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segunda-feira, 18 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20988: 16 anos a blogar (13): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte II (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto alusivo ao 25 de Abril em Lisboa e ao dia 26 em Bissau, de que se publica hoje a segunda e última parte.


Excursão à revolta do 25 de Abril: 
Cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné. 


Parte II

Gen Carlos Azeredo
No Porto, o Tenente-Coronel Carlos Azeredo e a sua malta do MFA gastaram apenas 8 minutos a consumar o êxito do 25 de Abril em todo o Entre Minho e Douro - até o Covid-19 acha que o Norte é uma nação -, fizeram apenas duas prisões, o 2.º Comandante e o Comandante da Região Militar, e por menos de 24 horas, e decidiram não prender o seu General Comandante, sem dúvida pessoa importante, considerando que aquele Quartel General era a sua residência familiar, a sua filha estar de casamento marcado para o dia 27 e serviço da boda contratado para ser servido seu Salão Nobre.

Em Lisboa, o 25 de Abril foi feito à grande e à escala de Clausewitz; no Porto foi feito à “Português Suave” e à moda de D. Afonso Henriques, em Guimarães!

O “vírus” do MFA surgiu na Guiné, em 1972, o General Spínola o seu profeta e os capitães “seus rapazes” da Spinolândia os seus apóstolos, no contexto da sua ambição de substituir o Almirante Américo Tomás no cargo de Presidente da República, para o que contava com a cumplicidade de Marcello Caetano; tendo-lhe este roído a corda, ao saber que diligenciava apoios políticos de Sá Carneiro, de Pinto Balsemão e da Ala Liberal e de Mário Soares, Salgado Zenha, da Acção Socialista Portuguesa, mantendo a cumplicidade com os seus capitães, como “barriga de aluguer” para a mudança. A influência do feitiço da Guiné e da dinâmica do pensamento e acção de Amílcar Cabral a contaminar militares e políticos portugueses, e, plausivelmente, a grande oportunidade perdida de dar um fim decente e justo às guerras ultramarinas.

Em 1972, o PAIGC estava na mó de baixo e o seu “balneário” de guineenses e cabo-verdianos era um saco de gatos. Foi quando Amílcar Cabral foi à Rússia implorar armamento da última geração. Ouvi Nino Vieira dizer na RTP que ele agitava o catálogo do míssil Strela enquanto implorava aos seus interlocutores: - A nossa luta está a morrer de sede; a União Soviética tem nesta arma a nossa salvação. Não nos deixem morrer de sede.

A União Soviética não se fez rogada e veio em seu socorro, redimensionou o armamento do PAIGC e, em Março de 1973, o seu semi-secreto míssil Strela chegava à Guiné e os seus operadores prontos para retirar a supremacia do seu céu aos pássaros metálicos de Base Aérea n.º 12, em Bissalanca.

Sendo a espinha dorsal do Exército, a classe dos Capitães é tradicionalmente refilona, qual espinha na garganta das hierarquias. No meu tempo já reclamavam contra as “violências do Ministério do Exército”. A revolta antecedente, o 28 de Maio de 1926, havia sido detonada por capitães (mas com hierarquia, o General Gomes da Costa o seu chefe) e foi a guerra do Ultramar que fez esgotar o prazo de validade dos quase 50 anos de centuriões e de convívio da classe com o regime do Estado Novo.

O 25 de Abril de 1974 foi detonado pela mesma classe dos Capitães, “rapazes da Guiné” na sua maioria, improvável, por ser um colectivo, e horizontal, sem chefe nem hierarquias. Uma revolta acéfala, quase perfeita, mas com consequências.

 Junta de Salvação Nacional

A operação “Viragem Histórica” não deixou cair o poder na rua, o MFA não quis o poder formal e personificou-o de imediato nos seus “padrinhos” Generais António de Spínola, Costa Gomes e na Junta de Salvação Nacional. Os seus actores regressaram aos seus quartéis, o Major Otelo, seu comandante operacional em Lisboa, voltou a instrutor na Academia Militar, o Tenente-Coronel Azeredo, seu comandante operacional no Porto, manteve-se sem comando nem comandados, a aguardar a Junta Médica do Hospital Militar, para o passar à reserva como “deficiente mental” e o Capitão Vasco Lourenço, o seu enfant terrible e locomotiva da revolta, protagonizou-o no seu desterro nos Açores.

A par da vitória do movimento em todo o universo português, da efectivação em Lisboa do poder político e da cadeia de comando militar, do Minho a Timor, na manhã do dia 26, o MFA de Bissau detonou a sua própria revolta, desnatou o Comando Militar na Guiné da sua cúpula, alardeando que o PAIGC e a Guiné eram a mesma coisa, os seus factores não eram arbitrários e começou a fazer o seu caminho, mais para se libertar e libertar Portugal da Guiné que libertar do seu povo. Com tão insano proceder num estado de guerra, o MFA da Guiné tornou-se em potencial vitorioso do PAIGC, e, sem ter legitimidade, subtraiu a Portugal o seu peso negocial.

Acontecera a primeira deriva do MFA. Não é preciso galões para saber que a melhor negociação é sempre conseguida a partir de posição de força e não com piedosas declarações de intenção da capitulação.

O MFA abriu avenidas a movimentos de opinião, legalizou 13 partidos políticos, 10 revolucionários de esquerda, apenas 3 moderados, decretou a proscrição dos movimentos da Direita e ele mesmo se dividiu em duas 2 facções político-militares: os spinolistas, representando cerca de 20%, tendenciais a um certo cesarismo, personificado pelo General Spínola e os “puros”, representando 80%., mais ou menos afectos à personalidade do General Costa Gomes.

Com o PREC (Processo Revolucionário em Curso), o MFA “empalmou” os spinolistas, passou a dividir o poder com a rua e a sua massa dos “puros” dividir-se-á em 3 facções: os moderados, da democracia por eleições justas e livres, respaldados no General Costa Gomes; os gonçalvistas, filo-comunistas ou engrenados nas suas estruturas partidárias, afectos ao General Vasco Gonçalves; e copconistas, os esquerdistas contestatários da democracia formal e os revolucionários da democracia directa, que converteram e alçaram a seu profeta Otelo Saraiva de Carvalho, ora graduado em Oficial-General.

As consequências da acefalia hierárquica do MFA começavam a vir ao de cima: o divisionismo resultou no PREC, no abandalhamento dos quartéis, que espantou o mundo e tanto maculou a honra castrense das FA Portuguesas, a tragédia da descolonização do Ultramar e a acelerada instalação do caos na organização económica da Sociedade portuguesa. O MFA que se portara à altura de todas as solicitações militares, parecia desconhecedor do seu próprio povo e da sua história.

Cap Salgueiro Maia
Os efeitos da sua acefalia e do seu colectivismo tiveram a sua evidência logo no seu primeiro momento vitorioso: aceitaram que Marcello Caetano, já rendido ao MFA e prisioneiro do Capitão Salgueiro Maia, lhes escolhesse o General Spínola para Presidente da Junta de Salvação Nacional/ Presidente da República de Portugal e, por inerência, Supremo Comandante das Forças Armadas!...

O MFA começou o seu desvario menos de 2 meses após o sucesso da sua revolta, ao tirar o tapete ao Prof. Palma Carlos e ao seu Governo, na sua falta de análise da discrepância da lógica civilista e de “estado de direito” do Governo com a lógica militar e voluntarista do seu Programa, e, enquanto noviços da democracia, sobrepuseram-se a democratas militantes, ajuizaram o valor da sua proposta ao Conselho de Estado, órgão composto por 12 militares e 7 civis, com poderes constituintes, escolhidos pelo MFA, como golpe conspirativo. Em última análise, propunha-se a busca de um “quadro jurídico”, pela troca da prioridade de Descolonizar, Democratizar e Desenvolver, pela de Democratizar, Descolonizar e Desenvolver, com começo na rápida eleição do Presidente da República e por um governo legítimo, empossado por ele.

