Mostrar mensagens com a etiqueta Cancioneiro da nossa guerra (O). Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cancioneiro da nossa guerra (O). Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23209: O Cancioneiro da Nossa Guerra (13): a "Spinolândia", com letra (parodiada) e música de "Os Bravos", de Zeca Afonso: uma preciosidade encontrada no sítio de "Os Leões de Madina Mandinga", a 1ª CART/BART 6523/73 (1973/74)




Guião do BART 6523/3 (Nova Lamego, 1973/74). 

Cortesia: coleção de Carlos Coutinho (2009)



1. No sítio dos Leões de Madina Mandinga - 1ª Cart / Bart 6523 (1973/74) fomos encontrar uma deliciosa cantiguinha satirizando o Spínola e a política "Por uma Guiné Melhor". 

A letra é uma paródia da uma canção tradicional da Ilha da Terceira, Açores, popularizada por Zeca Afonso (Os Bravos, in "Baladas e Canções", LP, 1964).

Para conhecimento dos nossos leitores, e enriquecimento de "O Cancioneiro da Nosssa Guerra", e com a devida vénia aos "Leões de Madina Mandinga" (e aos seus editores), tomamos a liberdade de reproduzir aqui a letra da "Spinolândia".  

Há outros versos que vale a pena ler, na secção "Cancioneiro", uma boa parte deles recolhidos pelo  António Costa, ex-fur mil. Como ele próprio diz, "na nossa casa de Madina Mandinga, durante o dia e parte da noite, sempre o nosso amigo Gaipo e a sua viola a animar as tropas com as suas canções. Obrigado, furriel Gaipo"(, de seu nome completo, José Graça Gaipo, a viver em Ponta Delgada). 

Não sabemos quem é o autor da letra. Nem muito menos a data, mas pelas referências (Gadamael, ataque a Bissau, foguetões, Santo António de Bissau), deverá ser de meados de 1973, quando o género António Spínola ainda era  o com-chefe e governadot-geral.

Spinolândia

Eu fui à Spinolândia,
Bravo, meu bem,
Pra ver se embravecia (bis),
Cada vez fiquei mais manso,
Bravo, meu bem,
Com os tiros que lá ouvia (bis).

A malta do comechefe,
Bravo, meu bem,
Não conhece Gadamael (bis),
Quando atacaram Bissau,
Bravo, meu bem,
Esgotaram o papel (bis).

Santo António de Bissau,
Bravo, meu bem,
De todos o mais casmurro (bis),
Quer do preto fazer branco,
Bravo, meu bem,
E do branco fazer burro (bis).

Qualquer pobre de Bissau,
Bravo, meu bem,
Daqueles com pouca roupa (bis),
Não está livre de apanhar,
Bravo, meu bem,
Com um foguetão na sopa (bis).

[ Revisão / fixação  de texto: LG  ]


Recorde-se, entretanto,  que o 1º sargento desta companhia era o nosso saudoso amigo e camarada Fern
ando Brito (1932-2014), que ainda entrou pelo seu pé na nossa Tabanca Grande, com o posto de major SGE, reformado... Era um grande fadista e foi um grande pai e avô para o nosso amigo Cláudio Brito... Fez duas comissões na Guiné, como 1º srgt, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e 1ª C / BART 6523 (Madina Mandinga, 1973/74), Era carinhosamente tratado pelos "leões de Madina Mandinga" por Ti Brito.


Ficha de unidade > Batalhão de Artilharia 6523/73

Identificação: BArt 6523/73
Unidade Mob: RAL 5 - Penafiel
Cmdt: TCor Inf João Damas Vicente
Maj Art Óscar José Castelo da Silva
2.° Cmdt: Maj Art Óscar José Castelo da Silva
Cap Art Carlos Alberto Ramalhete
OInfOp/Adj: Cap Art Carlos Alberto Ramalhete (acumulava)
Cmdts Comp: CCS: Cap SGE José Manuel Rijo | 1ª Comp: Cap Mil Inf José Luís Borges Rodrigues  (Lisboa,  1948 - Santarém, 2019) |2ª Comp: Cap Mil Inf Franquelim Bartolomeu Viçoso Vaz | 3ª Comp: Cap Mil Inf Rui Alberto Nunes dos Santos| Cap Mil Inf António Francisco Dias Vieira
Divisa: "Honra e Dever"
Partida: Embarque em 06Ju173; desembarque em 13Ju173 ! Regresso: Embarque em 07Set74

Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, com as suas companhias, de 16Jul73 a 12Ag073, no CMl, em Cumeré, seguiu, em 13Ag073, para o sector de Nova Lamego, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com o BCav 3854.

Em 08Set73, assumiu a responsabilidade do Sector L3, com sede em Nova Lamego e abrangendo os subsectores de Madina Mandinga, Cabuca, Canjadude e Nova Lamego

Em 20Ju174, o subsector de Piche foi integrado na sua zona de acção, após desactivação do Sector L4. As suas subunidades mantiveram-se sempre integradas no dispositivo e manobra do batalhão até à extinção do sector.

Desenvolveu intensa actividade operacional, com realização de patrulhamentos, emboscadas, escoltas a colunas e segurança e protecção dos itinerários e das populações. As suas forças intervieram e colaboraram em acções de reacção a flagelações e ataques aos aquartelamentos e aldeamentos e na promoção socioeconómica das populações.

Comandou e coordenou a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, sucessivamente efectuadas nos subsectores de Madina Mandinga e Cabuca, em 20Ag074 e de Piche, em 29Ag074.

O comando do batalhão recolheu a Bissau em 29Ag074, a fim de aguardar o embarque de regresso, mantendo-se um pelotão da CCS em Nova Lamego até  sua desactivação e entrega ao PAIGC, em 04Set74.


***
A 1ª Comp seguiu em 13Ag073 para Madina Mandinga, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCav 3406. Em 08Set73, assumiu a responsabilidade do subsector de Madina Mandinga, com um pelotão no destacamento de Dara.

Com a retracção do dispositivo, efectuou a desactivação e entregaao PAIGC do aquartelamento de Madina Mandinga em 20Ag074 e do destacamento de Dara em 27Ag074, tendo seguido para o subsector de Bambadinca, na zona de acção do BCaç 4616/73, onde substituíu a CCSIBCaç 4616/73.

Em 02Set74 foi substituída pela 2ª Comp/BCaç 4616/73 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

***

A 2ª Comp seguiu em 13Ag073 para Cabuca, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCav 3404.

Em 08Set73, assumiu a responsabilidade do subsector de Cabuca, cedendo um pelotão para reforço da guarnição de Madina Mandinga.

Em 20Ag074, efectuou a desactivação e entrega do aquartelamento de Cabuca ao PAIGC e seguiu para o subsector de Xime, na zona de acção do BCaç 4616/73, a fim de substituir transitoriamente a CCaç 12, que fora entretanto extinta e onde se manteve até ser rendida pela 2ª Comp/BCaç 4518/73 em 31Ago74, tendo então seguido para Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***
A 3ª  Comp seguiu em l3Ago73, para Nova Lamego, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCav 3405.

 Em 08Set73, assumiu a responsabilidade do subsector de Nova Lamego, cm um pelotão destacado em Cansissé.

Em 27Ago74, foi rendida pela 1ª Comp/BCaç 4518/73 e seguiu em  29Ag074 para Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações -  Tem História da Unidade (Caixa n." 122 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pp. 248/ 249.
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12747: In Memoriam (180): Fernando Brito (1932-2014), major art ref, ex-1º srgt, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e 1ª C / BART 6523 (Madina Mandinga, 1972/74)

(**) Último poste da série > 16 de novembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20352: O Cancioneiro da Nossa Guerra (12): "Até p'ró ano outra vez", um "faduncho" do Francisco Santos (ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65; poeta popular de Sarilhos Grandes, Montijo): "Mas nós cá vamos passando, /As lembranças vão ficando, / Conservando alguma fé; / Nem que seja de bengala, / Eu reúno em qualquer sala / P'ra relembrar a Guiné"...

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20609: Banco do Afeto contra a Solidão (25): Comandei um secção de morteiros em Gadamael Porto, fiquei surdo e recebo 37 euros mensais, inicialmente pagos pela Caixa Nacional das Doenças Profissionais (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


Cópia do cartão de beneficiário por doença profissional


Foto: © Mário Gaspar  (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem,  enviada hoje às 2h45, do nosso amigo e camarada Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68:


Caras Amigas e Caros Amigos

Comandei uma Secção de Morteiros em Gadamael Porto, Sul da Guiné, bem perto da fronteira da Guiné Conacri. Fiquei Surdo e recebo 37 euros mensais, inicialmente pagos pela Caixa Nacional das Doenças Profissionais, mas devia ter esse direito como Deficiência de Guerra.

Foi simples: foram tantos as granadas saídas do morteiro que comandava, descuidei-me e encerrei a boca, e os tímpanos deram sinal.

