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sábado, 30 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20399: Historiografia da Presença Portuguesa em África (189): I Exposição Colonial, Porto, junho/setembro de 1934: fotogaleria do encerramento...









"Vários aspetos dessa memorável jornada de fé e vibração patrióticas: em cima, Irmãs Missionárias e Combatentes das campanhas das colónias; a seguir, D. João de Castro, conduzido sob o pálio e o carro da cidade do Porto; a frente do cortejo com figuração histórica; no disco, tocadores de marimbas; campinos do Ribatejo junto do sr. capitão Henrique Galvão, que concebeu, organizou e dirigiu o cortejo; o carro dedicado à província de Angola. Fotos ALVÃO.

Fonte: Ultramar - Órgão Oficial da I Exposição Colonial, (Porto),  nº 17, 1 de outubro de 1934, p. 8 (Diretor: Henrique Galvão). 

[Cortesia de Hemeroteca Digital, Câmara Municipal de Lisboa]



1. Temos já meia dúzia de referências no nosso blogue à Exposição Colonial do Porto (junho-setembro de 1934). Recorde-se aqui um excerto de um poste de um camarada nosso, portuense, o [ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAC 3880  (Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74),  membro nº 780 da Tabanca Grande: 


(...) A grandiosa Exposição Colonial do Porto, ocorrida no Palácio de Cristal em 1934, deverá ter sido um ensaio geral para a (ainda mais grandiosa) Exposição do Mundo Português de 1940, em Lisboa. Ainda Salazar não tinha vergonha de chamar colónias às colónias.


Feita à imagem e semelhança de outras exposições coloniais realizadas em França, Inglaterra, Alemanha, etc., a Exposição Colonial do Porto de 1934 foi organizada por Henrique Galvão, esse mesmo, o do assalto ao paquete Santa Maria, que antes de ser um feroz opositor de Salazar tinha sido um seu fervoroso admirador.

A Exposição Colonial do Porto teve como finalidade, como facilmente se compreende, exaltar o orgulho imperial dos portugueses, supostamente portadores de um mandato divino de civilizar os povos primitivos sob seu domínio, e ao mesmo tempo consolidar o regime do Estado Novo, comandado pelo pulso de ferro de António de Oliveira Salazar. A exposição teve características idênticas às das exposições coloniais estrangeiras, a começar pela redução dos povos colonizados à condição de indígenas atrasados, cujo exotismo se procurava sublinhar. Para tanto, mostraram-se seres humanos trazidos das colónias ao público visitante, como se de animais do jardim zoológico se tratasse.

No caso da Exposição Colonial do Porto de 1934, a Guiné teve um papel de particular relevo, não necessariamente pelas melhores razões. Foi instalada uma "tabanca" de bijagós numa ilha de um pequeno lago existente nas imediações do Palácio de Cristal, onde pessoas seminuas eram exibidas ao público como se estivessem no seu ambiente natural. Ora o clima do Porto é consideravelmente mais frio do que o da Guiné. Nem quero pensar no frio que essas pessoas terão passado. (...) (*)


Portugal (continental, insular e ultramarino) tinha uma superfície superior a 2,168 milhões de km2, ultrapando o conjunto europeu formado pela Espanha (continental), a França, A Alemanha, a Inglaterra e a Itália (que não chegava aos 2,097 milhões de km2). Mapa organizado por Henrique Galvão (1895-1970) que, passadas duas décadas, começa a desiludir-se com o Estado Novo e entra em rota de colisão com Salazar. Ficaria mundialmente famoso pelo inédito assalto, em 21 de janeiro de 1961, ao paquete "Santa Maria". Terá sido o primeiro ou um dos primeiros atos de pirataria naval com motivação política, no séc. XX. Henrique Galvão e o seu comando renderam-se às autoridades brasileiras, no porto de Recife, em 2/2/1961, na véspera do início da guerra colonial em Angola.


Sobre a I Exposição Colonial Portuguesa, ver mais informação disponível na Hemeroteca Municipal de Lisboa (, dossiê digital organizado em 2014 para comemorar os 80 anos deste evento; destaque na introdução para o seguinte excerto:  

(...) "Discursando no Palácio da Bolsa (então Palácio das Colónias), [Henrique] Galvão terá afirmado: 'os homens da minha geração vieram ao Mundo dentro de um país pequeno. Felizmente vê-se que pretendem morrer dentro dum império'. 

