Mostrar mensagens com a etiqueta Espanha. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Espanha. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 28 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23390: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXV: Teruel, Aragão, Espanha, 2017




Teruel, Aragão, Espanha, 2017



[ António Graça de Abreu, foto à esquerda:  (i) docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 310 referências no blogue; (vi) texto e fotos enviados em 16/6/2022 ]


Teruel, Aragão, Espanha, 2017

por António Graça de Abreu (*)


Por dentro um do outro
Caminham os amantes,
Desenham com seus pés
Novas rotas navegantes.


Jacques Plante, adaptação Dulce Pontes


Venho no meu coche de prata, subindo e descendo montes, das terras da Catalunha para as de Aragão.

Gosto do nome do burgo, Teruel, assim a modos do voltear de um passo de dança. Chego de mãos abertas na brisa do fim do Verão de 2017. A cidade suspensa em terraços a dardejar ao sol abre-me os braços, as torres mudéjar, S. Pedro, S. Martin a passear no clarão do céu, as ruelas íngremes e tortuosas a serpentear por entre o casario.

Por aqui, há dez séculos, pelejavam mouros e cristãos, Depois, castelhanos, aragoneses, franceses, espanhóis, franquistas, republicanos, todos em guerra. Quanto ódio, quanta luta, quanto sangue! Hoje, a pequena Teruel quase vazia, ocre e verde, recortada num horizonte azul, cintilando em paz nos olhos do quase entardecer.

Entro na igreja de S. Pedro. Na capela, dois túmulos, duas estátuas jacentes. São Juan Diego de Marsilla e Isabel de Segura, No distante século XIII desciam separados a encosta e encontravam-se em segredo no verde do fundo do vale, sob choupos e ulmeiros. A terra, o musgo, a erva brava eram o aconchegado leito dos amantes que adormeciam enredados em prazer e ternura, cobertos por mantas de nuvens e pedaços de céu.

Quão difícil um amor tão puro! Diego era de família nobre mas arruinada, empobrecida. Isabel era filha de poderosos, senhores de feudos em Segura e Aragão. A Diego deram cinco anos para conseguir fama e fortuna. O rapaz regressou, rico e famoso mas Isabel era agora a triste esposa de um dos fidalgos da cidade. Diego morreu de desgosto, o coração trespassado pela mágoa. No dia seguinte encontraram Isabel morta.

Hoje, sete séculos depois, na penumbra da pequena capela, dois túmulos, duas estátuas jacentes, a pedra doce onde moram os poetas, 
Juan Diego de Marsilla e Isabel de Segura, ainda de mão dada.

António Graça de Abreu
___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 31 de maiode2022 > Guiné 61/74 - P23316: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXIV: Pisa, Toscana, Itália, 2014

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23389: A galeria dos meus heróis (45): uma história pícara de três “a(r)didos” - Parte I (Luís Graça)

 

Lourinhã > Zambujeira e Serra do Calvo > 25 de fevereiro de 2018 > "Homenagem da Zambujeira e Serra do Calvo aos seus combatentes"... Monumento inaugurado em 5 de outubro de 2013, numa iniciativa do Clube Desportivo, Cultural e Recreativo da Zambujeira e Serra do Calvo.

Desconhece-se o autor do painel de azulejos que representa a partida, no T/T Niassa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, de um contingente militar que parte para África. Ao canto inferior esquerdo a quadra: "Adeus, terras da Metrópole / Que eu vou pró Ultramar /, Não me chorem, mas alegrem [-se], / Que eu hei-de regressar"... No chão, em calçada portuguesa, lê-se: "Em defesa da Pátria". Abaixo do painel, há um livro metálico com os nomes de todos os nossos camaradas, naturais das duas povoações vizinhas (hoje praticamemte ligadas), que combateram no Ultramar.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O autor, Luís Graça> Guiné, região de Bafatá, Contuboel,
c. junho de 1969


A galeria dos meus
heróis: uma história
pícara de três
“a(r)didos” - Parte I

 

por Luís Graça (*)






1. Eram três “desterrados”, ali, na Calçada da Ajuda, em Lisboa, no Depósito Geral de Adidos (DGA).

O quartel dos Adidos, criado no princípio dos anos 60, era uma espécie de “placa giratória” e “albergue espanhol” onde os militares do nosso exército de então, das diversas armas, de rendição individual, faziam tempo enquanto aguardavam a “guia de marcha” e a “ordem de embarque” para o ultramar.

Na época dizia-se “ultramar” e não “guerra”, e muito menos “guerra colonial. Era um eufemismo, ou então um questão de pudor, hipocrisia social ou até mesmo autocensura. Na realidade, o país não estava em guerra contra nenhuma potência estrangeira, mas parecia ser diabolizado por meio mundo (os países do chamado "terceiro mundo" mais os do bloco soviético ou comunista e até alguns "amigos ocidentais", como os países nórdicos). Sopravam, então, os "ventos da História"...

Em suma, "ir para o ultramar" significava, para a nossa geração, ir para a guerra, em Angola, Guiné e Moçambique.

Os três “desterrados” acabariam por ir comigo, em 24 de maio de 1969, por sinal num sábado, no T/T “Niassa”, com destino à Guiné. “Pior não nos podia caber na rifa”, concordavam tacitamente os três. Ou melhor, ou quatro, se eu me incluir no grupo.


2. Conheci-os, por mero acaso, no bar da classe turística do navio, misto de carga e passageiros, da carreira colonial, requisitado pelo exército para transporte de tropas. (Tinha pouco mais de 10 mil toneladas de arqueação bruta, e media centena e meia de metros de comprimento, da proa à ré, ou seja, umcampo de futebol e meio.)

Acabei por estabelecer com eles uma relação circunstancial de alguma cumplicidade e camaradagem, mesmo que depois nunca mais tenha sabido deles, quando cada um foi para o seu destino. (Ainda estaremos juntos dois ou três dias no Depósito de Adidos, em Brá, Bissau:)

O navio ia sobrelotado, éramos mais de 1700 homens, dos quais duas centenas de sargentos. Tínhamos cinco dias de enjoos e de tédio pela frente. E sobretudo de muita incerteza quanto ao nosso futuro.

Na realidade, sabíamos muito pouco daquele território, a então Guiné Portuguesa. E muito menos do que nos poderia esperar, com a guerra a entrar no seu 9º ano. A única exceção era o 2º sargento Parente (nome fictício), que já lá tinha estado por volta de 1961/63. Como ele dizia, com graça e ironia, “assistira aos ensaios e ainda à estreia da peça”, referindo-se à guerra que, oficial ou oficiosamente, teria começado a 23 de janeiro de 1963, com o atalabalhoado ataque ao quartel de Tite, na região de Quínara. (Na realidade, a guerra "surda e suja", já tinha começado muito antes. mas isso é outra história.)

Os “ensaios”, a que se referia o Parente, seriam os clássicos exercícios, em qualquer guerra de tipo subversivo, que passavam pelo aliciamento de (e terror sobre) as populações, pelas sabotagens (destruição de infra-estruturas, como pontões, postes telefónicos, abatizes nas estradas, etc.), pela preparação e organização político-militar da guerrilha, etc.

O sargento era um alentejano de Barrancos, terra de que eu nunca ouvira falar antes, perdida (vi mais tarde no mapa)  numa ponta da fronteira com a Espanha. Afinal, ficava mais perto de Badajoz do que de Beja, a capital do Baixo Alentejo, como comprovarei, muitos anos mais tarde, quando lá for de propósito para conhecer a terra, na véspera das festas em que havia touros de morte, mas a que eu não quis assistir.

Era um tipo simpático, afável, folgazão, brejeiro, bom conversador, com um sotaque que ele procurava disfarçar. Tinha "pinta de malandro"... E sobretudo era um “excelente copo”, o que naquela época tanto poderia querer dizer “bebedor excessivo” como “bebedor social”. Em África, todos nos iríamos, de resto,  tornar “excelentes copos”, destilando uísque  e água de Perrier por todos os poros, embora outros preferissem a cerveja. Na verdade, não há guerras sem álcool (ou outro tipo de droga).

O Parente, um das três dezenas de militares do Depósito Geral de Adidos, que viajavam connosco no “Niassa” (navio que levava diversas companhias ditas “independentes”, como a minha, incluindo uma companhia de polícia militar onde se integrava um soldado condutor que viria mais tarde a tornar-se secretário-geral do PCP – Partido Comunista Português), estava destinado a um pelotão de morteiros ou de canhão sem recuo, já não posso recordar.

Tinha feito duas anteriores comissões de serviço (outro eufemismo), a primeira na Guiné, altura em que “meteu o chico”, e uma segunda em Angola (como voluntário). Foi no regresso da Guiné que tirou a especialidade de armas pesadas de infantaria. Deu, entretanto, instrução, como monitor,no CISMI,  em Tavira, muito antes de eu também por lá passar (no último trimestre de 1968).


3. Já conhecia, pois, o território guineense, mas em 1961/63 não se podia falar ainda em “guerra a sério” (outro eufemismo, como se houvesse guerras a brincar!)… Para o final da comissão, em meados de 1963, o Parente já tinha a clara perceção de que “a coisa ia ficar preta”, queria ele dizer "feia", sem qualquer conotação racista.

Foi nessa altura que as nossas tropas terão acionado a primeira mina anticarro (na realidade um fornilho), na estrada São João-Fulacunda, na região de Quínara, de que resultarão ferimentos graves (e depois a morte) de um furriel cabo-verdiano ou açoriano, seu conhecido. 

 Além das minas, o Parente receava o armamento pesado de que o PAIGC passou a dispor, ao longo do tempo, incluindo “morteiros 82 e 120, canhões sem recuo 75 e 82” (e, mais tarde, em novembro de 1969, foguetões 122 mm).

