fazer frente, passou o perigo e ficou o testemunho eloquente desses tempos agitados, a vila está pejada de vestígios de tão importante passado, e não deixou de nos sensibilizar aquele símbolo gravado à porta de uma igreja que não soubemos interpretar mas não deve estar ali por acaso, Óbidos sofreu imenso com o terramoto de 1755, houve muitíssima reconstrução e aproveitou-se para novos embelezamentos, as fachadas das igrejas também foram revistas, de onde este símbolo deve ter importante significado, senão teria sido apagado nos trabalhos de restauro.
E pronto, disse-se adeus a Óbidos, há muito para recordar e todos apostam num regresso, quanto mais cedo melhor. Feita a despedida, pesarosa, segue-se para Peniche, vamos amesendar. Nada de perdas de tempo, todos clamam por uma boa pratada de peixe, aqui o mar é fértil em substância dessa natureza. E é a caminho de uma casa de pasto já conhecida que se olha para uma parede, digamos que na correnteza de um conjunto de prédios de arquitetura desenxabida se encontra este vestígio do passado, o posto de despacho da Alfândega de Lisboa, com as armas reais, é pena que num contexto de prédio expectante, oxalá na pior das hipóteses estas pedras de um tempo impressivo para Peniche vão parar a um museu. É coisa estranha, mas acontece com frequência, acabarmos uma viagem a deplorar o desprezo dos homens pelos importantes símbolos de um passado que nos marcam a um lugar. Terminou a viagem mas aqui se deixa um grito à navegação.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21859: Os nossos seres, saberes e lazeres (436): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (5): A despedida de Óbidos, em breve regresso (Mário Beja Santos)

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21859: Os nossos seres, saberes e lazeres (436): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (5): A despedida de Óbidos, em breve regresso (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
É o princípio do adeus temporário a Óbidos, a tal vila de grandioso acervo e muita história que deve ser visitada com um guião para não se perderem contemplações tão estimáveis como as torres medievais de D. Dinis e D. Fernando, os seus templos religiosos onde pontificam obras de Josefa d'Óbidos, há que visitar o palácio quinhentista de D. João de Noronha, transformado em pousada, percorrer a cerca, entrar nos museus e nas livrarias, sentir que até ao século XVI esta vila de Óbidos teve um desempenho determinante na região até que a rainha D. Leonor fundou o Hospital Termal das Caldas da Rainha. E poder usufruir dos diversos movimentos artísticos posteriores, caso do Renascimento e do Maneirismo, e aí o visitante anda entre os templos religiosos e o Museu Municipal que é o que de seguida vamos fazer antes de aqui partir com imensa vontade de regressar.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (5):
A despedida de Óbidos, em breve regresso


Mário Beja Santos

Está quase na hora de partir deste povoado que ainda guarda vestígios da antiga Medina, onde é marcante a presença do gótico, onde há muito Renascimento e Barroco, impressionantes livrarias, como a do Mercado Biológico, olha-se para um lado e temos o casario adossado à muralha, as igrejas esperam-nos com novas surpresas, há sempre elementos para nos surpreender no museu municipal, ninguém fica insensível à porta de Nossa Senhora da Graça. Temos o castelo e as torres medievais, a incontornável Rua Direita, quem tem tempo e pernas pode ir visitar a igreja medieval de Nossa Senhora do Carmo, fora das muralhas, a Oeste, o mesmo se dirá do Aqueduto Rainha Dona Catarina, da Torre do Facho, contemplar o edifício provável do que terá sido a judiaria, e temos finalmente o Paço Quinhentista. É a omnipresença do passado com a devassa permanente das atrações turísticas. Vila de grande influência, destronada pelas Caldas da Rainha. Percorrem-se as muralhas, e há aquelas fendas que mostram lá em baixo a Várzea estuante, os livros recomendam um passeio no interior da Cerca Velha, estamos agora na Rua Direita, há várias portas, a Porta da Telhada, a Porta do Vale, a Porta da Vila, a Porta da Cerca, a Porta da Traição. Prosseguimos desinteressados de nomes, o que queremos é panorâmica desafogada, talvez bafejados pela sorte captou-se esta primeira imagem e não se esconde regozijo, para todos os efeitos é uma imagem que iremos recordar deste encontro feliz com a história e a cultura de Óbidos.
A princezinha que nos acompanha, a minha adorada Benedita, a neta que testemunha o meu futuro, avisou que se quer expor numa grande angular, também para um dia recordar como estava feliz, mesmo sem ter subido à Torre de Menagem, mesmo sem ter dado um grande apreço aos acervos das igrejas de Óbidos, estava a dar-se muito bem com a viagem, o nome do rei D. Afonso Henriques não lhe era estranho e apreciava aquele entusiasmo do avô com os quadros da Josefa d’Óbidos e até não desgostou do túmulo de D. João de Noronha, havia aquela promessa não concretizada de à tarde haver um bom banho nas praias do Baleal ou na Lagoa de Óbidos, correu tudo ao contrário, a água bem fria e nevoeiros caprichosos. Mas nada disso tirou a boa disposição à Benedita, radiante com a sua boa mesa e a variedade de passeios, entre a serra e o mar. Daí não ser de estranhar ela estar a sorrir-nos como dona do mundo, e pronta para continuar o passeio, aprendeu a lição que a viagem nunca acaba desde que o viajante não desista.
Não há só um museu em Óbidos, Abílio Mattos Silva, artista plástico, cenógrafo de nomeada (1908-1985) era do Sardoal e de Óbidos por adoção, fez de tudo um pouco na vida, chegou mesmo a ser Diretor de Cena do Teatro Nacional São Carlos, distinguiu-se na Pintura e deixou cenários impressionantes, este está patente no museu que dele tem o seu nome, ali mesmo no centro histórico. No Museu Municipal também goza de digno acolhimento.
A região de Óbidos e das Caldas goza da fama e proveito de ter azulejaria de renome, ninguém resiste à decoração barroca da passagem central da Porta da Vila, invulgar em todos os sentidos. Envolvendo um oratório, temos, como era da praxe, alegorias à Paixão de Cristo, tudo admiravelmente integrado no suporte arquitetónico. O revestimento prolonga-se pelas paredes laterais, a obra é situável cerca de 1740, é associada ao pintor Valentim de Almeida. No livro Linha do Oeste, já aqui referido, escreve-se: “A decoração desta porta de Óbidos talvez esteja relacionada com as várias passagens de D. João V pelo local, para usufruir dos banhos das Caldas após o ataque de paralisia que sofreu, em maio de 1742, fazendo grandes ofertas e promovendo obras neste local”. O que interessa é a harmonia do conjunto e o deslumbramento que provoca cada um destes painéis, é a satisfação de todas estas partes somarem um todo.
Seguem-se imagens diversificadas, só possíveis de tomar em diferentes pontos da muralha do castelo.
Não foi ao acaso que a UNESCO atribuiu a Óbidos o título de Cidade da Literatura. Aqui se concentram livrarias de impressionante dimensão, é o caso da livraria da Adega ou a do Mercado Biológico, unidades de cultura de dimensão impressionante, há mesmo um livreiro que vende antiguidades e livros antigos e tem tipografia para edições quase personalizadas. Com regularidade, aqui decorrem encontros como aquele em que esteve presente Luís Sepúlveda, vítima mortal do COVID-19. Quem visita Óbidos não pode deixar de contemplar os livros transformados em obras-de-arte, como se fossem as mais criativas instalações de papel.
E volta-se ao bulício da Rua Direita, fixa-se a atenção numa buganvília, um vermelho de sangue a relevar do branco imaculado, com enfeites de vária ordem, chamariz para o turista, olha-se para o relógio, o grupo está de acordo, é a última visita ao Museu Municipal e depois ala morena que se faz tarde, estão todos com vontade de um bom peixe em Peniche, ainda há paragens pelo caminho, até Lisboa.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21826: Os nossos seres, saberes e lazeres (435): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (4): Regresso a Óbidos, o desfrute de uma vila artística, agradecimentos a Dona Josefa (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)