"Esta ideia, de resto, serviu de mote ao famoso mapa 'Portugal não é um país pequeno', (ver aqui) concebido por Galvão no âmbito da Exposição e amplamente divulgado pelo Secretariado de Propaganda Nacional nos anos seguintes." (...)
____________



Notas do editor:

(*) Último poste da série > 27 de novembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20389: Historiografia da presença portuguesa em África (188): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (4): "Portugueses e Espanhóis na Oceânia", por René Pélissier (Mário Beja Santos)

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20241: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte VI: Não aos crimes de guerra: os bravos não são cruéis e os cruéis não são bravos



Foto nº 2 > Angola > CCAÇ 3535  (1972/74) >  O grupo de combate do alf mil  Fernando de Sousa Ribeiro no decurso  da operação que levou à conquista e destruição da base de Catoca, da UPA / FNLA. Foto do álbum do  fur mil  Luís Macedo.






Crachá da Companhia de Caçadores 3535, baseado no suposto brasão pretensamente pessoal do capitão miliciano Lamas da Silva. Eu nunca andava com este crachá ao peito. A Idade Média acabou há séculos. Eu
não tinha nada que trazer ao peito o presumido brasão alegadamente do Lamas, como se o Lamas fosse meu senhor feudal. Se ele quisesse brincar aos fdalgos, que brincasse sozinho. Por outro lado, e o que era muito mais grave, eu não podia aceitar um lema tão repugnante como o que se encontrava no crachá. 


lema, "A cada um a sua própria morte", foi cirurgicamente retirado de uns versos do Livro das Horas de Rainer Maria Rilke, de tal forma que o seu sentido fcou completamente adulterado. Os versos dizem o seguinte: Senhor, dá a cada um a sua própria morte. / Morrer que venha dessa vida / durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte. O que era uma frase que fazia parte de uma oração a Deus foi transformado num lema que é um incitamento ao homicídio! Se dúvidas eu tivesse a propósito do verdadeiro significado do lema, elas dissiparam-se quando foram distribuídos, pelo pessoal da companhia, lenços de cor preta, para proteger a cara do pó da picada durante as colunas auto. 

Tal como o lema, a cor preta dos lenços não foi escolhida por acaso. Com um tal lema assassino e com tais fúnebres lenços pretos, quiseram fazer de nós emissários da morte. Porém, nós agimos de modo precisamente contrário




Foto nº 1 > Na picada que subia da Ponte do Rio Dange para norte, havia esta placa de trânsito, de cimento, indicativa de um desvio para o Mucondo, que ficava a poucas centenas de metros de distância. Amarrada a esta placa, estava uma tabuleta de madeira que dizia "AQUI COMEÇA O INFERNO". Esta tabuleta é a haste horizontal da mancha negra em forma de cruz que se vê acima da placa de cimento.


Fotos (e legendas): © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Fernando de Sousa Ribeiro:


(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado, e 
vive no Porto, mas também tem boas recordações de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(v) tem página no Facebook;

(vi) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974; esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(vii) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo; as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(viii) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia 

(Episódios do Meu Serviço Militar)

 > Crimes de guerra 
(pp. 49-63)(*)


por Fernando de Sousa Ribeiro



Pouco tempo antes da nossa partida para Angola, quando ainda estávamos em Santa Margarida aguardando o dia da partida, os aspirantes das companhias operacionais do BCaç 3880 fizeram uma espécie de juramento. Digo «uma espécie», porque não foi um juramento formal, mas sim um compromisso que os aspirantes tomaram uns perante os outros. Se não todos, pelo menos quase todos (eu incluído), levaram esse compromisso a sério, como se de um verdadeiro juramento se tratasse.