Todavia, na época em que ele lá esteve, o episódio “mais cruel” de que se lembrava fora quando a nossa tropa chegara a uma tabanca da região de Quínara, abandonada pela população sob a pressão da guerrilha (ele raramente usava o termo, depreciativo, “turras”), no decurso de uma operação para “instalar lá uma força nossa”, um destacamento. Ou mais provavelmente, naquela época, ter-se-á tratado de um patrulhamento ofensivo, Entraram sem qualquer resistência, o único ser vivo com que depararam, no meio de palhotas calcinadas pelo fogo, era um cego, de etnia biafada.

Um dos alferes fez-lhe, por intermédio de um intérprete (e guia local), um interrogatório sumário. O pobre diabo, aparentemente ali deixado pela população em fuga, respondeu a tudo, e até deu pormenores descritivos que levaram alguns militares a desconfiar da sua cegueira… Não se trataria de um “falso cego”, deixado ali pelos “turras”, na margem direita do rio ou canal, frente à decadente cidade de Bolama (antiga capital até 1943), para despistar os “tugas”?

Mas o homem, de idade indefinida, era mesmo cego. Provavelmente sofria da cegueira dos rios, adiantou o furriel enfermeiro que tinha tido, em Coimbra, umas luzes sobre doenças tropicais. Ninguém sabia o que era a “oncocercose”, nem sequer o capitão, que pertencia ao batalhão sediado em Tite.

O interrogatório foi inconclusivo, o alferes não teve necessidade de usar de violência, verbal ou física, para com o desgraçado que se mostrara “colaborante”. E estava para o mandar embora, quando o capitão da força, não estando pelos ajustes, atalhou:

− O nosso alferes fez o seu trabalho. Eu, agora, como juiz, faço o meu. … Ouvi as duas partes. O homem é cego, ou parece sê-lo, mas não é surdo nem muito menos mudo… O que é que ele irá dizer sobre a nossa tropa quando os “turras” voltarem a encontrá-lo e lhe apertarem os calos ?... Vai dar à língua, está-se mesmo a ver…

Fez-se um silêncio de morte à volta do capitão e do cego. Mas não houve tempo para mais “perguntas e respostas”. Havia nervosismo no semblante dos milícias, que pressentiam a presença do inimigo, algures, não muito longe dali, na orla da bolanha ou da mata. O capitão deu de imediato a sua sentença:

− O nosso cabo A… − e apontou para um possante milícia, que empunhava uma catana − sabe o que tem a fazer. Leva-o a dar uma volta até ao rio, dá-lhe um encosto e o suspeito vai fazer companhia aos crocodilos… É, afinal, uma obra de misericórdia.

E ameaçou:

− E, psst!,  não quero barulho!

E ao que parece, ninguém tugiu nem mugiu.

O Parente registou esta cena e arquivou-a no fundo da memória. Numa noite de animada conversa e muito uísque, já ao largo das Canárias, com mar encapelado, falou deste e doutros “faits divers” (sic) da guerra… E repetia, tamborilando com os dedos na mesa, as palavras do capitão:

− O gajo era cego, mas não era surdo, nem muito menos mudo…


4. Os três eram de rendição individual, razão por que se haviam conhecido, umas semanas antes,  nos “Adidos”, na Calçada da Ajuda… “A(r)didos”, emendava, sarcástico, o furriel miliciano, o “Matosinhos” que conhecia, pela primeira vez, a “capital do império”.

− A(r)didos, f... e mal pagos! − gozava ele, com o pagode.

Já não me lembro do seu nome, ao fim destes anos todos. Sei que era de Matosinhos, filho de pescador, e que a mãe era vendedora de peixe, ambulante. “Varina” ou “ovarina”, oriunda de Ovar. Não escondia o seu sotaque nortenho nem as suas “humildes raízes populares”. Mas quem era “conde, marquês ou duque” ali, naquela “caixa de sardinhas”, anfíbia, a caminho da Guiné ?! − ironizava o Parente.

O “Matosinhos” estava destinado a uma companhia de caçadores, instalada no sul, na região de Tombali, disse-me o nome da localidade, que não fixei de todo. E dessa subunidade só sabia o SPM, o código do correio militar. Ao longo da viagem foi escrevendo aerogramas e aerogramas de saudade, para a família, a namorada, os amigos...

Na época todos os topónimos da Guiné eram exóticos, para nós, “periquitos”, mas havia alguns mais falados do que outros quando chegámos a Bissau: Madina do Boé, Gandembel, Guileje, Choquemone, Morés…

O “Matosinhos” estava apreensivo, tal como todos nós, pela sorte que lhe coubera, para mais tratando-se do temível sul da Guiné. Além disso, era de operações especiais (e de pouco lhe valeu ter ficado bem classificado), e ainda por cima com o curso de minas e armadilhas tirado em Tancos. “Não podia ser pior, carago!”, brincava ele connosco na popa do navio, fustigado pelo vento e pela espuma das ondas.

O terceiro dos “a(r)didos” era outro furriel miliciano, atirador de infantaria, como a maior parte do pessoal embarcado. Julgo que ia render alguém que “lerpara em combate” (sic), na região do Cacheu (“lerpar” era outro termo da gíria da tropa que cedo nos habituámos a ouvir e repetir). 

Também não me lembro do seu nome. Chamemos-lhe o “Algarvio”. Passara igualmente por Tavira, no mesmo turno que eu, mas pertencíamos a companhias de instrução diferentes. Seguramente que nos cruzámos várias vezes, dentro e fora do quartel, mas sinceramente não me lembrava da cara dele. 

O “Algarvio” fazia, entretanto, a meu pedido, o retrato-robô do “Matosinhos” nestes termos:

− Olha, é um gajo ‘reguila’, com piada, com muita ‘lata’, talvez um pouco ‘desbocado’ para o meu gosto… Como sabes, a malta do sul não diz asneiras…

Eu, de vez em quando, desenfiava-me da minha mesa e do convívio com os meus camaradas de companhia, e juntava-me aos três "a(r)didos, a quem achava alguma piada. Estávamos os quatro a aprender a geografia (e a etnografia) da Guiné através da consulta de uma pequena brochura que nos deram na hora da partida, e onde havia um minúsculo mapa com as principais regiões e localidades da Guiné.

Lá estava Contuboel, acima de Bafatá, não longe da fronteira com o Senegal, que seria o meu poiso durante cerca de mês e meio, segundo informação do capitão da minha reduzida companhia (éramos uns sessenta gatos pingados, metropolitanos, entre graduados e especialistas, que se deveriam juntar, em Contuboel, a uns cem soldados guineenses, fulas, do recrutamento local, que haviam acabado, em abril de 1969, de jurar bandeira, diante do “homem grande de Bissau”).

O 2º sargento Parente era o nosso professor, embora ele só conhecesse Bissau e arredores, Bambadinca e Bafatá na zona leste, bem como a regão de Quínara e a bacia hidrográfica dos rios Geba e Corubal, até ao Saltinho. Faltava-lhe conhecer as zonas talvez “mais quentes” da guerra, as regiões do Cacheu e do Oio, a Norte, e de Tombali, a sul.

− Mas em terra de cegos, quem tem um olho, é rei – gostava ele de repetir, gozando connosco, “periquitos”.

Via-se que tinha um “natural ascendente” sobre os outros dois “a(r)didos”, como eles se tratavam uns aos outros na galhofa. Não só era o mais velho (ia fazer 30 anos, e já com duas comissões), como tinha um posto acima e, sobretudo, conhecia Lisboa. Apesar de alguma deferência, o “Matosinhos” e o “Algarvio” tratavam o 2º sargento por tu, o que não era então prática corrente, mesmo entre a classe de sargentos, e muito menos entre oficiais e sargentos milicianos. 

− Cada macaco no seu galho! − lembrava o Parente, sarcástico.

Curiosamente, o Parente não se mostrava próximo dos outros sargentos, e muito menos dos 1ºs sargentos, alguns dos quais ele seguramente devia conhecer, pelo menos de vista.  A "chicalhada", como dizíamos, alguns de nós, milicianos, que cultivávamos o humor de caserna.

Nada tinha de “chicalhão”, o Parente, pensei eu cá com os meus botões. E até comecei a simpatizar com ele. Pelo decorrer das nossas conversas, ao longo daquela viagem ("o cruzeiro das nossas vidas”) , comecei a aperceber-me que ele, tal como eu, não morria de amores por Spínola e torcia o nariz à evolução dos acontecimentos político-militares da Guiné. Eu não gostava de Spínola pelo seu passado de leal servidor do salazarismo e pelos seus tiques prussianos, a começar pela sua pose (que só conhecia, e mal,  da RTP).


5. Era inevitável falarmos da tragédia, ainda recente, ocorrida em 6 de fevereiro de 1969 no rio Corubal, que custara a vida a quase uma meia centenas de militares. Ninguém sabia pormenores, só o que a censura autorizara que se soubesse através dos jornais, da rádio e da televisão. Eu estava nessa altura no BC 6, em Castelo Branco, a dar instrução de recrutas, enquanto aguardava também o momento da ordem de mobilização para o ultramar, o que viria a acontecer na véspera do sismo  de 28 de fevereiro de 1969... (Era a única certeza que eu tinha então na vida, a de que seria mobilizado muito em breve, só me restava saber para onde, Angola, Guiné ou Moçambique.)

O Parente garantia que tinha sido um “acidente” com uma jangada. O “Matosinhos” julgava saber algo mais, e falava-nos da retirada de um quartel, Madina do Boé. Era também o que eu sabia. Mas insinuou que o pessoal da jangada, sobrelotada, com excesso de peso, se terá desequilibrado e caído ao rio, quando se ouviram disparos de morteiro que terão vindo “do interior da mata” (sic).

− Onde é que ouviste ou leste isso ?