Guiné > Região de Tombali > CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74) > Nhacobá > s/d > Furriéis Azambuja Martins e [Joaquim]Costa

Foto (e legenda): © Vasco da Gama (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã"  (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar (*):



Date: segunda, 1/02/2021 à(s) 15:50
Subject: O meu primeiro poste

Meu caro Luís, camaradas e amigos, protegidos por este enorme "Poilão", que é este (nosso ) Blogue de Luís Graça & Camaradas da Guiné (*):

Com a devida permissão, dada pelo Luís, para me encostar a todos vós debaixo deste magnífico poilão, aqui estou, pronto para acrescentar mais uma pequena gota neste oceano de gente "grande" e boa, que por força inexorável da lei da vida vai minguando dia após dia.

Já agora, permitam que me faça acompanhar pelo meu irmão Manuel (infelizmente já falecido), mobilizado para Guiné no início dos anos 60 e também do meu filho Tiago, engenheiro civil, que esteve dois anos na zona do Cacheu na construção de uma ponte sobre o rio com o mesmo nome mais precisamente em S. Vicente (ponte Europa, mais conhecida por Ponte de S. Vicente).

O meu filho e mais 4 colegas da empresa viveram momentos dramáticos enquanto jantavam num restaurante (A Padeira) junto ao local onde foi assassinado Nino Vieira (na altura presidente da da Guiné-Bissau) sentido muito perto o cantar contínuo das Kalachnikov e o rebentar das granadas dos RPG. Foi uma fuga (sem pagar a conta) com a tensão nos limites conduzidos por um trabalhador local, subornando todas as barreiras de militares até chegar aos estaleiros da empresa em S. Vicente. Ou seja: nada mudou desde o meu tempo de Guiné…

O Camarada da nossa tabanca, Hélder Sousa, que amavelmente fez um comentário na minha apresentação (*), que muito agradeço, já fez aqui referência a uma página de internete construída pelo Engenheiro Geógrafo Pedro Moço, amigo e colega de trabalho do meu filho, que conta ao pormenor toda a história da construção da ponte. Dada a qualidade da mesma, sugiro que a revisitem (**).

A seu tempo utilizarei um poste sobre a construção desta ponte.

Aproveito também para agradecer o comentário do meu vizinho, Gil Moutinho, e proprietário do excelente restaurante, Choupal dos Melros, onde já várias vezes jantei muito bem e comemorei com amigos os meus anos.

Embora as nossas casas não distem mais de 500 metros, só o Blogue nos deu a conhecer. Já tive a oportunidade de ver parte do Museu da Tabanca dos Melros, ainda no início, num jantar onde perguntei por ti mas nesse dia não estavas. Obrigado pelo convite e obviamente que responderei à chamada.

