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segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23480: Nota de leitura (1470): Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É bem interessante o contexto histórico em que ocorreu a definição das fronteiras da Guiné. A presença portuguesa era praticamente inexpressiva, a diplomacia portuguesa queria o apoio de Paris para reconhecer a legitimidade dos nossos interesses nos territórios entre Angola e Moçambique. Foi dolorosa a perda do Casamansa, nem os comerciantes nem os autóctones desejaram o domínio francês, e ninguém na época ia supor que todo o Casamansa seria um pomo de discórdia quando se fundou o Senegal. Já aqui se divulgaram as notas de um brioso oficial da Marinha que foi até à região de Cacine e Kandiafará, nesta região havia mercado e não havia autoridades portuguesas. O artigo de Armando Tavares da Silva, que anda muito próximo do conteúdo do seu livro "A presença portuguesa na Guiné", descreve todas as peripécias que levarão à fixação das fronteiras, fazendo ver a todos esses apóstolos de hoje que batem a mão no peito sobre a nossa presença de cinco séculos a grande ilusão que se montou para se falar numa Guiné onde mal existiu o sopro de um verdadeiro colonialismo.

Um abraço do
Mário



Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Armando Tavares da Silva, autor do livro "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, assina no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa aqui referido, o artigo A fixação das fronteiras da Guiné pela Convenção Luso-Francesa, texto que acompanha com grande proximidade o que ele publica no seu livro entre as páginas 127 e 148. Tratando-se de matéria de elevado interesse histórico, intenta-se um resumo das várias questões tratadas, visto que a partir de maio de 1886 houve em definitivo a definição de um território que até então conhecera inúmeras designações e de que se desconheciam todos os contornos.

A questão ganha premência com a crescente presença francesa na região do Casamansa, a Norte, e na região de Compony, a Sul, os franceses queriam alargar os seus domínios, não estavam satisfeitos em ficar à entrada do rio Casamansa, e queriam fazer recuar a presença portuguesa para lá de Cacine. Quem representava os interesses portugueses agia lentamente, num vai-e-vem de exposições e respostas diplomáticas que só nos prejudicava. Honório Pereira Barreto assistia ao perigo crescente e informou o Governador de Cabo Verde em maio de 1837. Novo vai-e-vem diplomático, a França invocava razões históricas para ali estar. É então que o visconde da Carreira se dirige ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da França com as nossas provas históricas, dando ênfase à Crónica da Conquista da Guiné, de Zurara.

Armando Tavares da Silva repertoria um conjunto de incidentes na região do Casamansa, ora tira ora põe bandeira portuguesa ou francesa, caso dos incidentes de Adiana e Sindão. Recorde-se que a região Sul também estava sob cobiça, os franceses pretendiam comprimir a presença portuguesa para cima do rio Cacine, resta dizer que a presença de autoridades portuguesas era nula na região.

Depois de várias pressões da diplomacia francesa, e tendo já terminado a Conferência de Berlim, o governo de Paris manifesta disposição para negociar fronteiras não só na Senegâmbia como também sobre o litoral do Congo. O governo de Lisboa tenta separar a questão do Casamansa e de Cacine com a pretensão francesa da posse do território de Massabi. Certo e seguro, as negociações entre Portugal e a França irão ter lugar em 1885, a França insiste então não nos seus direitos históricos e utiliza uma expressão subtil: “em nós penetra a ideia que a solução para ser prática deve ser procurada mais nos factos do que nos arquivos”, evitando-se complicar a obtenção do acordo “por discussões onde cada um se acharia a produzir títulos históricos sem que eles possam conduzir a comissão a qualquer conclusão, uma vez que nós não teríamos qualidade para concluir, o que é desde já uma razão para os pôr de parte”.

Seguem-se propostas e contrapropostas, a diplomacia portuguesa dá sinais de transigência quanto às fronteiras da Guiné desde que se retire qualquer reivindicação francesa sobre o Massabi. E chega-se a uma sessão em 11 de janeiro de 1886 em que a questão dos rios Cacine e Compony vem à baila, a França não esconde que pretende um recuo da fronteira da possessão portuguesa para lá de Cacine, está muito interessada em conservar a posse da ilha Tristão na embocadura do Compony.

O governo de Lisboa, e continuamos em janeiro de 1886, declara abertamente que não pode aceitar o abandono dos territórios na margem esquerda do Massabi (ou Loema). No mês seguinte, a França insiste na posse da margem esquerda do Loema. Depois de algumas vicissitudes, entre elas a queda do governo de Lisboa, Portugal sacrifica o seu direito histórico no Casamansa e no rio Nuno. O político Barros Gomes escreve: “Para nenhuma das regiões além-mar poderia Portugal ostentar melhores títulos de posse do que para as regiões banhadas pelo Casamansa. Descoberta, conquista, ocupação efetiva, tratados celebrados com os potentados indígenas, convénios diplomáticos com as nações da Europa, remontando alguns ao século XV, tudo quanto pode constituir um direito e justificar a soberania, tudo pode ser alegado em favor do domínio de Portugal naqueles territórios, tudo tende a acentuar o sacrifício consumado com o seu abandono".

Perdia-se o Casamansa, lutava-se por uma fronteira mais folgada no Sul. A França deixa de insistir na sua presença no Massabi. E assim se chega ao projeto de convenção apresentado pela França, onde esta faz o reconhecimento do direito de Portugal exercer a sua influência nos territórios que separavam as possessões portuguesas de Angola e Moçambique, era uma vaga e inconsequente declaração formal, não terá qualquer peso face ao Ultimato. Durante as negociações, Portugal pretendeu que se mencionassem os limites dos territórios entre Angola e Moçambique, a França opôs-se liminarmente, fez reconhecimento “sob reserva dos direitos anteriormente adquiridos por outras potências”. A Convenção Luso-Francesa foi aprovada na Câmara dos Deputados a 2 de julho de 1887 e aprovada na Câmara dos Pares a 18 seguinte.

Em 25 de agosto de 1887 a Convenção foi assinada pelo rei D. Luís. Armando Tavares da Silva regista a extensa apreciação que a comissão de negócios externos da Câmara fez do projeto de lei, dava-se como as cedências no Casamansa compensadas tanto pelo rio Cacine como pelo reconhecimento que a França fazia de quase todo o território do Massabi e o da zona de exploração entre a província de Angola e Moçambique: “O rio Cacine e os territórios de uma e outra margem foram com efeito uma cessão a troca de outra, porque, embora as nossas descobertas e as nossas pretensões a domínio se estendessem ainda mais para o Sul, é certo que a posse efetiva pertencia à França”.

Estavam consumadas as fronteiras. Segue-se um período de tentativas de ocupação que só serão coroadas de êxito com as campanhas de Teixeira Pinto, é a partir daí que a administração portuguesa, de forma mínima, se irá internando até ao Gabú, descendo à península de Cacine e ao arquipélago dos Bijagós, finalmente submetido em 1936, com a capitulação do régulo de Canhambaque.

Monumento alusivo às campanhas do Canhambaque, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra "Bijagós, Património Arquitetónico", Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23378: Historiografia da presença portuguesa em África (322): A Guiné e as Campanhas Coloniais (1850-1925) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
A coleção Batalhas da História de Portugal teve grande notoriedade, para além das livrarias chegou a vender-se nos quiosques e papelarias, teve imensa procura, recebeu apoio da Academia Portuguesa de História e vários investigadores consagrados colaboraram ativamente nos diferentes livros. Um deles foi dedicado às campanhas coloniais, poder-se-á dizer que não traz grandes novidades mas é uma boa síntese divulgativa e permite uma leitura num contexto comparativo com as campanhas que decorreram em Angola (Cuamato, Dembos, Lunda, I Guerra Mundial), Moçambique (Campanhas da Zambézia e a luta contra os Bongas, Barué, Chire, Macequece, Campanhas do Sul do Save, Marracuene, Magul, Coolela, Chaimite, a Campanha de Gaza, até à pacificação do Angoche), depois temos um quadro dos acontecimentos na Índia e Macau até às campanhas e revoltas em Timor. Enfim, uma obra que merece ser apreciada num meritório trabalho de divulgação que infelizmente parece ter arrefecido, é público e notório o abrandamento de trabalhos em torno do Império Colonial Africano e mesmo do Império Português em geral.

Um abraço do
Mário



A Guiné e as Campanhas Coloniais (1850-1925)

Mário Beja Santos

A Coleção "Batalhas da História de Portugal" consagrou um volume às campanhas coloniais que ocorreram entre 1850 e 1925 em Angola, Moçambique, Guiné e Timor. O texto principal deste volume é da responsabilidade do Prof. Doutor António Ventura, QUIDNOVI, 2006. Como é compreensível, vamos cingir as nossas observações ao que o historiador refere sobre a Guiné.