− Na rádio “Voz da Liberdade”, que emite de Argel…

− Também eu sintonizei a rádio Argel, na altura, mas não me lembro desse pormenor…− comentei eu, cético.

− Seja como for – atalhou o Parente – foi uma meia centena de camaradas nossos que não regressaram a casa… nem muito menos no caixão de chumbo.

− Para mim – acrescentei eu – o Spínola ficou mal na fotografia, um acidente desta gravidade não podia (nem devia) ter acontecido. Imaginem o rombo que provocou no moral da nossa tropa! Lá e cá…  Eu fiquei abalado, confesso...

− Já não o apanhei em Angola, esteve lá antes de mim – disse o Parente, referindo-se ao Spínola. – Mas contavam-se histórias de bravura (e de crueldade) do seu batalhão… Nunca fui de ‘emprenhar’ pelos ouvidos. Nem de pôr rótulos em ninguém… Vou dar-lhe o benefício da dúvida. De qualquer modo, vai ser (ou já é) o meu comandante-chefe.

− O nosso com-chefe, segundo a ordem de serviço que eu li… − completei eu.

− Quando lá chegarmos, logo veremos. Parece que lhe chamam o “Caco Baldé” e é agora muito amigo dos africanos… É também o terror de todos os oficiais superiores que não sejam da arma de cavalaria… A todos os que se mostrem fracos comandantes, e incompetentes, põe-lhes logo um ‘par de patins’ (como se diz em Bissau) e manda-os para casa, o que para alguns até será uma bênção, senão mesmo um prémio!... Isto pelo que me contam alguns sargentos com quem falei, e que já estiveram sob as ordens do general Spínola… − arrematou o Parente.


6. Do Parente vim a saber algo mais, já que me interessava a história de vida, por muito insignificante que fosse, daqueles homens que iam para a Guiné comigo. Mas nós cumpríamos o serviço militar obrigatório, e íamos contrariados para a Guiné. Pelo contrário, aquele homem escolhera a tropa como profissão. Como tantos outros, de resto, quer sargentos quer oficiais do quadro permanente.

Não foi difícil perceber que ele “metera o chico” para fugir à miséria e ao abandono daquelas terras raianas do Alentejo. Não escondia que aprendera, cedo, a sobreviver graças ao pequeno contrabando transfronteiriço numa altura, no pós-guerra, em que o escudo de Salazar “valia mais” do que a fraca peseta do Franco. Aprendeu a ganhar uns tostões nas barbas da GNR, da Guarda Fiscal e da Guardia Civil.” Desde puto, aprendi a lidar com o medo”, confidenciara-me ele.

Pelo que apurei das nossas conversas avulsas, ao longo daqueles cinco dias (e cinco noites) que durou o “nosso cruzeiro”, a família do pai refugiara-se em Barrancos ou num “pueblo vecino”, aquando do início da guerra civil espanhola, em 1936. Ele, o Parente, viria a nascer uns anos depois, por volta de 1940, filho de mãe portuguesa. Foi, entretanto, batizado e registado como português.

O pai, sem ofício certo, e sem grande jeito para o contrabando, acabaria por assentar arraiais em Badajoz, atraído pela boémia, a “fiesta” e os “trajes de luces”. No entanto, morreria cedo, de “soledad y cirrosis hepática”, nunca tendo chegado a pisar a arena como bandarilheiro de verdade, tal como havia sonhado quando era novo. Creio que ele era da Estremadura espanhola.

Com uma bolsa de uma confraria religiosa, que amparava viúvas e órfãos de toureiros e outros artistas tauromáticos, o filho (não sei se tinha mais irmãos) ainda conseguiu estudar num colégio de padres, jesuítas, em Badajoz, onde vivia com a mãe, criada de servir num “hostal”, não longe da praça de touros. Mas seria expulso, aos dezasseis anos, por alegadas ofensas ao bom nome e à honra do generalíssimo Franco, “caudilho de España, por la gracia de Dios”.

Alguém, certamente um “bufo”, o terá ouvido cantarolar ou dizer, no páteo do recreio, numa roda de colegas de turma, umas “coplas”, brejeiras mas de teor pública e notoriamente antifranquista, do tempo da guerra civil, e como tal proibidas em Espanha na altura… A cantilena, “Ay, Carmela!”, rezava assim:

“La mujer de Paco Franco / No cocina com carbón,/ Ay, Carmela, ay, Carmela ,/ Pues cocina com los cuernos / De su marido, el cabrón…/ Ay, Carmela, ay, Carmela”.

Denunciado, chamado ao reitor (para mais um conhecido falangista da cidade), o jovem Parente protestou, em vão, a sua inocência, alegando nem sequer  quem era o tal Paco Franco… 

Voltou com a sua mãe a Barrancos. A “pobrecita” ficou desolada pela “vergonhosa” expulsão do filho, que “se tivesse tido sorte na vida” (sic), bem poderia ter chegado a ser um grande seguidor do Inácio de Loyola.

Regressaram, ambos, com uma mão à frente e outra atrás.. Mas, antes da tropa, o Parente ainda andou por Lisboa. Conheceu um galego que lhe dei a mão, tinha um tasco (com carvoaria) no Bairro Alto, famoso pelas suas "iscas com elas"... Arranjaria depois um emprego como paquete ou moço de recados na redação de um dos jornais diários que lá tinha as suas instalações. Talvez o “Diário de Lisboa” ou o “Diário Popular”, já não sei ao certo. Chegou a levar aos serviços de censura as provas tipográficas do jornal. Fez conhecimento e amizade com alguns dos melhores jornalistas da época. E, claro, arranjou uma miúda, na rua da Atalaia, a “Sissi”.

Mesmo depois da tropa e da 1ª comissão, de passagem por Lisboa, visitava-a sempre que podia e ela estava “livre”. Era uma “rapariga da vida” (sic) que, mais tarde, já depois da extinção das casas de passe em 1963, haveria de montar o seu próprio negócio.

No final dos anos 50, e até à tropa,  fora ele o seu “faia”, o seu “fadista”. E reaprendeu a usar a “naifa”, dos tempos do contrabando, para se precaver das investidas traiçoeiras da “fauna da noite”. Ainda conheceu o Bairro Alto no tempo em que não era lá muito recomendada a sua frequência, sobretudo à noite, a “meninos de coro”. E ainda conheceu os calaboiços do Governo Civil mas, “felizmente” (sic) nunca chegou a ter cadastro, o que o impossibilitaria, legalmente, de concorrer à carreira militar.

Para mim, era uma sargento “atípico”, pelo pouco que eu ainda conhecia da classe de sargentos do quadro permanente.

− Há três sítios onde gosto de parar e entrar, quando vou na rua: a igreja, a tasca e a livraria… É uma hábito que me vem do tempo em que vivi em Espanha. O meu pai, que era supersticioso como toda a gente da ‘afición’, ensinou-me certas coisas, algumas delas a respeito destes três sítios, também para ele, ‘sagrados’, para além da ‘arena’… 

E depois de mais um gole de uísque, adiantou:
− A ‘arena’ deixei-a de frequentar, desde que o meu pai morreu e eu vim a saber que  as arenas tinham sido num passado recente, locais onde foram fuzilados milhares de espanhóis, durante e depois da guerra civil, coisa que só soube quando li, com emoção, no “Diário de Lisboa”, muitos anos depois, as reportagens de Mário Neves sobre os massacres de Badajoz em 1936…

Confesso que me surpreendeu ouvi-lo, certa noite, dizer alguns poemas do Frederico Garcia Lorca e do Pablo Neruda. Dizia muito bem, ao modo teatral do João Villaret, de cor, e quase por  inteiro (!), o espantoso “Llanto por Ignacio Sánchez Mejías”, depois de molhar a garganta com um uísque duplo:

A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde. (…)

(Continua)

____________

Nota do editior:

(*) Último poste da série > 19 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23094: A galeria dos meus heróis (44): O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... Um filho de pai ausente, que foi quase tudo na vida, não se achava mau ator de todo mas que, afinal, não sabia como sair de cena... (Luís Graça)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22962: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXVI: Antigua Guatemala, Guatemala, 2016







Guatemala, Antigua Guatemala, 2016


Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo", da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. (*)



António Graça de Abreu

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem já três centenas de referências no blogue.



Antigua Guatemala, Guatemala, 2016


por António Graça de Abreu

Texto e fotos recebidos em 23/10/2021


Nesta América Central, 2016, venho por aí acima, 130 quilómetros desde o Oceano Pacífico, subindo montes, por estradas rasgadas nas encostas de montanhas vulcânicas que se elevam até aos 4.000 metros. Só no caminho, aqui à volta, passamos por quatro vulcões, o Pacaya, o Água, o Fuego e o Acatenango.

A Guatemala tem a particularidade de contar com trinta e um vulcões, quatro deles activos. É, por isso, um país ciclicamente sujeito às calamidades naturais, tremores de terra, erupções vulcânicas com a lava escorrendo por penhascos e desfiladeiros, devorando, ao avançar, terras férteis, vilas e aldeias. 

Para além de todos os desvairos da natureza, os guatemaltecos estão igualmente sujeitos às infindáveis loucuras dos homens. Entre 1960 e 1996 a Guatemala, maior do que Portugal com 190 mil quilómetros quadrados de superfície, viveu tempos de quase permanente guerra civil, em lutas fratricidas por efémeros poderes que se calcula terem provocado 200 mil mortos.

A cidade de Antigua, conhecida localmente como La Antigua, foi fundada por colonizadores espanhóis em 1543, como escrevi encravada entre vulcões. Foi a primeira capital do país, quase totalmente destruída por um terramoto, seguido de grandes inundações, em 1773. Nessa altura construíu-se uma nova capital, a actual cidade de Guatemala, na planura de um vale, mais segura e de mais fáceis acessos, a 50 quilómetros de distância.