Foi num dia ao imm da tarde que esse compromisso teve lugar, enquanto tomávamos banho e nos arranjávamos para irmos jantar à messe de oficiais do Campo Militar de Santa Margarida. Alguns de nós preparavam-se para tomar banho, completamente nus e prontos para entrar no chuveiro. Outros tinham acabado de tomar banho e
saíam do chuveiro, igualmente nus. Outros ainda, incluindo eu próprio, estavam a fazer a barba, com uma toalha à cintura. Sem que ninguém o fizesse prever, um dos aspirantes presentes no local chamou a atenção dos restantes, dizendo:

— Ó malta, vamos assumir um compromisso!

Não me lembro de quem foi que falou, mas tenho a vaga ideia de ter sido o falecido aspirante Leite, que viria a ser alferes miliciano da CCaç 3537.

Nós interrompemos o que estávamos a fazer, para ouvirmos o que ele tinha para nos dizer. E ele disse, muito aproximadamente, o seguinte:

— Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Nem sequer sabemos se vamos estar no lado certo ou no lado errado da guerra. Só quando chegarmos a Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos no lado certo ou no lado errado da guerra, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, havemos de agir sempre de acordo com o que a nossa consciência nos determinar. Não sabemos se tal será possível no meio de uma guerra.

E continuou:


— Poderemos enfrentar situações que nos levem a cometer atos que em condições normais nunca cometeríamos. Não sabemos. Mas mesmo assim e
independentemente de tudo, procuraremos agir sempre de acordo com a nossa consciência, custe o que custar.

E, quando já todos nos manifestávamos a favor do compromisso, assumindo-o, ele repetiu, martelando as palavras:

— CUS...TE... O... QUE... CUS...TAR!

— Custe o que custar — repetimos.

Apesar de terem sido ditas numa circunstância e num lugar pouco apropriados a um juramento solene, estas palavras valeram como tal. Os aspirantes das companhias operacionais do BCaç 3880 comprometeram-se assim, uns perante os outros, a seguir os ditames da sua consciência na sua conduta durante a guerra. Foi com esta
disposição que eles partiram para Angola.

Após uma curta estada no quartel do Grafanil, nos arredores de Luanda, onde ficou assim que chegou a Angola, a minha companhia viajou para Zemba, o seu destino na guerra. Não houve quaisquer incidentes durante a viagem, felizmente. 


De entre as paragens que se fizeram durante a deslocação, destaca-se uma que se fez no Mucondo. Esta paragem durou cerca de meia hora, talvez, antes da partida para Santa Eulália e Zemba, já ao fim da tarde. Enquanto permanecemos no Mucondo, eu estive na messe de oficiais a descansar. Sem que nada o fizesse prever, os oficiais da companhia local, que ainda não tinha sido rendida pela CCaç. 3537, começaram a gabar-se perante nós, "maçaricos", dizendo:

— Nós somos os "Assassinos do Mucondo"! Nós não fazemos prisioneiros. Tudo o que encontrarmos na mata a mexer-se é turra, é para abater, seja homem, mulher, criança, cão ou galinha. Somos os "Assassinos do Mucondo". Não perdoamos a ninguém. Nunca fazemos prisioneiros. Atiramos primeiro e perguntamos depois. Somos implacáveis. Somos os "Assassinos do Mucondo"!

Eu achei graça àquilo, pensando que eles estavam a tentar impressionar-nos, novatos que nós éramos, cheios de medo a caminho da guerra. Não levei aquelas palavras a sério, de maneira nenhuma.


Na picada que subia da Ponte 

do Rio Dange para norte, havia esta placa de trânsito, de cimento, indicativa de um desvio para o Mucondo, que ficava a poucas centenas de metros de distância. Amarrada a esta placa, estava uma tabuleta de madeira que dizia "AQUI COMEÇA O INFERNO". Esta tabuleta é a haste horizontal da mancha negra em forma de cruz que se vê acima da placa de cimento 

[Foto nº 1, acima; e em pequeno reduzido à direita]


Quando chegamos a Zemba já era de noite. Logo a seguir ao jantar, fui para o quarto, juntamente com os restantes alferes da 3535, arrumar as minhas coisas.