Vejamos como ele introduz a problemática das campanhas na colónia:
“Na Guiné, desde a década de 40 do século XIX que se sucederam as sublevações e os confrontos entre diversas etnias locais, por um lado, e entre estas e as autoridades portuguesas, por outro. Em 1844, os Grumetes atacaram a Fortaleza de Bissau, que contava com um reduzido número de defensores. Em 1853, foi criado o cargo de Governador da Guiné, com residência em Bissau, ficando-lhe subordinado o governo da Praça de Cacheu. Nesse ano, ocorreu a sublevação dos Papéis, que atacaram Bissau, que só foi salva graças à intervenção de forças francesas: o brigue Palinure desembarcou um destacamento em socorro da Praça. A 9 de Outubro de 1856, Honório Barreto conseguiu forçar a submissão destes sublevados”.
No período posterior dá-se uma nova organização administrativa, a Guiné é constituída como um só concelho, fica subdividida em Praças e Presídios, sob a administração de um Governador chamado da Guiné Portuguesa, residente em Bissau, virá a ser a sede de um Distrito Administrativo Militar, na vila é também criada a Comarca Judicial. Os conflitos interétnicos agudizam-se: a guerra sangrenta de Fulas contra Mandingas e Beafadas, que se estenderá ao Forreá em 1866. Em 1871 eclode nova rebelião dos Grumetes de Bissau, durante a qual foi morto o Governador-interino do Distrito. Em 1878, os Felupes atacaram em Bolor uma força comandada pelo Tenente Calisto dos Santos, morrem dois oficiais e 50 soldados. O acontecimento tem grande repercussão em Lisboa, decide-se romper com a dependência de Cabo Verde e estabelece-se autonomia da Província, pela primeira vez há uma capital na Guiné, Bolama.

Mas as sublevações não param, logo houve que reprimir uma revolta do Batalhão de Caçadores N.º 1, em Bolama. No ano anterior, os Felupes de Jufunco cediam todo o seu território a Portugal. Assinam-se tratados de paz com os Fulas do Forreá e com os Beafadas de Guinala. A despeito desta atmosfera de paz, em 1881 os Fulas e Futa-Fulas do Forreá atacaram a Praça de Buba, e pouco tempo depois revoltam-se os Beafadas de Jabadá, tudo fica aparentemente resolvido com acordos de paz. Não param as sublevações mas também as homenagens ao governo da colónia. Em 1885 é feita a paz em Buba entre os Fulas e Beafadas, depois de uma longa guerra de extermínio. No ano seguinte, Portugal confirma e ratifica a Convenção Luso-Francesa, renuncia-se ao território do Casamansa incluindo o porto de Ziguinchor. Sucedem-se pequenas desordens, rebeliões na ilha de Bissau, no Leste e nos Bijagós. Onde fervilha a tensão é mais à volta da fortaleza de Bissau, mas também há guerra na região do Geba. em 1892, a província é convertida em Distrito Militar Autónomo. Criaram-se os Comandos Militares de Bissau, Cacheu e Geba, mas os efetivos continuam a ser minúsculos e as rebeliões na ilha de Bissau permanentes. Tudo parecia ter melhorado na região de Cacheu bem como na região de Cacine, melhorara a ocupação militar da Guiné, para além de Bolama e Bissau, estendia-se a Geba, S. Belchior, Sambel-Nhantá, Cacheu, Farim, Buba, Bolola, Contabane, Cacine e Cacondo. Ao todo, estavam no território dois destacamentos com sete oficiais, dois sargentos e duzentos cabos e soldados.

Em 1896, é a vez dos Manjacos manifestarem rebeldia. Inicia-se a primeira Campanha do Oio, é durante estas operações que um chefe Mandinga, Lamine Indjai, aliado dos Portugueses, morreu a defender a bandeira que levava e que não deixou cair nas mãos dos sublevados. Mas a campanha terminou de uma maneira desastrosa, Graça Falcão, Comandante de Farim e responsável pela Campanha escapou por um triz. Até ao fim do século vão aumentando os postos militares. Há populações que se recusam a pagar imposto e insubordinam-se, daí várias campanhas, logo na zona de Churo, envolvendo forças terrestres e navais, os Papéis submetem-se. Cria-se uma companhia mista de artilharia em Bolama, efetuam-se uns trabalhos de delimitação de fronteiras, as forças portuguesas e francesas foram alvo de ataques. Em 1907 começa a guerra do Cuor, que prosseguirá no ano seguinte, com um contingente nunca visto. O régulo do Cuor, Infali Soncó, foge depois de ter dado séria resistência. Novas operações na ilha de Bissau, é aí que se faz notar Abdul Indjai, que acabará exilado em S. Tomé, depois perdoado e mais adiante vamos vê-lo como um autêntico braço direito do Capitão Teixeira Pinto.

As sublevações, insurreições e insubordinações são uma constante entre o fim da Monarquia e os primeiros anos da I República. A grande alteração começa a ser dada com as operações de Teixeira Pinto nas regiões de Mansoa e Oio, em 1913, com o apoio de forças navais, acompanha-o uma guarda avançada de Abdul Indjai e 400 irregulares. Em janeiro de 1914, depois de nova revolta no Churo começa a marcha da coluna de operações de Cacheu, comandada por Teixeira Pinto, em abril estes territórios dão-se como pacificados, Teixeira Pinto prossegue contra os Manjacos e dá-se por finda a campanha de Cacheu e Costa de Baixo. Teixeira Pinto volta-se agora para os Balantas que pedem a paz. Teixeira Pinto embarcou para Lisboa e só regressou em janeiro do ano seguinte. Desta feita, a grande questão é Bissau, os Papéis dão imensa luta.

Teixeira Pinto e o Tenente Sousa Guerra mais 1600 guerreiros com Abdul Indjai à cabeça, de novo com apoio naval, procuram obter uma vitória definitiva. Os sublevados pareciam levar tudo a melhor até que foram repelidos por Teixeira Pinto que contra-ataca e toma de assalto as posições de Intim e Bandim e mais adiante Antula, e depois Safim, a marcha terminará em Bor e Biombo. Com a captura do régulo de Biombo e a rendição do régulo de Tore terminava com êxito completo a campanha da ilha de Bissau. Foi uma pacificação que custou um elevado preço aos portugueses e seus aliados: 284 mortos e feridos. Mas ainda se estava longe de uma pacificação efetiva. Em março de 1917 era declarado o estado de sítio em todo o arquipélago dos Bijagós, o Tenente Sousa Guerra comanda uma coluna com o objetivo de estabelecer um posto militar em Canhambaque, mas nada sucedeu. De novo declarado o estado de sítio em maio com o mesmo objetivo de estabelecer um posto militar em Canhambaque, o sucesso foi reduzido. É neste período que surgem graves problemas com Abdul Indjai, então régulo do Oio e Cuor, o seu comportamento e os abusos praticados provocaram um grande descontentamento das populações, as autoridades portuguesas viram-se obrigadas a agir contra o seu antigo aliado. Novas operações em julho de 1919 e prisão de Abdul Indjai que será demitido do posto de Tenente de 2.ª linha, previa-se a sua deportação para Moçambique mas morreu em Cabo Verde.

Vão continuar a haver problemas nos Bijagós, grandes combates, em maio de 1926, durante esta fase de tentativa de ocupação, nesta região Bijagó sublevada as forças portuguesas tiveram 22 mortos e 74 feridos. A chamada pacificação da Guiné será reconhecida só em 1936, com a submissão de Canhambaque e a paz com os Bijagós.

Infali Soncó, régulo do Cuor, ainda no momento de confraternização com as tropas portuguesas, 1908, fotografia de José Henriques de Melo
Ataque dos auxiliares portugueses na chamada Guerra do Cuor, 1908
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23352: Historiografia da presença portuguesa em África (321): Grande polémica (2): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23321: Notas de leitura (1451): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Estas navegações e estes documentos narrativos abriram campo a um conhecimento que estilhaçou ideias pré-concebidas durante séculos. Dos trabalhos de José Silva Horta depreende-se claramente que havia conceções cristalizadas ao longo de séculos sobre esses povos desconhecidos tratados como descrentes e selvagens. Os relatos entremeiam dados que a cultura europeia demorou a assimilar: os povos pardos, fundamentalmente islamizados, seguia-se o grande deserto, em território longínquo estava a mítica Tombuctu, longe ficava o Benim, pela mesma orla costeira chegava-se à terra dos Negros, os navegadores informavam que havia uma economia de troca, reportaram usos e costumes, havia claros indícios da presença do islamismo e também da idolatria, gradualmente a aceitação das trocas. Esses mesmos autores da literatura de viagens iriam lançar outras novas questões, importantes para a divulgação do Cristianismo, traziam já subjacente a ideia de que os povos civilizadores tinham muito trabalho pela frente para tirar da selvajaria aqueles povos que eram vistos manifestamente como atrasados, a despeito das suas manifestações culturais e das boas práticas de acolhimento. Assim entrou em germinação a mentalidade colonizadora, só contestada e repudiada no século XX.