Já passou… O poema [, que anexo,  já aqui publciado em tempos, ] é de Guerra Junqueiro Ou melhor, "O Morteiro" é um paródia a "Lágrima" de Guerra Junqueiro, incluído no Relatório de combate de 9 a 12 de Abril de 1918 - Lembranças, caderno manuscrito por Raul Pereira de Araújo, alferes de Artilharia, sobrevivente da Batalha de La Lys. (**)

NOTA: De qualquer modo vai em Anexo o Cartão de Doenças Profissionais. Por exemplo – para quem não sabe – governos consideraram que um Combatente é e foi um Trabalhador no Serviço Militar. Enganaram-se decerto… E ninguém deu pelo engano...

Acabaram com o Jornal “Ridículos” e com “Parodiantes de Lisboa”.

E esta?


(...) "O morteiro", paródia à "Lágrima" de Guerra Junqueiro
(Mota, 2006, pp. 104-107)

Noite de frio intenso, uma trincha escavada,
Lúgubre, sepulcral, agoirenta... e mais nada,
Trincheira onde a morte apanha vis pancadas
Em banquetes de sangue arrancado em ciladas
Na trincha oposta, onde o boche reina e impera
Em rasgos e expansões de forte besta-fera.
Um oficial audaz, olho do batalhão,
Descobriu, dum morteiro grosso, a posição,
Maquinismo feroz que se cumpre o dever,
Ao perto e ao longe tudo faz estremecer. (...)


sábado, 16 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20352: O Cancioneiro da Nossa Guerra (12): "Até p'ró ano outra vez", um "faduncho" do Francisco Santos (ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65; poeta popular de Sarilhos Grandes, Montijo): "Mas nós cá vamos passando, /As lembranças vão ficando, / Conservando alguma fé; / Nem que seja de bengala, / Eu reúno em qualquer sala / P'ra relembrar a Guiné"...


Francisco Santos, um dos bravos do Cachil, da CCAÇ 557 (1963/65), 
e um dos poetas  da nossa Tabanca Grande; nascido em Sarilhos Grandes, Montijo, em 1942.

"Em Sarilhos eu nasci / e fui como outros tantos, / no Montijo, perto daqui, / registaram Francisco dos Santos. // Comecei a ouvir depois, / ainda menino eu lembro, / que nasci em quarenta e dois / no dia quinze de Dezembro. // Sarilhos Grandes me criou, / só para a Guiné eu saí, / sou feliz aonde estou, / tudo o que tendo é aqui. " (...) 









O Francisco Santos, hoje com  77 anos, ex-1º cabo motorista rádio telegrafista, da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), poeta popular, residente em Sarilhos Grandes, Montijo, membro da nossa Tabanca Grande desde 12 de maio de 2009, todos os anos abrilhanta o convívio anual da companhia com uns versinhos da sua lavra. Este ano foi em Alenquer, e mais uma vez não falhou. Aqui ficam, para enriquecer o Cancioneiro da Nossa Guerra (**) . Os ficheiros chegaram-nos por mão do incansável  e sempre leal José Colaço.

O Chico é um notável exemplo, para todos nós, do ex.combatente que se recusa a "arrumar as botas".  Motorista de profissão, agora reformado, além da escrita criativa, está envolvido, tanto quanto sei, nas atividades da sua terra, e nomeadamente tem um grande carinho pela sua banda filarmónica, a da Academia de Música União e Trabalho (AMUT), de cujos órgãos sociais faz ou já fez parte.  Tem colaboração (poética) dispersa pelo nosso blogue. E eu há tempos, em resposta a uns versos de agradecimento ao nosso blogue, respondi-lhe também em verso:

"Foi p’ra connosco gentil / O poeta do Cachil, / Onde foi soldado de aço, / Vive agora em Sarilhos,  / Terra de paz, sem cadilhos, / E é amigo do Zé Colaço."

____________

Notas do  editor LG:

(*) Vd. poste de 10 de novembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20331: Convívios (909): XXXI Encontro de Confraternização Anual da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), em Alenquer, no passado dia 9 de Novembro de 2019... Ou a usura do tempo... (José Colaço)

(**) Último poste da série > 7 de julho de  2019 > Guine 61/74 - P19953: O Cancioneiro da Nossa Guerra (11): o fado "Brito, que és militar" (Bambadinca, 1970, ao tempo da CCS/BART 2917 e CCAÇ 12) (recolha de Gabriel Gonçalves, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

domingo, 11 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro. CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)





(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74); (ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780];  (iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; (iv) está reformado; (v) vive no Porto; (vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou; (vii) tem página no Facebook.

A CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974. Esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes. 

Pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu).

Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de 14 de julho dr 2019, do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro

Caro Luís Graça,

1) Junto te envio o meu "livro" de memórias completo sobre a minha guerra. Como podes ver, não fui nenhum herói. Se alguma coisa poderei dizer em minha defesa, é que dei o máximo de mim mesmo pelos meus homens. Dei mesmo. Se não dei mais, foi porque não pude. Se leres o que está escrito, poderás dizer que tive uma tropa um bocado fora do comum. Vivi situações muito estranhas, sobretudo em Mafra, Santa Margarida e nos primeiros seis meses de comissão, em parte por culpa minha, em parte por culpa de quem me comandou, mas nunca por culpa de quem eu comandei. Em relação a estes, só posso fazer os maiores elogios. Estou a ser absolutamente sincero.

2) Quando acabei a minha comissão e antes de regressar a Portugal, destruí quase tudo o que me pudesse recordar os dois anos e três meses que passei em Angola. Rasguei fotografias, queimei documentos, deitei tudo para o lixo, porque queria começar uma vida nova quando regressasse, sem os fantasmas da guerra. Como se tal fosse possível, vê lá tu! É claro que agora estou arrependidíssimo. Só escaparam à minha fúria destruidora três ou quatro fotografias e duas cassetes com gravações que fiz. Uma das cassetes está completamente estragada e irrecuperável, mas da outra consegui recuperar três canções e espero recuperar mais uma ou duas. A fita da cassete parte-se quase sempre que a ponho a tocar e, por isso, tenho que ter o máximo cuidado para poder digitalizar o que falta dela. Há alguns anos, digitalizei duas canções e há alguns meses tentei digitalizar uma terceira, mas com resultados desastrosos, porque a fita voltou a partir-se. A pedido de um camarada, abri uma conta no Youtube e publiquei as canções lá, ilustradas com algumas imagens roubadas à página do meu batalhão no Facebook.

3) Uma palavra devo dizer-te em relação ao intérprete da primeira canção [ver aqui no You Tube].  Chamava-se Gabriel António e era filho de um casal de trabalhadores de uma fazenda de café, naturais da região do Bailundo, no centro de Angola. Quando começou a guerra em 1961 e o Gabriel ainda era pequeno, a UPA assassinou o pai e a mãe dele, à semelhança do que fez à maioria dos trabalhadores bailundos das fazendas no norte de Angola, numa clara manifestação de ódio tribal. O Gabriel cresceu na mata, no seio de uma família adotiva, e quando atingiu a idade adulta apresentou-se às NT, em Zemba. Dois ou três meses depois da sua apresentação, ofereceu-se para nos servir de guia nas operações, porque queria ajudar-nos a combater o movimento que lhe matou o pai e a mãe. Foi um guia extraordinariamente leal e dedicado e deixou imensas saudades em quem o conheceu. Não era um indivíduo rancoroso nem amargo. Bem pelo contrário, o Gabriel António era afável e caloroso como poucos. 

Quando se deu a descolonização, o Gabriel foi para Luanda, juntamente com o último batalhão que esteve em Zemba, o BCaç. 5017/74 . Constou aos militares deste batalhão que o Gabriel foi morto em Luanda. Ninguém o viu morto, é verdade que não, mas também nunca mais ninguém o viu vivo. A situação em Luanda era caótica em 1975, ano em que os três movimentos independentistas lutavam entre si pelo domínio da cidade. O Gabriel poderá ter sido apanhado no meio de uma qualquer troca de tiros. Nesse tempo, bastava sair à rua em Luanda ou em qualquer outra cidade de Angola para se correr o risco de levar um tiro. O Gabriel António é a pessoa que se vê logo no princípio do meu "vídeo". Fardado e armado com uma G3, para se parecer com os nossos soldados, o Gabriel traz também, na fotografia, uma arma a tiracolo que foi capturada ao IN.

4) Depois de ter gravado uma canção com o Gabriel António a solo, apareceu um outro habitante local, chamado Gonçalo, que se prontificou a gravar uma outra canção juntamente com o Gabriel. Arranjou-se uma segunda viola, para o Gonçalo tocar, e a gravação fez-se. Esta outra canção está em disponível aqui, também no You Tube.

5) Há poucos meses, tentei passar para o computador uma outra canção pelo Gabriel e o Gonçalo que está na mesma cassete, mas tão desastradamente o fiz que a fita partiu-se e enrolou-se toda no mecanismo do gravador. Esta parte da fita ficou irremediavelmente estragada. Mesmo assim, coloquei a canção no Youtube, assim mesmo estragada e tudo, no endereço. Se eu quiser digitalizar o resto da cassete, vou ter que tomar as maiores precauções, para que a fita não se volte a partir. Não sei quando é que poderei fazê-lo, mas acredito que vou conseguir.