Parto à descoberta da Antígua Guatemala, património Mundial pela Unesco. Uma urbe colonial traçada em quadrícula, ruas pavimentadas com um velhíssimo empedrado, casas térreas com pátios interiores quadrados, à moda andaluza, jardins com buganvílias, água a correr, espaços frescos para viver e habitar. Duas dezenas de igrejas e capelas, treze conventos, tudo edificado há três ou quatro séculos, algumas construções já muito arruinadas. É o testemunho dos tempos de Espanha e da fé cristã assumida pelo povo desta terra onde a morte precoce e inesperada espreitava a cada esquina. Implorava-se a protecção de Cristo ou da Virgem Maria, pedia-se um pouco de felicidade em vidas breves, ansiava-se por um descanso eterno. Ingratos, sinuosos, inesperados os caminhos do Céu.

Na Antigua Guatemala metade da população é constituída por pessoas da etnia maia e os traços identitários de cada um saltam à vista. Não contaminados por sangue espanhol, ou europeu, os maias têm a pele mais escura, o cabelo muito negro e liso, os narizes aquilinos, os olhos grandes, encovados que me pareceram sempre tristes. Vestem, no entanto, roupas coloridas em trabalhados entrançados de lã. São a gente mais pobre e desfavorecida da Guatemala, um país onde me dizem que uma dúzia de famílias muito ricas controlam quase toda a produção de açúcar, café, bananas e borracha, as principais exportações do país. Será mesmo assim?

________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 24 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22935: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXV: Berlim, Alemanha, 1969

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22524: Agenda cultural (782): Apresentação, pelo cor Vasco Lourenço, na Feira do Livro de Lisboa, sexta-feira, dia 10, às 15h00, do livro de Moisés Cayetano Rosado, "Salgueiro Maia: das Guerras em África à Revolução dos Cravos" (Edições Colibri, 2021, 210 pp.)

 

Convite das Edições Colibri, que nos chegou por intermédio do nosso camarada Mário Gaspar: apresentação do livro de Moisés Cayetano Rosado, "Salgueiro Maia: das Guerras em África à Revolução dos Cravos" (2021, 210 pp.).  Data e local: 10 de setembro de 2021, sexta-feira, às 15h00, na Feira do Livro de Lisboa, Auditório Nascente, Parque Eduardo VII, Lisboa


Trata-se da tradução portuguesa da edição original em espanhol, “Salgueiro Maia – de las Guerras en África a la Revolución de los Claveles y su Evolución Posterior”.

"Moisés Cayetano Rosado, o autor da obra Salgueiro Maia, tem a particularidade de poder olhar, de forma mais distanciada e desapaixonada, os acontecimentos que narra nesta obra diferentemente de autores portugueses que se têm dedicado aos temas da Descolonização, do 25 de Abril e da ação e personalidade do Capitão Salgueiro Maia.

"É um historiador, interventivo e corajoso, na busca da verdade histórica e da defesa e salvaguarda da cultura do seu país, mas também apaixonado pelo seu país vizinho – Portugal – participando na organização de inúmeros eventos literários e culturais.
Nasceu em La Roca de la Sierra (Badajoz, Espanha), em 1951. É licenciado em Filosofia e Ciências da Educação. Mestre em Instrução Primária e tem doutoramento em Geografia e História." (Fonte_ Wook)
.

Sinopse do livro (excerto do prefácio, do Presidente da República, Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa):

“Foi há quarenta e dois anos!

Um homem em cima de uma Chaimite. Que interpela o poder que está a cair, enquanto o novo poder tarda em chegar.

Simples. Sem ambições de mando ou de glória.

Que ali está porque sente dever cumprir aquela missão militar, que é também e acima de tudo cívica.

Que não pensa um segundo sequer no simbolismo daquela presença, nem no significado histórico daquele momento.

Que, terminada a missão, regressa ao quartel, para voltar a ser o que era. Com a naturalidade de quem não reclama louros, nem aspira a celebridade.

À sua maneira, Salgueiro Maia deu expressão a um povo e a uma maneira de ser e de viver ao longo dos séculos. (…)

Salgueiro Maia foi o retrato desse povo, que é o que Portugal tem de melhor. (…)

Foi esse povo que fez Portugal. E, nele, os soldados de Portugal. Sem ele e eles os chefes mais ilustres não teriam triunfado, os políticos mais brilhantes não teriam vencido, os empreendedores mais visionários não teriam criado.”


Fonte: Edições Colibri, página no Facebook

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22268: Historiografia da presença portuguesa em África (266): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
As Actas da Sociedade de Geografia de Lisboa põem-nos no centro das preocupações de uma assembleia compósita onde não faltavam os principais políticos, figuras da aristocracia, cientistas, empresários e banqueiros e meros entusiastas na nova formulação do nacionalismo imperial assente em África. Ali se faziam proposta para trocar colónias, para formar uma administração colonial capaz e esclarecida, propunham-se estátuas, projetos hidrográficos, levantamentos, estudos sobre comércio e indústria, discutia-se calorosamente os tratados portugueses com a Grã-Bretanha, e de igual forma se defendia o Meridiano de Greenwich. Aqui se cita alguns elementos de uma circular enviada aos sócios sobre o que era a Sociedade de Geografia, a sua ligação a toda a sociedade por se considerar depositária de um bem público, o museu estava a constituir-se, aceitava-se uma parceria com o Jardim Zoológico, subvencionava-se uma nova exploração de Capelo e Ivens, aqui configurados como heróis nacionais.
Vamos ver que surpresas nos vai oferecer a Sociedade de Geografia, estamo-nos a aproximar da Conferência de Berlim.

Um abraço do
Mário


O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (3)

Mário Beja Santos

Que grau de utilidade podemos encontrar no estudo das grandes preocupações dos sócios da Sociedade de Geografia de Lisboa naqueles anos entusiásticos em que se procurava alicerçar o III Império Colonial, radicado em África? Analisar o funcionamento de um grupo de pressão para onde convergiam figuras de topo do rotativismo político, cientistas, empresários e até um elevado número de nacionalistas que acreditavam ardentemente que a Sociedade de Geografia era a sede habilitada para dar voz aos interesses imperiais. É por isso que estamos não à volta do boletim, publicação onde caprichavam estudos e documentos apresentados pelos sócios, nós aqui estamos a acompanhar as sessões para tentar perceber as motivações concretas de todos os sócios e ver como estas propostas chegavam ao Governo, entravam na arena política ou faziam mesmo parte da discussão pública.

Estamos na sessão de 20 de janeiro de 1883, e o sócio José Ferreira de Almeida apresenta a seguinte proposta: “A Sociedade de Geografia de Lisboa, tendo em vista o melhor aproveitamento, civilização e progresso dos domínios coloniais portugueses; no interesse do país e da humanidade, e no intuito de uniformizar o regime administrativo e tornar mais eficazes os meios de ação de que o país dispõe, seguindo-se a norma que o Governo de Sua Majestade acaba de adotar com relação aos territórios banhados pelo Zaire e o Forte de S. João Baptista de Ajudá: Propõe: 1.º  - A troca do domínio de Timor pelo de Fernando Pó cedido à Espanha pela Convenção de Março de 1778; 2.º -  A cessão à França do domínio da Guiné compreendido nos paralelos de 10º 12´ e 13º e 10´ ; pelo domínio francês do Gabão, levando a fronteira da nossa província de Angola de 5º 12´ sul à fronteira norte do domínio francês ao norte do Equador. A proposta foi enviada para a Comissão Africana. Também durante esta sessão se falou num concurso com um prémio de 100 mil reis para um estudo sobre as relações comerciais entre Portugal e as suas colónias, tendo em vista o alargamento dessas relações a fim de que a indústria nacional se desenvolva e aproveite para consumo dos seus produtos nos mercados coloniais".
António Augusto de Aguiar, um dos Presidentes da Direção da Sociedade de Geografia de Lisboa

Na sessão do mês seguinte foi aprovada uma proposta de se proceder ao levantamento hidrográfico da costa e possessões portuguesas, e particularmente das costas, portos e rios da província de Angola. Na sessão do mês seguinte quem a preside é o Conselheiro António Augusto de Aguiar pois Barbosa du Bocage fora nomeado Ministro da Marinha e Ultramar. Fala-se das ingerências da Grã-Bretanha na questão do Niassa, “os ingleses davam-se ares de pertencer-lhe, como se tinham dado de o ter descoberto”.

Na sessão de finais de Abril elaborou-se e aprovou-se parecer sobre a questão do meridiano universal, reconhecendo-se que o meridiano de Greenwich é a situação mais prática, a Sociedade de Geografia vota por este meridiano como universal para origem da contagem das longitudes. Mas havia na época muitas consultas, no caso português incluía-se o Real Observatório Astronómico da Ajuda. Na reunião seguinte surgiu a proposta de promover por meio de uma subscrição a ereção de uma estátua colossal do Cabo de S. Vicente ao Infante D. Henrique e que o lançamento da primeira pedra devia já ocorrer no ano de 1884. A questão do Zaire, que deu origem a um tratado entre Portugal e a Grã-Bretanha é matéria de grande debate. Nas sessões seguintes ocupam grande espaço as expedições de Capelo e Ivens.