Um abraço do
Mário



Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra:
Relatos incontornáveis e de alto nível da literatura de viagens (3)


Beja Santos

De Cadamosto e Pedro de Sintra já aqui se fez larga referência ao trabalho do professor Damião Peres na Academia das Ciências, em 1948. Procura-se agora cotejar alguns aspetos essenciais de uma obra de divulgação que estranhamente não se reeditou, intitulada “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data. Esta obra de divulgação foi extraída da Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos Domínios Portugueses, tomo organizado pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821). Figura nas anteriores edições com o título de “Navegações”.

Voltando um pouco atrás, recorda-se ao leitor que esta literatura de viagens tem um peso documental inexcedível para o trabalho historiográfico. Depois de fazermos referência aqui a Cadamosto iremos até uma obra intitulada “O Confronto do Olhar, o encontro dos povos na época das Navegações Portuguesas”, Editorial Caminho, 1991, com as colaborações de Luís de Albuquerque, António Luís Ferronha, José da Silva Horta e Rui Loureiro. José da Silva Horta vai situar-nos neste espaço da costa africana e dá-nos a imagem do africano pelos portugueses antes dos contatos e em sequência os primeiros olhares sobre o africano do Sara Ocidental à Serra Leoa (meados do século XV – início do século XVI). Cadamosto depois de nos descrever o país da Gâmbia, como navegavam os negros nas suas almadias, como se estudavam as distâncias, e isto num lindo capítulo em que refere a Estrela Polar e as seis estrelas do polo antártico, referencia quem foram os primeiros a descobrir as ilhas de Cabo Verde, assunto que, como é de todos sabido, lançou grande polémica na historiografia dos séculos XIX e XX. Navegando pela costa africana entre o cabo Verde e o Senegal chegaram a um lugar onde foram levados à presença do Batimansa, sucedem-se as trocas. Cadamosto pronuncia-se sobre a religião, modo de viver e trajar destes negros, uns praticantes da idolatria, outros praticantes da seita de Mafoma. “No modo de viver, quase todos se governam conforme os negros do reino do Senegal. Comem carne de cão, que nunca ouvi dizer que se comesse noutra parte. Os seus vestidos são de algodão e se os negros do Senegal andam quase todos nus, estes pela maior parte andam vestidos. As mulheres vestem todas por uma mesma forma, salvo que quando são pequenas gostam de fazer alguns lavores sobre a pele, picando com agulhas os peitos, braços e pescoço, os quais parecem desses bordados de seda que se usam nos lenços e são feitos com fogo de modo que em tempo algum se apagam”. Fala dos elefantes, do descobrimento do rio de Casamansa cujo rei é igualmente o Senhor Casamansa, avança-se para a Guiné, tal como ela hoje existe, regressa-se depois a Portugal.

A viagem de Pedro de Sintra, escudeiro do Infante D. Henrique, faz parte dos relatos de Cadamosto. É a primeira referência que se faz ao cabo de Sagres da Guiné, a 80 milhas do cabo da Verga. “Dizem os marinheiros, pelas informações que houveram, que os seus habitantes são idólatras, adoram estátuas de pau com a forma humana. São de uma cor mais amulatada do que negra e têm alguns sinais feitos com ferro em brasa pela cara e pelo resto do corpo”. Trata-se de um relato que revela claramente que as navegações tinham atingido o cabo Roxo e se aproximavam da costa da Libéria.

Os trabalhos de José da Silva Horta no já aludido livro “O Confronto do Olhar” têm a ver com a imagem do africano antes e depois dos contatos estabelecidos.

Antes, havia a ideia do negro da Etiópia, do egípcio, pensava-se no mouro, e admitia-se a existência de um reino distante com um senhor cristão, o Preste João. José da Silva Horta faz um levantamento das expressões à volta do negro, como é óbvio pouco valorativas e não abonando gente civilizada. Havia, insista-se, no imaginário, o tal Preste João que era pensado como patriarca de Núbia e Etiópia que “senhoreia mui grandes terras e muitas cidades de cristãos mas que são negros como a pez e queimam-se com fogo em sinal de Cruz em reconhecimento do batismo, e como quer que estas gentes são negros, mas são homens de bom entendimento e de bom siso”. Em jeito de conclusão, o historiador diz que a imagem do africano em Portugal no século XIV inícios do século XV é marcada pela permanência de estereótipos negativos da herança medieval anterior, associados à cor negra e ao Negro.

Tudo se alterará a partir das navegações nas costas do Sara Ocidental e com as motivações do projeto henriquino, os propósitos de cristianização não chocavam com a escravatura, assentava-se numa sobrevalorização da alma sobre o corpo, e os relatos da literatura de viagens vão emitir juízos sobre a vida nómada dos Árabes, dos Azenegues e dos Negros, fala-se permanentemente em bestialidade, credos errados, adoração de ídolos em terras verdes e luxuriantes. José da Silva Horta elenca vários testemunhos como os de Cadamosto e Pedro de Sintra, também os de Diogo Gomes, recorde-se que Pedro de Sintra percorreu a costa da Guiné, antes deixou-nos um retrato dos Mandingas e dos Jalofos senegaleses, retratou as feiras dos Banhuns entre o rio Casamansa e o Cacheu, também a crença dos habitantes da Serra Leoa e enfatiza a perenidade do Homem Selvagem nas representações do africano, com toda a ambiguidade entre homem e animal que lhe é própria. Duarte Pacheco Pereira fala na Serra Leoa em que há gente belicosa, negros que comem outros homens, que têm idólatras e feiticeiros, negros que têm dentes limados e agudos como o cão. E a aproximação entre o homem e o animal é bem clara: “Nesta serra há muitos elefantes e onças e outras muito variadas animálias que nesta Espanha nem em toda a Europa não há. Também há aqui homens selvagens, a que os Antigos chamaram Sátiros, e são todos cobertos de um cabelo ou sedas quase e tão ásperas como de porco; e estes parecem criatura humana e usam o coito com suas mulheres como nós usamos com as nossas; e em vez de falarem, gritam quando lhes fazem mal”.

O historiador também observa que num tempo em que dificilmente seria pensável a existência de verdadeiros homens fora da geração de Adão, o próprio Negro via-se envolvido em dúvidas sobre a sua humanidade, e despedimo-nos exatamente com uma observação de Duarte Pacheco Pereira:
“Muitos Antigos disseram que, se alguma terra estivesse oriente e ocidente com outra terra, que ambas teriam um grau do Sol igualmente, e tudo seria de uma qualidade. E quanto à igualeza do Sol é verdade; mas como quer que a majestade de grande natureza usa de grande variedade, em sua ordem, no criar e gerar das coisas, achámos, por experiência, que os homens deste promontório de Lopo Gonçalves (cabo Lopez) e toda a outra terra de Guiné são assaz Negros, e as outras gentes que jazem além do mar Oceano a ocidente (que tem o grau do Sol por igual, como os Negros da dita Guiné) são pardos quase brancos; e estas são as gentes que habitam na terra do Brasil. E que se algum queira dizer que estes estão guardados da quentura do Sol, por nesta região haver muitos arvoredos que lhe fazem sombra, e que, por isso, são quase alvos, digo que se muitas árvores nesta terra há, que tantas e mais, tão espessas há nesta parte oriental de aquém do oceano de Guiné. E se disserem que estes de aquém são negros porque andam nus e os outros são brancos porque andam vestidos, tanto privilégio deu a natureza a uns como a outros, porque todos andam segundo nasceram; assim que podemos dizer que o Sol não faz mais impressão a uns que a outros. E agora é para saber se todos são da geração de Adão”.

Iniciavam-se os encontros, iriam eclodir os grandes debates sobre se os negros tinham alma, demorou tempo a compreender que a gente de todas as etnias e cores faziam parte da mesma humanidade. Perceba-se, pois, que o grau de dúvidas culturais e civilizacionais reveladas nestes encontros obedeciam a uma estrutura mental sedimentada durante séculos.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23310: Notas de leitura (1450): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23280: Notas de leitura (1447): “Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento”, por Malam Sambú; edição de autor, Macau, 1999 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Nada de espetacular neste achado, trata-se de um grito de alma de um guineense que se diplomou na República Popular da China e trabalhava na Universidade de Macau ao tempo desta edição de autor, para a qual nunca ouvira qualquer referência. Agradece ao nosso confrade António Estácio o apoio dado na pesquisa bibliográfica. Apresenta alguns aspetos curiosos nas referências que faz às etnias, é manifesto que tinha a história da presença portuguesa na Guiné muito colada com cuspo, daí a sua digressão errática. As mãos não lhe doem na acusação que faz de todos os excessos do regime a partir do Estado. Um documento que fez época, de alguém que na diáspora não se conformava com a violência e o caos em que se encontrava a Pátria.