6) Eu ando nisto da internet desde há cerca de vinte e cinco anos, quando intervinha frequentemente nos "newsgroups", que eram as redes sociais dos anos 90. Depois disso, passei a publicar um blog pessoal, que continuo a atualizar com bastante regularidade, mas no qual a guerra só muito esporadicamente é abordada. Quem for à procura de guerra, perde o seu tempo, porque muito pouco encontrará.

Um grande abraço
Fernando de Sousa Ribeiro,
ex-alferes miliciano da CCaç 3535 / BCaç 3880, 
Angola, 1972-74


Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)
 por Fernando de Sousa Ribeiro

INTRODUÇÃO

Este é um conjunto de textos escritos por Fernando de Sousa Ribeiro, antigo alferes miliciano da Companhia de Caçadores 3535, do Batalhão de Caçadores 3880. O autor esteve no norte de Angola entre 1972 e 1974, concretamente em Zemba, na região dos Dembos, a noroeste de Luanda, e em Ponte do Zádi, Banza Sosso e Malele, na região de Maquela do Zombo, junto à fronteira norte de Angola.

Quase todos estes textos foram originalmente publicados pelo autor na página do seu batalhão no Facebook, tendo sofrido posteriormente algumas alterações com vista a torná-los mais compreensíveis a pessoas estranhas ao batalhão.

Os factos relatados nos textos aqui reunidos são rigorosamente verdadeiros, tanto quanto a memória do seu autor lhe permitiu. Nada do que aqui está foi inventado. Ficaram por escrever alguns episódios, porque:
— são demasiado pessoais;
— são de interesse (ainda mais) reduzido;
— são de tal modo fragmentários, que com eles o autor não consegue elaborar uma narrativa que tenha princípio, meio e fim;
— o autor não consegue escrever sobre eles, por mais que o deseje, por causa da rofunda marca que lhe deixaram no espírito; foi o caso da queda de um avião em Zemba, em que morreram três pessoas, que tiveram uma agonia lenta e atroz nos seus corpos destroçados, perante a mais desesperada impotência do autor.

Uma homenagem especial deve o autor prestar ao primeiro-cabo Domingos Amado Neto, que foi um moço extraordinário. Até na cor da pele Neto era extraordinário, pois contava-se entre os negros mais negros de todos os negros que existem. Neto devia ter a maior concentração de melanina na pele que é possível haver. Quando Neto chegava, parecia que ficava de noite. Ele era tão negro que dava a ideia de que absorvia toda a luz que o rodeava. Mas a cor da pele de Neto era um pormenor sem importância, uma simples curiosidade, pois ele era dotado de uma inteligência, de um sentido de justiça, de um bom-senso e de um espírito crítico que foram verdadeiramente preciosos para o autor.

Ao contrário de todos os outros subordinados, tanto portugueses como angolanos, que sempre colocaram as suas vidas nas mãos do autor, obedecendo-lhe cegamente, Neto nunca confiou inteiramente em quem o comandava. Desde o primeiro até ao último dia, manteve sempre uma atitude crítica em relação às decisões tomadas pelo autor, mesmo que só se manifestasse através do olhar. Fê-lo, não de um ponto de vista militar, mas sim de um ponto de vista ético e humano, desempenhando um papel de consciência moral do autor destas linhas. O autor ficou com uma dívida por pagar a Domingos Amado Neto.

ÍNDICE

O meu Curso de Oficiais Milicianos_____5
O respeito pelos homens que comandei____27
O que nos fizeram foi criminoso____43
Crimes de guerra____51
À noite, em Zemba____63
Máquinas de costura____65
Discriminação racial____67
Natal de 1972____73
O guerrilheiro Didi____79
A vida nas matas____83
A operação que me fez tremer____93
Abandonados___107
Os trabalhadores ditos bailundos___119
Uma lição___125
Uma emboscada cobarde___133
Batuque___135
A bebedeira do sargento Madeira___137
A revolta do capitão Jardim___141
Ida à Psiquiatria___147
O Afonso___151
O destacamento de Malele e os refugiados angolanos___153
A seca___159
Despedida___161


O MEU CURSO DE OFICIAIS MILICIANOS 
(pp. 5-16)


Convento de Mafra, que era na sua quase totalidade ocupado pela Escola Prática de Infantaria, atual Escola das Armas. Naquele tempo, só não estava sob tutela militar a frente do convento, com exceção do torreão mais à esquerda, em cujo 3.º piso se encontrava a minha caserna do 2.º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos. Entre o referido torreão e a Basílica, que está ao centro, ficava (e fica) o Palácio Nacional de Mafra. Entre a Basílica e o torreão da direita ficava, no rés-do-chão e no primeiro andar, a Câmara Municipal de Mafra, enquanto o segundo andar também pertencia ao Palácio Nacional. No torreão da direita estava instalado o Tribunal da comarca. O convento é tão grande que cabia lá tudo: quartel militar, museu, Câmara, Tribunal e, se fosse preciso, também se arranjaria espaço para os Bombeiros… Atualmente, o Tribunal e a Câmara Municipal ocupam edifícios próprios na vila de Mafra. De toda esta gigantesca edificação, só merecem ser visitadas a Basílica e a fabulosa Biblioteca do convento, à qual se acede pelo Palácio Nacional. O resto não passa de uma monstruosidade que não tem ponta por onde se lhe pegue.

Nas traseiras do edifício fcava a parada principal da Escola Prática de Infantaria. Mais para trás estende-se a tapada de Mafra. 


A minha companhia, CCaç 3535, teve dois capitães. O segundo capitão foi José António Pouille Nobre Antunes que, por coincidência, tinha feito parte do mesmo pelotão de instrução que eu, no 1.º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra,juntamente com o ex alferes Peixoto. Mal sabíamos nós que, mais tarde, os três nos iríamos encontrar na mesma companhia de caçadores em Angola, o Antunes como capitão e o Peixoto e eu como alferes. Estivemos, portanto, os três no mesmo pelotão de instrução, sob o comando de um alferes do quadro permanente chamado Carvalhão. Este alferes, que era de uma enorme ingenuidade, sofreu uma grande evolução e veio mais tarde a ser um ativo "capitão" de Abril (embora ainda só fosse tenente à data da Revolução dos Cravos), estando agora reformado no posto de tenente-coronel. 


Tenente-coronel Carlos Manuel Gonçalves Abreu Carvalhão

Durante o meu serviço militar, houve um tempo em que o Antunes me comandou (a mim e à CCaç 3535 toda), em Angola. Houve um tempo, também, em que o Antunes e eu (e o Peixoto) estivemos em pé de igualdade, na qualidade de soldados-cadetes em Mafra. E houve um tempo em que fui eu que comandei o Antunes.

É verdade, comandei o Antunes! Isto aconteceu na última noite da semana de campo do 2.º ciclo do COM, a qual decorreu na serra de Montejunto. Para ser mais rigoroso, eu não só comandei o Antunes, como comandei mais quase 30 futuros capitães e cerca de 150 futuros alferes, todos ao mesmo tempo!

Aposto em como eles não souberam nunca que eu alguma vez os comandei. Devem ter pensado que as decisões tomadas e as ordens dadas naquela noite no Montejunto tinham provindo dos instrutores, mas não, elas provieram de mim.

Como foi isto possível? Aviso desde já que esta história é muito comprida e muito chata. O meu 1.º ciclo do COM foi traumático, sobretudo para os soldados-cadetes da 6.ª companhia de instrução, a que pertencemos o Peixoto, o Antunes e eu. Foi uma companhia que, só na instrução, sofreu, em três meses, três mortos e dois feridos, um dos quais ficou cego de uma vista. Os mortos foram vítimas de afogamento numa lagoa que havia na tapada de Mafra.

No momento em que eles se afogaram, eu mesmo estava metido numa outra lagoa até ao pescoço, mas mesmo até ao pescoço, com a água a tocar-me na base do queixo. Tinham-nos ordenado que entrássemos na lagoa em fila indiana e eu era o segundo da fila, atrás de um soldado-cadete que era mais alto do que eu. Eu estava fardado, de botas de cabedal e com uma G3 nas mãos, que transportava com os braços levantados para não a molhar. O peso da espingarda, acima da cabeça, agravava ainda mais o meu precário equilíbrio. Avançávamos cautelosamente pelo fundo escorregadio e irregular da lagoa, mas sempre que abrandávamos a marcha éramos logo alvo de berros por parte do instrutor, que exigia que avançássemos sempre mais e mais. Assim, mesmo quando os da frente da fila abrandavam, os de trás continuavam a avançar e empurravam os que estavam à frente. Eu mesmo me sentia empurrado pelo soldado-cadete que estava atrás de mim.