Nessa altura, os alferes da companhia que fomos render (a CCaç 3346, do BCaç 3840), também foram ao nosso quarto, mas para falar connosco com toda a seriedade. O que eles nos disseram foi o seguinte:

— Nós temos uma revelação para vos fazer, que é muito constrangedora para nós. Mas é preferível que vocês saibam da nossa boca do que por terceiros. A revelação é: a nossa companhia cometeu um massacre.

Perante a nossa surpresa, exclamaram logo a seguir:

— Por amor de Deus, não nos interpretem mal! Nós condenamos o que se passou, tanto como vocês. A sério! Mas a verdade é que houve um massacre cometido por militares da nossa companhia. Infelizmente houve. Nós condenamos, mas houve.

Passaram então a contar o que se passou:

— Uma vez, no Zemba "Turra", um alferes mandou fuzilar 21 prisioneiros que tinham acabado de ser capturados. Ele confessou que estava aterrorizado por se encontrar num sítio tão perigoso como era o Zemba "Turra". Mandou alinhar os prisioneiros e ordenou aos soldados que os fuzilassem. E assim aconteceu. O alferes já não está cá.

Foi castigado por causa disso e transferido, embora o texto da punição não faça referência ao massacre.

E os alferes da 3346 repetiram e voltaram a repetir:

— Vocês não pensem que nós costumávamos agir desta forma. De maneira
nenhuma! Nós condenamos o massacre tanto como vocês. Mas a verdade é que aconteceu. Foi o único massacre que houve na nossa companhia, por culpa de um cobarde. Ele mesmo confessou que estava aterrorizado e já não está cá. Por amor de Deus não pensem mal de nós! Nós também condenamos o massacre. Acreditem que é verdade! Nós sempre procuramos respeitar as vidas humanas. Aquele cobarde é que não respeitou.

Depois de terem contado o episódio do massacre, envergonhados, os alferes da 3346 saíram, para nos deixar ficar a arrumar as nossas tralhas no quarto. O alferes Arrifana, da minha companhia, saiu também de imediato e dirigiu-se diretamente para a caserna do seu grupo de combate. Reuniu os seus soldados e cabos e contou-lhes o que tinha acabado de saber. Por fm, acrescentou:

— Vocês livrem-se de cometer atos semelhantes a este! Se algum de vocês matar um só inocente que seja, vai ter que se haver comigo! Juro que lhe faço a vida num inferno! Se há coisa que eu não admito no meu grupo de combate é cobardes. Se algum de vocês for cobarde e assassino, garanto que me vai ter à perna. Nunca mais terá sossego comigo!

No dia seguinte de manhã, quando entrei na caserna do meu próprio grupo de combate, ouvi os meus homens comentarem o sucedido uns com os outros. O "sermão" do Arrifana também tinha chegado ao conhecimento deles. Diziam os meus cabos e soldados:

— Um homem que é homem não dispara contra quem não se pode defender. Se o outro estiver armado, pode disparar, pois nesse caso estarão de igual para igual; se ele não disparar, o outro disparará primeiro. Mas atirar contra uma pessoa desarmada é cobardia.

E diziam uma frase que ouvi repetida por eles várias vezes ao longo dos dias que se seguiram:

— Só quem tem medo de tudo e de todos é que está disposto a matar tudo e todos. É um cobarde.

Perante tais palavras, achei que não valia a pena eu fazer também um "sermão" aos meus homens. O do Arrifana chegou.

Passaram-se vários meses. Quantos? Não me lembro. Só me lembro de que um dia ouvi o comandante do batalhão fazer referência aos "Assassinos do Mucondo". Não me lembro das circunstâncias em que ouvi tal referência, nem tenho a certeza de que ele tenha pronunciado textualmente as palavras «Assassinos do Mucondo». Só
me lembro de ouvir o tenente-coronel lamentar o facto de a CCaç 3537 não se comportar como a companhia que a antecedeu, que varria tudo à sua frente. Achava ele que o terror espalhado pela companhia anterior deveria ser continuado pela CCaç 3537, mas «infelizmente» não era. «Aquilo é que era uma companhia que impunha respeito», disse ele sobre a companhia anterior. Quase só lhe faltou chamar
mole e piegas à 3537.