No ano seguinte, logo na sessão de março é criada a Secção Asiática da Sociedade de Geografia de Lisboa e nas eleições António Augusto de Aguiar passa a presidente da Direção. Neste tempo, a Sociedade reinstalara-se na Travessa da Parreirinha, N.º 5, 1.º andar e envia-se uma circular aos sócios de onde se destacam os seguintes parágrafos:
“Nós somos uma modesta Sociedade de homens que estimam e servem a ciência e o nome português; a nossa casa é uma oficina pobre, um centro despretensioso de estudo e de convívio útil, sustentado principalmente pelas nossas pequenas cotas mensais. Não é um grémio de luxuoso passatempo, nem o nosso fim comum é cuidarmos do nosso conforto e recreio.
Rigorosamente, à cavalheirosa e discreta dedicação de todos os nossos consócios fica entregue a guarda e a polícia da nossa casa, como naturalmente lhes pertence também a guarda e defesa do nosso bom nome social. Por enquanto, pelo menos, a casa da Sociedade não poderá estar aberta ordinariamente senão desde as 10 horas da manhã até às 4 horas da tarde, e desde as 8 até às 12, precisas, da noite, todos os dias. A nossa casa não é um clube. Julgamos por isso escusado observar que não podem ser consentidos nela nenhuns jogos ou diversões alheias à índole e à lei da Sociedade, como também o não podem ser nenhumas discussões e operações de propaganda religiosa e política (quem consultar a lista dos sócios poderá verificar esta versatilidade de ocupações, desde o banqueiro Francisco Oliveira Chamiço, fundador do Banco Nacional Ultramarino, até um conjunto elevado de funcionários públicos).
Na nossa casa havemos de nos encontrar, conversar, estudar, permutar as nossas ideias e as nossas informações, sempre num convívio sereno e grave, a que nunca deixará de estar presente a ideia da nossa honra e do nosso dever comum.
Considerando as vantagens científicas do estabelecimento de um jardim científico em Lisboa, as íntimas relações deste empreendimento com os fins da sociedade, e os próprios sentimentos, neste sentido manifestados pelos nossos consócios, mas considerando também que os novos e consideráveis encargos sociais nos recomendavam a mais severa economia e o mais escrupuloso retraimento no sentido da concessão gratuita das nossas salas e serviços, temos acordado com a sociedade promotora daquele jardim de estudo, composta da sua maioria de consócios nossos, e que na nossa casa se instalou e tem funcionado até hoje, que ela continue na nossa sede, mantida a recíproca independência e sem prejuízo do nosso expediente e serviços.
Está começada a instalação do nosso museu, graças à dedicação de alguns dos nossos consócios; procura ser, em parte, um museu de estudo e aplicação industrial e comercial, principalmente no que importa às relações comerciais. Vem aqui a propósito submeter à consideração de V. Exas. a ideia em que estamos, de franquear ao público, em certos dias, a nossa casa, para exame e estudo das nossas coleções.
A Sociedade de Geografia é filha legítima da iniciativa particular”
.

Falou-se acima de que Capelo e Ivens era um tema dileto por causa das suas explorações, veja-se o que se escreveu numa das sessões:
“O Sr. Presidente informou a Assembleia de que ia entregar aos senhores Capelo e Ivens, em véspera de partirem para uma nova exploração na África Ocidental, a bandeira que os acompanhará na sua primeira expedição ao continente africano. E acrescentando algumas palavras de elogio e de estímulo aos ilustres exploradores, dirigiu-se com os secretários para a mesa onde se achava a bandeira, entregando-a aos senhores Capelo e Ivens, erguendo-se toda a assembleia e vitoriando calorosamente aqueles consócios. Deixou-se claro que a expedição africana se devia em grande parte à Sociedade de Geografia. Roberto Ivens agradeceu comovido em seu nome e de Ermenegildo Capelo, disse que aquela bandeira já testemunha e será companheira de uma missão de paz e de ciência. ‘O Sr. Serpa Pinto, tomando a palavra despediu-se comovido dos seus antigos companheiros e lembrou à Mesa a urgência de formar uma comissão de vigilância para se ocupar exclusivamente dos dois exploradores enquanto eles estivessem no desempenho da sua nobre missão”.

(continua)
Fachada comum da Sociedade de Geografia de Lisboa e do Coliseu dos Recreios
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22249: Historiografia da presença portuguesa em África (265): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 5 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22256: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte VIII: Mosteiro de Yuste, Estremadura, Espanha, 2003



Foto nº 1 > Mosteiro de São Jerónimo de Yuste, Estremadura, Espanha



Foto nº 2 > Mosteiro de Yuste, Estremadura, Espanha: leito de morte de Carlos V (1500-1558)



Foto nº 3 > Mosteiro de Yuste, Estremadura, Espanha: 
 Isabel de Portugal (1503-1539), filha de D. Manuel, irmã do nosso D. João III, mãe de Filipe II

Texto  e fotos enviadas em 21/5/2021, pelo António Graça de Abreu  



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros.

É casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos dessa união, João e Pedro; é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 275 referências no blogue.

 

Mosteiro de Yuste, Estremadura, Espanha, 2003


Primavera de 2003. Subo a encosta por antigos caminhos, entre carvalhos e castanheiros, bosques de zimbro e azinheiras. No jardim, uma velha nogueira deu sombra a Carlos V, amigo de Fernão de Magalhães, monarca das Espanhas, imperador do Sacro Império Romano-Germânico.

O mosteiro de São Jerónimo, do ano de 1415, jaz hoje alquebrado na Estremadura castelhana, rasgado, construído com pedra da montanha. Aposentos reais, a igreja, um claustro gótico, outro renascentista.

Venho ao encontro do rei-imperador Carlos V, envelhecido, decrépito, a doença, a gota, o bem e mal de viver e governar. O augusto soberano viu morrer a sua Isabel portuguesa, filha de D. Manuel, irmã do nosso D. João III, mãe de Filipe II, tão jovem, tão formosa, tão amada, tão cedo de partida. Ficou o sucessor, Filipe, príncipe para todos os poderes, para todos os reinos, para todas as virtudes.

Neste mosteiro de Yuste, o quarto de Carlos V. Desde há quinhentos anos, panos negros e dourados permanecem suspensos nas paredes frias. Ao fundo, a porta para a igreja e a cama do rei voltada para o altar de Deus, o monarca preparando-se para a última viagem, ao encontro da esposa, Isabel de Portugal.

Simplicidade solene nos espaços da vida e da morte.

Regresso ao jardim. Carlos e Isabel na brisa da tarde. Dois cisnes negros deslizam no lago.

António Graça de Abreu

___________

 Nota do editor:

Último poste da série > 27 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22227: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte VII: Peru, Lima, fevereiro de 2020

sexta-feira, 26 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22040: Da Suécia com saudade (89): Filhos de portugueses mas... desconhecidos em Portugal - Parte III: João Rodrigues Cabrilho, o primeiro navegador e explorador europeu a chegar à costa californiana, c. 1542/43 (José Belo)




EUA > Califórnia > A memória do navegador e explorador João Rodrigues Cabrilho... Para além da autoestrada ao longo da costa californiana, esta ponte também tem o seu nome... Foi o primeiro europeu a explorar a costa californiana... Há um monumento nacional ao Cabrilho em San Diego, Califórnia...

Fotos: Cortesia de José Belo (2021)



1. Mensagem de José Belo, o nosso luso-sueco, cidadão-do-mundo, membro da Tabanca Grande, que reparte a sua vida entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e Key-West (Florida, EUA). Foi nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia...

Data: sábado, 20/02/2021 à(s) 15h42

Assunto: Mais um português famoso nos States ... quase desconhecido em Portugal: João Rodriguez Cabrillo (*)



João Rodrigues Cabrilho
(Cabril, Montalegre, c. 1499 - Novo Mundo, Califórnia, 1543)

 

Tal como ao Magalhães, 
os espanhóis também o querem para só si, ao Cabrilho 
(efígie acima)...


João Rodrigues Cabrilho (ou Cabrillo, para os espanhóis)  foi um soldado e explorador português ao serviço de Espanha.

É famoso nos Estados Unidos, mormente na Califórnia, por ter sido o primeiro europeu a explorar a costa norte-americana do Oceano Pacífico em 1542/43.

A sua nacionalidade ainda hoje é objecto de  disputa entre portugueses e espanhóis. (#)
 
Está demonstrado ter sido filho de família portuguesa, mas, segundo os espanhóis, nascido em Espanha (Palma del Rio),  a 13 de Marco de 1499 (ou 1475).

No entanto, nas Beiras portuguesas mais de uma localidade afirma ser a terra de nascimento do navegador Cabrillo, e que familiares com esse nome ainda por lá vivem. Certo é que foi educado em Espanha, sendo de origens humildes.

Ainda muito jovem terá navegado para as Índias Ocidentais fazendo parte de uma grande armada de 30 navios e 2500 soldados que colonizou Cuba.

Em 1519 foi enviado para o México com a missão de aprisionar o então revoltado Hermán Cortez que tinha desobedecido a ordens reais aquando da conquista do reino Azeteca. Esta missão foi mal sucedida devido a popularidade de Cortez junto dos seus homens, tendo Cabrillo juntado-se a Cortez no assalto à capital azeteca de Tenochtitlán (Hoje, Cidade do México).

Depois da derrota dos azetecas juntou-se à expedicão militar de Pedro Alvarado na área geográfica dos actuais México do Sul, Guatemala, e El Salvador.

Em 1530 Cabrillo tornou-se imensamente rico com a exploração de minas de ouro na Guatemala. 
Desde um porto da costa guatemalteca controlava as exportações e importações para Espanha, não só a partir da Guatemala mas também de outros locais do Novo Mundo.

Aplicou pesados impostos às populações locais, e usou muitos dos habitantes masculinos como mineiros escravos, ao mesmo tempo que entregava os elementos femininos da população, também como escravas, aos seus marinheiros e soldados. Conscientemente, quebrou deste modo todo o tecido social e familiar da vasta região.

Crê-se ter sido neste período que terá tido uma companheira indígena, e que desta relação terão resultado dois filhos.

Em 1532, já famoso e com enorme fortuna, voltou a Espanha onde se casou, em Sevilha, com Beatriz Sanchez de Ortega. Ela acompanhou-o de volta à Guatemala e o casal teve dois filhos.