Republicano e civilista, para o I Governo Provisório só o Povo legitimava o poder, uma cabeça um voto era urgente, um direito inalienável, daí a prioridade atribuída à democratização; para os “Capitães de Abril”, o poder residia no Programa do MFA, a sua legitimação residia no seu colectivo e no poder das suas armas, o controle político do Governo era uma prerrogativa revolucionária da Comissão Coordenadora, a descolonização tinha prioridade sobre a democracia formal.

E, enquanto considerou que, com a transferência da ditadura portuguesa para a ditadura dos seus partidos únicos e armados, sem permissão de outros partidos políticos nem quaisquer eleições, os povos do Ultramar ficariam automaticamente “livres”, o MFA procrastinou durante mais de 2 anos a democracia a Portugal, impôs-nos eleições constituintes, legislativas e presidenciais, e, após a instituição da nossa democracia pluralista, ainda a tutelou durante 7 anos com um Conselho da Revolução.

Gen Vasco Gonçalves
O MFA dos Capitães abrira-se às hierarquias, a Comissão Coordenadora alçou o seu presidente, Coronel Vasco Gonçalves à chefia do II Governo Provisório e começou a fazer o seu caminho para retirar o General Spínola de inquilino do Palácio de Belém, tecendo uma “teoria da conspiração”, ao embargar a manifestação em seu apoio, a ”Maioria Silenciosa”, segundo os seus promotores, coordenada pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, que havia comandado a “Operação Tridente” e derrotado o PAIGC nas ilhas do Como, Caiar e Catunco, ou a conspiração do “28 de Setembro”, segundo o MFA e políticos apoiantes, que o COPCON desmantelou, a prender organizadores e manifestantes, a dinamizar cortes das estradas, barricadas e a permitir que milícias populares molestassem e prendessem pessoas a eito, por impulsão do fogoso Capitão Vasco Lourenço, o que o popularizará como o Capitão “Melena e Pá”. Vasco Lourenço aqueceu o forno e Otelo Saraiva de Carvalho coseu o pão. Como esse poder na rua foi concessão do COPCON, o evento serviu para germinar a facção político-militar copconista ou revolucionária, a que ele dará o seu patrocínio.

O Primeiro-ministro Vasco Gonçalves ascendeu ao generalato, formou e chefiou mais 3 governos provisórios mas populistas, o germe da facção político-militar gonçalvista, e, sem mandato do povo e na ausência de qualquer quadro político democrático, mudou profunda, embora provisoriamente, a nossa organização económica, com não raros atropelos à nossa realidade de 3.º país mais antigo do mundo, o respeito merecido pelos 900 anos de independência, de instituições governamentais e de história e, no referido à descolonização, os deveres e responsabilidades contraídos por Portugal para com os seus povos, ao longo de 500 anos da sua soberania ultramarina.

Em 11 de Março de 1975, eclodiu em Lisboa uma esquisita tentativa de golpe de Estado, anti-MFA, por terra e pelo ar, com o pretexto de prevenir o massacre de largas dezenas de militares e civis sob o nome código de “Matança da Páscoa”, a perpetrar por revolucionários naturais e internacionais (até constava haver tupamaros aboletados no Ralis!…), segundo informações do governo franquista de Madrid. O MFA superou-o e aproveitou para retirou a facção spinolista da circulação, catrafilando-a e a muitos civis na cadeia; os escapados à captura foram conspirar para a Espanha, organizaram-se no MDLP, e, por ironia do destino, constituirão o potencial estratégico dos moderados do 25 de Novembro, que meter na cadeia os gonçalvistas e os copconistas

11 de Março de 1975

Senti revolta, quando proeminentes Capitães de Abril não tiveram pejo em ir a Cuba pavonear-se de revolucionários e reverenciar Fidel Castro, apenas um ano era passado sobre a crise dos 3 G´s, planeada e comandada por oficiais do exército regular cubano, destacados para o PAIGC, que ajudaram a matar 63 e a ferir gravemente em combate 269 seus e nossos camaradas de armas, o preço do nosso sangue desses eventos bélicos; e o MFA não teve pejo em disponibilizar o aeroporto da ilha de Santa Maria, Açores, a Cuba, para escala técnica do trânsito do exército cubano, a substituir-se a Portugal em Angola, a ajudar o MPLA a espoliar os bens e na expulsão de centenas de milhares de portugueses, muitos com apenas a roupa do corpo (os Retornados).

É a memória que faz a História e não o contrário. Um facto não comentado e quase desconhecido: em 1973, a agenda de Marcello Caetano passara a inscrever a autodeterminação do Ultramar africano. Os Estados Unidos e a União Soviética “estiveram” na operação “viragem Histórica”?

Em 25 de Abril de 1974, a esquadra da NATO da operação “Daw Patrol” estava fundeada no Tejo e o MFA sabia - o então Comandante Rosa Coutinho estava de serviço ao “quarto da noite” no Comiberlant, em Oeiras, - que não dispararia sobre os revoltosos, não obstante a fragata canadiana Huran apontar os seus canhões ao Terreiro do Paço. Quando do 11 de Março de 1975, a informação da “Matança da Páscoa” teve origem em Moscovo e o evento coincidiu com a operação “Intex 75” da NATO, com passagem por Lisboa.

A prioridade civilista “democratização” não vingou sobre a prioridade militar “descolonização”. Na afirmativa, será plausível os contactos preliminares bilaterais terem passado a negociações sérias, prevenidos o êxodo ou o milhão de retornados do Ultramar, os mais de dois milhões de mortos das guerras civis subsequentes e o empobrecimento de colonizador e de colonizados e até os legítimos interesses dos 500 anos de soberania portuguesa salvaguardados.

A FNLA e o MPLA tinham perdido a guerra de Angola por falta de comparência, as negociações da sua autodeterminação estavam praticamente concluídas com Jonas Savimbi e a UNITA, a conceder em 1975, trabalho começado pelos Generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues e levado a bom porto pelo Eng.º Santos e Castro e os Generais Soares Carneiro e Passos Ramos (irmão do major homónimo assassinado no Pelundo-Guiné). No respeitante a Moçambique, havia negociações conduzidas pelo Eng.º Jorge Jardim. A Guiné era o nosso calcanhar de Aquiles, mas havia contactos com o PAIGC, do Comandante Alpoim Calvão e Luís Cabral.

Começar a descolonização pela Guiné e não por Angola terá sido o maior erro estratégico do MFA ou da descolonização portuguesa. O Programa do MFA inscrevia-a, mas nem a discutira nem a planeara, houve navegação à bolina, não se olhou para as origens das ondas e foi liquidada com a acelerada retracção militar, sem equidade, pelo abandono, para espanto do mundo - e Portugal ficará sob o protectorado do FMI, Fundo Monetário Internacional.

Portugal foi a única potência que fez a descolonização, a empobrecer colonizador e descolonizados.

Eleições Legislativas de 1975

Na sua curta era, o MFA garantiu-nos as eleições constituintes e legislativas e fez outras coisas notáveis, como o Recenseamento Eleitoral, a organização do regresso de centena de milhares de refugiados e a instituição do IARN, que realizou a sua integração plena.

A coragem e a generosidade são fontes do erro e foram apanágio dos “Capitães de Abril”. Mas o seu maior legado é a nossa Democracia.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20984: 16 anos a blogar (12): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

domingo, 17 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20984: 16 anos a blogar (12): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto alusivo ao 25 de Abril em Lisboa e ao dia 26 em Bissau, de que se publica hoje a primeira parte.


Excursão à revolta do 25 de Abril: 
Cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné. 


Parte I

Abril legou a Maio a Primavera, o seu esplendor e a pandemia do Covid-19, esse sinistro vírus rotundo e cornudo.

Os poetas cantam que “a primavera vai e volta sempre,/A mocidade vai e não volta mais”, as zaragatoas neofaríngeas ajudam a confirmar que esse malvado pode ir e voltar, os epidemiologistas consideram-no democrático, mas, do seu regime, nós apenas vamos conhecendo, hora a hora, dia a dia, o número de infectados, dos seus condenados à morte, e experimentado o confinamento e a distanciação social - a praxis das ditaduras (ou ele não seja made in China).