Um abraço do
Mário



Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento

Beja Santos

“Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento”, edição de autor, Macau, 1999, é escrita de Malam Sambú, natural de Mansoa, licenciado em Engenharia Elétrica e Eletrónica pela Universidade de Nanjing, China, e no momento em que deu à estampa este seu livro trabalhava na Universidade de Macau. É uma obra que possui uma narrativa divulgativa sobre determinadas etnias depois de apresentar a geografia do país, fala igualmente da chegada dos europeus (infelizmente com muitos dislates, incorreções, inverdades e até saltos bruscos na narrativa histórica) após uma descrição sumária da luta armada revela ao que vem, no essencial: traça um libelo acusatório do regime ditatorial de Nino Vieira.

Vê-se que estudou a preceito um conjunto de etnias (não trata de todas e das que trata revela manifesto desequilíbrio expositivo) e enuncia um conjunto de curiosidades que vale a pena repisar. Falando dos Balantas diz que, de entre o grupo animista eles são os mais demorosos integrando um longo bloco étnico que se estende por toda a costa senegalesa até à Costa do Marfim. A ausência de Estado explica a falta de menção quanto à sua tradição histórica. Descreve os diferentes escalões na estratificação etária, é um dos pontos curiosos da sua exposição. Os Balantas são grandes produtores de arroz. Não aceitaram pacificamente a imposição colonial de terem chefes vindos de povos islamizados, como muitos outros autores já observaram, esta base de contestação propiciou a grande adesão à luta armada desde a primeira hora.

Os Papéis, ou Pepéis, dispõem de uma organização social hierarquizada semelhante aos Mandingas e quanto à língua aparentam-se com os Brames. São originais do Sul da Guiné, da região de Quínara, foram-se deslocando para a ilha de Bissau onde criaram vários regulados, todos eles religiosamente subordinados aos Beafadas, cujos ídolos ainda hoje veneram. Para além da ilha de Bissau, distribuem-se ao longo do Litoral, desde a mata de Putama até ao rio Cacheu. Na ilha de Bissau existe um local conhecido pelo nome de Enterramento, o qual possui uma grande carga histórica. Fica na zona compreendida entre Brá e Bor, onde se encontram enterradas algumas personalidades guineenses mais importantes, caso do régulo Bacampolõ Có.

Os Mansoanques ou Suénes têm a sua difusão étnica no Norte da Guiné-Bissau. A região compreendida entre Farim e Mansoa era predominantemente habitada pela etnia Mansoanque, originários de uma cisão havida nos Beafadas. Na sequência da guerra santa que lhes foi movida pelos Mandingas, o grupo Mansoanque sofreu uma enorme retenção, é hoje um dos grupos étnicos mais reduzidos da Guiné-Bissau. Em virtude da grande semelhança que existe entre os apelidos Mansoanques e Beafadas, há quem admita mesmo que estas etnias tenham feito parte da mesma família. Há uma enorme semelhança entre apelidos, por exemplo Sambú, Djassi, Soncó e Mané.

Os Mandingas são descendentes dos povos oriundos do Sudão Ocidental e da Etiópia. Sabe-se que no século XIII os Mandingas de Malinke, sob o comando do general Sundiata Ketá estabeleceram-se na região do Gabú. A Guiné torna-se um membro do vasto império do Mali sendo dirigida por um Farim (Governador) que normalmente era escolhido de entre as famílias Mané e Sané. O Gabú era o principal estado Mandinga. No Nordeste, na margem direita do Geba, os Mandingas formaram os reinos de Oio e de Braça. Para além do território guineense havia também outros pequenos reinos mandingas nos territórios vizinhos, tais como os do Vale do Gâmbia. Diz também Malam Sambú que os Mandingas ou Incas são originários do Oio.

Fala sumariamente dos Fulas, Bijagós, Beafadas, Nalus, Cocolis, Nhomincas, Banhuns, Cassangas e Manjacos.

Temos depois o histórico da presença dos povos europeus com destaque para os portugueses. Não deixa de referir que o trabalho forçado teve uma presença pouco expressiva, sendo praticamente utilizado pelas autoridades administrativas na construção e manutenção de estradas de terra batida.

Esquematiza as diferentes etapas da luta armada e após referência à chegada entusiástica do PAIGC ao território da Guiné-Bissau faz um rol da caça às bruxas, purgas, assassinatos, execuções sem qualquer tipo de julgamento, refere invenções de golpes como o alegado preparativo de um golpe de Estado por parte dos Antigos Comandos Africanos de que nunca se apresentou um documento de acusação fidedigno, contextualiza o terror permanente das arbitrariedades da polícia secreta.

E assim chegamos ao seu território de eleição, após o 14 de novembro de 1980 a ascensão de um processo ditatorial onde o autor é meticuloso a expor os crimes e extorsões praticados por Nino, incluindo a falsificação dos atos eleitorais, o assassinato dos rivais, como Paulo Correia, a sua vida luxuosa, a sua desbragada vida sexual destruindo matrimónios e enxovalhando famílias, os seus investimentos no estrangeiro, a venda de armas aos rebeldes do Casamansa, o progressivo descalabro dos Serviços Públicos. Talvez dado o facto de trabalhar em Macau, reporta a venda de passaportes a chineses que nem sabiam onde ficava a Guiné-Bissau… Usa uma linguagem crua, não se coíbe de dizer que o expoente máximo da ladroagem era personificado por Samba Lamine Mané.

E assim chegamos à questão das armas do Casamansa, diz taxativamente que Nino tinha uma percentagem na venda das armas mas que Ansumane Mané também não tinha as mãos muito limpas, o que acontece é que todo o círculo militar estava inteiramente informado de que iria ocorrer uma nova purga e foi nesse contexto que se iniciara o sangrento conflito político-militar com a chegada de tropas estrangeiras.

Este professor universitário é uma voz solitária, apresenta mesmo um manifesto propondo o saneamento político do país. É evidente tratar-se de uma obra datada, nunca tivera qualquer referência à sua existência, é a felicidade de vasculhar os vastos descritores da Guiné-Bissau na Biblioteca Nacional que possibilitam estes achados.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23266: Notas de leitura (1446): “Cartas à Guiné-Bissau, Registos de uma Experiência em Processo”, por Paulo Freire; Moraes Editores, 1977 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23102: Historiografia da presença portuguesa em África (309): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (13) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Há que reconhecer o incontestável mérito desta investigação, Senna Barcelos, à luz dos conhecimentos do seu tempo, procurou fazer um levantamento da história de dois territórios desde a chegada da presença portuguesa, é hoje muito fácil dizer que já se investigou muito e que se esclareceu pontos que o autor deixou na obscuridade. O dado relevante é a pesquisa nos arquivos a que ele procedeu de forma meticulosa de modo que podemos dizer sem hesitação que é a primeira vez que se possui um quadro histórico dessa presença na Guiné até ao momento em que esta foi desanexada de Cabo Verde, em 1879. Há lacunas, caso da presença missionária, que está hoje felizmente coberta no trabalho incontornável de Henrique Pinto Rema. Senna Barcelos dá-nos um retrato ímpar dessa presença, envolve-a numa atmosfera de permanentes conflitos com os gentílicos, vivem entre eles em pé de guerra, sempre numa atitude de conquista, e só muito gradualmente vão aceitando a presença portuguesa que ganhará alguma efetividade depois da campanha de Teixeira Pinto na ilha de Bissau. E são elementos que não constam do trabalho de Senna Barcelos, para o tempo ele deixou-nos um quadro valioso do que foi acontecendo no Casamansa e de como a diplomacia portuguesa ao submeter a questão de Bolama e territórios adjacentes à postura arbitral do presidente dos EUA Ulysses Grant garantiu a dimensão sul do território da Guiné-Bissau. Para que conste.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (13)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

Hoje se conclui este punhado de recensões a uma obra incontornável, Senna Barcelos irá despedir-se do leitor no exato momento em que a Guiné, ainda sem fronteiras definidas, se autonomiza de Cabo Verde, um desastre militar ocorrido em chão Felupe desencadeou tal decisão política tomada por Lisboa. Em 26 de abril de 1859 faleceu na Praça de Bissau Honório Pereira Barreto e o Governador-geral pronto declarou: “A morte do honrado, inteligente e patriota desinteressado, Honório Pereira Barreto, Governador da Guiné, que muito temos a lastimar, não foi efeito de causas extraordinárias. A falta do único homem que conhecia profundamente a Guiné, que estendia a sua influência para o interior e na costa a uma grande distância, instruído e sempre pronto ao serviço do seu país é uma perda irreparável”.
E o autor traça um extenso currículo dessa figura determinante da primeira metade do século XIX na Guiné. Em fevereiro do ano seguinte, o Governador-geral deu ao novo Governador da Guiné, António Cândido Zagalo, instruções sobre as diferentes obras de utilidade para o distrito, a saber, no caso de Bissau: obter uma área em volta da praça de São José de Bissau que deverá ser limitada e defendida, reparar as muralhas da Praça e desentulhar os fossos, cuidar do reparo do quartel, construir uma alfândega e um cais em frente da vila, cuidando também do estabelecimento de uma povoação em frente da vila de Bissau, no Ilhéu do Rei. Quanto a Cacheu, impunha-se alargar a área da povoação da vila, reparar os quartéis e alojamentos, construir um cais em frente da povoação tal como em Bissau. E tanto em Bissau como em Cacheu o novo Governador devia ter em vista a abertura de poços, próximos às povoações, que forneçam água aos habitantes para usos domésticos.