Neste período, Cabrillo foi contactado por António de Mendoza, então Vice-Rei da Nova Espanha, para explorar a costa americana do Pacífico na esperança de serem encontradas cidades ricas a saquear e uma possível passagem marítima entre os Oceanos Pacífico e Atlântico.

Recebeu também instruções para procurar encontrar-se com Francisco Vasquez de Coronado, então enviado por via terrestre desde o Atlântico em direção ao Pacífico.

Cabrillo construiu com capital próprio o navio almirante da expedição (o San Salvador), colocando-se deste modo em posição óptima para beneficiar de possíveis relações comerciais a serem estabelecidas ou tesouros encontrados.

 A 24 de Junho de 1542 partiu do actual porto de Manzanilha/México com o navio almirante acompanhado de dois outros, o Vitória e o San Miguel. Quatro dias depois encontraram uma baía que constituía um excelente porto de abrigo (hoje San Diego Bay).

Seguidamente exploraram as ilhas situadas junto à costa da Califórnia, Santa Cruz, Catalina e San Clemente, ao mesmo tempo foram encontrando inúmeras pequenas povoações ao longo da costa. (Curiosamente os espanhóis só voltaram a estas áreas em 1769 (!), fazendo-se então acompanhar de soldados e missionários.)

A expedição continuou rumo ao Norte tendo atingido um local que denominaram Cabo de Pinos (actual Point Reyes). Então os temporais do Outono obrigaram-nos a voltar para o Sul até à Baía de Los Pinos (actual Monterey Bay).

Neste local da costa, e devido aos densos nevoeiros aí normais, não descobriram a entrada da Baía da Actual cidade de San Francisco (San Francisco Bay). Este erro foi repetido por numerosos navegadores nos dois séculos seguintes, precisamente devido aos densos bancos de neblinas locais. A expedição regressou a San Miguel onde passou o Inverno.

Na véspera do Natal foram atacados por guerreiros indígenas (Tongva). Procurando ajudar os seus homens, Cabrillo escorregou e caiu sobre algumas pedras ponteagudas. O ferimento posteriormente gangrenou, morrendo Cabrillo a 3 de janeiro de 1543. Julga-se estar sepultado na ilha de Catalina.

A expedição voltou a navegar ao longo da costa rumo ao Norte. Atingiu, segundo se julga, a costa do actual Estado Norte Americano do Oregon. Regressaram então para a Natividad em Abril de 1543.

Esta expedição de Cabrillo não atingiu os seus objectivos quanto a encontrar ricas cidades costeiras. Também não foi encontrada a mítica passagem marítima do Pacífico para o Atlântico.

O encontro com o explorador terrestre Coronado também não se deu. No entanto demarcou uma vastíssima área da Costa Norte Americana a partir do México, que o Reino de Espanha viria a ocupar e colonizar dois séculos mais tarde.
 
(#) Vd. Wikipedia (em português: vd. também versão em inglês):

(...) A nacionalidade Portuguesa de João Rodrigues não oferece dúvidas, pois é o próprio cronista e Chefe das Índias Espanholas, D. António Herrera y Tordesillas, que na sua "Historia General de los hechos de los Castellanos en lás Islas y tierra firme del Mar Oceano" o confirma, ao dizer ter D. António de Mendonça aprestado os navios "São Salvador" e "Victoria" para prosseguirem na exploração costeira da Nova Espanha "y que nombrô por Capitan dellos a Juan Rodriguez Cabrillo Português, persona muy platica en las cosas de la mar " (...) embora alguns biógrafos e historiadores, em especial Harry Kelsey, afirmem que Cabrillo tenha nascido em Sevilla (Andaluzia) em data incerta.

Na freguesia de Cabril, concelho de Montalegre, há a "Casa do Galego" (origem aliás sugerida pelo seu apelido), onde alegadamente Cabrilho nasceu, como é afirmado em placa comemorativa. O investigador João Soares Tavares, após pesquisa morosa em Portugal, Espanha, México e Guatemala, apresentou dados comprovativos nos seus livros, que o navegador é português natural de Lapela (Cabril) do concelho de Montalegre.(...)
_________________

Nota do editor:

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21577: Consultório militar do José Martins (55): Loures e a Guerra Peninsular (Parte II)


Em mensagem do dia 22 de Novembro de 2020, o nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), dedica o seu "Consultório" ao Concelho de Loures e à Guerra Peninsular. Publica-se hoje a segunda e última parte.








____________

Nota do editor

Poste anterior de 23 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21573: Consultório militar do José Martins (54): Loures e a Guerra Peninsular (Parte I)

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21573: Consultório militar do José Martins (54): Loures e a Guerra Peninsular (Parte I)


Em mensagem do dia 22 de Novembro de 2020, o nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), dedica o seu "Consultório" ao Concelho de Loures e à Guerra Peninsular. Publica-se hoje a primeira de duas partes.

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21470: Consultório militar do José Martins (53): o Estatuto do Antigo Combatente: isenção das Taxa Moderadoras na utilização dos serviços de saúde

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20965: FAP (116): O último ano do Fiat G-91 - II (e última) Parte (José Matos)



Fig. 9 - O primeiro Fiat G.91 a ganhar a nova pintura verde escura para evitar o míssil. Infografia: Paulo Alegria. 


O último ano do Fiat G.91 na Guiné
por José Matos
,

[Publicado originalmente na
Revista Militar N.º 4 – abril 2020, pp. 395-414-
Cortesia do autor e editor]





José Matos [, foto à direita]: 

(i) investigador independente em História Militar, tem feito pesquisas sobre as operações da Força Aérea na Guerra Colonial portuguesa, principalmente na Guiné;

(ii) é  colaborador regular em revistas europeias de aviação militar e de temas navais;

(iii) colaborou nos livros “A Força Aérea no Fim do Império” (Lisboa, Âncora Editora, 2018) e "A Guerra e as Guerras Coloniais na África Subsariana" (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019);

(iv) é autor, com Luís Barroso, do livro, a sair brevemente, "Nos meandros da guerra: o Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné" (Lisboa, Editora Caleidoscópio, 2020).

(v) é  membro da nossa Tabanca Grande desde 7 de setembro de 2015, tendo cerca de 3 dezenas e meia de referências no nosso blogue]


II (e última parte) (*)

Operações nocturnas 

As missões de Fiat à noite são executadas com luzes de posição apagadas. Esta restrição implicava que a força atacante não fosse superior a 2 caças e que a actuação, no local de acção, obedecesse a um rígido sistema de escalonamento em altitude, tanto na fase da entrada como na da saída dos passes de tiro e à selecção de um ponto em terra bem conhecido para a reunião e regresso à base, dos aviões.

Quanto ao apoio, este era relativamente fácil de prestar, porque o clarão do disparo das armas da guerrilha, denunciava a sua posição no terreno. No local de acção, o primeiro jacto a entrar tinha, por isso, grande probabilidade de infligir danos ao inimigo. Fizeram-se saídas desta natureza a favor de Gadamael Porto e outra em apoio de Cufar.[33]

Em relação ao C-47, foi engendrado um visor a partir de um derivómetro usado no DC-3 Skymaster, que media ângulos na horizontal e na vertical. Ao fim de alguns voos gerou-se uma tabela de tiro e a aeronave entrou em acção, a coberto da noite. O avião adaptado era, habitualmente, usado em missões de reconhecimento fotográfico e tinha, por isso, uma abertura no dorso inferior traseiro, para instalação da máquina fotográfica. Era por essa abertura que os militares a bordo lançavam manualmente bombas de 15 kg. Os voos eram habitualmente feitos a 10 000 pés (3000 metros) fazendo bombardeamento de área. [34] 


A estreia do C-47 nesta função acontece em Setembro de 1973 com 3 acções/3 saídas nocturnas, continuando em Novembro com 5 acções/5 saídas e em Dezembro com 12 acções/12 saídas.[35]

Podemos agora ver pela análise dos SITREPS (“Situation Report”) da época que o número de acções aéreas de ataque do G.91 aumenta de forma consistente a partir de Agosto de 73, atingindo o pico máximo em Outubro (126 acções).[36]





Fig 6 - Fiat G-91: ações aéreas de ataque (1973)


A partir da análise do gráfico [Fig nº 6], constatamos que o número de missões ATIP (Ataque Independente Preparado) é significativo, a partir de Julho (49) sendo durante o resto do ano superior ao mês de Março, ou seja, antes do aparecimento do míssil. As missões ATAP (Ataque de Apoio Próximo) atingem um pico em Maio/Junho, durante a crise militar de Guidage, Guileje e Gadamael, baixando depois durante o resto do ano. Quanto às missões ATIR (Ataque Independente em Reconhecimento) desaparecem praticamente durante o ano.

Ataques a Kandiafara 

Em Agosto, o Tenente-Coronel Fernando de Jesus Vasquez substitui o Major Pedroso de Almeida no comando do GO1201. Um mês depois da sua chegada, os Fiat são empenhados em várias missões de bombardeamento a Kandiafara, na Guiné-Conakry. Estas missões começam no início de Setembro e intensificam-se a meio do mês, quando os “Tigres” bombardeiam esta base várias vezes, apesar da forte oposição das antiaéreas.[37] Num destes ataques, a 20 de Setembro, é morto um oficial cubano, o Tenente Raúl Pérez Abad, que apoiava as forças do PAIGC.[38]

Entretanto, a 1 de Setembro, a Força Aérea perde mais um G.91, mas, desta vez, por razões desconhecidas. O Fiat 5416 era pilotado pelo Capitão Carlos Wanzeller e participava numa missão de bombardeamento em apoio a uma helicolocação, usando bombas de 750 libras (340 kg). 