O confinamento encurta o prazo de validade do nosso grupo etário, provoca o esvaziamento das garrafeiras, cuida da alteração dos valores da nossa composição química, com erupções de ácido úrico, diabetes, colesterol, a escalada da tensão arterial, e, no relativo à distanciação social, cuida de enfraquecer a nossa resistência mecânica, com o reumático e pela rarefacção daqueles movimentos mecânicos de corpo a corpo, para os quais os irracionais têm época própria, mas que a espécie humana exercita todo o ano. Que a Ciência, essa divina componente da espécie humana, o sepulte rapidamente no inferno.

Panorâmica da Avenida dos Aliados, no Porto, a 1 de maio de 1974. O primeiro 1º de Maio em liberdade
Foto e legenda com a devida vénia a Expresso

Como os ecos das celebrações “nacionais” do 25 de Abril e do 1.º de Maio ainda não se esvaíram, começo a servir esta prosa memorialista, confeccionada nessa ditadura temporal do Covid-19, pondo o avental de contestatário: não perdi nem a devoção ao 25 de Abril nem a estima pelos “capitães de Abril”, sou crítico da impreparação política e derivas do MFA, sou contrário aos feriados nacionais do 25 de Abril e do 5 de Outubro, porque celebram as mudanças de regime, pela sua lógica triunfalista, divisionista, o oposto da união, e, em desafio à gramática, sou crítico de se grafar República Portuguesa e não República de Portugal.

A celebração do 1.º de Maio, pela sua dimensão mundial, abrangente pelo seu sentido de exaltação da dignidade do trabalhador e do emprego, como criadores de toda a riqueza da espécie humana, da sua distribuição, equitativa como direito natural, é merecedora do decreto de feriado nacional.

Invocando o princípio de equidade e considerando a nossa maioridade cívica um dado adquirido, preconizo a substituição de alguns feriados nacionais, celebrativos das mudanças de regime e religiosos (dias santos) por outros, celebrativos da nossa história e identidade, por exemplo da fundação da nacionalidade, da independência nacional, da Batalha Real (de Aljubarrota), do nosso primeiro Descobrimento marítimo, etc.

A celebração do primeiro 1.º de Maio de 1974 do após 25 de Abril foi de toda a gente, abrangente, à dimensão nacional, ainda a CGTP nem era ideológica nem havida cometido o seu pecado original de complementar um partido político, um milhão de pessoas celebrou-o em Lisboa, um pouco menos celebrou-o no Porto, o país um mar de unidade nacional, de maturidade cívica e a primeira evidência da pureza e sinceridade do ideal dos “capitães de Abril”, cujas projecções matemáticas davam 95% de adesão à sua revolta. Foi um massivo aval do Povo ao MFA.

No referido neste blogue à celebração pelo PAIGC do 28 de Maio de 1965 com a CArt 676, em Pirada, a efeméride da gestação do regime do Estado Novo não era feriado nacional, mas o PAIGC sinalizava-a com bombardeamentos nocturnos e a fogachar as tabancas fronteiriças; desgastar o moral e matar a tropa era o seu intento, mas as granadas são cegas e geralmente matavam e estropiavam crianças, mulheres e velhos, seus compatriotas.

O PAIGC celebrou o 28 de Maio de 1965 não só em Pirada, mas também noutras quadrículas; chamou a minha CCav 703 à colação da sua celebração, sobre a população fula e mandinga da tabanca de Buruntuma, no extremo Leste, com tiro tenso e curvo, de armas ligeiras em proximidade e de armas pesadas em território estrangeiro, o seu gozo e o nosso mau bocado duraram menos de 5 minutos – arriscamos o envolvimento à sua retaguarda, no estrangeiro - e o resultado da sua celebração foi: PAIGC, 2 (mortos) – Tropa e população, 0 (mortos).

As suas flagelações sobre a CCav 703 e a populosa tabanca de Buruntuma tornaram-se rotineiras – pela alvorada, pela hora do almoço e pela hora de recolher. Nesse mesmo ano, obrigou-nos a participar na sua comemoração nocturna do 19 de Setembro, aniversário do seu líder Amílcar Cabral, e, também, na celebração nocturna de 24 de Setembro, aniversário da sua fundação, paternidade que ele nunca usurpou, mas que “historiadores” do politicamente correcto teimam em lhe imputar, expropriando-a ao pedreiro comunista Rafael Barbosa. Porquê? Por a PIDE não o ter liquidado, hospedado no Tarrafal e por ele ter regressado a Bissau “reeducado”, adversário do PAIGC e entusiasta do spinolismo.

O engenheiro agrónomo Amílcar Cabral só não foi hóspede do Tarrafal, quando estudava os solos e subvertia o “proletariado rural” do sul e do leste da Guiné, porque o Governador Comandante Melo e Alvim, bom conhecedor do povo e da realidade guineense, o estimava e não deixou. Liderou a guerra de libertação da Guiné, é o pai da Nacionalidade bissau-guineense, não foi o pai fundador do PAIGC, mas seu padrasto.

Para não deixar os meus parcos créditos de veterano e de cronista da Guerra da Guiné arrastar-se pelas ruas da amargura, não resisto em abordar os acontecimentos do mês de Maio de 1973 – as celebrações bélicas do PAIGC sobre Guileje, Gadamael e Guidaje -, ou “crise dos 3 G´s”, cuja extensão e profundidade provocaram a gestação do 25 de Abril e serviram de rampa de lançamento à sua declaração unilateral de independência.

O impensável aconteceu na guarnição de Guileje, nesse mês de Maio de 1973. A guerra contava 12 anos, muito aguerrida e dura no sul, e, pela primeira vez, um oficial superior do Exército Português baixou a espada, de renúncia ao combate e à soberania de Portugal sobre o sector militar que comandava, concedendo às FARP a sua primeira libertação territorial - o seu aquartelamento fortificado, deserto de tropa, e a sua tabanca, deserta de gente.

A “Operação Amílcar Cabral” havia sido idealizada por ele, e, em sua memória póstuma, o PAIGC confiou o planeamento e o seu comando no terreno a oficiais cubanos, seus cooperantes. Nesse mês de Maio de 1973, as suas FARP (Forças Armadas Revolucionárias Populares) de Nino Vieira (comandante) e Pedro Pires (comissário político) fizeram da tabanca, das suas acessibilidades e do aquartelamento de Guileje, no sul, o seu campo de tiro tenso e curvo, montaram emboscadas sangrentas nas suas acessibilidades, a privá-la de água e reabastecimentos, orientaram e acertaram-lhe com mais de 900 obuses.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A população e os militares abandonaram Guileje, às 5,30h, a caminho de Gadamael. Esta foto, dramática, é da presumível autoria do Fur Mil Carlos Santos, da CCAV 8350 (1972/74), segundo informação do seu e nosso camarada e amigo José Casimiro Carvalho, também ele da mesma unidade ("Os Piratas de Guileje") mas que nesse dia estava em Cacine. Faz parte do parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje. 
Foto: AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados. [ Editada por C.V.]

Por sua análise da situação, o comandante do sector Major Coutinho e Lima reagiu a esse dilúvio de metralha inimiga pelo descarte ao combate, optou pela economia de sofrimento, sangue e na prevenção a aprisionamentos. Contrariando as ordens presenciais do Comandante-Chefe, manobrou a retirada ordenada da guarnição para Gadamael Porto, secundada pelo êxodo da totalidade população, na sua aversão à sua “libertação” pelo PAIGC. Terá negligenciado que transferia a problemática de Guileje para essa tabanca e subavaliado a elevada remuneração que concederá à avidez territorial do PAIGC e da sua propaganda internacional: abandonou a principal base fortificada de soberania portuguesa, na extensa fronteira entre Buruntuma e Aldeia Formosa (Quebo), e, pela sua incompatibilidade com a táctica furtiva dessa retirada, teve de deixar para trás 2 obuses de 140, autometralhadoras Fox, granadeiros Whaite, camiões Mercedes e Berliet, morteiros de 82, de 107, bazucas de 89, algumas G3, bens de aquartelamento e provisões da intendência, incluindo os whisquies do seu bar de oficiais, mapas do Estado-Maior, etc., etc.