Eu ouvi as palavras do tenente-coronel Azevedo com um certo espanto. «Será que no princípio da comissão os autodenominados 'Assassinos do Mucondo' tinham-nos mesmo falado verdade?», interroguei-me. «Até o comandante se refere a eles! Como foi que ele soube?» Instalou-se a dúvida no meu espírito a respeito dessa companhia.

Algum tempo mais tarde realizou-se uma operação ao Catoca, na qual o papel principal foi desempenhado pelo meu próprio grupo de combate. O grupo não foi comandado por mim, mas sim pelo valente furriel Macedo, porque eu estava em gozo de licença anual. 

Além da conquista e destruição da base do Catoca propriamente dita, o resultado final dessa operação ultrapassou em muito tudo quanto se tinha esperado dela: a UPA/FNLA abandonou, pura e simplesmente, toda a zona do Catoca! Os guerrilheiros fugiram para o Mufuque, que era a base principal do movimento na região do Mil e Vinte (assim chamada por nela haver três montes com a mesma altitude de 1020 metros), e deixaram entregue à sua sorte a população nos acampamentos que tinham controlado na zona do Catoca.

 
Foto nº 2 (acima; em formato 
reduzido, à direita) Fotografia feita pelo furriel Luis Macedo na zona do Catoca


Em Zemba, ninguém se tinha dado ainda conta do das verdadeiras consequências da operação, com o abandono do Catoca por parte da UPA/FNLA, até ao momento em que chegou um SITREP, que era um relatório semanal distribuído pelos batalhões dando conta da evolução da guerra em Angola. 

Neste relatório em concreto, o batalhão de Vista Alegre dava conta da apresentação, naquela localidade, de numerosos elementos da população e, até, de guerrilheiros armados, oriundos da zona do Catoca. O batalhão de Vista Alegre congratulava-se vivamente com o facto, que atribuía à ação psicológica por si mesmo desenvolvida.

O comandante do nosso batalhão, assim que leu o SITREP em questão, foi a correr ao posto de rádio, para comunicar ao brigadeiro de Santa Eulália que as apresentações registadas em Vista Alegre não se deviam a ação psicológica nenhuma, mas sim à ação militar empreendida pelo Batalhão de Caçadores 3880, que conquistou o Catoca. O brigadeiro respondeu-lhe, do outro lado, que já sabia,
porque também se estavam a verificar apresentações em Santa Eulália de pessoas vindas do Catoca. O brigadeiro aproveitou a oportunidade para dar os parabéns ao tenente-coronel pelo êxito militar.

As apresentações de pessoas vindas do Catoca só se verificaram em Vista Alegre e Santa Eulália. Significativamente, ninguém se apresentou no Mucondo. Absolutamente ninguém. Quando o brigadeiro perguntou aos que se apresentaram em Santa Eulália porque motivo percorreram tantos quilómetros até lá chegarem, em vez de se apresentarem no Mucondo, que ficava muito mais perto do Catoca, recebeu a seguinte resposta:

— A tropa do Mucondo mata.

É claro que não era a Companhia de Caçadores 3537 que matava, mas sim a sua antecessora, a companhia dos "Assassinos do Mucondo", cuja fama permaneceu depois da sua saída.

De um momento para o outro, o tenente-coronel deixou de elogiar os "Assassinos do Mucondo", que tinha apresentado como exemplo a seguir, para passar acondená-los:

— Se não fossem aqueles sacanas, — dizia — teria havido apresentações no Mucondo. Esse seria mais um ponto a nosso favor.

Cerca de meio ano depois, estive em Luanda mais ou menos durante um mês. Ao longo desse tempo, dei alguns passeios pela região envolvente à capital angolana.

Num desses passeios fui até à barragem das Mabubas. Para meu espanto, encontrei aquartelada nas Mabubas, junto à barragem, a companhia dos "Assassinos do Mucondo"! Reconheci logo o capitão, que aliás era do quadro permanente. Não falei com ninguém da companhia. Falei apenas com o médico militar que lá se encontrava e que eu conhecia de vista do Porto.

