há dois anos que perdeste a conta aos dias e aos meses do calendário.
Tradição rica de significado socioantropológico,
hoje em vias de desaparecer,
a tua Páscoa nortenha que adotaste.
Cristo ressuscitou, aleluia, aleluia!,
estamos vivos e bem de vida, dizia o da casa,
abrindo as portas aos vizinhos, parentes e amigos.
Domingo da Ressureição,
carne no prato, farinha na mão,
que na Santa Feira Santa comia-se o sável do rio Douro.
Acabava-se o jejum e a abstinência,
para os pobres que não tinham bula.
Eram, afinal, dias de festa, os últimos da Semana Santa,
dias de comes e bebes e foguetório,
tudo misturado com a religiosidade pagã e cristã,
que formatou corpos e almas.
Folgai enquanto puderdes, que noutra hora chorais,
lembrava o padre Agostinho.
À noite, do terraço da varanda de Candoz,
assistia-se, de borla, na era pré-Covid,
ao espectáculo único da largada de fogo de artifício,
quando o compasso recolhia, cansado, à noite,
depois de andar por montes e vales,
o homem da cruz à frente,
e a seu lado o puto, de sobrepeliz, a tocar a sineta.
Depois da visita do compasso,
e bem arrotado o arroz de anho assado no forno,
era o espetáculo talvez mais aguardado do ano,
a disputa em fogo de foguetório
entre cada uma das freguesias circunvizinhas
ali em frente, naquele cenário de presépio.
Olhai, Paredes de Viadores, olhai, Passos de Gaiolo!
E já os de Mesquinhata se adiantavam e agigantavam,
mais os de Santa Leocádia, Grilo e Ribadouro...
Todos, afinal, a competir pelas luzes da ribalta do céu,
e a mostrarem-se mais cristãos e mais valentes do que no ano anterior.
E com um sorriso matreiro, e uma pontinha de vaidade,
mostrados aos que se sentavam na plateia
deste vale de lágrimas que sempre foi a terra.
Deus fizera o mundo e as quatro estações de Vivaldi,
e os solstícios do inverno e do verão,
e os equinócios da primavera e do outono,
só não mandara anjos para ajudar a plantar, regar e mondar o milho.
Havia palpites, críticas, comentários, exclamações...
sobre a quantidade e a qualidade do fogo de cada freguesia.
E no final Paços de Gaiolo era o vencedor...
Alguém tinha que ser o vencedor,
garantia o padre Agostinho,
que no céu, meus filhos, a seleção sempre fora,
desde os primórdios, muita apertada,
e nem todos poderiam ficar à direita de Deus Pai.
Era a vida que, afinal, na Páscoa, triunfava sobre a morte,
naquelas terras de camponeses do vale do Sousa e do Tâmega,
que alimentaram um milhão de portugueses durante séculos
e que ajudaram a dilatar a fé e o império, sem saber ler nem escrever,
e muito menos latim.
Na era da Covid-19,
há dois anos que não há Páscoa, nem compasso, nem fogo, nem forno.
Nem abraços nem chicorações, só quando muito abracelos...
Uma tristeza, as casas fechadas, mortos os velhos,
cheios de mazelas os menos velhos,
cada gente das várias famílias espalhada pelas diásporas.
No passado, ao almoço, não podia faltar o arroz de forno,
que, em cada ano que passava,
estava sempre melhor do que o do ano anterior.
Davam-se gabadelas às cozinheiras cuja arte a idade ia apurando.
Ou então era tudo devido simplesmente à saudade
destes sabores da infância e da tradição.
Agora até o raio da Covid, diziam, tirava o olfacto e o sabor às cozinheiras...
Podia chover, que em abril águas mil,
mas a água não apagava o fogo da paixão da vida,
nem estragava o gosto pelo folgar dos corpos,
o forno aceso,
o folar para os afilhados, sua benção, padrinho!,
o pão de ló dos Lenteirões, a aletria,
os foguetes a estalar no ar, alto e longe,
a caneca de porcelana, que luxo!,
por onde se bebia o vinho verde tinto,
os parentes e os amigos, alguns vindo de longe, da terra dos mouros,
o vinho verde novo que jorrava da pipa e alegrava os corações,
a canalha numa correria para apanhar as canas dos foguetes...
E os cães a ladrar.
Mas até os cães morreram.
Tal como o padre Agostinho.
E as velhas casas de granito se cobriram de musgo
e as janelas de teias de aranha.
O compasso era tradição minhota e duriense, diziam-te.
Tenderá a acabar, há muito profetizavam os sociólogos da desgraça.
A sua origem remontaria à época dos jacobinos, mata-frades,
à desarmotização dos bens de mão-morta que não poupou os passais,
provocando a pobreza do cura da aldeia
que, sendo filho de Deus, também tinha de comer e beber.
O compasso pascal seria a forma expedita
de compensar a perda de rendimentos do pároco.
As esmolas que as famílias punham no saco do compasso, no final da visita,
revertiam originalmente para o pé-de-meia do padre...
Ah!, mas até os padres morriam,
em tempo de peste e de Covid, lia-se na gazeta de Lisboa.
E o teu vizinho da porta da frente, que vivia na Paris dos portugueses,
coitado, também lá se foi, telefonou-te, chorosa, a viúva.
E mais o fulano e o sicrano. E mais este e aqueloutro.
Já nada é como dantes,
desde que o mundo que tu conhecias começou a soçobrar.
A visita pascal era um pretexto também para a afirmação social,
o exibicionismo dos vizinhos e parentes mais ricos,
alguns que haviam retornado de França, se não ricos, remediados,
e que eram capazes de gastar uns bons contos de réis em foguetório...
Já não havia contos de réis, é verdade,
nem lendas e narrativas de brasileiros
que fizeram fortuna no Novo Mundo.
Este ano da desgraça de 2021 resta-nos a saudade...
e as fotografias e os vídeos de antanho.
E a Covid-19 que nos confina e nos espreita.
Mas também a esperança de que, no fim,
vamos triunfar sobre esta maldita pandemia,
como trinfámos sobre a peste negra, a varíola, a cólera, a pneumónica...
Lourinhã, 4 de abril de 2021.
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Nota do editor:
Último poste da série > 28 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22047: Manuscrito(s) (Luís Graça) (201): O pôr-do-sol no Atlântico, no tempo do não-tempo do confinamento (Luís Graça)