Então, a partir de 28 de Maio de 1973, o PAIGC passou a içar a sua bandeira no pau da bandeira, na parada desse aquartelamento fortificado, que pertencera à bandeira nacional, e o mundo viu-se invadido pela sua propaganda gráfica e audiovisual, com enfoque nos cenários do abandono pelo Exército Português das instalações, do içar da sua bandeira e daquele volumoso espólio de guerra, acreditamos que deixado inoperativo. E foi a crise de Guileje que credibilizará junto da OUA, da ONU e das chancelarias de países ocidentais a futura manobra do PAIGC da declaração unilateral da independência, no Boé, em 24 de Setembro seguinte, que encravilhou mais a diplomacia de Portugal.

Como Guileje era uma base bem armada e com abrigos de betão armado, construídos pela Engenharia militar, os planeadores dessa operação não previam a sua autoderrota, o seu principal objectivo seria a captura de alguns prisioneiros, para trunfo e trofeu, (a “Operação Mar Verde” tornara a sua cadeia em Conacri devoluta de militares portugueses). Este sucesso artilhou-lhes o etos belicista, as FARP avançaram do estrangeiro o seu armamento pesado cerca de 15 km no interior da Guiné e sacrificaram a tabanca de Gadamael-Porto com o seu dilúvio de metralha, apenas protegida com valas a céu aberto, ora pejada de gente em pavor, de tropa desmoralizada e à beira de um ataque de nervos.

Ouvi o comandante Pedro Pires dizer na RTP que as coordenadas e a precisão do tiro curvo sobre Gadamael lhes foram facultadas por um desses mapas de Estado-Maior, deixado para trás em Guileje. Depois de terem gasto mais de 1000 obuses a destruir instalações e a revolver o espaço de Gadamael Porto, investimento alto mas de parcos os resultados, as FARP foram forçados à retirada acelerada para os seus refúgios no estrangeiro, ameaçadas pelo general “época das chuvas” e já a confrontar-se com os reforços de tropas especiais, vindas de Cufar, de Bissau e até de Guidaje, em reforço da sua defesa, sua missão extensiva ao assalto e destruição das suas bases de retaguarda, em Kandiafara, Simbel e Tarsaia, na Rep. da G-Conacri, manobra idêntica à que havia destruído e pilhado a base de retaguarda em Cubam-Hori no Senegal, que alimentava a operação sobre Guidaje.

Major Correia de Campos
Nesse mesmo mês de Maio de 1973 e quase em sintonia com os desenvolvimentos em Guileje, as FARP de Chico Té (comandante) e Manuel dos Santos (comissário político), cumprindo e sintonizados com o planeamento e o comando operacional e oficiais cubanos, também cercaram a tabanca de Guidaje por todos os lados, na fronteira com o Senegal, despejaram mais de 1000 obuses sobre ela, mas nem conseguiram o seu isolamento e nem puderam lançar-se ao seu assalto, planeado para o dia de 23 Maio. Os Fuzileiros, a Companhia de Paraquedistas 121, comandada pelo Capitão Moura Calheiros e a CCav 3420, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, furavam o seu isolamento, o Tenente Coronel Correia de Campos, comandante do sector, embargava a repetição de Guileje. Quando os seus subordinados lhe abordaram a retirada para Bigene, plantou-se na frente do cavalo de frisa, impecavelmente fardado, a agitar o pingalim, de pistola em punho e a dizer-lhes:
- Só por cima do meu cadáver!

As valas de Guidaje  
Com a devida vénia a SPM 0018 - CCAÇ 3

E as FARP tiveram de desmontar o cerco a Guidaje e manobrar a retirada para os seus abrigos no estrangeiro, já a contas com uma manobra de envolvimento montada pelo Batalhão dos Comandos Africanos à sua base de retaguarda de Cumbam-Hori, no Senegal, comandado pelo Tenente-Coronel Almeida Bruno, as suas subunidades comandadas pelos Capitães Raul Folques, Matos Gomes e António Ramos, que eliminaram o seu coordenador, tenente cubano Raul Abade, lhes causaram elevadas baixas, entre nativos e cooperantes estrangeiros, e a perda de 100 armas automáticas, 100 morteiros de 60, 81 e 120, 14 canhões e de 100 toneladas de munições.

Os dois oficiais Correia de Campos e Salgueiro Maia, que em Maio de 1973 se notabilizaram no contexto bélico de Guidaje, virão a ser essenciais ao sucesso da revolta do dia 25 de Abril, em Lisboa, com os seus desempenhos no Terreiro do Paço, no Largo do Carmo, etc. Se muitos foram os chamados, estes foram dos decisivos.

Se o 25 de Abril é contentamento e cantado como um “dia inteiro e limpo” (poesia de Sophia), pela sua bondade intrínseca e virtude profissional dos seus actores, a estragação ou pecados do MFA são susceptíveis de reparos, por se ter contraído o esquerdismo, a doença infantil das revoluções e pelas derivas ao seu ideal.

O Major Otelo Saraiva de Carvalho ter-se-á inspirado no pensamento (formado e estruturado na Casa dos Estudantes do Império) e na acção (tirocinada na China e como comandante supremo da Guerra da Guiné) de Amílcar Cabral, para planear e comandar a operação “Viragem Histórica” vulgo “25 de Abril”.

Amílcar Cabral planeou o dispositivo subversivo e militar da sua guerra sobre um mapa escolar da Guiné, o leste contrariou-o, os fulas ciosos de poderem fazer a sua própria libertação e ganhou-a sem Marinha nem Força Aérea; o Major Otelo planeou essa operação sobre um mapa do ACP das estradas de Portugal, mas o Norte dos “portugueses dos mais antigos” quis fazer o próprio golpe – e o MFA ganhou e sem precisar da Marinha e da Força Aérea.

Em Lisboa, o Major Otelo e o estado-maior da conspiração precisaram das tropas do Centro, Lisboa e Sul, de meter muita gente na prisão, sob o pretexto da sua importância e gastaram 20 horas até à vitória da revolta, e ficou a dever a sua materialização sem combate, incruenta, ao “espírito da Guiné” do Coronel Romeiras Júnior, comandante do RC7, ao desempenho e espírito de missão do Capitão Salgueiro Maia, da sua malta, da malta das guarnições de Tomar e de Estremoz, e, sobremaneira, à consciência do Comandante António Louçã, que desobedeceu à ordem recebida pelos canais hierárquicos e não disparou sobre a sua manobra no Terreiro do Paço as granadas de urânio empobrecido que municiavam dos canhões da sua fragata Gago Coutinho – Salgueiro Maia e a sua malta teriam sido dizimados.
(O MFA do PREC cometeu a insanidade de sinalizar ambos de “reaccionários”)…

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20971: 16 anos a blogar (11): Poema de João Afonso Bento Soares, maj gen ref, sobre a sua terra natal: "Meimoa, Princesa da Cova da Beira"

terça-feira, 28 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20914: 16 anos a blogar (6): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (2) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 27 de Abril de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos a II parte de Os dias de Abril, mês "de águas mil"


Os dias de Abril, mês de “Águas mil”, de Constituições, de Revoltas, de Revoluções, dos… das Celebrações, Grupos de Risco e do Cofinamento, que mudaram Portugal - Parte II

(Continuado)

Em meados de Abril de 1974, feitas 6 reuniões plenárias à escala dos 3 Ramos das FA, a última em Cascais, mobilizadora de cerca de 200 conjurados, e um mês passado sobre a falhada “Revolta das Caldas”, a Comissão Coordenadora do MFA tinha acelerado e terminado o seu trabalho de casa – a máquina conspirativa estava montada e bem oleada.