Mas recuemos a 1858, a questão de Bolama marca hostilidades permanentes. Em 4 de junho aportara a Bolama um vapor de guerra inglês carregado de arroz para distribuir aos escravos, ali refugiados, dos seus donos, de Bissau, Rio Grande e Ilha das Galinhas. Fazia esta distribuição o preto David Lawrence, encarregado daquela ilha pelo governo inglês. Depois daquela data nenhum outro navio inglês visitou Bolama, acabou-se o arroz e os escravos voltaram à casa dos seus donos. Os ingleses, à falta de argumentos para provarem os seus, quanto à legitimidade da posse de Bolama e áreas circunvizinhas, continuavam a provocar conflitos com os portugueses, pretendiam promover uma colonização inglesa com escravos portugueses, a troco de umas libras de arroz. Mais adiante, esteve iminente um grande conflito provocado por este David James Lawrence, senhor da Ponta Lawrence em Bissássema contra o negociante português Martinho da Silva Cardoso, senhor da Ponta Martinho, o Governador Zagalo teve de intervir. Senna Barcelos refere que o governador recebera uma carta de um súbdito britânico, Thomas W. Cowan, mestre-escola em Bolama, condenando o procedimento de David Lawrence. Zagalo procurou apurar a verdade dos factos e pediu o apoio das autoridades gentílicas, o conflito ficou temporariamente sanado. Mas, entretanto, o Governador da Serra Leoa escreveu ao Governador da Guiné declarando que tinha em posse tratados que comprovavam que Bolama, o Rio Grande de Bolola e Buba pertenciam à Grã-Bretanha. Zagalo respondeu-lhe polidamente, deixando para as autoridades de Lisboa a resposta. E escreve para o Governador-geral: “Não posso deixar de duvidar da legalidade dos documentos apresentados, porque os reis designados no termo da cessão da ilha de Bolama jamais foram senhores daquela ilha, nem das outras do Arquipélago dos Bijagós, a quem pertencem, e não aos Beafadas do citado rio, cuja margem esquerda até Bolola também pertence aos reis de Orango e Canhabaque que à força conquistaram aos Beafadas em época muito anterior à data do referido termo de cessão”. E no mesmo documento o Governador clarifica a falta de direitos históricos dos franceses no Casamansa.

A diplomacia portuguesa procura uma arbitragem para a questão de Bolama, é o que faz o Conde do Lavradio junto de Lord John Russell. As reivindicações britânicas a Bolama não param, do lado português envolvem o Duque de Loulé e o Conde d’Ávila. A questão que Portugal propõe que se submeta a arbitragem é o exame do fundamento com que as duas nações, Portugal e Inglaterra, reclamam a posse e a soberania da ilha de Bolama, e também o facto de a Inglaterra clamar ainda mais alguns territórios no continente africano.

Senna Barcelos não esquece de registar outros conflitos, caso do que se passa na região do Geba em 1865, envolvendo Futa-Fulas contra Mandingas. O território do Geba pertencia ao rei de Ganadú, este resistiu ao ataque dos Fulas e estes pediram a paz. Também nesse ano o Governador-geral deu conhecimento de um contrato feito pelo Governador de Cacheu com os régulos das regiões limítrofes de Ziguinchor. À volta do presídio de Geba, os Fulas revelavam-se hostis, a questão só será apaziguada mais tarde. Prosseguem as hostilidades britânicas, a bandeira portuguesa é sistematicamente arreada em Bolama, e enquanto isto se passa reacendem-se os conflitos no Rio Grande entre Fulas e Beafadas.

Em 26 de outubro de 1868, solicitou o ministro Carlos Bento ao nosso diplomata em Washington, Miguel Martins d’Antas, a sua intervenção junto de Mr. Seward para este diligenciar se o presidente dos EUA se prestava a arbitragem, a resposta favorável chega a 20 de novembro. O Conde d’Ávila dirige a redação da exposição histórica e jurídica dos factos, acompanhada das provas aduzidas em apoio da mesma, a qual foi enviada para Washington. A sentença favorável a Portugal foi proferida a 21 de abril de 1870 e em 1 de outubro desse ano a bandeira inglesa foi arreada em Bolama. Em maio do ano seguinte determinou-se que o território da Ilha de Bolama e do Rio Grande fosse considerado um concelho do distrito da Guiné.

Dá-se a insubmissão da região do Churo a Cacheu. No final do ano de 1876 criou-se na Guiné uma comarca judicial, com sede em Bissau. E chegamos ao desastre de Bolor. Em 30 de dezembro de 1878 foi massacrada na margem direita do rio Bolor uma força militar que para ali fora com o governador do distrito. O impacto do desastre chega a Lisboa e o Governo decretou em 18 de março de 1879 a desanexação do distrito da Guiné da província de Cabo Verde, a Guiné passava a ser uma província independente e o seu primeiro Governador foi Agostinho Coelho.

Há que fazer o comentário de que estes últimos anos do acompanhamento dos factos históricos da Guiné por Senna Barcelos decorrer a um ritmo muito apressado e apresentado de forma muito sincopada. Ele termina o seu trabalho dizendo: “Ao fim de darmos as nossas investigações que datam de 1460 podemos dizer que os maiores benefícios que a província experimentou começaram em 1859”.

E aqui também damos por finda a extensa recensão daquela investigação que bem merece se encarada, em período contemporâneo, como o primeiro arremedo historiográfico que foi conferido à Guiné.


Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Imagem retirada do blogue ePortuguêse, com a devida vénia
Destroço da estátua de Honório Pereira Barreto no interior da fortaleza de Cacheu
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23085: Historiografia da presença portuguesa em África (308): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (12) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 16 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23085: Historiografia da presença portuguesa em África (308): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (12) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Estamos a descrever os últimos atos públicos de Honório Pereira Barreto que obteve na sua viagem aos Bijagós um precioso acordo de paz e aceitação da soberania portuguesa em Canhabaque. Mas os britânicos não desarmam, fazem a apologia do combate à escravidão e andam descaradamente a negociar escravos na Serra Leoa. Em Bissau, a Comissão Municipal pede a Honório Pereira Barreto para ficar, a sua presença simboliza paz. Na região do Geba tudo voltou a azedar, mais expedições, mas com resultados inconclusivos. A proteção fortda navegabilidade do Geba é garantida pela fortaleza de S. Belchior. Lemos este derradeiro período da escrita de Senna Barcelos (ele encerrará a sua investigação em 1879, quando a Guiné se autonomizou definitivamente de Cabo Verde) e assistimos a tumultos constantes, a pressão no Casamansa agudiza-se e em breve a problemática de Bolama irá ser entregue a um árbitro, ao Presidente dos Estados Unidos da América, Ulysses S. Grant.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (12)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

Continuamos a dar palavra a Honório Pereira Barreto, a sua epistolografia é preciosa e ninguém como Senna Barcelos deu destaque a este incontornável conjunto de peças que ajudam a esclarecer estes anos decisivos da pressão francesa sobre o Casamansa e britânica sobre o sul da Guiné. Honório escreve um relatório dirigido ao Governador-Geral em 7 de maio de 1856 acerca da viagem que fez aos Bijagós, e diz claramente: 

“Desde março de 1853, em que os franceses foram atacar a ilha de Canhabaque que apliquei toda a minha atenção sobre as ilhas dos Bijagós”

Critica o comportamento então adotado pelo Governador de Bissau e Cacheu que se devia ter oferecido como mediador em conflitos interétnicos e depois entra diretamente no assunto, dá notas dos factos: 

“Em dezembro desse mesmo ano de 1853, uma esquadrilha inglesa veio à ilha de Canhabaque para exigir uma satisfação pelo assassinato feito de um oficial inglês; era eu então Governador-interino da Guiné; recorreram, porém, à minha mediação e tive a fortuna de acabar a questão a contento de ambas as partes. Longe de aumentar aí a influência estrangeira, cresceu a nossa, apertaram-se os laços da antiga amizade”.

E Honório vai contar os principais aspetos da sua viagem, iniciou-a em 11 de janeiro, descreve a sua comitiva e leva presentes para régulos e chefes. Aportou primeiro à ilha das Galinhas, a etapa seguinte foi Canhabaque, ficou hospedado em casa do régulo de Tuore, de nome Tissac, herdeiro do rei que os franceses mataram em março de 1853. Tenta uma reunião com os 17 régulos e chefes de Canhabaque, reuniu com muitos e deixa-nos o seguinte apontamento: 

"Este povo de Canhabaque é verdadeiramente livre, nem consentem ser vendidos; os régulos são simples presidentes de umas assembleias deliberativas, que só têm lugar quando se trata de negócios de interesse geral para o país”

O ponto fundamental da reunião é de que todos se manifestam de súbditos portugueses; segue para a ilha de Orango, onde é recebido com uma salva de artilharia, e o rei deu-lhe um tratamento régio. 