Um abraço ao autarca e amigo de Mampatá [, o António Carvalho, o Carvalho de Mampatá], que muitas vezes me convidou para os almoços da Tabanca, creio que de Matosinhos, mas que por vários motivos não pude aceitar.

Aos dois um grande abraço

Como já referi na minha apresentação (*), fiz parte da companhia de intervenção, a CCAV 8351 (Os Tigres do Cumbijã), formada no Regimento de Cavalaria n.º 3 de Estremoz, com comissão na Guiné em Aldeia Formosa e, mais particularmente, e proficuamente, em Cumbijã.

Com a minha passagem à aposentação, na tentativa de me manter ativo, para além de ler parte dos livros amontoadas e da bricolage, comecei a rabiscar um conjunto de histórias, do meu tempo de infância e da vida militar.

Tendo em conta os interesses e objeto do blogue, vou partilhar convosco (se os editores do blogue assim lhe reconhecerem qualidade bastante para aqui ser editado), para já, as minhas vivências desde o dia conturbado da chegada às Caldas da Rainha até ao regresso sui generis da Guiné.

Grande parte da história da companhia já aqui foi superiormente dada a conhecer a todos vós pelo ex capitão da companhia Vasco da Gama (a quem aproveito para mandar um abraço – não cotoveladas,  como agora é uso – assim como aos meus camaradas e amigos da companhia).

A minha narrativa sobre os acontecimentos, embora os factos sejam os mesmos, será obviamente diferente já que as vivi, naturalmente, de forma diferente.

Meu caro Luís, envio para ti este meu primeiro poste, contudo, se outra forma ou meio estiver instituído, agradecia que me desses a conhecer,

Bem hajam e saúde para todos.


2. Comecemos então pelo princípio: Caldas da Rainha e Tavira [, seguindo o índice do livro, em preparação, "Paz e Guerra: de pequeno ao furriel Pequenina"]


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte I
 

[9] Caldas da Rainha: A chegada às portas da tropa – um fardo pesado

Depois de ter ido às sortes e não me ter safado, o meu irmão Manuel, o primeiro a ir para a tropa na família com uma mobilização atribulada para a Guiné (1) (o segundo foi o João com comissão em Angola) (2), passou o tempo a dar-me conselhos sobre como me devia comportar nas lides dos quartéis, não obstante o tempo da chamada para a incorporação ainda vir longe.

Com a chegada da guia de marcha para as Caldas da Rainha os conselhos passaram a ser diários: "Respeita os graduados, o cabelo sempre curto, as botas sempre bem engraxadas, atenção aos amarelos... E a mais importante: nunca te ofereças como voluntário para nada". (Mais tarde constatei que este último conselho me livrou de algumas tarefas complicadas, nomeadamente descascar batatas toda a noite ou despejar fossas.)

Chegado o dia da partida, já devidamente preparado pelo Manel para enfrentar a vida militar, de mala feita e já fechada, chega à minha beira, o meu "padrinho de guerra", com 4 garrafas de vinho verde branco da casta Alvarinho e diz-me: "Abre lá o saco e leva estas quatro garrafinhas de vinho verde que te vão aligeirar a dureza da instrução".... "Como assim?",  digo eu. "Isto é assim", diz ele: "Logo no primeiro dia, com algum recato, ofereces 2 garrafinhas ao alferes e uma a cada cabo miliciano: funcionou comigo, contigo também não vai falhar!"...

O que logo me passou pela cabeça é que nunca teria a coragem de fazer tal coisa, para além de achar aquilo um absurdo, mas vi-o tão entusiasmado que pensei: "Ok, levo o material e encontrarei alguns momentos para confraternizar com os novos amigos de armas".

O meu "padrinho de guerra" foi comigo até ao comboio e ajudou-me a aconchegar a mala de modo a proteger as quatro "granadas".

Em Campanhã, arrastei a mala para fora do comboio e apercebo-me de um razoável grupo de mancebos com o cabelo rapado e com o mesmo ar assustado como o meu. Ao entrar para o novo comboio tive de pedir ajuda e logo surgiram as primeiras "bocas": "Já levas aí material de guerra?".. "São só quatro granadas" disse eu.

Em Alfarelos, onde a linha do Oeste desagua na linha do Norte, a estação ficou completamente inundada de mancebos vindos do Norte e do Centro do país,  mais parecendo um grande grupo de jovens em Interrail

A tarefa mais complicada foi carregar a mala da estação até ao quartel, mas com a ajuda dos amigos da ocasião lá se venceu o caminho.

Chegados à porta do quartel, deparo-me com uma enorme fila de pessoal para entrar. Pelos vistos, e para mal dos meus pecados, havia soldados a revistar minuciosamente todas as malas. Comecei a ver a minha vida a andar para trás. A primeira coisa que me ocorreu foi livrar-me daquele material perigoso, mas com tanta gente ao meu lado tal não era possível, pelo que tentei trazer a roupa toda para a parte de cima da mala tentando camuflar as "botijas" e seja o que Deus quiser.

Chegada a minha vez, com as mãos a tremer e já a transpirar, não obstante o frio que se fazia sentir, o nosso "pronto" começa a fazer a sua minuciosa revista, ficando estupefacto quando se depara com as quatro "granadas". 

Manda-me entrar para a guarita e com um ar sério vai dizendo que estou metido num grande sarilho: é crime levar bebidas alcoólicas para a caserna. Manda-me aguardar um pouco afirmando com algum dramatismo: "Vou chamar o nosso cabo já que só ele pode tratar deste caso". 