O médico falou longamente de uma epidemia de cólera que se iniciou muito perto dali, na Barra do Dande, e que já se estava a espalhar por Angola inteira, tendo já causado dezenas de mortos. Ele estava indignadíssimo com o comportamento das autoridades sanitárias coloniais, as quais, em vez de tomarem medidas para combater a epidemia, tudo fizeram para escondê-la, «para que o inimigo não saiba e não a aproveite para fazer propaganda». Resultado: a doença espalhou-se para lá do que era possível esconder e O MUNDO INTEIRO, e não só o "inimigo", ficou a saber que havia uma epidemia de cólera em Angola!

A certa altura da conversa, e sem que eu lhe fizesse qualquer pergunta a respeito da companhia que estava colocada lá nas Mabubas, o médico começou a falar dela, comentando que nem parecia uma companhia veterana, já em fim de comissão.

Acrescentou, por sua própria iniciativa, que os militares da companhia se chamavam a si mesmos "Assassinos do Mucondo". O médico nunca tinha estado no Mucondo, mas sabia que aquela companhia era dos "Assassinos do Mucondo"!

— Se eles foram ou não assassinos lá no Mucondo, não sei, mas que se chamam a si próprios assassinos, chamam, e eu acredito que tenham sido, — disse o médico — porque são uma tropa muito fraca.

A corroborar a falta de qualidades militares da companhia, o médico passou a relatar um episódio passado algum tempo atrás, lá mesmo nas Mabubas:

— Certa noite, um soldado sentiu necessidade de defecar. Ou porque estava aflito com diarreia ou por outro motivo qualquer, em vez de se dirigir aos sanitários, resolveu fazer o "serviço" no meio do capim, no escuro, do lado de fora do quartel.

Passou para o exterior do arame farpado e, a uma certa distância do quartel, começou a "arriar o calhau". Um sentinela viu um vulto na escuridão e começou a disparar sobre ele. O pobre soldado, vendo-se alvejado, pôs-se a gritar para não dispararem, porque era ele, Fulano, que estava ali. Mas quanto mais ele gritava, mais
o sentinela disparava. De um momento para o outro, toda a companhia desatou a disparar para todos os lados, numa barulheira infernal! 


Era suposto esta companhia ser constituída por veteranos, que já tinham feito uma guerra no Mucondo, e não por "maçaricos" cheios de medo, acabados de chegar do "Puto". Pois foi como "maçaricos" que estes veteranos se comportaram. 

No fim, quando o tiroteio acabou, o soldado que tinha estado na origem desta confusão saiu do capim, branco como a cal da parede, mas incólume. Gastaram-se muitas centenas ou mesmo milhares de
munições em poucos minutos e nem uma só acertou no homem… Felizmente! 

Uma semana depois, dizia-se em Luanda que as Mabubas tinham sido atacadas!

Como se vê, os indícios de que a companhia aut
odenominada "Assassinos do Mucondo" cometeu crimes de guerra,  foram-se acumulando no meu espírito à medida que o tempo passava. Só o facto de os militares dessa companhia terem escolhido chamar-se "assassinos" é, só por si, muito preocupante. 

A palavra "assassino" tem uma carga negativa fortíssima. Ninguém gosta de ser chamado "assassino". No entanto, foi este nome, e não outro, que eles escolheram para si próprios. Era deste nome que eles se orgulhavam, como eu próprio testemunhei. Por algum motivo o terão feito. Mesmo que tenham provocado uma só morte de um inocente, esta morte já é de mais. 

É verdade que eu não tenho provas concretas, factuais, de que algum crime tenha sido cometido por elementos dessa companhia. Tenho apenas as suspeitas que acabo de expor, mais o que passo a expor a seguir.

Muito recentemente, soube através da internet,  que um antigo militar que tinha estado no Mucondo tinha publicado um livro. Fiquei cheio de curiosidade. O antigo militar em causa chama-se Rogério Pires de Carvalho, foi furriel miliciano e o seu livro tem como título "Alenterra". Um título destes pode sugerir tudo menos a guerra colonial ou a tropa em geral, mas enfm, quer tenha sido bem ou mal escolhido, foi este o título que o autor deu ao livro. Encomendei um exemplar, recebi-o e li-o.