“Com franqueza direi a Vossa Excelência que depois que cheguei a Orango e depois que vi os objetos que o rei possuía, pois mobilou a casa em que residia com canapé, cadeiras, mesa, oleados, toalhas e esteiras, fiquei embaraçado sobre o presente com que lhe devia corresponder. Felizmente havia a bordo da lancha que me conduziu um oratório para venda, pertencente à viúva Ferreira, objetos que pessoas bem informadas me disseram seria agradável ao rei. Resolvi dar-lho”

Mais tarde Honório enviou ao Governador-Geral o tratado que tinha efetuado com os régulos bijagós da ilha de Canhabaque.

Em 26 de agosto de 1858 fundeou no porto de Bolama o vapor de guerra inglês Tridente, que ali cometeu atos de violência contra os portugueses, e disso deu conta o morador José Carlos Rebelo Cabral a Honório Pereira Barreto: 

“Pelo meio-dia desembarcou o comandante, acompanhado de tenente e alguns oficiais superiores e inferiores do navio, e de David Lourenço, vindo todos eles armados de espada e pistola. O sobredito comandante logo ao desembarcar fez fala aos habitantes, dizendo-lhes que aqueles que fossem cativos podiam embarcar para bordo como livres, porque isto era uma colónia inglesa”

E Cabral roga conselhos a Honório Pereira Barreto que se dirige ao Governador Interino em Bissau a exigir previdências. A situação naturalmente que se agravara, o governador alegava que Bolama era portuguesa, os britânicos diziam que era inglesa. E dá-se um encontro entre Honório e o comandante Close e o que escreve Senna Barcelos é exemplar: 

“A bordo, na presença do comandante, verificou Honório que todos os escravos eram os próprios que constavam das certidões de registo, mas nem assim os escravos foram entregues, levando-os o comandante para Serra Leoa, onde seriam vendidos pelas autoridades aos negociantes revertendo o produto da venda em benefício das mesmas. E assim afirmavam os ingleses que os portugueses é que faziam escravos quando o governo de Serra Leoa era um depósito de negros escravizados”.

Honório sente-se doente e quer-se afastar da política. Em 15 de julho de 1858 dirigiu o seguinte ofício ao Governador-Geral: 

“Tendo acabado de sofrer uma forte febre, havia já embarcado a bordo de uma escuna portuguesa toda a minha bagagem, e só esperava ter mais forças para poder embarcar e retirar-me para Cacheu, quando no dia 12 deste mês veio à minha casa a Comissão Municipal da Praça entregar-me a carta pedindo-me para ficar. Posto que eu esteja inteiramente convicto da inutilidade do sacrifício que de mim exigem, e que faço, não neguei demorar-me nesta até que Vossa Excelência se digne pronunciar como for conveniente e assim o comuniquei à referida comissão. Em nada concorri, nem direta nem indiretamente, para este passo que porventura imprudentemente deu a Comissão Municipal".

Tinham regressado entretanto os tumultos à região de Geba, houvera conflito entre o presídio de Geba e os Beafadas de Badora. O Major Correia Pinto fora a Geba para apaziguar uma questão entre eles, foi preso. O Governador Zagalo reuniu no Porto de Gole um conselho militar, todos foram unânimes que devia haver castigo. 

Entabulou o governador negociações com o gentio do território de Gussará e de Tumaná, eles foram atacar Ganjarra, outros efetuaram a tomada de Bigine, tudo difícil e com traições pelo caminho, não houve condições para impor uma derrota, o governador retirou-se para Bissau e deixou guarnecido o Forte de S. Belchior para proteger a navegação do rio Geba. 

Senna Barcelos diz-nos que o súbdito inglês David Lawrence (que Honório Pereira Barreto considerava ser português) aproveitando-se das más relações do gentio de Badora com o Governo, mandou aos Beafadas três bandeiras inglesas que foram arvoradas em Bambadinca, Fá e Ganjarra. 

Foi neste contexto que o governador Zagalo requisitou 800 soldados do reino para submeter as gentes de Badora. No entretanto, em Cacheu o gentio de Churo declarou guerra à praça, nova expedição que o Governador-Geral não aprovou. Em Geba as coisas azedaram, organizou-se uma expedição para castigar o gentio, envolveu 6 oficiais, 80 soldados e alguns voluntários a que se juntaram 300 auxiliares, incendiou-se e saqueou-se Bambadinca e voltou a calma aparente.

(continua)


Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Destroço da estátua de Honório Pereira Barreto no interior da fortaleza de Cacheu
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23060: Historiografia da presença portuguesa em África (307): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (11) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 9 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23060: Historiografia da presença portuguesa em África (307): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (11) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
É imprescindível ler toda a epistolografia de Honório Pereira Barreto para conhecer o patriota, que a despeito da indiferença dos seus superiores, contribuiu decisivamente para definir as fronteiras da Guiné, batendo-se com galhardia contra as autoridades francesas e britânicas, desvelando patranhas, recorrendo à ironia para pôr à mostra a grosseria de procedimentos de outros, enfim, cita-se aqui um documento fundamental em que conta, passo a passo, o que viveu em Cacheu, como procedeu para defender os interesses portugueses neste período crucial em que, em tenaz, franceses e britânicos procuraram pulverizar o que restava da Senegâmbia Portuguesa. Barreto impõe-se pelo brio, pelo bom-senso das medidas, pelas propostas mais ajustadas, pelo envio de cartas às autoridades francesas pondo-as a ridículo, tanto pela ignorância demonstrada como pela grosseria dos procedimentos. E avançamos em direção a 1879, altura que Senna Barcelos põe termo ao seu extraordinário e incontornável trabalho.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (11)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

É de um indiscutível valor histórico esta epistolografia de Honório Pereira Barreto travada pelas autoridades francesas, percebe-se facilmente que não se pode investigar este período da colónia da Guiné sem ter em conta a documentação que sai do punho do Governador Barreto. Falando com o delegado francês em Selho, é polido quanto baste e exige a diplomacia, mas não escamoteia os factos, falando do assassínio de súbditos franceses que tinha sido praticado por gentes de Pacau:
“Creio que Vossa Senhoria estará plenamente convencido que os portugueses não concorreram, nem direta nem indiretamente, para tal desgraça. Não posso deixar de dizer a Vossa Senhoria quando em 1844, nós portugueses, estávamos em guerra nesse rio com os Balantas de Jatacunda, que também nos assassinaram e saquearam, os comerciantes de Selho não só levaram a tais gentios armas e munições de guerra, mas até lhe compraram uma canoa que eles tomaram aos portugueses. Vossa Senhoria quer estabelecer o princípio que os portugueses devem sofrer prejuízos para benefício dos franceses, e que estes, pelo contrário, devem-se aproveitar das perdas daqueles. Estas ideias não são deste século, nem da grande nação a que Vossa Senhoria pertence. A França é justa. Os portugueses, apesar do precedente que podiam apresentar, e que acima expus, não levam ao gentio de Pacau munições de guerra; apenas vão ali vender sal, como costumam há séculos; e Vossa Senhoria nenhum direito tem de impedir as nossas canoas de navegarem por todos os pontos do rio. Se Vossa Senhoria julga ter tal direito, não pode também recusar aos portugueses o mesmo direito, isto é, impedir que por Ziguinchor passem as embarcações francesas que vão para esse ponto do Selho. Se Vossa Senhoria, porém, quer abusar da força, há-de permitir-me que lhe diga que isso não é próprio do caráter generoso da nação francesa; nunca a força dá direito algum. Vossa Senhoria, falando do sangue europeu, parece fazer diferenças de raças, e mesmo usar de uma frisante ironia para com o delegado administrativo de Ziguinchor, que é de cor preta, mas que não cede a europeu algum em honra e dignidade. Não distingo cores, mas homens pelas suas qualidades boas ou más. Estou intimamente convencido que o ilustrado governo francês concede proteção a todos os seus súbditos, seja qual for a sua cor. Sinto realmente que Vossa Senhoria trate uma autoridade portuguesa com tão pouca consideração, que lhe dirija correspondência oficial num papel em que eu me envergonharia de escrever a um súbdito meu”.