Durante o passe de bombardeamento e após largar a primeira bomba, o avião de Wanzeller enrola bruscamente para a esquerda até uma posição invertida, ficando o piloto sujeito a uma aceleração excessiva e sem controlo do avião. Após a perda momentânea de consciência, Wanzeller ejecta-se, sendo recuperado posteriormente por um helicóptero que procedia às helicolocações. Na investigação que é feita ao acidente não se consegue apurar o motivo da perda de controlo do avião, ficando o piloto ilibado de qualquer responsabilidade. [39]

No seguimento deste incidente, o Comando da Zona Aérea solicita a substituição do Fiat acidentado, sendo decidido que o avião 5439, previsto sair de IRAN 
[Inspect and Repair As Necessary] em Fevereiro de 1974 para a BA5, seja atribuído à ZACVG. 

No entanto, o chefe da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea (EMFA), Coronel Costa Gomes (um veterano da guerra na Guiné), salienta “que tal decisão irá afectar a já difícil situação da Base Aérea nº 5, no que respeita à preparação operacional de pilotos de G.91 para o Ultramar.” 

Atendendo que a BA5 dispunha apenas de 5 Fiat (3 disponíveis) e que, provavelmente, todas as futuras substituições só poderiam ser realizadas recorrendo aos restantes aviões que estavam em Monte Real, Costa Gomes considera oportuno que seja revisto o problema da preparação operacional em Fiat na BA5, cada vez com menos aviões para essa função. [40] O problema agrava-se no mês seguinte com a perda de outro caça na Guiné.


Ejecção na selva 

A 4 de Outubro, os “Tigres” perdem o Fiat (5409), no norte da Guiné, na região de Jagali, a sul do rio Cacheu, perto da mata do Tancroal. Na manhã desse dia, dois G.91 descolam da BA12 rumo ao norte, pilotados, respectivamente, pelo Capitão Alberto Cruz e pelo Coronel Lemos Ferreira, na altura Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné (ZACVG). Cada avião transportava nas asas 2 bombas de fragmentação de 200 Kg e 4 bombas de demolição de 50 Kg, além das munições habituais nas metralhadoras do nariz. 


O tempo estava encoberto por nuvens altas, mas a zona suspeita distava apenas 50 quilómetros de Bissau e em 15 minutos de voo a parelha estava sobre a mata do Tancroal à procura de vestígios da guerrilha. O ponto de convergência de alguns trilhos suspeitos é assumido como alvo e a zona é de imediato bombardeada pelos dois aviões. Os dois jactos atacam o alvo de forma desfasada no tempo para que cada um possa vigiar a recuperação do outro e avisá-lo em caso de disparo do míssil e atacar o local de lançamento. 


Depois de largadas as bombas, o Capitão Alberto Cruz mergulha em ângulo de picada de 60º para metralhar a posição suspeita e de repente sente um grande estrondo e percebe que qualquer coisa de grave aconteceu ao G.91. O avião vibra com tanta violência que o piloto bate constantemente com o capacete na “cannopy” e a consola do Fiat mostra luzes acesas por todos os lados. De repente, o G.91 entra numa espiral descontrolada e o piloto perde completamente a visão à sua volta e decide ejectar-se. 


A ejecção ocorre a cerca de 400 nós (740 km/h), ou seja, muito perto do limite do cabo de disparo do pára-quedas de abertura que é de 470 nós (870 km/h). É uma ejecção violenta, tão violenta que o piloto perde o capacete e os sentidos, durante algum tempo, e sofre também uma forte compressão na coluna. A descida até ao solo é rápida. Em pouco mais de 15 segundos, o piloto aterra na floresta, mas fica pendurado numa árvore a cerca de 5 metros do solo. 


Perante a situação, deixa o paraquedas deslizar suavemente até que a cerca de 2 metros de altura cai desamparado no chão. Logo de imediato sente dores nas costas, além de um joelho dorido e de perda de visão no olho esquerdo, magoado durante a ejecção. Mas a velha cadeira Martin-Baker salvou-lhe a vida. Recupera da queda e ouve vozes dos guerrilheiros ou da população; discretamente desloca-se a custo para uma clareira, onde fica à espera de ser recolhido. [Fig. nº 7]




Fig. 7 - Capitão Alberto Cruz na Guiné.

Crédito fotográfico: Alberto Cruz 



O líder da parelha alerta Bissalanca e dois Fiat de prevenção acompanhados por dois helicópteros Alouette III armados com canhões de 20 mm partem imediatamente da base para fazer a recuperação. O primeiro G.91 chega rapidamente ao local, mas com receio de ser localizado pela guerrilha, o piloto não emite qualquer sinal luminoso. 

Passados 35 minutos, os Alouette III começam a sobrevoar a área e é nessa altura que o Capitão Cruz lança um flare que é visto por um dos helicópteros, sendo então recuperado. De regresso à base, é elaborado o relatório do que se passou em que o motivo do incidente é atribuído a “causas indeterminadas”. 


De facto, o Coronel Lemos Ferreira que estava no outro Fiat não viu qualquer míssil e o Capitão Cruz fica com a ideia de que pode ter sido o painel das metralhadoras do lado esquerdo que se abriu durante o voo, pois na inspecção que tinha feito antes de levantar voo tinha notado alguma folga neste painel. 

A suspeita do piloto leva a FAP a consultar o construtor do avião (a Dornier), que informa que “os painéis laterais de armamento já se abriram, em alguns casos, mas durante a fase de descolagem” existindo nesses casos “uma tendência de o avião enrolar para o lado oposto ao da abertura, tornando-se crítico o controlo direccional. A firma construtora especificou que no caso particular da perda do painel lateral de armamento em voo, o centro de gravidade deslocar-se-á significativamente para trás, desconhecendo-se qual a alteração da estabilidade da aeronave.”[41]

Entretanto, em Bissalanca, todos os Fiat são inspeccionados detectando-se fracturas nas longarinas da chapa pára-fogo das metralhadoras e também nos ailerons, o que obriga à respectiva reparação em todos os aviões. [42]


Os receios da época seca 

Com o início da época seca (Dezembro-Maio), as chefias militares na Guiné registam um crescendo progressivo da actividade da guerrilha, depois de alguns meses de baixa actividade (principalmente Outubro e Novembro de 73). Esperam obviamente por outro ataque de grande envergadura contra as guarnições de fronteira, sendo Bigene, Guidage, Copá, Canquelifá, Buruntuma e Gadamael, os alvos mais prováveis. Há também o receio de acções de fogo sobre núcleos populacionais importantes, como o caso de Bissau, Bafatá ou Farim. [43] 

Mas nada disso acontece. Durante toda a época seca, o PAIGC não volta a lançar ataques de grande envergadura como os de Guidage, Guileje ou Gadamael, no entanto, concentra a sua acção sobre Copá e Canquelifá na frente leste junto à fronteira com o Senegal e a Guiné-Conakry.[44] Em apoio a estas acções, os guerrilheiros continuam a usar mísseis, mas sem grandes resultados. Entre finais de Abril até Dezembro de 1973, são detectados 15 disparos contra os “Tigres”, mas sem consequências.[45]


Em busca de novos Fiat 


Em Dezembro de 1973, a Força Aérea recebe informações de que a Luftwaffe pretende desactivar durante o ano de 1974, 50 a 60 jactos Fiat G.91 R/3 com uma média de 1800 a 2000 horas de voo havendo interesse da parte portuguesa em comprar alguns destes caças para reforçar a frota da FAP.[46] 


O problema é que o Governo de Bona não pretende vender os aviões a qualquer país estrangeiro, com o receio que o destino final seja sempre Portugal. A venda de armas a Portugal é um tema politicamente sensível na Alemanha, desde que o G.91 do Tenente-Coronel Almeida Brito apareceu nos jornais alemães como sendo de origem germânica, o que gerou críticas contra o Governo. [47] 


Desta forma, torna-se impossível a compra dos aviões na Alemanha. O Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), General Tello Polleri, ainda tenta explorar, junto de Espanha, a possibilidade destes aviões serem comprados pelas Construcciones Aeronáutica S.A (CASA), para depois serem vendidos a Portugal, mas sem sucesso.[48] 


Ao mesmo tempo, o Governo português tem em curso negociações para a compra de caças Mirage em França, mas o negócio esbarra na intransigência francesa de não permitir que os Mirage sejam usados na Guiné ou em Cabo Verde, uma exigência que dificulta um acordo entre Paris e Lisboa. [49]

A falta de novos Fiat preocupa a Força Aérea e a 3ª Repartição do EMFA produz, em Fevereiro de 1974, um estudo sintético sobre o problema em que considera que, face ao número de aviões existentes (31 unidades) e tendo em conta a depreciação da frota por acidentes e acção do inimigo, a FAP precisa de mais 25 aviões e 28 motores que deviam ser adquiridos nos dois anos seguintes. 


Na altura, a ZACVG dispunha de 11 caças, a 3ª Região Aérea em Moçambique de 16 e a BA5 de 4, embora estivesse previsto o reforço da 3ª RA com mais 4 jactos, ficando Monte Real sem qualquer avião para treino operacional.[50]


A fuga espectacular de Castro Gil 

Com o início de 1974, a guerrilha começa a tentar penetrar na zona nordeste da Guiné aumentando a pressão sobre Copá com bombardeamentos de artilharia. A resposta portuguesa passa pela utilização do C-47, em bombardeamentos nocturnos e do Fiat G.91, durante o dia. 

Na tarde de 31 de Janeiro de 1974, acontece um desses ataques e a BA12 recebe um pedido de apoio de fogo do quartel de Canquelifá, na fronteira norte com o Senegal. Em resposta, dois G.91 descolam de Bissalanca rumo à zona flagelada. Assim que os aviões começam a sobrevoar a área de Canquelifá, os guerrilheiros suspendem o ataque e os pilotos pedem aos militares do Exército, as referências necessárias para bombardear as posições da artilharia. 