Chamou o cabo, mostrando um semblante de quem está a tentar salvar alguém da forca e disse-lhe: "Vê lá o que podes fazer pelo rapaz, não queremos que vá, logo no primeiro dia, dormir na cadeia do quartel!"... 

O nosso cabo olha para mim, fita as garrafas enquanto palita os dentes com a língua e "bota" a sua sentença: 

 "Se o oficial dia encontra aqui estas garrafas estamos todos tramados. Vou ficar com o seu nome, tentar esconder este material e, se tudo correr bem, está safo, se isto for descoberto está com um grande problema". 

A minha chegada às portas da tropa não podia ter começado melhor! Mais parecia a chegada às portas da guerra do Raul Solnado. Já me estava a sentir a pão e água na prisão do quartel!

Com as pernas a cederem e cheio de suores frios lá disse ao homem com a voz embargada: "Obrigado nosso cabo, ficar-lhe-ei eternamente agradecido"... mas receando o pior.

Passados uns dias (vividos com alguma ansiedade pelo desfecho do incidente das garrafas) tenho em cima da minha cama, depois de um dia duro de instrução, uma caixa com as quatro garrafas vazias e com a seguinte mensagem: 

"Podes ficar descansado. Assunto encerrado. Aqui estão as quatro 'granadas' já sem espoleta" (espoleta é um mecanismo que provoca a explosão da granada sem a qual a mesma é praticamente inofensiva)... "Sempre às ordens. Aguardamos, impacientes, a nova remessa"…
 
 _________

Notas do autor:

(1) Chegou a Bissau com uma grande pneumonia contraída durante a viagem, tendo quase de seguida regressado ao continente, com passagem à reserva, sem nunca ter visto Bissau.

(2) A sua comissão em Angola, como Furriel Miliciano, foram 2 anos de férias, numa zona junto a Luanda, onde nunca se sentiu a guerra e onde comprou carro e alugou casa…

No regresso embarcou ele (juntamente com a sua companhia) e o seu carro, um Ford Taunos, uma grande e espetacular "limousine" à americana dos anos 50 (a circular ainda hoje nas ruas de Havana), que fez parar a aldeia à sua chegada vencendo os caminhos, só frequentados até então por carros de bois, para chegar a casa...



Tavira > CISMI > Julho de 1968 > A chegada ao quartel da Atalaia dos novos instruendos do 1º Ciclo do CSM, vindos de todo o país. Fila do pessoal para receber fardamento, Foto do Fernando Hipólito, gentilmente cedida ao César Dias e ao nosso blogue.

Esta cena podia passar-se também à porta do RI 5, nas Caldas da Rainha. Esta rapaziada, chamada pela Pátria para cumprir o serviço militar obrigatório (, em tempo de guerra...), em finais da década de 1960 já tem um outro "look", a começar pelo vestuário... Tem outras habilitações literárias, outra  postura...

Presume-se que as belas cabeleiras, à moda dos "Beatles", já tinham ficado ingloriamente no chão do barbearia lá da terra ou de Tavira... Muitos fotam tosquiados à máquina zero, suprema humilhação para um jovem da época!... Não, já não é a mesma malta que parte, de caqui amarelo e mauser, para defender as Índias & as Angolas, uns anos antes ... O velho Portugal onde tínhamos nascido, estava a mudar, lenta mas inexoravelmente. E a nossa geração já não estava disposta a suportar os mesmos sacrifícios dos seus pais.

Foto (e legenda). © Fernando Hipólito (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: logue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[10] Tavira: com amor, ódio… e trampa


Já na altura, a tropa estava muito à frente! – eram distribuídas as especialidades de uma forma cientificamente infalível, através de testes ditos psicotécnicos que na altura, creio eu, só o exército utilizava.

Era recorrente ouvirmos que escriturários iam para mecânicos, mecânicos para escriturários, enfermeiros para transmissões e técnicos de rádio para enfermeiros...

Dado este rigor científico, tinha a expectativa, dada a frequência do 3.º ano em engenharia eletromecânica (Curso de Eletrotecnia e máquinas), que me sairia em sortes, no mínimo, a especialidade de transmissões!

Enfim: Armas Pesadas!... e "ala" para Tavira.

Só mais tarde, depois de uma análise mais fina aos psicotécnicos e ao constatar que a maioria dos meus camaradas do pelotão de armas pesadas tinham, alguma, formação em engenharia mecânica e eram todos "roda 26", (todos com pouco mais que metro e meio de altura), compreendi a justeza e o valor científico dos mesmos. Montar e desmontar os canhões sem recuo e as metralhadoras pesadas só alguém com alguns conhecimentos de mecânica.

Já a "roda 26" era muito importante (como é que eu não pensei nisso?) para se poder operar dentro do espaldão, de pé,  continuando protegidos já que não atingíamos a altura dos bidões de proteção! A tropa estava mesmo muito à frente!

Gostei, e gosto, muito da cidade, das praias, das igrejas, das gentes, das esplanadas, das chaminés. Detestei a instrução de "mata cavalo", não pela dureza, nem pelo rigor da disciplina militar, mas pela brutalidade gratuita de alguns graduados já com várias comissões no então ultramar.

Gostei do espírito de grupo e camaradagem do pessoal daquela incorporação.