A malta conspiradora das Caldas havia-se precipitado. À data da sua saída, a inter-relação dos conjurados limitava-se à ligação, não havia nem plano de acção militar nem programa político, mas apenas um rascunho de cariz político-militar, da autoria do Major do SAM Moreira de Azevedo e o Movimento dos Capitães/Movimento das Forças Armadas encontrava-se neste pé: logo que fossem muitos, entregariam ao Chefe seu elegido (General Spínola) um ultimato para ele apresentar ao Chefe do Governo (Marcello Caetano). Se este o aceitasse, tudo bem; se o recusasse, meteria o General Spínola “dentro”, na Trafaria (com o amparo do livro Portugal e o Futuro) e então eles accionariam o seu chefe profissional, General Costa Gomes.

Uma evidência da falta de equidade de funções, peculiar à comunidade militar. Os generais não substituiriam os capitães e os capitães a tratar de substituir os generais…

Ernesto Melo Antunes
Em 23 de Abril de 1974, o MFA iniciou a acção directa. A participação de oficiais da Marinha, da Força Aérea, as adesões dos seus camaradas milicianos (os espúrios) e de uma proporção significativa de oficiais superiores estavam consolidadas, havia o Programa político, elaborado por uma comissão coordenada pelo açoriano Major de Art.ª Melo Antunes e, também, o Plano da operação militar com o código de “Viragem Histórica”, elaborado por uma comissão coordenada pelo natural moçambicano Major de Art.ª Otelo Saraiva de Carvalho.

Escolhido o dia 25 de Abril para seu dia D e a 1H00 para sua hora H, efeméride da queda do Fascismo na Itália, inspirador do nosso regime do Estado Novo, a sua equipa operacional, comandada pelo Major Otelo, dedicou esse dia a entregar rádios, códigos e senhas aos conjurados, e, em simultâneo, o Major Melo Antunes, numa discriminação positiva ao Partido Comunista e ignorando o Partido Socialista e a Ala Liberal, entregava ao casal Carlos Brito e Zita Seabra, responsáveis da DROL (Direcção Regional da Organização de Lisboa) do PCP, cópias do Plano da operação militar e do Programa Político do MFA – as únicas cópias saídas da intimidade dos conspiradores.

A participação do Povo no êxito do 25 de Abril incruento é facto acontecimental; a participação do povo logo na alvorada da sua manobra militar é um mito.

Ao começo da madrugada de 1 de Abril de 1974, Zeca Afonso encerrou o seu espectáculo do Coliseu dos Recreios com a canção Grândola, vila morena, que havia lançado na Galiza, o Major Otelo estava na plateia, o seu ouvido reteve-a e será a elegida para senha da hora H – a Rádio Renascença transmitiu-a aos 20 minutos da madrugada de 25 de Abril.

O primeiro conspirador a mostrar serviço ao Posto de Comando do MFA, na Pontinha, foi o Capitão Teófilo Bento: ouvida a cantiga do Zeca Afonso, ele, o Tenente Manuel Geraldes e a sua malta da Escola da Administração Militar, especialistas de “apontadores da Bic” e não de apontadores da G3, acabavam de ocupar o Mónaco, nome de código da sua vizinha a RTP.

Jaime Neves
O segundo a sair terá sido o Major Jaime Neves e a sua malta dos Comandos; será recorrente na afirmação de que, quando chegou ao Terreiro Paço, por volta das 6H00 da manhã, com a missão de ocupar os ministérios militares e de prender os respectivos ministros, já havia massas trabalhadoras, vindas da Outra Banda e com palavras de ordem, de apoio à “revolução”. Desconfiado de estar a protagonizar uma revolução comunista, “a coisa era tão secreta e chegara a esse nível”, em vez de apresentar serviço na Pontinha, exigiu explicações ao Posto de Comando, o Major Otelo sossegou-o, e só não desistiu, porque o Capitão Salgueiro Maia e a sua malta da EPC de Santarém começaram a chegar.

A sua perplexidade permitiu que os chefes militares tivessem escapado (momentaneamente) à prisão, derrotando com os machados de guerra dos guerreiros da sua decoração a parede de tijolo, divisória entre o Ministério do Exército e o Ministério da Marinha, apanharam o autocarro e foram parar ao Regimento da PM, à Calçada da Ajuda, onde montaram o Posto de Comando da contra-revolta. Integrou-se activamente na manobra do Salgueiro Maia, foi negociador decisivo, na Ribeira das Naus, na contenção dos blindados Patton que os chefes que não prendera mandaram contra eles, vindos da mesma Calçada, originários do RC7. E ainda efectuará a prisão o General Louro de Sousa, Quartel-Mestre General, - o Comandante do CTIG da Guiné da “Operação Tridente”, à ilha do Como, em princípios de 1964.

O que o Posto de Comando do MFA e o notável soldado e futuro Brigadeiro Comando Jaime Neves não sabiam – este terá partido sem saber – que a sua colisão mental com o surgimento daquela malta, madrugadora e animada, era circunstancial a essa a manobra “secreta” do Major Melo Antunes, que pusera o Carlos Brito a mobilizar a massa trabalhadora da Cintura Industrial de Lisboa para o Terreiro do Paço e pusera a Zita Seabra a mobilizar a massa estudantil (a UEC) a apoiar todo o militar da revolta que encontrasse na rua.

E essas massas desempenharam-se eficazmente; foram o “fermento” que levedou a massa de adesão do Povo.

Se o Capitão Teófilo Bento e a sua malta do SAM foram meteóricos na ocupação da RTP, objectivo não armado, o MFA de Lisboa, não obstante o seu poderio de homens e de fogo, demorou 17 horas a tomar o poder em Lisboa, encheu o Forte da Trafaria de presos, enquanto ao MFA do Norte, enformado por 60 militares, divididos em 5 grupos, comandado pelo então Tenente-Coronel Carlos Azeredo, bastaram 8 minutos para cumprir todas as missões e tomar o poder no Porto – e não meteu ninguém na cadeia.

Às 14H02 entraram em acção e às 14H10 já tinham libertado toda a região de Entre Minho e Douro.

A primeira fractura do MFA também se deu no Norte.

Carlos de Azeredo
O Tenente-Coronel de Cav.ª Carlos Azeredo planeara e executara o 25 de Abril nortenho em parceria com os Majores Eurico Corvacho, Gonçalves Borges e o Capitão Nogueira de Albuquerque, não poderia comandar a Região Militar, por não exercer o comando de unidade, havia requerido a demissão do Exército (o ministro tencionava deferi-la, sob o pretexto de ser paciente de “de doença mental”), mas recusou cumprir a ordem do Posto de Comando na Pontinha, de sair da cena e deixar o comando para o Major Corvacho; no seu entender, os chefes do MFA eram os Generais Spínola e Costa Gomes.

Em corolário a tantas horas de indecisão, a partir do meio-dia desse dia libertador emergiram no Porto não as massas populares de apoio, mas a turbamulta. Molestava-se pessoas, montava-se cercos aos quartéis da GNR, apedreja-se as esquadras da PSP e outras instituições do Estado, incendiavam-se carros, partia-se montras e assaltava-se lojas. Presenciei a Eng.ª Civil Virgínia Moura, que havia conhecido no contexto das obras da Ponte da Arrábida, como autora do projecto do nó e do viaduto de Sto. Ovídeo, em Gaia, a incitar a multidão e a alçar-se ao seu comando, para a temeridade de cercar e assaltar a PIDE – negligenciando o seu armamento.

Foi quando entrou em cena outro oficial também já fora da tropa e também Eng.º Civil – o Coronel Mário da Ponte (que me honrou com a sua amizade, durante mais de 40 anos). Foi para o Quartel-General, puxou dos galões, pôs a PM e a tropa na rua, a restaurar e a manter ordem pública, desmobilizou o cerco à PIDE, no dia seguinte mandou para casa o seu pessoal secundário e o seu pessoal estrutural foi largado no Alto da Carriça, na estrada de Braga, postura que manteve enquanto o Coronel de Inf.ª Passos Esmeriz, que comandava o RI 6, na Senhora da Hora, não foi assumir esse posto, por vontade da maioria dos oficiais dessa Região Militar.