À medida que avançávamos, o movimento dos nossos pés no fundo da lagoa ia levantando lodo, o qual ia tornando a água cada vez mais turva. Toda a água ficou turva de lodo. Se eu caísse, nunca mais me conseguiria levantar e dificilmente me encontrariam a tempo de me salvar, porque não se via um palmo abaixo da superfície da água.

O afogamento dos três camaradas provocou uma onda de revolta de todos os soldados-cadetes que estavam então em Mafra, os quais fizeram um levantamento de rancho, tal como foi noticiado pelo clandestino jornal Avante!


Recorte do jornal Avante!,  Ano 41, Série VI, n.º 431, de julho de 1971, pag. 4, em que é referida a morte de 4 cadetes. Na verdade morreram 3. Quanto ao resto, a notícia aqui relatada é verdadeira, independentemente do tom revolucionário em que está escrita. Nenhum outro jornal noticiou este facto, porque a censura não permitiu.


O modo como decorreu o levantamento de rancho está muito bem descrito no livro "Capitães do Fim… do Quarto Império", de António Inácio Nogueira. Passo a reproduzir a seguinte passagem, que está na pág. 323, de um depoimento de Vasco Augusto Rodrigues da Gama, que veio a ser capitão miliciano e comandante da Companhia de Cavalaria 8351/72, na Guiné, e que também viveu o acontecimento. [É membro da nossa Tabanca Grande.]

" (…) Nós, simples soldados-cadetes, homens arrancados aos estudos, outros com os cursos já feitos, que de um momento para o outro passaram a ser números de uma máquina sem coração, não fomos soldados-cadetes, fomos Homens.

Com o refeitório cheio de algumas centenas de nós preparados para o almoço, na posição de sentido obrigatório como era da praxe, recebemos a ordem, talvez do oficial de dia:

SENTAR!

Como fez barulho o silêncio que se seguiu!

Ninguém, ninguém se mexeu! Impávidos, serenos, comovidos, com os olhos brilhantes, ninguém, ninguém obedeceu! Músculos retesados, firmes no nosso querer e na nossa razão, pêlos eriçados, ninguém, ninguém, nem os 'engraxadores' hesitaram.

Foi chamado o comandante maior:

SENTAR!

Trovejou uma voz ainda mais potente, como se a estridência do grito fosse directamente proporcional ao número de riscos amarelos que o ombro suportava.

Ninguém, ninguém cumpriu a ordem.

DESTROÇAR!

E lá foram os soldados-cadetes, olhando-se com respeito, olhos nos olhos. Não me apercebi de medo em nenhum rosto.

O meu íntimo regozijava. Fomos para a sala número dez, todos, sem excepção, para uma reunião espontânea que foi interrompida quando recebemos ordem para irmos de fim-de-semana.

Seria quarta ou quinta-feira, não me recordo, sei apenas que o rigor, muitas vezes despropositado, da revista às armas, foi substituído pelo deixa andar.

Era preciso mandar estes gajos para fim-de-semana em passo de corrida. Como foi isto possível?

Afinal… era possível."


Capa do livro "Capitães do Fim… do Quarto Império", de António Inácio Correia Nogueira, onde se encontra o relato, feito por Vasco Augusto Rodrigues da Gama, do levantamento de rancho ocorrido em Mafra


A reação do comandante da Escola Prática de Infantaria, coronel Hilário Marques da Gama [, 1921-2012], foi miserável. O homem entrou em pânico quando verificou que não era obedecido, gaguejou umas palavras em que disse que não tinha culpa de nada e fugiu apavorado. O comandante da minha companhia, que era o então tenente Aguda — o qual participou no 25 de Abril como capitão, é agora major-general (o mesmo que brigadeiro), é vice-presidente da Liga dos Combatentes — assumiu perante nós, de olhos nos olhos, a responsabilidade pelo sucedido.

Esta atitude do Aguda caiu muito bem na nossa consideração. «Finalmente aparece alguém que não tem medo de assumir s suas responsabilidades», pensei. Porém, apesar da admiração que o Aguda passou a merecer da nossa parte, ele manteve os métodos de instrução completamente inalteráveis, tal e qual, como se não tivesse acontecido absolutamente nada. Como resultado, um novo incidente grave veio ensombrar a companhia.




Com efeito, algum tempo mais tarde, a minha companhia de instrução sofreu mais dois feridos, atingidos por estilhaços na cara que provocaram a cegueira num olho a um deles. Um alferes instrutor mandou os seus homens rastejar, enquanto ele fazia disparos de G3 com bala real, fazendo-lhes tangentes. Uma bala bateu numa pedra e estilhaçou-a. Os estilhaços atingiram dois soldados-cadetes na cara. Como desta vez não houve mortos, aconteceu numa sexta-feira (quando a malta já estava a pensar no fm de semana) e nos foi dito que os ferimentos não tinham gravidade, o caso acabou por passar despercebido à generalidade do pessoal. Só mais tarde, já depois do fm do 1.º ciclo do COM, é que se soube que um dos feridos tinha ficado cego de um olho.

Ainda antes da conclusão do 1.º ciclo, fui convocado para ser submetido a um exame médico e para prestar provas físicas e outras, com vista a uma possível admissão minha no curso de Operações Especiais, a decorrer em Lamego no 2.º ciclo. Fiquei logo a saber, portanto, que a participação ativa na guerra colonial iria ser o meu destino, qualquer que fosse a especialidade que me viesse a ser atribuída. Só faltava saber para que teatro de guerra é que eu iria ser encaminhado: Angola, Moçambique ou Guiné. Para começar, fui ao exame médico.
— O que é que você está aqui a fazer? — perguntou-me o médico, assim que me viu entrar no consultório. — Não me diga que estes gajos querem que você vá para os Comandos! Com esse físico?! Está tudo doido! Vá-se embora, vá-se embora!

Assim que virei as costas para me retirar, o médico chamou-me:
— Espere aí! Vamos só ver quanto é que você pesa. Ora suba para aquela balança 

Subi.
— Eu logo vi! — exclamou o médico. — Você só pesa 48 quilos! E estes gajos querem que você vá para os Comandos?! Está tudo doido! Estes gajos não sabem o que é que andam a fazer! Vá-se embora, vá-se embora.

Desta vez fui-me mesmo embora, enquanto o médico comentava com os seus botões:
— Com 48 quilos nos Comandos! Estes gajos não sabem o que é que andam a fazer! Está tudo doido!

E não fui para Operações Especiais. Para o médico, que devia ser miliciano, Comandos ou Operações Especiais era tudo a mesma coisa.

O nosso juramento de bandeira foi muito tenso. Como tínhamos feito um levantamento de rancho, éramos tidos como subversivos. Para evitar que nos revoltássemos ou tomássemos alguma outra atitude que saísse fora do estipulado numa tal cerimónia, a nossa formatura esteve enquadrada por soldados da própria guarnição da Escola Prática de Infantaria, armados de G3 e municiados com balas reais. Alguma atitude da nossa parte que fosse considerada como uma revolta seria imediatamente reprimida a tiro. Mas não aconteceu nada, a não ser o silêncio que imperou durante o pronunciamento da fórmula de juramento, o que em Mafra não era inédito. Já tinha acontecido antes e voltou a acontecer depois. Assim, dos cerca de 500 soldados-cadetes que estavam presentes para prestar juramento, só meia-dúzia é que disse «Juro» e o resto da fórmula que desconheço. A esmagadora maioria, eu incluído, manteve-se totalmente silenciosa.

Terminado o 1.º ciclo do COM., fiquei a saber, sem surpresa, que iria ser atirador de Infantaria e que, por isso, continuaria em Mafra, para frequentar o 2.º ciclo. Queria isto dizer que eu permaneceria mais três meses naquele tenebroso convento e continuaria a receber instrução naquela sinistra tapada. Continuaria no local do crime, portanto. Ainda por cima, o meu instrutor era outra vez um alferes do quadro permanente. Chamava-se Lourenço, já tinha o tirocínio feito e estava à espera de ser promovido a tenente a qualquer momento.

Posteriormente, já com o posto de capitão, o Lourenço veio a ser comandante da 112.ª Companhia de Comandos, que foi a principal protagonista da última operação efetuada pelas Forças Armadas Portuguesas em Angola: o assalto ao Comando Militar das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola, o braço armado do MPLA), no bairro da Vila Alice, em Luanda, no dia 27 de julho de 1975, de que resultaram 15 mortos e 22 feridos, entre os militares das FAPLA, e 5 feridos, entre os militares portugueses. O Lourenço terminou a sua carreira por volta de 2005 com a patente de major-general, quando desempenhava as funções de comandante da Brigada de Trânsito da GNR.  

Quando iniciei o 2.º ciclo do COM, o meu estado de espírito não podia ser pior. Eu encontrava-me profundamente desmoralizado, em consequência dos acontecimentos ocorridos no 1.º ciclo. Ainda por cima, estava outra vez entregue a um alferes do quadro permanente, isto é, estava entregue a alguém por quem eu não sentia qualquer espécie de respeito, depois de ter assistido, no 1.º ciclo, aos vergonhosos comportamentos de cobardia e de desprezo pela vida humana da parte de militares de carreira como ele. Para mim, naquele momento, todos os oficiais do quadro permanente eram desprezíveis cobardes ou cruéis psicopatas, que não mereciam que eu me esforçasse, e muito menos que me deixasse matar, só para lhes satisfazer a vontade.