Estes 3 meses em Tavira escancararam-me a porta para o novo mundo, já ligeiramente entreaberta no ano do curso antes da incorporação (tinha o "Canto e as Armas" de Manuel Alegre e uma cassete com os Vampiros e o Menino do Bairro Negro do Zeca Afonso e já me sentia um revolucionário!), fazendo de mim um cidadão mais informado e consequentemente (e conscientemente) mais disponível para abraçar causas, que no contexto da altura só podiam ser as da liberdade.

Foi uma verdadeira escola de vida. Não pela instrução, contraproducente, mas pela densidade cultural e política de alguns dos intervenientes nas tertúlias e reuniões, supostamente, clandestinas.

Discutia-se e questionava-se a guerra, a ditadura, o embrutecimento da instrução militar, as péssimas condições das casernas e a péssima alimentação e também... futebol (aqui as divergências eram claras)… e as lindas algarvias (aqui havia mais consenso), etc.

Nesses três meses fizeram-se dois levantamentos de rancho (decididas em reuniões clandestinas restritas e com a informação a circular de boca em boca). Nenhum instruendo cedeu. A todos estes acontecimentos não é alheio o facto de fazerem parte desta incorporação dois filhos de altos dirigentes do MDP/CDE, que obviamente eram os líderes e promotores das tertúlias e reuniões clandestinas e de quem perdemos o rasto dias antes do fim da especialidade...

Na altura o então capitão Raúl Folques (militar altamente prestigiado) comandava, se a memória não me falha, uma das companhias de atiradores. A sua presença impunha respeito (na altura mais medo). Militar irascível, mas com comportamentos fora dos cânones militares ao terminar um levantamento de rancho, dando voz aos instruendos, deitando para o lixo toda uma refeição e ter mandado preparar uma nova, de qualidade aceitável, voltando, contudo, tudo ao normal nas refeições seguintes.

Toda a instrução era estúpida, contraproducente e desajustada tendo em vista o objetivo principal que era a criação de um corpo de militares preparados física, psíquica e tecnicamente para uma guerra de guerrilha num ambiente hostil e completamente desconhecido.

O objetivo principal da instrução foi sempre e só a humilhação pessoal:

  • Rastejar do quartel até ao local de instrução, com paragens para ler o RDM (Regulamento de Disciplina Militar) com um pé do instrutor em cima das nossas costas;
  • "Chafurdar" nas salinas abandonadas, de águas podres, pelo simples prazer de humilhar;
  • Fazer a entrega da correspondência, em formatura na parada, fazendo comentários brejeiros e mesmo obscenos sobre o que seria o conteúdos das mesmas enxovalhando todo aquele que recebia uma carta perfumada ou com "coraçõezinhos"...

Chegou-se ao ponto de se abrir uma carta (com muitos coraçõezinhos) e ler o conteúdo da mesma para todo o pelotão. Tal só aconteceu uma vez dado a ameaça, levada muito a sério, que se voltasse a fazer o mesmo o autor levaria um tiro.

Bastou uma semana passada em Tavira para compreender porque toda a gente chamava Hotel das Caldas ao quartel das Caldas da Rainha...

Tendo em conta as experiências do dia a dia e as histórias contadas por militares que por ali tinham passado, a semana mais temida era a da "nomadização". Éramos lançados, em pequenos grupos, na serra do Caldeirão, com ração de combate apenas para um dia, com um conjunto de pontos onde éramos obrigados a passar, regressando ao pondo de partido, no 4.º dia, onde éramos recolhidos.

Contra todas as expectativas foram os melhores dias que passei em Tavira. Tinha eu a ideia que estando nós no Algarve, supostamente uma das regiões mais desenvolvidas do país por força do turismo, ali já massificado, e o contacto com grande número de estrangeiros, que todo o conforto aqui seria possível.

Eu que vinha duma pequena aldeia do Minho, fiquei boquiaberto com o isolamento daqueles pequenos povoados, dispersos, sem luz elétrica, sem vias de comunicação, só trilhos por onde passavam, com dificuldade, animais.

A nossa chegada a estes locais era como a chegada de extras terrestres. Fomos recebidos por estas gentes como família e como familiares comemos à sua mesa. Nos quatro dias sempre jantamos à mesa, em casas diferentes, e dormimos: uma noite num curral dos animais, outra num silo e a terceira noite numa destilação de aguardente de medronho onde acordamos completamente tontos (embriagados) dado a quantidade de vapores etílicos no ar.

Numa das casas uma mulher, já nos seus 60 anos, confidenciou-nos que não obstante ser Algarvia, ainda não tinha visto o mar.

Contudo havia uma pequena escola primária, com meia dúzia de crianças, onde falamos com a professora, ainda jovem, com o namorado na tropa nas Caldas da Rainha, pelo que, não só, mas também, pensando nele, fez questão de partilhar connosco o seu lanche que os habitantes todos os dias lhe preparavam.

Durante a agradável conversa, com os alunos maravilhados com o generoso intervalo, contou-nos a sua aventura diária para chegar à escola. Utilizava 3 meios de transporte: autocarro, bicicleta e um burro nos últimos metros mais acidentados. Despedimo-nos com votos para que o seu namorado jamais viesse parar a Tavira...

Mas, o momento marcante da instrução (para além do tradicional mergulho nas velhas salinas de água podre, a semana de campo e a semana de nomadização) era o dia do fogo real, feito para a ilha de Tavira.