Mário Soares e Álvaro Cunhal
Com o regresso de dois políticos, o optimista e exilado Mário Soares, vindo de Paris, que se apeou na Estação de S. Apolónia, no dia 28, e o céptico e fugitivo Álvaro Cunhal, vindo de Praga, que, no dia 30, desembarcou no Aeroporto da Portela, a revolta passou a tridimensional - os “capitães de Abril” e mais esses dois, como os corifeus do Socialismo…

Há camaradas da Tabanca Grande participantes na operação “Viragem Histórica”? Eu, no 25 de Abril, não pequei por omissão: voluntariei-me e fui recusado.

Naquele dia inicial inteiro e limpo (Sophia), estacionei o carro na Praça da República (então trabalhava no cimo da Rua do Almada) e dirigi-me ao camarada furriel que vi a comandar uma secção em posição de fogo, nos cruzamentos da Rua João da Regras e da Rua da Boavista. Admitindo tratar-se de exercício citadino, comentei o seu realismo e ele disse-me que não era exercício, era uma revolta para derrubar o Governo. Alertei-o do perigo do RC 6, ali tão perto, e ofereci-me a ir para a torre da Igreja da Lapa e fazer a vigilância aérea dos eixos de aproximação dos seus blindados, e ele desarmou a minha disponibilidade, dizendo-me que toda a tropa do Porto estava alinhada com a revolta. Eram 8H30 da manhã…

Naquele tempo também me sentia rebelde, ofereci os meus préstimos (intempestivos), o 25 de Abril recusou-os, mas, modéstia aparte, não deixou de me obsequiar: os Trabalhadores honram o 1.º de Maio como o seu dia e eu não só, mas também - é o dia do meu aniversário!

A celebração desta efeméride, via skype, por aquela meia dúzia de velhotes e “Capitães de Abril” sobrevivos, a cujo grupo etário pertenço, cercados por todos os lados pelo vírus Covid-19, a sua nostalgia de combatentes, no Ultramar e na Metrópole, ao serviço do seu Povo, ora em distanciamento social e em confinamento por um inimigo invisível, a sua exortação aos médicos, enfermeiros e demais pessoal do SNS, para personificarem os “capitães de Abril” da sua derrota, comoveram-me às lágrimas.

E, parafraseando o Almirante Pinheiro de Azevedo, protagonista de dois 25´s, o de Abril e o de Novembro: Não gosto de confinamento; chateia-me estar confinado.

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OBS:- Escolha e edição das fotos da responsabilidade do editor
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Notas do editor

Poste anterior de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Último poste da série de 27 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20912: 16 anos a blogar (5): O barbeiro dos bifes (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf)

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20275: Notas de leitura (1229): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (29) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 entrou num torvelinho de operações e ocupa território, dá segurança às populações, faz renascer a vida. É o que Armor Pires Mota nos conta na sua passagem para Jumbembem. Há terríveis acidentes, virou-se um bote de borracha a caminho da península de Sambuiá, um pelotão de morteiros perdeu oito praças. É nisto que o acompanhante do bardo deu um salto no plinto da memória e foi até Guidage, a Guidage do cerco onde Salgueiro Maia nos deixou um relato dos mais pungentes que aquela guerra ofereceu. A história da unidade também refere uma companhia que faz parte da quadrícula, a CCAÇ 675, a companhia do Capitão do Quadrado, ele está em Binta, chega e vai metodicamente arrumando a casa, fez-se respeitar pela guerrilha, deu proteção a quem dela precisava, abriu itinerários até então intransitáveis.
Vamos contar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (29)

Beja Santos

“Na cabeça foi atingido
este amigo e companheiro
João Félix na flor da idade
foi morto por um bandoleiro.

Era um homem operacional
que de nada tinha medo
e no meio daquele arvoredo
teve este golpe fatal.
Foi evacuado para o hospital
num transporte que foi pedido;
coitado, deu muito gemido,
quando o seu sangue perdia,
pois às 5 horas do dia,
na cabeça foi atingido.

Eram muitas as rajadas
para cima da nossa gente.
Ele levantou-se de repente,
jogando algumas granadas,
quando as tinha já acabadas
pediu mais granadas de morteiro,
e houve então um bandoleiro
que um tiro no rapaz deu
e logo nessa noite morreu
este amigo e companheiro.

Pela nossa Pátria querida
este soldado lutou,
muito sangue derramou
dando a sua própria vida.
Tanta fera enraivecida,
que só tem ruindade,
foi com grande barbaridade
que este crime praticaram.
De Samora Correia mataram
João Félix na flor da idade.

As suas famílias gritavam
quando dele se despediram.
Foi a última vez que o viram,
parecia que adivinhavam,
mas maiores gritos lançavam
ao chegar-lhes junto o carteiro.
Ele acalmou-os primeiro
e leu-lhes a má comunicação:
seu filho do coração
foi morto por um bandoleiro.”

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A história da unidade refere efetivos, a disposição e quadrícula e as operações. Em 12 de julho de 1964 houve uma ação nas matas de Ponta Caeiro, houve fogo intenso, do lado do efetivo comandado pelo Capitão Rui Cidrais houve vários feridos evacuados e ligeiros. Em 20 de agosto houve uma operação realizada a Sanjalo, incendiaram-se casas de mato, temos aqui uma referência à CCAÇ 675, a do Capitão do Quadrado, a que mais adiante se fará referência, o relatório é assinado pelo comandante, Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, ele esclarece que na área do objetivo foram encontrados terrenos recentemente cultivados. Em 24 de setembro temos uma operação realizada à região de Farincó-Mandinga, houvera referência a um acampamento de guerrilheiros com cerca de 16 casas de mato, intervieram pelotões da CCAV 487 e 488. O relatório é também assinado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro que em dado passo escreve o seguinte:  
“A marcha para a zona do objectivo decorreu conforme o previsto. Em consequência do perfeito conhecimento que o guia tinha do terreno e das notícias referentes à localização do acampamento inimigo, a companhia conseguiu chegar a trinta metros dele sem ser detectada. O inimigo surpreendido reagiu pelo fogo, só não tendo êxito devido à acção das 2 secções da vanguarda do dispositivo, que carregaram sobre o acampamento, obrigando o inimigo a tentar escapar desorientado, abandonando material de guerra”.

No início de 1965 decorrerá a Operação Panóplia, ficará associada a um grave acidente de que falecerão oito praças. O objetivo era a região de Sambuiá. Veja-se este aspeto curioso respigado do relatório quanto às casas de mato localizadas em Simbor:
“Estão junto à margem do rio Sambuiá entre a ponte e a povoação. Neste rio estão estendidas cordas que permitem ao inimigo agarrar-se a elas mantendo-se submerso, com parte da cara fora de água para respirar, quando a região é sobrevoada pela aviação; as mulheres e as crianças escondem-se no tarrafo ou nos cemitérios dos Mandingas de Sambuiá, ocultando-se nas sepulturas. O inimigo encontra-se em força nesta região e consta que tem oito metralhadoras com suporte antiaéreo. Em Talicó, o inimigo monta diariamente um serviço de vigilância com um serviço de 37 indivíduos”.