A instrução que tive no 2.º ciclo do COM foi muito mais branda do que a estúpida instrução recebida no 1.º ciclo. Mas dado o estado de espírito com que eu estava, quase não fz nada durante o 2.º ciclo. Profundamente desmotivado, eu não me esforçava durante a instrução, não estudava para os testes, baldava-me nos exercícios físicos e por aí adiante.

Nos testes, por exemplo, eu tirava negativas atrás de negativas. Pura e simplesmente eu não estudava, nem sequer me sentia em condições mentais de estudar. Havia matérias, de resto, pelas quais eu não tinha o menor interesse. Leis, normas E regulamentos, por exemplo, com a linguagem árida e burocrática que lhes era própria, eram matérias deste tipo, que me davam vontade de vomitar. Outras matérias eram tão fáceis e tão primárias, que eu pensava: «Estes gajos só podem estar a gozar connosco. Julgarão eles que nós somos burros?» Outras matérias, ainda, estavam ultrapassadíssimas; estudá-las era a mais completa perda de tempo.

Por exemplo, tínhamos que estudar o rádio de campanha AN/GRC-9, um antepassado do rádio AN/PRC-10, que por si só já era uma peça de museu. Ambos ainda funcionavam a válvulas. Na guerra colonial já estava generalizado o uso do TR-28, que era um rádio de campanha transistorizado. Enfim, que nós estudássemos o AN/PRC-10, ainda se poderia compreender, agora o outro…


Um dos manuais utilizados no Curso de Oficiais Milicianos em Mafra. A maior parte destes manuais parecia ter sido escrita para semianalfabetos e não para universitários, que os soldados-cadetes de facto eram.

Decididamente, eu não tinha motivação nenhuma para estudar e as matérias não me interessavam absolutamente para nada. Em resultado, eu ia colecionando notas negativas, o que me levava a passar os fins de semana em Mafra, de castigo. Isto não me incomodou muito porque, como era verão, eu ia até à praia da Ericeira espairecer e esquecia aquela merda toda.

O meu instrutor, o tal alferes Lourenço, começou a multiplicar os avisos dirigidos à minha pessoa, à medida que o tempo ia passando, dizendo-me: «O sr. Ribeiro não estuda nada. O sr. Ribeiro anda a brincar com isto e ainda vai acabar mal. Ou passa a estudar e tira positivas nos testes, ou eu vou ser obrigado a chumbá-lo e o sr. Ribeiro vai para sargento. Ai vai, vai! Ou eu não me chame Lourenço!» E eu continuava sem estudar.

Foi só quase no fim da instrução que eu me dei verdadeiramente conta da situação em que me encontrava. Nos testes, eu quase só tinha negativas e agora era tarde demais para corrigir a situação. A avaliação da minha pessoa por parte do instrutor, no que respeitava a motivação e força de vontade, devia ser negativíssima também.

A única disciplina em que eu tinha uma boa nota, e que era mesmo muito boa, era o tiro. Apesar da minha falta de visão estereoscópica, por causa de um estrabismo de origem traumática adquirido na primeira infância, eu conseguia acertar quase sempre no centro dos alvos. Não me lembro da nota final que tive no tiro; só sei que ela foi muito alta e correspondeu à classificação de "atirador especial".

Em face deste balanço predominantemente negativo, só me restava a possibilidade de fazer um esforço suplementar nas provas físicas finais, dando tudo por tudo para ter uma nota tão positiva quanto possível, de modo a que eu pudesse vir a ser ofIcial e não sargento.

Como já disse atrás, ao longo do 2º ciclo eu não tinha feito esforço nenhum nos exercícios físicos. Valendo-me do meu aspeto franzino e magricelas, eu fingia que não aguentava o esforço exigido nos exercícios e punha-me de fora. Por exemplo, em vez de fazer todas as flexões de braços que o alferes queria, eu só fazia meia dúzia e fingia-me muito cansado, caindo para o lado. Nos crosses, eu chegava a meio e desistia, fingindo estar estourado; durante aqueles três meses, nunca corri um cross até ao fim. Resultado: eu encontrava-me num estado físico pouco consentâneo com o esforço que  teria que fazer nas provas físicas finais para ter positiva.

Custou-me muito, mesmo muito, conseguir boas notas nos exercícios físicos. Mas obtive alguns êxitos notáveis. Nas flexões abdominais, sobretudo, tive vinte valores; fiz as sessenta ou oitenta flexões abdominais (já não me lembro ao certo de quantas eram) necessárias para conseguir a nota máxima. Na pista de obstáculos tive uma nota um bocado mais fraca, mas mesmo assim muito positiva também. E nas outras provas fui sempre tendo notas igualmente positivas, umas mais altas, outras mais baixas. Até que chegou a última prova, que era o cross, que por si só valia tanto como
as outras provas físicas todas juntas. Esta eu não podia deixar de fazer até ao fim, nem que chegasse à meta de gatas!

O cross final consistia em correr de Mafra até  Sobreiro e voltar. Sobreiro é uma povoação situada a meio caminho entre Mafra e a Ericeira. É no Sobreiro que fica a Casa-Museu de José Franco, onde existe um modelo de aldeia saloia em miniatura, todo feito de barro, que o falecido oleiro criou com as suas próprias mãos e que atrai inúmeros visitantes. Naquele tempo, José Franco ainda era um ilustre desconhecido, que ainda não tinha criado a sua aldeia de barro, e o Sobreiro era uma povoação igual a muitas outras existentes na região saloia.

Eu tive uma enorme dificuldade em fazer o cross, por causa da falta de treino. Por mais do que uma vez, senti as pernas fraquejar. Mas com grande esforço consegui manter o ritmo da passada, sempre igual do princípio ao fim, de tal maneira que cheguei a Mafra em segundo lugar!
— O quê?! O sr. Ribeiro fez o cross todo?! E chegou em segundo lugar?! — exclamou
o Lourenço, que estava junto à meta, quando me viu chegar. — Então eu estava cheio de pena do sr. Ribeiro, porque julgava que era tão fraco que não conseguia completar um cross, e agora completa um e chega em segundo  lugar?! Nem sequer veio no meio do pelotão; chegou logo em segundo ?! Quer dizer que o sr. Ribeiro andou a fingir este tempo todo?! Andou a gozar comigo, foi?! O sr. Ribeiro vai pagá-las! Se há coisa que eu não tolero é que façam pouco de mim! O sr. Ribeiro não vai esperar pela demora! Na semana de campo vamos ajustar contas! Vai ver como
elas lhe mordem! O sr. Ribeiro vai arrepender-se de ter nascido!

Ao longo dos dias seguintes, o Lourenço repetia-me:
— O sr. Ribeiro não pense que eu me esqueço do que se passou no cross! Eu nunca esqueço uma ofensa! E o sr. Ribeiro ofendeu-me! Eu estava cheio de pena de si e afinal o sr. Ribeiro andava a gozar-me.  Na semana de campo o sr. Ribeiro vai pagá-las todas juntas, vai, vai! Não admito que me gozem! Vai pagar com língua de palmo!

 (Continua: O meu curso de oficiais milicianos, pp. 17-26)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

domingo, 7 de julho de 2019

Guine 61/74 - P19953: O Cancioneiro da Nossa Guerra (11): o fado "Brito, que és militar" (Bambadinca, 1970, ao tempo da CCS/BART 2917 e CCAÇ 12) (recolha de Gabriel Gonçalves, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BART 2917 (1970/72) > Convívio no bar de sargentos, em meados 1970, ou em 30 de novemhro de 1970, no 38º aniversário do 1º sargento Fernando Brito; ou ainda, festa de Natal de 1970?

Inicialmente inclinava-me para a hipótese de ter sido em "meados de 1970", ainda estávamos em "lua de mel", os "velhinhos" da CCAÇ 12, e os "piras" do BART 2917, aqui representados, à direita,  pelo 2º Comandante, maj art José António Anjos de Carvalho, sempre fardado, hoje cor art ref, e à esquerda, pelo  1º srgt art Fernando Brito (1932-2014)...

As senhoras: à direita do Brito, a Helena, mulher do alf mil at inf António Manuel Carlão, do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (o casal vive hoje em Fão, Esposende); à direita do Anjos de Carvalho, a esposa do major art, Jorge Vieira de Barros e Bastos (mais familiarmente conhecido por Bê Bê, era o major de operações do comando do BART 2917; hoje cor art ref); e à sua direita, Isabel, a esposa do José Alberto Coelho, o fur mil enf da CCS/BART 2917 ) (o casal vive hoje em Beja).