O primeiro Fiat, pilotado pelo Tenente-Coronel Jesus Vasquez, efectua o seu bombardeamento sem qualquer reacção antiaérea, mas quando o segundo Fiat, pilotado pelo Tenente Castro Gil, executa a mesma acção é atingido por um míssil quando recupera do passe e despenha-se perto do território do Senegal. Castro Gil ejecta-se e aterra perto das linhas inimigas. A proximidade da noite não permite que seja desencadeada uma operação de regaste e o líder da parelha, após ter informado a base, regressa à BA12, que, entretanto, coloca em marcha os planos para o inevitável resgate. 


Para a operação, são mobilizados os comandos africanos de Marcelino da Mata e dois pelotões de pára-quedistas, que iriam descolar logo de manhã cedo para Nova Lamego, de onde iriam de helicóptero para a zona onde o piloto português caíra. Um C-47 fora também colocado no ar, sobrevoando a zona de Canquelifá para que Castro Gil percebesse que a Força Aérea o iria resgatar assim que possível. 


O piloto, depois de chegar ao solo e vendo-se numa zona queimada pelos bombardeamentos da guerrilha decide afastar-se para norte, para o lado do Senegal, de forma a despistar a guerrilha. Munido de uma bússola, esgueirou-se pela cinza de forma a não deixar grande rasto e caminhou o mais que pôde para não ser encontrado pelos guerrilheiros. Já depois do raiar do dia, mudou de direcção para sul, em busca da estrada alcatroada de Buruntuma-Piche-Nova Lamego. O plano de Castro Gil era chegar ao quartel de Piche.

O raiar do dia trouxe também o início das operações do Exército português. Os homens de Marcelino da Mata foram colocados no terreno e encontraram o que restava do pára-quedas e do assento ejectável, mas sem sinal do piloto. 

Entretanto, um pequeno DO-27 de reconhecimento foi colocado no ar também para procurar o piloto que,  ao ver o avião, lançou um very-light, mas desesperado, apercebeu-se que a tripulação não o vira, e o monomotor a hélice afastou-se do local onde estava. Foi um rude golpe, sobretudo tendo em conta que já se afligia com sede e calor. Mesmo assim, não desistiu e resolveu prosseguir com o seu próprio plano. 





Fig. 8 – Regresso do Tenente Castro Gil a Bissalanca. Crédito fotográfico: Grupo Operacional 1201. 



Ao fim de muitas horas, acabou por encontrar uma tabanca. Escondido entre a vegetação, estudou os habitantes para se certificar de que eram de confiança. Ao fim de uma hora, decidiu arriscar, indo ter com uma mulher para lhe pedir água. Estava agora rodeado pela população, que se revelou amigável e pediu a um habitante local para ser levado para o quartel de Piche. O homem surgiu com uma bicicleta de assento atrás e mandou Castro Gil instalar-se e arrancou a pedalar em direcção ao sul. 

No caminho, ainda passou por dois homens armados, caminhando em sentido inverso, que o condutor da bicicleta cumprimentou sem levantar qualquer suspeita. No espírito de Castro Gil ficou a dúvida se os homens seriam milícias de um destacamento existente entre Piche e Canquelifá (Dunane) ou dois guerrilheiros que teriam andado à sua procura e regressavam ao seu acampamento.

Enquanto isto se dava, a equipa de resgaste prosseguia a sua missão durante o dia, na zona de Canquelifá, mas sem encontrar vestígios do piloto.

Só ao final do dia é que receberam uma comunicação de Piche que dizia, em termos muito simples, que o piloto tinha chegado ao quartel, de bicicleta! [51]


Sistemas antimísseis 

Na altura em que Castro Gil foi abatido existiam já contactos para adquirir, em França, uma tinta de baixa reflexão de tonalidade verde escura para evitar o míssil. O primeiro Fiat a ganhar esta nova pintura foi o 5401, que estava em Monte Real na BA5, sendo transferido para a Guiné em Março de 1974. [52] [Fig. nº 9]

A Força Aérea procura também equipar os Fiat com um sistema antimíssil do tipo flare a comprar nos EUA e o ministro da Defesa, Silva Cunha, autoriza, em Fevereiro de 1974, a compra de dispersores de flares para instalar no G-91.[53] O modelo escolhido é o TRACOR TBC-72 de fabrico americano semelhante ao AN/ALE-40 da mesma empresa. A ideia era instalar 4 dispersores por avião junto ao bordo de fuga dos suportes internos. Os TBC-72 permitem a utilização, não só de artifícios iluminantes, como também de “chaff” (limalha de perturbação de radar).

Em Abril, são feitas diligências junto da embaixada portuguesa em Washington para saber da possibilidade da venda de tal equipamento pelos americanos, mas com o 25 de Abril e o fim do regime, a compra perde sentido.[54]


O fim da guerra 


A actividade operacional dos “Tigres” em 1974 vai decrescendo nos primeiros meses do ano até à revolução de Abril. Mesmo assim, a média mensal é de 140 horas/voo, ou seja, superior aos 10 meses anteriores (130 horas/voo).[55] De Janeiro a Abril de 1974, são detectados disparos de 11 mísseis contra os Fiat, mas com excepção do abate de Castro Gil, nenhum Strela atinge os jactos. [56]

Apesar do 25 de Abril e da mudança do regime em Lisboa, a guerra não acaba de imediato e os Fiat continuam a voar nos céus da Guiné. Bettencourt Rodrigues é demitido das suas funções e chamado a Lisboa, sendo substituído pelo Tenente-Coronel Mateus da Silva e depois pelo Tenente-Coronel graduado em Brigadeiro, Carlos Fabião, que toma posse em Bissau, a 8 de Maio.[57] Na Força Aérea, o Tenente-Coronel Vasquez continua no comando do GO1201, não havendo qualquer mudança.

No início de Maio, os G.91 ainda efectuam algumas missões de ataque e uma de apoio próximo em Mamboncó,[58] mas com o cessar-fogo acordado em Dacar em meados de Maio, as operações ofensivas cessam na Guiné.[59] Os “Tigres” ficam limitados a missões de vigilância até à independência da Guiné. Terminava assim a vida operacional do Fiat neste território africano.

José Matos

__________

O autor agradece ao Arquivo da Defesa Nacional, ao Arquivo Histórico-Militar e à Torre do Tombo, as facilidades concedidas para esta investigação. Ao TGen Fernando de Jesus Vasquez, ao TGen António Martins de Matos e ao Maj Alberto Cruz a leitura e informações prestadas. 
 

[Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
____________


Referências:


[33] Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vasquez.

[34] Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vasquez.

[35] Análise dos Sitreps Circunstanciados n.º 40/73 e 46/73 a 52/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/87

[36] SITREPS do COMZAVERDEGUINÉ, ADN/F2/16/87 e 88.

[37] SITREPS nº 36-39/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/88.

[38] Hernández, op. cit., p. 237.

[39] Informação n.º 166 da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Acidentes com as aeronaves Fiat n.º 5416 em 1 Set. 73 e 5409 em 4 Out. 73, 22 de Abril de 1974, Serviço de Documentação da Força Aérea/Arquivo Histórico (SDFA/AH).

[40] Informação nº 287 da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Aviões Fiat G-91 da ZACVG, 10 de Setembro de 1973, SDFA/AH-SEA/Guiné 1964-1974/Fiat Processo 430.121.

[41] Informação nº 166, ibidem.

[42] Informação prestada ao autor pelo Capitão Alberto Cruz e pelo General Lemos Ferreira e Informação n.º 166, ibidem.

[43] Relatório da situação militar no TO Guiné, período de Outubro 73 a Janeiro de 74, Conselho Superior de Defesa, ADN F3/15/32/41.

[44] Idem, ibidem.

[45] Correia, José Manuel, Strela: A Ameaça ao Domínio dos céus no Ultramar Português, 2ª parte, Mais Alto n.º 393 Setembro/Outubro 2011, p. 28.

[46] Memorando do Estado-Maior da Força Aérea, 25 de Janeiro de 1974, SDFA/AH, 3ª Divisão/EMFA 71/74, Processo 400.121.

[47] Carta de Alberto Maria Bravo & Filhos, Assunto: Aviões G-91, 4 de Dezembro de 1973, Arquivo Histórico Diplomático (AHD) PEA 655.

[48] Carta do Secretário de Estado da Aeronáutica para o General Enrique Jimenez Benamu, 25 de Fevereiro de 1974, AHD PEA 655.

[49] Matos, José, A história secreta dos Mirage Portugueses, 2ª parte, Revista Mais Alto nº 401, Jan/Fev. 2013, pp. 25-29.

[50] Informação nº 44/A da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Recompletamento da Frota de Aviões Fiat G-91, 2 de Fevereiro de 1974, SDFA/AH-SEA/Guiné 1964-1974/Fiat Processo 430.121.

[51] Informação prestada ao autor pelo General Jesus Vasquez.

[52] Correia, op. cit., p. 31.

[53] Informação n.º 355 da Secretaria de Estado da Aeronáutica, Assunto: Equipamento antimíssil Strela (TRACOR), 18 de Abril de 1974, ADN/F3/7/13/5.

[54] Nota secreta do Director Geral do MNE para o Embaixador de Portugal em Washington, Assunto: Aquisição de equipamento antimíssil Strela, 22 de Abril de 1974, ADN /F3/7/13/5.

[55] Análise dos Sitreps Circunstanciados n.º 1/74 a 17/74 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/89 e AHM/DIV/2/4/295/3.

[56] Correia, op. cit., p. 28.

[57] Silva, António Duarte, A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Edições Afrontamento, Lisboa, 1997, pp. 179-180.

[58] SITREPS Circunstanciados n.º 18 e 19/74 do COMZAVERDEGUINÉ, AHM/DIV/2/4/295/3.

[59] Silva, op. cit., pp. 227-228.

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 11 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20963: FAP (115): O último ano do Fiat G-91 - Parte I (José Matos)