O relatório descreve os planos estabelecidos para a ação, como a mesma se desenrolou, chegou-se a Sambuiá, onde a CCAÇ 675 entrou em força. Verificou-se entretanto o acidente sofrido pelo Pelotão de Morteiros 980[1], que era constituído por 33 homens. Entrara numa lancha, o transporte seguiu pelo rio Cacheu.
Escreve-se o seguinte no relatório do acidente que ocorreu em 5 de janeiro de 1965:  
“Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene. Aí o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que o pelotão desembarcou para o bote de borracha no qual se faria o desembarque na península de Sambuiá. Embarcaram para o barco de borracha 25 homens, entre os quais o seu comandante, bem como o material e armamento. Como seria mais seguro não embarcarem todos os homens nesse barco, que tem uma lotação aproximada de 30 homens, o comandante do navio pôs à nossa disposição um barco de borracha pertencente à Marinha, no qual embarcaram simultaneamente os restantes homens do Pelotão de Morteiros. Os dois barcos seriam rebocados pela lancha, de maneira a estarem permanentemente encobertos das vistas de possíveis sentinelas existentes na península onde se efectuaria o desembarque. Antes do navio se pôr em marcha, foi passado um cabo por baixo do barco, onde eram transportados os 25 homens, amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo. O navio recomeçou a marcha e, depois de ter navegado durante alguns minutos, o cabo que fora passado para rebocar o barco maior rebentou, pelo que o navio se afastou um pouco. Foi posto o motor do barco a funcionar e a recolagem fez-se sem qualquer incidente ou dificuldade. Foi então que se passou um cabo mais forte para dentro do barco de borracha, ficando os próprios homens que o tripulavam a agarrar nesse cabo, sendo nessa altura avisado pelo comandante da lancha, e depois por mim, que em caso de emergência o cabo devia ser largado imediatamente. Depois de se navegar alguns metros, notei que o barco de borracha deixava entrar água pela proa. Foi nesse momento que à ré do barco de borracha alguns homens se levantaram, talvez assustados pela água que saltava para dentro do barco. Mandei-os sentar imediatamente, mas o barco já se encontrava desequilibrado de um dos lados e, sem nos dar tempo para qualquer reacção, afundou-se rapidamente”.

Comunicado da imprensa de 1965
O Alferes José Pedro Cruz recomendava no seu relatório que seria de evitar nas operações em rios homens que não soubessem nadar e que nunca se devia rebocar um barco com o cabo de reboque passado por cima do barco rebocado e agarrado pelos próprios tripulantes do mesmo barco.

Inadvertidamente, vem-nos a recordação não do acidente desta gravidade mas uma situação de calamidade como aquela que se viveu no cerco de Guidage. Como se sabe, deve-se ao Capitão Salgueiro Maia um depoimento sem paralelo sobre este cerco e a sua chegada a Guidage, quadro de tragédia mais pungente não pode haver.

Salgueiro Maia
Antes porém ele conta-nos na sua “Crónica dos feitos por Guidage” um ataque com um pelotão da sua companhia que estava num destacamento.
Salgueiro Maia parte em seu auxílio:
“Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir na direcção certa, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível.
Depois de rotos pela vegetação e cansados de correr ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate. Ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação, mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estavam ainda na fase de não saber se era verdade ou não. Mando montar segurança à volta da zona e pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior do que ele; parece de cera, olha-me sem me ver e aponta com o braço. Sigo na direcção apontada e depressa vejo uma nuvem de mosquitos e moscas: já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore, estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; à volta estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado; a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele – está cor de cera e praticamente nu. Olha-me como que em prece; ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel-enfermeiro e um cabo-maqueiro. Mando-os avançar, assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave – o ferimento provém-lhe da perna. Tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue. Tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que não lhe fizeram um. Alguém me responde que o enfermeiro está ferido. 
Começo a sentir raiva".

Como o dia estava a tombar, e como era impossível recorrer a uma evacuação por helicóptero, depuseram-se os feridos nas caixas dos Unimog, entretanto o PAIGC volta a atacar com foguetões 122 mm. O ferido da perna morre.
E Salgueiro Maia escreve: “Guardo dele uns olhos assustados a brilhar numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida porque em sessenta homens ninguém sabia o mais elementar em primeiros-socorros: fazer um garrote”. O capitão por ali anda a contemplar os mortos de boca e olhos abertos, reage, tal como vai escrever: “Mecanicamente, tiro os atacadores das botas dos mortos, ato-lhes os queixos, ponho-lhes as mãos em cruz, os pés juntos. Com água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhos. Olho para a minha obra e também não entendo”.

O pesadelo maior vem depois. No dia 22 de maio de 1973, Salgueiro Maia recebe instruções para seguir para o Norte, o PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, um autêntico cerco, minara estradas, trouxera mísseis terra-ar, havia um verdadeiro campo de minas anticarro e antipessoal na estrada Guidage-Binta. O Comandante-Chefe, perante a gravidade da situação, reage com a Operação Ametista Real. No meio daquele pandemónio, Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e seguir depois com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, o objetivo era rasgar o cerco, chegar a Guidage. Deixou-nos uma descrição memorável, é uma peça espantosa, única, sobre os desastres da guerra, viaturas a acionar minas anticarro, feridos e mortos, a progressão da coluna a corta-mato, mais explosões e ao fim do dia entra-se em Guidage, assemelha-se a um panorama lunar, preside a irrealidade.
É tudo dantesco por excelência, o que parece absurdo deixa de o ser, nenhum outro relator da guerra da Guiné foi tão ao fundo da banalização do horror:
“A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento-enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifícios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense, que ficou sem uma perna, uma farda n.º 3, que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da Madeira quase cheia no meio de tudo partido. Com isto, fiz uma pequena festa com 3 ou 4 homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau, ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.
Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera 4 mortos e 3 feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 milímetros de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão e sem saber de onde ele tinha vindo”.

Não se atina como é que a memória nos faz passar de meados dos anos 60 para aquela catástrofe de 1973, mas fala-se de Binta, de Guidage, de Farim, de Sambuiá. Dera-se uma evolução fenomenal, em poucos anos, o equipamento do PAIGC suplantara o das forças portuguesas, modificara-se a condução da guerra de guerrilhas, numa mistura de guerra convencional e de ataque surpresa. Agradece-se à memória agir assim, temos muitas vezes o condão de nos fixarmos numa data e esquecer completamente que nenhuma análise pode prescindir da sequência cronológica: fomos todos protagonistas, mas em tempos diferentes, o que uns viram de uma maneira, mais adiante os outros acrescentaram novos pontos de vista.

(continua)
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Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 8 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5077: Fichas de Unidades (5): História do Pelotão de Morteiros N.º 980 (José Martins)

Poste anterior de 18 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20254: Notas de leitura (1227): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (28) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20025: Jornais de caserna publicados no CTIG (de 1961 a 1974) (n=47) (Jorge Santos / Luís Graça)


Capa do primeiro número de "O Saltitão", jornal da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72). O diretor era o cap inf  Carlos Trindade Clemente. Entre os colaboradores, e nomeadamente na ilustração gráfica, destaca-se o nosso camarado Mário Miguéis (que vive hoje em Esposende e nos mandou uma preciosa cópia desta primeira edição)

Foto (e legenda): © Mário Migueis da Silva  (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


"O Serrote", da 3ª CART/BART 6520 (Fulacunda, 1972/74), de que foi diretor o nosso camarada e amigo alf mil Jorge Pinto.