Mas tudo indica que se trata da festa de aniversário do 1º Brito, em 30/11/1970, apesar de, nessa altura, as relações com o major art Anjos de Carvalho, a três meses de acabar a nossa comissão, serem  muito crispadas e tensas... Dias antes, tínhamos sofrido em brutal revés, no subsetor do Xime, com 6 mortos e 9 feridos graves (Op Abencerragem Candente)...

A CCAÇ 12, como companhia de intervenção, africana, estava adida ao comando do setor L1. Inclino-me mais para a festa de anos do 1º Brito, que era de facto um "senhor 1º sargento", e que mantinha com a malta da CCAÇ 12 uma "relação muito especial"... Se se reparar bem na imagem, o Brito  ostenta uma chucha, ao pescoço, sinal de que fazia anos...  38 anos!... A festa não poderá, pois, ter ocorrido nos primeiros tempos, após a chegada do BART 2917 a Bambadinca, que veio render o BCAÇ 2852 (1968/70), em finais de maio de 1970...

Na altura, estas eram as três senhoras, brancas, que existiam no quartel de Bambadinca (, não contando com a senhora professora do ensino primário, cabo-verdiana, que raramente era vista, mas que vivia dentro das nossas instalações militares, no edifício da escola, a dona Violete da Silva Aires). E não havia miúdos, a não ser os da escola e da população local... Os militares guineenses (da CCAÇ 12 e outras subunidades, como os Pel Caç Nat que estiveram connosco) em geral eram casados e tinham consigo as famílias mas fora do arame farpado, vivendo em Bambadinca ou em Bambadincazinho.

Foto (e legenda): © Vitor Raposeiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Coimbra > 2012 > O Fernando Brito, major art ref, (1932-2014) e o neto, Claúdio Brito,   finalista da Universidade de Coimbra, ano letivo de 2011/2012 (Cortesia do Cláudio Brito, da sua página no Facebook).

Foto (e legenda): © Cláudio Brito (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Fado "Brito... que és militar!"(*)

Letra: Tony Levezinho

[Adapt: Fado "Povo que lavas no rio"

[Música: Fado Victória, composição original de Joaquim Campos (1911-1981)


Letra:
Pedro Homem de Melo 


Criação de Amália Rodrigues, 1961] [Uma interpretação de Amália
pode ser aqui ouvida, no YouTube -ficheio apenas áudio]

Refrão

Brito, que és militar,
Que vieste p'rá Guiné,
Em mais uma comissão.
Na CCS ficaste,
Para aturar o Baldé,
A pedir-te patacão.


Fui ver à secretaria,
Por ouvir a gritaria
Que fazia confusão:
- Mim quer saco de bianda!
- Põe-te nas putas, desanda,
Que a mim cá têm patacão!

Filho da puta e sacana,
É o que eles te chamam,
Tenho a mesma condição:
- Mamadús, eu vos adoro,

Se for preciso eu choro,
Mas Patacão... é que não!

Refrão

Brito, que és militar,
Que vieste p'rá Guiné,
Em mais uma comissão.
Na CCS ficaste,
Para aturar o Baldé,
A pedir-te patacão.


[Recolha: Gabriel Gonçalves / Revisão, fixação de texto: LG]



1. Este fado faz parte do Cancioneiro de Bambadinca, logo, deve integrar o Cancioneiro da Nossa Guerra (**). 

Quem o salvou, do limbo do esquecimento, foi o Gabriel Gonçalves, o 1º Cabo Cripto da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Eu reconheci a letra e o autor da letra, o nosso querido amigo Tony Levezinho.

Quanto ao homenageado, era o Fernando Brito, o 1º Sargento da CCS/BART 2917, que chegou a Bambadinca, para tomar conta do Sector L1, em finais de maio de 1970, quando a malta da CCAÇ 12 já pertencia à velhice, com um ano de porrada e outro batalhão em cima (CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)..

O Fernando Brito (1932-2014) era um senhor, que se impunha não só pelo seu físico e pelo verbo fácil como pela tarimba e pela autoridade... Naturalmente, suscitava amores e ódios, devido à sua personalidade excessiva... Era sobretudo um grande sedutor... 

Tinha uma cultura acima da média, se considerarmos o meio social de origem dos sargentos do quadro. Fazia gala de referir-se à esposa, de ascendência ou de apelido russo, Natacha.

Fazia questão de sublinhar, perante os reles infantes, que pertencia à orgulhosa arma de artilharia. Quando ouvíamos um disparo de obus, no Xime ou em Mansambo, comentava ele:
- Lá se foi mais um fato completo, com gravata se seda e tudo!... (Era o preço de uma granada de obus 10.5; em Bambadinca, nesse tempo, não havia artilharia)...

Não sei porquê, criámos - os furriéis da CCAÇ 12, já velhinhos - uma relação de empatia com o nosso Primeiro Brito, o chefão dos periquitos da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

A nossa CCAÇ 2590/CCAÇ 12 tinha deixado cedo de ter 1º sargento (O Fragata, de cavalaria, foi tirar o curso de oficial, na Escola Central de Sargentos, em Águeda), sendo essas funções desempenhadas interionamente pelo nosso querido 2º sargento inf José Manuel Rosado Piça, alentejano dos quatro costados, grande cúmplice, grande camarada, grande compincha, grande amigo... [Tinha 37 ou 38 anos mas não se foi embora da Guiné sem levar o seu baptismo de fogo... Já no final, nos princípios de 1971, obrigámo-lo a ir ao Poindon, desenfurrejar as pernas e a G-3]...

Qualquer deles, o Brito e o Piça, alinhavam nas nossas noitadas, loucas, de Bambadinca. O Brito tinha, além disso, um "tabanca" (leia-se: uma morança, dentro do perímetro de arame farpado do quartel, mas na parte civil, junto aos correios, escola, casa do chefe de posto)... Era um refúgio, para nós... Íamos lá beber uns copos... Ele e o 2º comandante, o Anjos de Carvalho, não se coziam lá muito bem (, segundo ele me confirmou, mais tarde, ainda em vida)... Nós, por nosso lado, detestávamos o "militarista" do 2º comandante, o senhor professor da Academia Militar Anjos de Carvalho... Mas a "tabanca do Brito" provocava algumas ciumeiras, já que nem todos tinham acesso ao "sítio"... Só os amigos ou os que ele considerava como tais...

Há 43 anos, desde março de 1971, que deixei de ter notícias dele, do nosso "primeiro Brito"... Acabei por ter a felicidade de ainda o apanhar com vida, a um mês de ele morrer, subitamente, antes de completar os 82 anos... Falámos longamente ao telefone... Vivia em Coimbra, já viúvo. Era major, reformado. Fez ainda uma segunda comissão no CTIG, como 1º sargento [1ª CCAÇ / BART 6523 (Madina Mandinga, 1972/74)], antes de frequentar a extinta Escola Central de Sargentos, em Águeda.

Morreu em 19 de fevereiro de 2014. Era (é) o nosso grã-tabanqueiro nº 641. O seu neto Cláudio Brito honra-nos também com a sua presença na Tabanca Grande, com o nº 697.   
_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9144: O nosso fad...ário (5): Fado Brito que és militar (Letra de Tony Levezinho, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

(**) Postes anteriores da série:

16 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19020: O Cancioneiro da Nossa Guerra (10): O fado "Tudo isto é tropa" (recolha de Gabriel Gonçalves, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

14 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18921: O Cancioneiro da Nossa Guerra (9): Os bravos de Bambadinca

29 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18692: O Cancioneiro da Nossa Guerra (8): A Balada de Béli (recolha de José Loureiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 1790 / BCAÇ 1933, Madina do Boé e Béli, 1967/69)

19 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18537: O Cancioneiro da Nossa Guerra (7): "Marcha de Regresso" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)

16 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18528: O Cancioneiro da Nossa Guerra (6): "Os Homens não Morrem" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)

28 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18261: O Cancioneiro da Nossa Guerra (5): O hino dos "Unidos de Mampatá", a CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74)

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18261: O cancioneiro da nossa guerra (4): "o tango dos periquitos" ou o hino da revolta da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (Silvino Oliveira / José Colaço)

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18259: O cancioneiro da nossa guerra (3): mais quatro letras, ao gosto popular alentejano, do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71)

8 de novembro de 2017> Guiné 61/74 - P17944: O cancioneiro da nossa guerra (2): três letras do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71): (i) Os Morcegos; (ii) Estou farto deles, tirem-me daqui; (iii) Fado da Metralha

30 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17811: O cancioneiro da nossa guerra (1): "Asssim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude"... 4 dezenas de quadras populares, do açoriano Eduardo Manuel Simas, ex-sold at inf, CCAÇ 4740, Cufar

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19085: A galeria dos meus heróis (10): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - II (e última) Parte (Luís Graça)

Luís Graça, Contuboel, junho/julho de 1969
Segunda e última parte do texto elaborado para a "Galeria dos meus heróis", série literária da autoria do nosso editor Luís Graça.

O  "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - II (e última) parte


Foi aqui, em pleno "chão manjaco", que o nosso cabo descobriu que tinha jeito para os negócios. E mais: que tinha a estrelinha da sorte a brilhar no seu céu… Um ano depois, voltou a Felgueiras e a Amarante, as suas "duas terras natais".