Pouco tempo depois, descobri que este antigo militar tinha pertencido à companhia dos "Assassinos do Mucondo". Voltei a pegar no livro e reli-o, agora sob uma nova perspetiva. Tudo se encaixou.

O livro "Alenterra", de Rogério Pires de Carvalho, é uma pequena obra autobiográfca de 91 páginas, que aborda, sobretudo, a experiência militar do seu autor. 

É um livro muito bem escrito, que revela um escritor de primeira água. Embora seja autobiográfco, o livro é tudo menos monótono e linear, graças aos numerosos saltos no tempo que contém, para a frente e para trás, que são dados sem aviso. Por isso, este livro exige do leitor um certo cuidado, para não se perder relativamente à época a que o autor se refere a cada momento.

Eu não vou fazer aqui um resumo do livro. Vou apenas respigar uma ou outra passagem que possa esclarecer o pensamento e, sobretudo, a ação do autor, assim como da companhia a que pertenceu. Comecemos então.


(...) «Há coisas que nem nos segredos se devem aflorar. Coisas de nada, mas também outras coisas, densas, plúmbeas, excessivas. Como o remorso, o reverso do acto irreversível.

«Ou a dor, que mesmo descrita, não passa de retórica aos ouvidos dos outros. Sente-se na carne, nos ossos, na pele, nas unhas, mas dela nada se pode dizer, porque ela existe para ser sentida nas entranhas. A palavra não a redime, nem a dissolve.» (Rogério Pires de Carvalho, "
Alenterra"!, 2010, Prólogo, pág. 13)

(...) «Como o soldado que se vangloriava de... olhe, não sei se lhe conte, porque não são coisas fáceis de escutar. Histórias de gente que se mata à bala e à faca, gente que sangra outra gente, é sempre gente sofredora. Gente é gente, desde que nasce até que morre, e gente que se mata mal acaba de nascer também é gente, ou poderia tê-lo sido. E é dessas histórias que me recuso a contar-lhe, porque tenho vergonha. Apesar deste tempo todo, ainda tenho vergonha, do que fiz e do que não fiz, do que vi fazer e do que ouvi contar. E por isso não lhe conto, porque não precisa de sofrer o que os outros já sofreram. Ponto final.» (Ibid., pág. 43)

(...) «Aqui e além, disfarçadas na vegetação que começava a revelar-se mais densa, vislumbrámos as primeiras cubatas feitas de paus e palha grossa. Alguns vultos andrajosos voltavam na nossa direção o inexpressivo rosto da hostilidade. Bastava aquele aparente alheamento em relação à nossa presença, para percebermos que não éramos bem-vindos. Nós éramos homens de guerra e era a guerra que carregávamos connosco, embora restasse em nós alguma reserva de inocência. A inocência dos que ainda não tinham trilhado os caminhos da infâmia.» (Ibid., pág. 56)

(...) «O sofrimento cicatriza as emoções. Cobre-as com uma casca rija, casca grossa onde a crueldade se instala. A guerra promove esta neurose, alimenta-se dela, porque só sobrevivem os mais coriáceos. É preciso pôr a humanidade de lado para fazer nascer a verdadeira natureza humana: feroz, assassina e impiedosa. O homem finalmente despido de todas as roupas civilizadas e morais, deixando à solta a sua natureza instintiva e primária, é isto que a guerra autoriza.» (Ibid., pág. 85)

(...) «Ao fim de quatro dias de combates, fomos recolhidos pelos helicópteros, e tivemos a recepção que só é concedida aos heróis. Mas todos estávamos vazios, ocos por dentro, como um saco roto. Não havia nada em nós, nem emoções, nem sentimentos, nem um traço de humanidade. Nada. Um deserto interior feito de apatia e desinteresse por tudo e por todos.

«De uma vez por todas, tinha conseguido atingir o objectivo supremo: já não ia sofrer mais com os males dos outros ou com os meus próprios, porque uma parte de mim tinha deixado de existir. A batalha deixara sobreviver uma legião de fantasmas, articulados por
fora como bonecos, mas mortos por dentro.