Em Cacheu, em 27 de outubro de 1855, Barreto envia ofício confidencial ao Governador-Geral dando-lhe conta de como as coisas se processam em Ziguinchor, assim terminando: “Corre aqui a notícia que a França, reconhecendo os nossos direitos sobre Casamansa, prometeu abandonar os estabelecimentos que ali tem hoje. Se isso for verdade, fica a Guiné feliz, porque aquele rio exporta o dobro do que exportam os outros portos juntos”. Para Senna Barcelos, a situação era deprimente: “Pouco era o comércio da Guiné; os franceses no Casamansa e os ingleses em Bolama colocaram no mercado fazendas por preços tão baixos que os da indústria portuguesa não podiam competir”. Barreto era a figura central da política guineense, e assim se compreende como em 7 de junho de 1857 uma representação dos moradores de Bissau, incluindo oficiais militares, se dirigiu ao governo pedindo a recondução de Barreto no governo. Estamos na época em que o governador-geral propôs para que a Guiné se constituísse em governo independente.

E Senna Barcelos conta-nos uma história rocambolesca:
“Em 10 de junho de 1856, tendo requerido o 2.º Sargento do Regimento de Lanceiros da Rainha, Venceslau de Andrade, para se averiguar se um seu tio de nome António Garcia de Andrade, de quem se dizia ter sido Governador de Cacheu e Comandante da Praça de Farim, era ou não vivo, foi mandado pedir informações a Honório Barreto que em 30 do mesmo mês respondeu: que nem o juiz Forâneo e nem o Administrador do Concelho de Cacheu souberam dar elementos para a informação exigida; que se houve engano no nome, este devia ser António José de Andrade, seu conhecido em Cacheu, e que faleceu em Farim, em 1842 ou 1843; este indivíduo viera degredado por toda a vida, com pena de morte se voltasse ao reino, constando que chegara a dar três voltas à forca, por crime de roubo; que chegara a Cacheu em 1833 ou 1834, assentou praça na companhia de 1.ª linha de Cacheu, onde foi promovido ao posto de sargento, e tendo dado a um certo governador um escravo de presente, este lhe rasgou a guia e o propôs então ao governador-geral para capitão de 2.ª linha de um dos redutos de Farim, passando depois a capitão-mor; que nunca fora governador de Cacheu mas sim comandante do presídio de Farim, o que é muito comum na Guiné”.

Continuam a fazer-se relatórios sobre a usurpação do Casamansa pelos franceses e Honório Pereira Barreto envia para o governador-geral um dos seus mais importantes relatos:
“Em 1829 cheguei eu a Cacheu vindo de receber em Lisboa uma mui limitada educação, porém, suficiente para poder avaliar e apreciar o procedimento das nossas autoridades em Cacheu. Notei que à indignidade e incapacidade dessas autoridades se devia o estado em que vim encontrar a pequena Cacheu. Bem se podia dizer que não havia governo porque não havia, nem quem entendesse o que era o governo, nem ao menos representasse o seu fantasma; porque o tempo era pouco para os empregados, incluindo o governador, ocuparem-se de um comércio, pois todos eram traficantes. O governador desse tempo andava na rua vestido indecentemente; passava dias a bordo dos pequenos navios estrangeiros de cabotagem que vão ali comerciar. Os estrangeiros tratavam e negociavam diretamente com os gentios tanto em Cacheu como em Ziguinchor. Pouca correspondência havia entre o Governador de Cacheu e o da Província. Para me resumir, direi que o governo de Cacheu era considerado uma aldeia de gentio independente. Em 1828 já os franceses haviam ocupado a ilha dos Mosquitos na embocadura do Casamansa: este facto tão significativo passou desapercebido em Ziguinchor e Cacheu; ninguém protestou nem disso deu parte. Tudo assim continuou até ao ano de 1834; fui nomeado Provedor de Cacheu, contava eu então 21 anos de idade. Os meus primeiros cuidados foram logo livrar o Concelho de Cacheu do domínio dos estrangeiros e da sujeição dos grumetes e dos gentios. Se tive aventura de obter o segundo objetivo, tive a desgraça, a grande desgraça, de ver os estrangeiros usurparem mais territórios nossos; obtive, contudo, tirar a esses estrangeiros toda a influência nos pontos ocupados por nós. Desde 1835 constou-me que os franceses iam ocupar um ponto ao sul da Gâmbia e que talvez escolhessem Casamansa. Tudo quanto um Provedor de Cacheu, enfim, um português, podia fazer, tudo fiz. Havia eu dado ordens muito terminantes para Ziguinchor para que se não tolerasse que os estrangeiros negociassem em outro ponto do Casamansa que não fosse Ziguinchor. O meu delegado cumprira esta ordem”.

É um documento memorável, peça obrigatória de consulta para quem pretende compreender o grande ecrã da questão do Casamansa. Descreve diligências, as suas idas a Ziguinchor, as cartas dirigidas ao governador-geral que não obtiveram resposta, a chegada dos franceses a Selho, Barreto protesta, pediu auxílio ao governador da Gâmbia, este respondeu que não era seu assunto. Barreto é nomeado Tenente-Coronel de 2.ª linha e então ironiza: “Apesar de o Ministro da Marinha haver declarado que eu era homem de cor, palavra esta que o redator ou editor escreveu em itálico; não há dúvida que o salutar prejuízo da cor, e porventura as conveniências políticas e sociais, exigiam que se fizesse tão interessante e imparcial declaração para serem devidamente apreciados tais serviços”.
A progressão francesa prossegue, a reação de Lisboa é sempre demorada e fraca. Barreto pede a demissão do governo em 1839 e diz no seu documento que teve o desgosto de ver destruído pelos seus sucessores tudo quanto havia feito, e diz sem rebuço: “Começaram logo a ter correspondência com os chefes franceses, em Selho, reconhecendo neles não só os títulos de comandantes que se arrogam mas o direito que julgam ter ao território. Mandaram retirar o destacamento que eu tinha posto em Gorm. O então Comandante de Ziguinchor, que é meu tio, cansado de participar ao Governador de Cacheu pactos, insultos e novas usurpações dos franceses, escreveu-me em 1844, narrando-me tudo, o abandono de Ziguinchor. Apesar de então nada ter com isso, pois era simpatia particular, vendo a apatia do governo fui a Ziguinchor, e à minha custa e em meu nome fiz e mandei fazer, com os chefes daqueles pontos, convenções, em que me cederam terreno, e ficava só reservado aos portugueses a navegação e comércio daqueles rios ou esteiros…”.

E continua a contar a história do Casamansa, desvela as mentiras de antecedentes da presença francesa no Casamansa e Senna Barcelos termina estas belas páginas revelando a carta que a Comissão Municipal de Bissau dirigiu a Barreto pedindo-lhe para não se retirar para Cacheu, a sua presença em Bissau era indispensável para o sossego público.


Continua
Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23044: Historiografia da presença portuguesa em África (306): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (10) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23044: Historiografia da presença portuguesa em África (306): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (10) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Sendo facto que se procura dar desenvolvimento ao trabalho produzido por Senna Barcelos, começa agora a ser compreensível, para quem acompanha os sucessivos episódios, a importância historiográfica do mesmo. Este oficial da Marinha foi meticuloso na investigação e retirou da poeira dos artigos documentos de primeira grandeza quanto ao que se passava na Guiné. Temos aqui descritos tumultos em permanência, rebeliões dos próprios militares portugueses, pilhagens, um sobressalto praticamente permanente em torno das praças e presídios; para haver boas relações com a vizinhança eram obrigatórios presentes; o período em análise é de extrema agitação em Portugal, teve obrigatório impacto tanto em Cabo Verde como na Guiné. 

No que a Cabo Verde tange, Senna Barcelos esmiuça depredações, a violência dos assaltos e piratarias, o cortejo das fomes, as manifestações de descontentamento. A Guiné, insista-se, vai minguando, já existe governador do Senegal e a França quer aumentar o seu espaço territorial à custa de Portugal, já que não tem coragem de enfrentar os ingleses que se instalaram no rio Gâmbia; e os ingleses saem da Serra Leoa e querem Bolama e o Rio Grande. 

É na iluminação deste cenário que se pode perceber o comportamento excecional de Honório Pereira Barreto, o pai fundador da Guiné-Bissau que os descendentes teimam em valorizar o papel que ele desempenhou na defesa e consolidação de um território que passou de colónia a estado independente. Se a História da Guiné escrita durante o período da luta armada se podia dar ao luxo de praticar o panfleto, um Estado consolidado há meio século tem o imperativo de tratar condignamente os criadores da sua Pátria, colocando-os, de acordo com a história das mentalidades, no lugar certo para a interpretação dos factos e não para o uso e abuso da interpretação à custa de uma mera conjuntura.