Vir de férias à metrópole era um luxo só reservado a alguns, aos oficiais e sargentos, milicianos ou do quadro. Raros eram as praças (soldados e cabos) que podiam desembolsar as seis notas de conto que custava a viagem de ida e volta na TAP. Alguns, coitados, faziam das tripas coração, só para poder estar um mês com a família, sendo já casados e com filhos (que mal conheciam ou não conheciam de todo).

Numa região com grande tradição de emigrantes de torna-viagem (Brasil, França…), o "Felgueiras" fez questão de voltar exibindo alguns sinais exteriores de riqueza… Até um carro alugou, no Porto, só para impressionar a família e os amigos que cá deixara. (Poucos, de resto, a maior parte deles espalharam-se pelo mundo fora: uns na Invicta ou em Lisboa, outros na França, outros ainda na guerra do ultramar).

− Sorte ao jogo, azar no amor ?!... Vamos lá testar a roleta da sorte…

De há muito que o "Felgueiras" tinha uma paixão, "assolapada", não correspondida, por um antiga colega do colégio de Amarante, a "morgadinha". A rapariga pertencia a uma família com pretensões a ter "origem fidalga"… Fizera o antigo 5º ano do liceu e o melhor que arranjou, por ali perto, foi um emprego na Câmara Municipal, como administrativa.

Durante o primeiro ano de comissão, o "Felgueiras" e ela trocaram algumas cartas e aerogramas, mas sempre na condição de "amigos, vizinhos e colegas de escola"… Não se namoravam, mas ela também teria um fraquinho por ele.  Aliás, os pais opunham-se, e tinham outros planos para a rapariga, que era filha única: ao que parece, o eleito era um professor primário, que andara a estudar para padre, e que também estava na tropa, em Moçambique, como alferes miliciano. Seguramente, um melhor partido do que o filho do "rendeiro da Lixa"…

Os pais da rapariga não tinham, alegadamente, "dinheiro para mandar cantar um cego" e, muito menos, para mandar restaurar a arruinada fachada da casa, "com brasão", onde viviam, nos arredores de Amarante, herança de um tio-bisavô, cónego da Sé de Braga.

O filho do rendeiro, operário da Tabopan, não era, na verdade, nessa época, um "bom partido", pelo que o "Felgueiras" voltou para a Guiné com um "amargo de boca"…

10. Convencido de que o dinheiro pode "comprar tudo (ou quase tudo), até o amor", acabada a comissão, o "Felgueiras" voltou com uma malota cheia de notas ("escudos", legítimos, da metrópole, trocados pelos "pesos", o patacão, sujo, sebento, da Guiné, lá no Banco Nacional Ultramarino e na "candonga", nos comerciantes de Bissau que cobravam uma taxa de 10%).

Depositou a malota aos pés da rapariga e pediu-a aos pais em casamento, assim, de chofre, à bruta, sem mais cerimónias. Os "fidalgos" nunca tinham visto na vida tanto nota de banco, em maços separados, atados por uma fita… Até desconfiaram que fosse produto de algum assalto…

Estranhamente, a rapariga levantou-se, lívida, sem pinga de sangue, para logo a seguir correr para o quarto, lavada em lágrimas, num pranto… Os pais esboçaram um pedido de desculpa, mais embaraçados e envergonhados que o pretendente à mão da filha. 

A partir deste dia, o "Felgueiras" esqueceu, para sempre, a sua "morgadinha"… 

No dia seguinte, rescindiu o contrato de trabalho que ainda o ligava à Tabopan, e decidiu comprar um bilhete da TAP para visitar Luanda,onde tinha um irmão estabelecido desde que terminara a tropa em 1963.

– Um homem das Arábias, o nosso "Felgueiras" – conclui eu.

− Não, um homem das Áfricas – emendou o Arlindo.− Partiu para Angola com o coração destroçado.

Ex-furriel, camarada do "Felgueiras", maquinista da CP reformado, pai do Jorge, meu vizinho do Marco de Canaveses, voltei a encontrá-lo, ao Arlindo, depois do casamento do filho, mais duas ou três vezes. E foi através dele que fui sabendo mais histórias do "Felgueiras" que, segundo os meus cálculos, terá regressado da Guiné logo em janeiro de 1969…

Sabemos que foi ter com um dos irmãos, o mais velho, o Tó, que se radicara em Angola: foi dos primeiros militares a ir para lá, em meados de 1961, tendo sido um dos bravos da Operação Pedra Verde. Em finais de 1963, terá rumado para a Lunda, e andado metido com "garimpeiros". Depois acabou por abrir um pequeno restaurante em Luanda, lá na Mutamba, na parte baixa da cidade. As coisas melhoraram quando o irmão mais novo, o "Felgueiras",  se tornou sócio. Trouxe dinheiro fresco e sobretudo o tal "jeito para o negócio", talento que tinha descoberto na região do Cacheu, na Guiné.

O início da década de 1970, antes da crise petrolífera de 1973, foi ouro sobre azul para quem tinha "porta aberta" em Luanda. O "dinheiro sujo" da guerra era ali "branqueado". O "ventre de Luanda" regurgitava, os "comes & bebes", a "diversão noturna" e a "indústria do sexo" deram muito "kumbú" (dinheiro, em calão de hoje) a ganhar a muita gente. Havia até um restaurante, o "Floresta", que servia sardinhas assadas de Peniche acabadas de chegar do avião da TAP... 

Inesperadamente, em princípios de 1973, seis meses antes da crise, o "Felgueiras" vendeu a sua quota ao "kota" do irmão Tó, just in time, na hora certa. Parece que adivinhava que o mundo ía ficar louco e que nada voltaria a ser como dantes...Alegava que "queria correr mundo e encontrar a futura mãe dos seus filhos"...

Em troca terá recebido do mano velho um saquinho de "vidrinhos", guardados no fundo de um bau, desde o tempo da Lunda, como uma espécie de pé de meia. O "kota" insistiu que estava ali uma pequena fortuna, mas ele nunca tentara sequer trocar as "pedrinhas" por dinheiro vivo. A Diamang, dizia-se, tinha um braço comprido e o contrabando de diamantes (a "kamanga", como se dizia em bom angolês...) era severamente reprimido. Era um Estado dentro de outro Estado, justificava-se o "kota, seguramente menos "atiradiço" (e "com mais escrúpulos"...)  que o caçula da família.

Por razões óbvias, por se tratar de um assunto "delicado, íntimo", eu nunca puxei a conversa para esse lado, das poucas vezes em que ainda estive (ou falei, ao telefone) com o "Felgueiras", nestes últimos anos, depois do casamento do Jorge e da Clara. Nunca saberei, pois, como é que ele conseguiu eventualmente aumentar a sua conta bancária, com o valor de um saquinho de "vidrinhos". Mesmo para o Arlindo, era uma "assunto-tabu".

− Por favor, camarada, quando voltares a estar (ou falar) com ele, nunca toques na história dos diamantes...Ele ficaria muito aborrecido, se não mesmo melindrado...

Quando conheci o "Felgueiras", ele tinha um passado de "empresário de sucesso", acionista do BPN ("pequena accionista", emendou ele), e chegara a ser inclusive uma "figura grada" da política local e regional. Recordo de me ter confidenciado:

− Nunca fui do reviralho, se é isso que queres saber. Antes do 25 de Abril não me interessava por política. Tocava a minha vidinha… No dia 26 de Abril, apanhei o comboio da democracia, como muito boa gente. E até viajei em 1ª classe. Fui dos primeiros a ter 'cartão partidário'...

− O "abre-te, Sésamo" do novo regime − ironizei eu... mas julgo que ele não percebeu a piada.

Numa região com grande tradição de caciquismo, é fácil, para quem tem o poder (económico e/ou político), tornar-se cacique. O "Felgueiras" não gostava da palavra... Como também não gostava nada de falar desses tempos nem da sua "pública e notória" participação nos acontecimentos do "verão quente de 75".

Considerava-se, antes de mais, "um português, patriota" (...), "com o coração talvez mais à esquerda e a razão seguramente mais à direita" (...), "mas hoje afastado das lides político-partidárias" (...) "onde quem manda é a canalha, que nunca foi à tropa e muito menos à guerra".

− Limito-me a ter as quotas em dia… Mas já ninguém me escreve, ou telefona, pede conselho, convida ou visita. Parece que tenho lepra...

Começou, "modestissimamente" (sic), como autarca, presidente da junta de freguesia da sua terra natal. Ajudou o partido a ganhar as eleições municipais. Foi eleito vereador municipal, e chegou inclusive a substituir, por uns tempos, o seu grander amigo e correligionário que iria depois ficar à frente dos destinos do município. 

"Os maiorais da distrital do Porto" chegaram a sondá-lo para aceitar um lugar, elegível, nas listas do partido, como candidato à Assembleia da República, mas ele recusou, com orgulho e desprezo:

− Lisboa ?!... Nem pensar!