Com a especialidade de armas pesadas tínhamos de manobrar, de olhos fechados, as seguintes armas:

  • canhões sem recuo (cujo disparo tinha de ser feito com o cotovelo, com as mãos a tapar os ouvidos e a boca bem aberta para não darmos cabo dos tímpanos);
  • morteiro 120,
  • metralhadoras pesadas Browning e Breda.

Tudo isto a disparar para a ilha de Tavira metia medo ao susto. E assim foi...

O responsável pela carreira de tiro era um Tenente que tinha chegado recentemente da Guiné (um dos homens mais temidos no quartel a par do capitão Folques), completamente "cacimbado".

No meu pelotão tinhamos um excelente rapaz, grande melómano (moldou os meus gostos musicais que perduram até hoje), que de todo, não atinava com esta "coisa" da tropa. Começado o "fogachame" em simultâneo para a ilha de Tavira com a Breda, a Browning,  o morteiro 120 e o canhão sem recuo (o fogo de artifício das festas da Senhora da Agonia, comparado com isto é uma brincadeira de criança), logo o nosso melómano começou a fugir aos gritos impressionado com todo aquele aparato, convencido que o mundo estava a desabar.

O Tenente obriga-o deitar-se no chão e diz-lhe: "Se levantares a cabeça, um milímetro que seja, és um homem morto"... E começa a disparar com a Breda por cima do rapaz

A todos nós, que estávamos a assistir aquilo, não nos cabia um feijão no "dito", não obstante constatarmos que, pese embora o "cacimbo" da Guiné, o homem apontava as rajadas para uma altura de segurança, nunca pondo em perigo a vida do nosso camarada.

Terminado o filme de terror, fomos a correr ver como estava o nosso homem: branco, branco. Levantamo-lo, com todo o cuidado, e foi então que começamos a sentir um cheiro insuportável e algo a escorrer pelas botas a sair das calças do melómano... e assim passou de melómano a "merdalómano" (um mal nunca vem só…)

Nota: Nessa noite a caserna parecia a "aldeia da roupa branca (neste caso verde)" com toda a gente a estender as suas calças a secar penduradas na cabeceira da cama, ao qual me associei, contudo não tenho memória que tivesse chovido nesse dia!...

(Continua...)

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Notas do editor:

sábado, 30 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21826: Os nossos seres, saberes e lazeres (435): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (4): Regresso a Óbidos, o desfrute de uma vila artística, agradecimentos a Dona Josefa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Aproxima-se o final da estadia em Óbidos, surge inevitavelmente esta sensação de pesar, por haver tanta coisa que fica por ver, em Óbidos e arredores. Hoje é dia de reverenciar uma das nossas artistas maiores, Josefa d'Óbidos, procurar visitar a preceito o Museu Municipal, uma instalação cultural magnífica, andar por igrejas, rever livrarias, passear pela cerca do castelo, registar o que estas ruas mostram de boa conservação, toda a vila tem um chamamento a civilizações pretéritas, vale a pena percorrer os jardins e até perceber porque é que a UNESCO atribuiu a Óbidos o título de Cidade da Literatura.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (4):
Regresso a Óbidos, o desfrute de uma vila artística, agradecimentos a Dona Josefa