Um abraço do
Mário


Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (10)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

É um período fértil de acontecimentos, sempre as pressões a norte no Casamansa e a Sul de Bolama e Rio Grande de Bolola. Em fevereiro de 1854, era governador-interino Honório Pereira Barreto, foi feita uma convenção com os régulos de Bolor que cederam à coroa o território de Egual. Revela-se verdadeiramente apaixonante as cópias de correspondência trocadas entre o governador da Guiné com o delegado do governador francês no Selho, tudo por causa da questão do presídio de Ziguinchor, esta documentação foi enviada pelo governador-geral António Maria Barreiros Arrobas ao Ministro da Marinha. O ministro respondeu pedindo que em termos de cortesia o governador-geral se dirigisse ao governador do Senegal, pedindo-lhe que ordenasse ao delegado de Selho que não pusesse impedimento à navegação portuguesa no Casamansa e que houvesse de ambas as partes uma conduta que era devida entre nações amigas. Mas o delegado francês revelava-se imparável, enviou uma nota ao comandante de Ziguinchor protestando contra o facto de três canoas portuguesas que chegaram a Selho subissem o rio com destino a Pacau, onde os gentios assassinaram muitos franceses que ali foram negociar, roubando uma parte das mercadorias.

As intenções britânicas em Bolama exploravam conflitos com os povos dos Bijagós. Recorde-se que Honório Pereira Barreto tinha feito tratado com os régulos dos Bijagós e fizera-se o reconhecimento da soberania portuguesa na margem esquerda do Rio Grande de Bolola. É nesse contexto que Honório Pereira Barreto envia um imp
ortante relatório sobre Bolama ao governador-geral, com data de 7 de maio de 1856:

“Em janeiro deste ano soube com mágoa que estrangeiros combinados com portugueses indignos deste nome intentaram concorrer para que nas dependências de Canhambaque se estabelecesse uma feitoria estrangeira que servisse de canal para o contrabando que devia ser introduzido nesta praça (Bissau). No dia 18 às 7 horas da noite larguei para o Orango cujo rei tem uma decidida influência sobre todas as outras ilhas Bijagós; são todas independentes, mas sempre consultam o rei de Orango em casos graves. Cheguei a Orango no dia 20 ao meio-dia, fui recebido com uma salva de artilharia. É este o único que por toda a Guiné merece o nome de rei; apenas desembarcados fomos em direitura a sua casa, que é coberta de telha, conquanto seja construída de barro e feita à maneira das outras. A sua figura denota que é um monstro engolfado em todos os meios que produzem uma crassa ignorância, e um poder absoluto e tirânico. Ele é o único senhor das pessoas e bens dos seus súbditos; nas suas expressões se vê que ele tem consciência do brutal poder que exerce, julga-se igual a Deus, conquanto falando ironicamente se pinte a si mesmo como um pobre e humilde, quando tudo nele demonstra uma selvagem vaidade”.

Senna Barcelos não deixa de observar que o resgate dos escravos decretado em 1854 só se efetivou em 1857, com consequências de toda a ordem. O comércio na Guiné chegou a uma tal decadência que o governador Barreto chegou à atenção do governador-geral em 21 de março de 1857, propondo-lhe medidas para salvar a colónia. 

E o autor observa que “muito trabalhava aquele governador, empregando a sua influência e os seus meios, para evitar ali a crise comercial que se manifestava gravemente devido à barateza dos géneros estrangeiros que eram vendidos aos gentios por um preço inferior aos que podiam vender os negociantes portugueses. O passivo de Bissau era grande e as casas comerciais só giravam com créditos e não com fundos, e os estrangeiros que eram os maiores credores, e os únicos que vendiam a crédito, resolveram cessá-los, limitando-se a vender à vista. Encaminhando os estrangeiros um negócio para o Rio Nuno, Selho e Gâmbia, e retirado o crédito aos portugueses, passaram os gentios a permutar os seus géneros com aqueles. Era de esperar esta crise com o fim da escravatura”.

Barreto tornara-se na figura mais influente na Senegâmbia Portuguesa, de tal modo que em 7 de junho de 1857 foi dirigida uma representação dos moradores de Bissau ao governo pedindo a recondução dele naquele governo, por ser Barreto desinteressado e probo, tendo sacrificado os interesses da sua casa em Cacheu às necessidades do país. O ministro deferiu o requerimento de Honório que solicitava a demissão. O governador-geral propôs para que a Guiné se constituísse como governo independente uma vez que se estabelecessem comunicações entre Bissau, Goré ou Gâmbia. E é nesta atmosfera que se reacende a questão de Bolama. O ministro de Portugal em Londres, conde de Lavradio, apresentou a Lord Malmesbury um enérgico protesto em janeiro de 1859, este responde-lhe sustentando que a ilha de Bolama pertence à Grã-Bretanha. Um ano depois o então governador Zagalo escreve ao governador-geral dizendo que a presença inglesa em Bolama aumentara e recebera do governador da Gâmbia três impressos que este chamava tratados e pelos quais declarava pertencer à Grã-Bretanha não só a ilha de Bolama, mas outros lugares. Ele responde-lhe refutando a argumentação britânica e observa:

“Além das circunstâncias apontadas, ainda hoje existem, tanto em Bolola, como em Guinala e Buba, grandes vestígios dos antigos estabelecimentos portugueses, e atualmente existem em todo o Rio Grande, até Bolola e Guinala, trinta feitorias portuguesas, e apenas uma só feitoria pertencente a David Lourenço, que se diz inglês, não obstante ter nascido escravo no Rio Pongo, território português”.

Quando não é a questão de Bolama e de Bolola voltamos à questão do Casamansa. Há informações que os franceses pretendem atacar os Felupes de Varela. As autoridades portuguesas jogam na antecipação. Em 19 de abril de 1861, Salakir, regente de Varela, faz a declaração da solene sessão e reconhecimento da Coroa de Portugal como possuidora do território. Nesse mesmo dia, o governador da Guiné, António Cândido Zagalo, participa ao comandante de Goré e ao governador do Senegal a ocupação de Varela. Zagalo viaja para Ziguinchor e descobre as péssimas condições em que se vive no presídio, com armamento rudimentar. Os presídios de Farim e Ziguinchor eram defendidos por uma estacada e por baterias de barro, que se cobriam de palha. No presídio havia dois bairros: o do Poilãozinho e o de Vila Fria e para ambos havia um juiz do povo. Nomeou o governador dois destes juízes subordinados ao delegado administrativo. O comércio em Ziguinchor estava representado por duas casas francesas: o comércio em todo o rio, era quase só feito por franceses e em Ziguinchor o mais importante era o do sal. A força militar estava reduzida a dois soldados; Zagalo organizou provisoriamente uma companhia de 2ª linha, na qual se alistaram voluntariamente a maioria dos moradores. De Ziguinchor seguiu para Bissau, onde teve conhecimento pelo encarregado do governo do conflito que houvera entre o presídio de Geba e os Beafadas de Badora. O encarregado do governo fora a Geba para apaziguar uma questão com aqueles gentios; estes prenderam-no e para ser solto teve que satisfazer condições bem onerosas para o presídio e para o governo. Voltemos um pouco atrás para observar o talento e firmeza com que Honório Pereira Barreto respondia às provocações vindas dos representantes franceses.

Quando o delegado francês descreve ao comandante de Ziguinchor, este prontamente reencaminha para Honório Pereira Barreto que lhe responde com frontalidade:

“A mim só é que pertence responder a Vossa Senhoria, pois é da minha exclusiva competência, como governador da Guiné, a direção das relações com as autoridades estrangeiras dos portos vizinhos; e, portanto, rogo a Vossa Senhoria de sempre se dirigir a mim em idênticos casos. Agradeço, como deve, a Vossa Senhoria a bondade que quis ter, segundo diz, de buscar evitar que a canoa de Ziguinchor passasse até Pacau, pelo receio que tinha dos gentios daquele país atacarem a dita canoa, pois os franceses têm a deplorar o assassínio de muitos comerciantes e o saque de muitas mercadorias praticado pelos mesmos gentios. Porém, achando-se o meu governo com força suficiente para se vingar das afrontas e vexames que os gentios desse rio intentarem fazer aos nossos, podemos prescindir do apoio e forças de Vossa Senhoria. Sinto não poder ter a honra de satisfazer ao pedido de Vossa Senhoria sobre manifesto e matrícula para as canoas que forem mercadejar nesse rio, porque havendo os portugueses, verdadeiros descobridores desta costa, sempre feito este comércio, livremente, não é justo que hoje se lhe ponham peias e embaraços, não só inúteis, mas prejudiciais; e eu tenho estrita obrigação de proteger o comércio português. Estou certo da justiça de Vossa Senhoria e da grande nação francesa, sempre generosa, que não haverá abuso da força para impedir a passagem, dessa Feitoria, às canoas portuguesas, porque os franceses passaram em frente de Ziguinchor, para ir fundar este estabelecimento, e, portanto, não pode haver hoje direito de impedir aos portugueses navegar e comerciar por todo esse rio. Permita-me Vossa Senhoria que lhe faça uma simples observação: esse rio não pode de maneira alguma ser considerado, de facto, exclusivamente francês como Vossa Senhoria parece julgar. Não quero entrar na questão de direito porque esse pertence ao gabinete das nossas Nações”.

Veremos adiante como Honório Barreto se manterá incansável na defesa dos interesses portugueses.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23020: Historiografia da presença portuguesa em África (305): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (9) (Mário Beja Santos)