Tocou os seus negócios, alargou o seu estaleiro de construção e obras públicas, ganhou uma fortuna (um "pequena fortuna", como gostava de precisar...) com os contratos de empreitada por adjudicação direta, "fez estradões, pontes, escolas, creches, lares de idosos, campos de futebol, redes de água e saneamento, rotundas, repuxos, viadutos,túneis, quartéis de bombeiros"…

− Levei o progresso a quase todo o lado, aqui no Vale do Tâmega, em vários concelhos... Ganhei e dei a ganhar muito graveto. Aliás, este sempre foi o meu lema de vida, ser grato e estimar sempre quem te quer bem… Perdi dinheiro, isso, sim, e muito, com o túnel do Marão. Veio a crise, vieram os tubarões do fisco e da segurança social, fechei a empresa, mandei mais de 100 homens para o desemprego, dezenas de máquinas e camiões foram parar à sucata… Mas estou vivo, graças a Deus!

− Lamento imenso, é uma vida de trabalho... E o futebol ?

− Ainda fui tentado, no início dos anos 90, nos meus anos de ouro, a meter-me no futebol. Por vaidade, ou por influência de falsos amigos, bajuladores, que gostam de te oferecer presentes envenenados.

− Mas era a tua "coroa de glória"! ?...

− Nem pensar, percebi logo que aquilo era um sorvedouro de dinheiro e um ninho de víboras… O futebol, camarada, é uma amante cara!... E às tantas, deixas de ter sossego, vida privada e corres o risco de teres de recorrer ao teu mealheiro para pagar os ordenados ou os prémios e as avenças dos técnicos e dos jogadores. Hoje é tudo uma canalha, essa rapaziada que gira à volta da bola… E já há não amor à camisola!... Como não há amor à Pátria!...

− E muita ingratidão também, não ?!

− Um gajo passa facilmente de bestial a besta. O povo hoje é ingrato. Tanto te põem-te no pedestal, erguem-te uma estátua, como no ano seguinte já estão a apear-te… Vê o que se passa com o homem da tua terra,  a quem o Marco tanto deve, perdeu as eleições, e já querem tirar-lhe o nome do estádio e da avenida principal… Ingratidão, é um dos nossos piores defeitos, podes escrever aí.

− Deixa-me ser franco contigo: não concordo que, em vida, se dê o nome a ruas, praças, avenidas, estádios, escolas, aeroportos, etc., a gente que ainda está viva. Hoje podes ser um herói, e amanhã um proscrito social. Vê o que aconteceu ao nosso Zé do Telhado, Torre e Espada, desterrado para Angola…

− O Zé do Telhado, o memso que limpou ao Zé Pequeno, e lhe cortou a língua, por traição, aqui na  Lixa!...

− Sim, isso mesmo. Vejo que estás por dentro da história da tua terra.

− Já o meu avô me contava essas peripécias... Eu também tenho um pouco esse jeito do Zé do Telhado, que roubava aos ricos para dar aos pobres...

− Exageros do Camilo Castelo Branco de quem foi amigo nba Cadeia da Relação, no Porto, por volta de 1860...

− Eu, por mim, gosto é de fazer o bem, e muitas vezes sem olhar a quem. Não é por acaso que me chamam (ou chamavam o "padrinho")… Tenho montes de afilhados na região, o Jorge é mesmo o último. Também já fechei este departamento, que me ficava caro, e trouxe-me dissabores.

− Padrinho... ?!

− Sim, padrinho, tenho muitos afilhados, de batismo, crisma, casamento. E no bom tempo, quando eu ainda mandava qualquer coisinha, meti muita cunha para muito boa gente, a começar pelos que tinham mais mérito e necessidades, para empregos nas autarquias, nas empresas, na banca, nas escolas, nos centros de dia, nos lares de idosos, eu sei lá. Até na tropa, quando ainda havia serviço militar obrigatório… Até ao bispo cheguei a ir...

−… Sem olhar a quem ?!

− Sim, sem olhar a quem!... As pessoas também fazem o favor de serem minhas amigas. E eu não me faço rogado quando me convidam para ser padrinho de casamento. Ainda para mais quando o pedido vem de um antigo camarada da Guiné… Neste caso, não foi um pedido, foi uma ordem!

− Sei que ainda voltaste à Guiné…

− Sim, há uns largos anos atrás, para "matar saudades". Fui com malta de uma ONGD, com trabalho realizado no setor de Canchungo, e para a qual eu fazia as minhas doações, em géneros e em dinheiro. Levaram um contentor com vestuário, material escolar, livros, mobiliário… Havia (não sei se ainda há) uma missão católica que fazia a distribuição. Mas, confesso, fiquei triste com o que vi...

O "Felgueiras" voltou, de facto, aos sítios por onde andara entre 1967 e 1968… Mas aí teve uma "experiência desagradável"… Uma mulher, na casa dos seus quarenta, abeirou-se do jipe dele e gritou: 

− Tu és o meu pai!

Na realidade, era filha de uma mulher manjaca, cristã, com quem o "Felgueiras" tivera um relacionamento, de apenas "dois ou três meses", no segundo ano da comissão. Ele ajudava a família com comida e dinheiro, mas nunca deu conta de que ela estivesse grávida, muito menos dele. Ambos tomavam "algumas precauções" (sic)... Feitas as contas, a mulher que dizia ser sua filha, tinha nascido em finais de 1972 ou princípios de 1973. Nunca poderia ser sua filha, já que ele estava a viver em Angola desde 1969…

− E se fosse minha filha, eu estaria disposto a reconhecê-la e a ajudá-la, inclusive a obter a nacionalidade portuguesa… O meu capitão, esse, ao que parece, é que lá deixou um filho, toda a gente sabia dessa história que, em boa verdade, me entristece.

O "Felgueiras" nunca me quis falar desse caso que manifestamente o incomodava. Foi o Arlindo quem, mais tarde, falou, com mais detalhe e à vontade, da história do capitão da companhia do "Felgueiras". Dizia-se que tinha feito um filho à lavadeira, mas nunca chegou a conhecer e a reconhecer a criança, que terá nascido ainda antes da comissão terminar, por volta do Natal de 1968. Um dos furriéis da CCS do batalhão, que editava o "jornal de caserna", até fez uma quadra popular, brejeira e satírica, alusiva ao “Santo António”… Toda a malta achou logo que assentava que nem uma luva na figura do comandante da companhia do "Felgueiras".

− Tornou-se popular no Batalhão, viemos a cantá-la no "Uíge", de regresso a casa, com música de fado e tudo… Nas costas do capitão, pois claro... Se bem me lembro, rezava assim:

Santo António foi à guerra,
Na Guiné perdeu os três,
Foi bajuda lá da terra
Quem o menino lhe fez.

Ao que parece, o "Felgueiras" achava a brincadeira de mau gosto, e mesmo ofensiva do bom nome do seu comandante, por quem tinha grande admiração e estima. O capitão era, de resto,  popular entre a rapaziada da companhia, mas motivo de chacota pelo resto do batalhão.

− O meu coração ficou na Guiné – disse-me um dia o Felgueiras", com alguma emoção no tom de voz... 

− E Angola ?...

− Em Angola até vivi mais anos, mas era outra gente. Enfim, Angola foi boa para os negócios.

Não lhe perguntei como nem porquê. Também nunca mais o vi. Também soube que casara, que tinha tido 2 filhos e 4 netos, e que entretanto enviuvara para, logo a seguir, no ano passado, morrer de cancro no pâncreas. Uma morte quase fulminante, em menos de três ou quatro meses. Um choque para todos, família, amigos e afilhados. E até para os seus inimigos, políticos, que ele também os tinha e não eram poucos.

− Os anos não perdoam. E os de África contam sempre a dobrar – lamentou-se o Arlindo, que perdeu "um bom amigo e um melhor camarada". O seu compadre não tinha completado ainda os 75 anos de idade.

E eu, por mim, só soube da notícia em agosto passado, quando estive no Norte, antes das vindimas. A minha homenagem, tardia, chega agora, sob a forma desta história de vida do "Felgueiras" (1943-2017). Lamento a sua morte precoce e tenho pena que ele não tenha chegado a reencontrar o "Paranhos", seu braço direito, nem a conhecer os régulos e demais camaradas da Tabanca de Matosinhos.

Talvez algum leitor conheça o "Paranhos" e ainda lhe possa dar, mesmo atrasada, a triste notícia da morte do seu amigo e camarada "Felgueiras". É de todo improvável que o "Paranhos" conheça este blogue... como a maior parte dos camaradas da Guiné, agora no ocaso da vida.

[Costuma-se prevenir o leitor de textos literários como este, de que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados podem ou não inspirar-se em factos reais. Se no final o leitor se sentir desconfortável, peço-lhe que volte para a cama e continue a dormir, descansado, como eu faço: afinal a guerra colonial nunca existiu, foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós. Boa noite.]
_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19084: A Galeria dos meus heróis (9): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - Parte I (Luís Graça)