Mário Beja Santos

Começo o dia na Igreja de Santa Maria, chegou o momento de reverenciar Josefa d’Óbidos, nada melhor que pegar no historiador de Arte Vítor Serrão, alto especialista no Maneirismo, e citar o seu trabalho publicado pela Quetzal Editores em 2003: “É a nossa mais conhecida artista barroca, e o testemunho mais vivo, em tonalidades regionais, de uma cultura de retórica imagética, de simbologia decorativa e de requintada elevação sensual que, aliadas a uma espiritualidade tridentina, a situam no mesmo mundo de referência de um Padre António Vieira na oratória messiânica, de um Dom Francisco Manuel de Melo nas exaltantes narrativas literárias desse ‘tempo escuro’ de bloqueio nacional, de uma Soror Maria do Céu na sua poesia feita de arrebatamentos místicos, ou de uma Soror Mariana Alcoforado na sua amorosa epistolografia paraerótica. Os quadros de Josefa respiram o mesmo sabor: falam da religião, e falam com Deus, como se se tratasse de coisas simples e a todos acessíveis, estimulam os saberes da vista e adoçam os sabores do olfato, dialogam com os frutos dos pomares, as flores silvestres, os rebanhos de ovelhas e as vacas em pastorícia, com a água das fontes, a humidade da terra arada, a bravura dos ventos marinhos, em suma, com todos os elementos naturais, assim simplificando nessa visão bucólica as complexas vias artísticas da alegoria moral (…) Foi autora de adoçados Cordeiros Pascais em cartelas de flores e de ingénuos Meninos Jesus ora nus, ora vestidos de tule e rendas, ora ataviados como fidalgos de província ou amoráveis peregrinos, que faziam as delícias de uma clientela beata doméstica ou monacal; foi criadora de numerosas naturezas-mortas de aparato efeito cenográfico na representação de barros, frutos e flores, género que lhe conferirá o grau mais afirmado de originalidade; foi autora, por certo irregular, de pintura religiosa para ciclos decorativos ou retábulos de altar; foi executante de miniaturas de cobre onde a expressão do desenho e o sabor das composições se aprimoram…”. Enfim, um dos nomes consagrados das Artes Plásticas em Portugal no século XVII.
Entrei na Igreja de Santa Maria também com outro livro na mão, já referido, Linha do Oeste, coordenação de Benedita Pestana, Assírio & Alvim, 1998. É que além de Josefa d’Óbidos a Igreja de Santa Maria reserva outras surpresas. O interior da Igreja está ricamente revestido com azulejos seiscentistas, tem peças de Arte extraordinárias como seja o retábulo maneirista da capela-mor e o magnífico túmulo renascentista de D. João de Noronha e D. Isabel de Sousa, figuras nobres que se destacaram pela sua ação mecenática. Se o nome de D. João de Noronha está ligado à construção do Paço dos Alcaides no castelo, o de D. Isabel de Sousa está intimamente relacionado com a encomenda do seu próprio túmulo e do seu marido. Construído em pedra calcária de Ançã, o jazigo apresenta um arco de volta perfeita, ladeado por plintos e respetivas pilastras decoradas com motivos ao romano, encimadas por estátuas de profetas, cobertas por baldaquinos. A coroar toda a composição, encontramos uma representação da Assunção da Virgem e de Deus-Pai abençoando. Não se conhece o autor desta maravilha, há quem o atribua a Nicolau Chanterene, pela semelhança estilística com outras obras suas realizadas entre nós. O mais importante é que pela sua estrutura e decoração o túmulo de D. João de Noronha e D. Isabel de Sousa introduziu o formulário renascentista na região, trata-se de um símbolo de grandeza e de poderio, testemunha um gosto estilístico que conheceu um período de vigência relativamente curto em Portugal, motivado pela utilização prolongada das formas tardo-góticas e pela adoção desde cedo das formas maneiristas. Dito preto no branco, trata-se de um exemplar mais magnificente da escultura renascentista em Portugal.
O Museu Municipal de Óbidos é de visita obrigatória, os pontos de referência são em bastante número: Cruzeiro, Igreja de S. João Baptista, livrarias, a porta da vila, toda a Rua Direita, o edifício dos Paços do Concelho, a Capela de S. Martinho, a Igreja de S. Pedro, a Igreja da Misericórdia, a Igreja-Matriz de Santa Maria, há dois museus, este e o Museu Abílio de Mattos e Silva, entre outras belezas. O Museu é um antigo solar do século XVIII, foi residência do pintor Eduardo Malta, é muito compósito, desde Arte Sacra a Arte Contemporânea encontramos lá um pouco de tudo. É um espaço que a museografia brindou, trata-se de uma residência, o pintor Malta procedeu a alterações, está ricamente beneficiado com azulejaria, é bom que o visitante, se estiver em Óbidos mais de um dia, ali regresse para rever e usufruir de espólio tão rico em condições de exposição atraentes. E terá mais uma oportunidade de contemplar obras magnas de Josefa d´Óbidos.
Museu Municipal de Óbidos
Peça sem título, de Graça Pereira Coutinho, um espantoso aproveitamento de restos de cerâmica que ascenderam a escultura… E que escultura!
Auto-retrato de Eduardo Malta
S. Sebastião na imaginação do artista José Aurélio

Volta-se ao exterior, o tempo é ameno, o céu azul de nuvens em viagem, pode-se ir passear entre livrarias e andar ali à volta da Cerca do Castelo, subir e descer, descer e subir, contemplar a extensa Várzea. Há sempre um pormenor a reter nestas ruas calcetadas a rigor. A hidrângea floresce e lá ao fundo temos uma janela de caraterísticas manuelinas. Vamos então desfrutar este exterior antes de emergir noutros interiores artísticos.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21799: Os nossos seres, saberes e lazeres (434): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3): Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho (Mário Beja Santos)

sábado, 23 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21799: Os nossos seres, saberes e lazeres (434): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3): Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Era impossível escapar à rota caldense, um convívio que se encetou há mais de 60 anos, tudo por causa das férias na Foz do Arelho, inevitável não ir à Praça da Fruta, D. Anita, minha madrinha, acolitada por marido e ajudantes, abastecia-se de fruta e legumes, carne e peixe, nenhuma das refeições tinha menos de dez pessoas. Havia escapadas até à Pastelaria Machado, com os seus doces icónicos. Atravessava-se a cidade para ir até Peniche, o meu padrinho era conserveiro, ali havia fábrica, uma outra na Nazaré, aqui havia o ritual de uma sardinhada servida por mulheres indumentadas com as sete saias, refeição de arromba. Interessava-me visitar a azulejaria de muitos edifícios caldenses, um legado de Rafael Bordalo Pinheiro, não perdia ocasião de ir até ao Museu José Malhoa, o mestre pintou os pais do meu padrinho, são dois retratos fabulosos.
O parque continua muito bem tratado, é aprazível e dá gosto vê-lo sempre cheio de vida. Pedi a quem ia ao volante de não fazermos diretamente a estrada para a Foz do Arelho, ocorreram outras recordações, os passeios ao Bom Sucesso e à Serra, atravessar a lagoa até à Lapinha, então um lugar bem pobre. E assim se contornou a lagoa para ver o oceano e os areais como num grande ecrã, longe da aglomeração hoje urbana, da Foz do Arelho. E foi maravilhoso reviver o passado, lembrar os meus mortos muito queridos e aqueles que estão distantes, que a roda da fortuna separou. A viagem continua, regressa-se a Óbidos, há que fazer as honras à casa, e depois, de orelha murcha, fazer uma pausa nas férias.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3):
Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho


Mário Beja Santos

Tive esse privilégio, fazer vilegiatura na Foz do Arelho, anos a fio, em casa dos meus padrinhos, a última casa que alugaram tinha sido a colónia de férias do Colégio Moderno. Era inevitável vir às Caldas, primeiro pelo abastecimento, não há nada no país como a Praça da Fruta, muita dela proveniente de localidades limítrofes, caso da Benedita. O parque é de visita obrigatória, sempre o conheci bem mantido, com os seus cortes de ténis e a escultura de José Malhoa como que a convidar a visita do museu com o nome deste ilustríssimo caldense. E a igreja-matriz, que vem do tempo da donatária, a Rainha D. Leonor, que deu certidão de nascimento em 1488, eram as Caldas um mero lugarejo. Falava-se das cerâmicas de Rafael Bordalo Pinheiro, havia sinais do seu trabalho no Museu José Malhoa e em edifícios da cidade, bastava olhar para aquela azulejaria do tipo sevilhano. Era estância termal, não perdeu a fama, quase no final do século XIX as termas passaram a ser local obrigatório associado a férias, a população cresceu. Isto são coisas que eu estou a ler no livro Linha do Oeste, que também anuncia a chegada do comboio, a modernização urbanística, a importância da cerâmica, o Hospital Termal e a beleza do parque, obra do Administrador Rodrigo Maria Berquó, um arquiteto que procedeu à construção do parque com um lago e áreas aptas à prática de desportos. Nesses cortes de ténis, jogaram muitos estrangeiros fugidos aos horrores da II Guerra Mundial, eles estavam estacionados nas Caldas por decisão política superior, há mesmo livros que recordam a sua presença. E no século XX, em 1927, passou a cidade, destaca-se pelo seu trabalho de planeamento urbano o jovem arquiteto Paulino Montez. Mas voltemos atrás, por aqui andou Rafael Bordalo Pinheiro e deixou sinais do seu génio, a sua cerâmica era tão engenhosa que ainda hoje se reproduz e tem ávidos compradores.

Praça da Fruta, Caldas da Rainha

O Museu José Malhoa não se cinge ao romântico naturalismo deste caldense ilustre. É certo que ele está altamente representado por figuras prestigiadas da aristocracia, cenas campestres, figuras populares, retratos de amigos e discípulos como, caso do consagrado retrato que dedicou à sua discípula Laura Sauvinet, mas outros grandes artistas justificam uma demorada visita. Com efeito, a coleção de pintura, desenho, aguarela, escultura e cerâmica, onde predomina o movimento naturalista, tem obras de grande mérito e mesmo modernistas como Eduardo Viana aparecem aqui representados com obras de significado.

Estátua de José Malhoa, junto do museu do mesmo nome, Parque D. Carlos I
Retrato de Laura Sauvinet, por José Malhoa


Cidade termal, fundada em finais do século XV, sofrerá novo impulso no período joanino. Ganhou muito com o comboio, com a modernização urbanística, com o dinamismo do Hospital Termal. Não há viajante que não se abisme com aquelas construções fantasmáticas, parece que uma parte fundamental do termalismo deixou de pé uns edifícios esventrados, numa plácida agonia, mas na prática é um abandono chocante.

Os pavilhões termais, imponentes mas decadentes, Parque D. Carlos I
Os edifícios termais vistos de perto


O Parque é de uma indizível beleza, muito bem cuidado, e a prova de que é atrativo é a sua utilização para atividades desportivas, para recreio e lazer, e as instalações museológicas favorecem a atmosfera local, entra-se e sai-se para contemplar edifícios, visitar lojas de cerâmica, o meio envolvente é muito sugestivo. E é imperdível a visita à igreja-matriz, Nossa Senhora do Pópulo, está marcada pelo tardo-gótico, o seu interior é uma preciosidade em azulejaria, talha e escultura.

O viço das buganvílias num parque primorosamente mantido
A torre sineira da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, Caldas da Rainha
Uma imagem interior da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo


Prossegue a viagem em direção à Foz do Arelho, com uma nuance, não se vai propriamente pelo Nadadouro e contorna-se a lagoa, tom-se outra direção, caminha-se pelo lado oposto, há necessidade de recordar certos passeios de outrora, a praia e a lagoa eram uma outra coisa, caminhava-se pelo areal naqueles dias de bandeira vermelha e mar em turbulência, as ondas em cachão, uma constante neblina, impossível ver as Berlengas. Ia-se em direção ao Gronho, um maciço todo ornamentado de vegetação rala. Faziam-se burricadas quase até Peniche, o mar em vazante, todos na galhofa montados na azémola, com farto piquenique, ia-se até às praias de Peniche, o nosso guia sabia exatamente a tabela das marés, regressava-se à Foz do Arelho são e salvo. E foi com essa recordação, também a pensar nos passeios em que se atravessava a lagoa de barco para vir até à Lapinha, hoje tudo radicalmente transformado, que se parou diante daquele mar imenso, lá está a lagoa sempre ameaçada pelo assoreamento, deste ponto é tudo uma beleza, nem dá para acreditar que aquela aldeia que conheci vai para 60 anos se transformou e adaptou ao turismo de massas. Está na hora de regressar a Óbidos, amanhã vamos visitá-la a preceito, conviver um pouco com essa pintora extraordinária que foi Josefa d’Óbidos.

A Foz do Arelho contemplada do Gronho, a permanente ameaça da Lagoa de Óbidos assorear
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21773: Os nossos seres, saberes e lazeres (433): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (2): Conservas de peixe, um naufrágio com grande riqueza, uma fortaleza-prisão: Peniche (Mário Beja Santos)