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O jornal de caserna da CCAV 3420 (Bula, 1971/3), Os Progressistas - Quinzenário de Divulgação e Recreio da CCAV 3420. Director: Cap Cav Fernando José Salgueiro Maia.
Fonte: Cortesia do Jorge Santos (2005)

Jornais militares (n=47)
(Guiné, 1961/74)

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TÍTULO   UNIDADE /SEDE /SPM / ANO  DIRETOR
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.
              1. 
33 (O)

Batalhão de Caçadores 3833
Pelundo
SPM 6978 1971/1972


O Comandante
2. 
Acção
Comando do Sector de Bissau 
Bissau 
1972

Cor Inf António Mendes Baptista

3. 
Açor (o)
Batalhão de Caçadores 2928
Bula 
SPM 6688
1971

O Comandante
4. 
Águas do Geba
Companhia de Artilharia 2743
Geba
SPM 6548
1971

Cap Mil Ilídio Rosário Santos Moreira
5. 
Alvo (O)
Bataria de Artilharia Antiaérea 3434
Cumeré
SPM 1868
1971

6. Assalto (Ao)
Batalhão de Caçadores 2834
Bula
SPM 4668
1968

Ten-Cor Inf Carlos B.Hipólito
7. 
Azimute
Comando Territorial Independente da Guiné 
Bissau
1966

Brig Anselmo Guerra Correia
8. 
Baga-Baga (O)
Batalhão de Caçadores 1860
Tite
SPM 2928
1965

O Comandante
9. 
Básico (O)
Batalhão de Cavalaria 1905
Teixeira Pinto 1967

O Comandante
10. 
Big
Batalhão de Intendência da Guiné 
Bissau
SPM 1648
1968

Maj SAM António Monteiro A. Santos
11. 
Boina Negra (O)
Companhia de Cavalaria 2482 Fulacunda
SPM 5688
1969

O Comandante
12. 
Capicuas (Os)
Companhia de Artilharia 2772
Fulacunda
1971

Cap Art João Carlos R. Oliveira
13. 
Clarim
Batalhão de Cavalaria 790 Bula 
1965

Ten-Cor Cav Henrique Calado

14. Convergência
Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné
Bissau 
1970

?
15.
Corsário (O)
Hospital Militar 241 
Bissau
1962

?
16.
Dragão Negro
Batalhão de Artilharia 733 
Farim
SPM 2568
1965

?
17.
Dragões de Jabadá
Companhia de Cavalaria 2484 
Jabadá
1969

Cap Cav 
José Guilherme P.F.Durão

18.
Duros (Os)
Companhia de Artilharia 2771
Nova Sintra SPM 6608
1971

Alf Mil Castela
19.
Eco (O)
Pelotão de Artilharia Antiaérea 943 Bissalanca 1965

Alf Art Jaime Simões Silva
20.
Estrela do Norte
Batalhão de Caçadores 1894 
S. Domingos SPM 3668
1968

Ten-Cor Inf Fausto Laginha Ramos
21.
Falcão (O)
Companhia de Caçadores 3414
Sare Bacar
SPM 1878
1973

Cap Inf Manuel Ribeiro Faria
22.
Gato Preto (O)
Companhia de Caçadores 5 Canjadude
SPM 0028
1971

O Comandante
23.
Jagudi (O)
Companhia de Caçadores 2679, Bajocunda 
SPM 1058
1971

Cap Inf Rui Manuel Paninho Souto
24.
Jamtum (O)
Batalhão de Caçadores 3872
Galomaro
SPM 2188
1973

O Comandante
25.
Lenços Vermelhos
Companhia de Artilharia 2521 
Aldeia Formosa
SPM 5888
1970

Cap Mil Jacinto Joaquim Aidos
26.
MFA na Guiné
MFA da Guiné Bissau
1974

?
27.
Macaréu
Batalhão de Caçadores 2856 
Bafatá  
SPM 5438
1969

O Comandante
28.
Manga de Ronco
Batalhão de Caçadores 1932 
Farim
1968

Alf Capelão Tourais Ferreira
29.
Nova Vida
Batalhão de Caçadores 697 
Fá Mandinga
1965

?
30.
Padrão
Batalhão de Caçadores 1877
Teixeira Pinto
1966
Ten-Cor Inf Fernando Costa Freitas

31.
Pentágono Manjaco
Batalhão de Caçadores 3863
Teixeira Pinto SPM 1458
1973

O Comandante
32.
Pica na Burra
Companhia de Cavalaria 2765
Nova Sintra  SPM 6438
1970

Alf Mil Pedro Duarte Silva
33.
Põe-te a Pau
Companhia de Artilharia 2775
Jabadá
SPM 6628
1971

O Comandante
34.
Prá Frente
Companhia de Artilharia 3332
Piche
1972

?
Companhia de Cavalaria 3420
Bula
SPM 1898
1971

36.
Ronco
Centro de Instrução Militar [CIM] Bolama
SPM 0058
1969

O Comandante
Companhia de Caçadores 2701 
Saltinho
SPM 1268
1971

Cap Inf Carlos Trindade Clemente
38.
Santo (O)
Companhia de Polícia Militar 2537
Bissau
SPM 5948
1969

Cap Cav Hernâni Anjos Moas
Companhia de Caçadores 6 Bedanda
SPM 0038
1973

Cap Inf Gastão Manuel S. C. Silva
40.
Sentinela de Catió
Batalhão de Artilharia 2865
Catió
SPM 5618
1969

Ten-Cor Art Mário Belo Carvalho
41.
Sete (O)
Batalhão de Cavalaria 757
Bafatá
1965

O Comandante
42.
Soquete (O)
Bataria de Artilharia de Campanha 1 
Bissau 
SPM 0048
1970


Cap Art José Augusto Moura Soares
43.
Tabanca
Companhia de Cavalaria 2721 Olossato 
SPM 1318
1970

Cap Cav Mário Tomé
44.
Trópico
Batalhão de Intendência da Guiné 
Bissau
SPM 1648
1972

O Comandante
45.
Voz do Quínara (A)
CCS / Batalhão de Artilharia 2924 
Tite
1971-1972

Cap Mil Pinto Madureira

46.
Zoe
Agrupamento Transmissões da Guiné
Bissau
SPM 0228
1973
Cap Trms Jorge Golias

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Fonte: ”Imprensa Militar Portuguesa – Catálogo da Biblioteca do Exército”. Direcção de Alberto Ribeiro Soares (Coronel). Lisboa 2003.

Documento gentilmente enviado pelo nosso grã-tabanqueiro Jorge Santos. Revisão e fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)

PS - Nesta lista, falta por exemplo "O Serrote", da 3ª CART/BART 6520 (Fulacunda, 1972/74), de que foi diretor o nosso camarada e amigo alf mil Jorge Pinto. Em princípio, estarão disponíveis, no Arquivo Geral do Exército, alguns exemplares destes títulos, que eram policopiados, feitos a "stencil", em formato A4.



1. A primeira divulgação desta lista deveu-se ao Jorge Santos, um incansável mas sempre discreto membro, sénior,  da nossa Tabanca Grande, já de longa data. Se não estou  não erro, entrou o nosso blogue em finais de 2005.  Não temos nenhuma foto dele, nem antiga nem actual. Foi 1º Grumete Fuzileiro (DFA), Companhia de Fuzileiros nº 4, em Moçambique, Metangula e  Cobué, de janeiro de 1968 a  abril de 1970.  

Criou, em março de 2006, o sítio "Guerra Colonial Portuguesa", tendo como principais secções: Bibliografia, Filmografia, Associações, Canções de Lisboa, Memorial, Monumentos, Convívios, Brasões, Condercorações.

Tem 40 referências no nosso blogue. Esteve uns tempos sem dar notícias (como ele gostava de dar, sobre convívios, livros, actualizações do seu portal, etc.).


Em 23 de Outubro de 2009, fomos surpreendidos com a seguinte mensagem:


"Não tenho acompanhado, como desejava, o evoluir das 'Tabancas', pois encontro-me a recuperar de um AVC que sofri na Noruega, e que me deixou bastante afectado da parte esquerda do corpo, em especial a vista, o que me dificulta imenso estar no computador ou navegar na Net."

Na altura endereçámos-lhe a nossa solidariedade e os nossos votos de uma rápida e boa recuperação. Infelizmente, a sua página,  alojada no Sapo.pt,  deixou de estar disponível. E perdemos o contacto com o nosso estimado camarada da Marinha, Jorge Santos. Esperemos que ele (ou alguém das suas relações) nos possa dar "sinais de vida" (*).


Sobre a lista de "jornais militares", publicada acima, acreditamos que ela esteja incompleta, e que ainda possamos ser surpreendidos pelo conhecimento de novos títulos. Como foi o caso, por exemplo, de "O Serrote", de que o Jorge Pinto nos fez chegar cópia de um exemplar. 
__________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de  25 de abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4245: Cap Cav Salgueiro Maia, director do jornal de caserna da CCAV 3420, Bula, 1971/73, Os Progressistas (Luís Graça / Jorge Santos)