«No sítio da alma havia um buraco negro.» (Ibid., pág. 87)

Como se vê, ele emprega palavras como «remorso», «infâmia», «vergonha», «crueldade», etc. Todas estas palavras apontam no mesmo sentido, o da confirmação de que existiram atos que foram, no mínimo, reprováveis e de que há um arrependimento por parte do autor do livro. Existe, contudo, uma passagem, em que ele talvez procure uma desculpabilização e que eu não posso deixar passar em claro.

Nesta outra passagem, o autor ofende quem agiu de modo diferente. A passagem é a que se segue:

(...) «E aquele ser sem eira nem beira lá ia de camarada com os restantes, todos feitos da mesma massa, todos ruminando pensares que iam e vinham, desatinados. Sôfregos de atenção, sôfregos de estima, que quem ali ia não ia para ser estimado, mas para ser odiado. E temido, claro, temido como só os bravos o sabem ser. Os bravos ou os cruéis, ou ambos, porque ambos são a mesma coisa.» (Ibid., pág. 61)

É inacreditável esta frase: «Os bravos ou os cruéis, ou ambos, porque ambos são a mesma coisa.» Esta frase é um insulto aos meus maravilhosos camaradas de armas que, apesar de todos os perigos e de todas as provações por que passaram (que em nada ficaram a dever às que foram vividas pelo autor do livro), se comportaram SEMPRE como valentes seres humanos, abnegados e generosos, mesmo nas circunstâncias mais extremas. 


Ao contrário do que Rogério Pires de Carvalho afrma, os bravos não são cruéis e os cruéis não são bravos. DE MANEIRA NENHUMA! Agora sou eu que digo: «Ponto final».







Capa do livro Alenterra, de Rogério Pires de Carvalho, "Alenterra", edições Alfarroba, 2010, 96 pp.


Excerto de notícia do jornal 'on line' TInta Fresca, sobre o lançamento do livro, em Torres Novas, em 24/5/2012:

(...) O autor, nascido em Zibreira [, Torres Novas,]  nos idos de 1948 e residente em Castelo Branco, é professor, licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em literatura e cultura portuguesa pela Universidade Nova. Trabalhou na Segurança Social e foi arqueólogo no IPPAR. Alenterra constitui-se como um romance autobiográfico, centrado na Guerra Colonial, onde o trauma e a culpa definem as coordenadas da narrativa. (...)

Mais dados biobliográficos sobre o autor:

(...) encontra­‑se aposentado do ensino secundário. Entre os anos de 1969 e 1973 cumpriu o serviço militar obrigatório, tendo sido mobilizado para a região dos Dembos, em Angola.

Publicou:

- As três guerras do Mucondo (2001), Roma Editora; 

- Os funerais de dona Soledade; (2003), Roma Editora; 
- Alenterra (2010), Alfarroba Editora; 
- Histórias Parvas (2013), Fonte da Palavra Editora. (...)


quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20196: Dando a mão à palmatória (32): O texto sobre os "Alentejanos de pele escura" é do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, é de 2008 e tem sido sistematicamente "pirateado" na Internet... O interesse pelo tema surgiu quando o autor conheceu, em Mafra, na EPI, no COM, um soldado-cadete que era um "mulato de Alcácer" e que, na recruta, foi vítima de "bullying" racista...


Alcácer do Sal > 28 de janeiro de 2018 > A frente ribeirinha, ao pôr do sol, vista da moderna ponte pedonal que faz a "cambança" do rio Sado...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do Fernando de Sousa Ribeiro:

Luís, o texto intitulado "Alentejanos de pele escura" é meu! Fui eu que o escrevi! Juro que fui eu! O texto é meu, desde as quadras populares (exclusive, claro) até ao fim. [. Ou seja, excluimdo os três primeiros parágrafos.]

O que o blogue "Comporta - Opina" fez foi transcrever ipsis verbis o conteúdo de um post publicado em 2009 num fórum neonazi (!!!), chamado Stormfront, por um membro do dito fórum que usa o nick "Looking for a fight", que talvez seja um antirracista infiltrado no fórum. O poste está neste endereço: https://www.stormfront.org/forum/t592627/.

O membro do fórum "Looking for a fight" indicou os endereços de onde retirou os textos que transcreveu, mas o blog "Comporta - Opina" omitiu-os.

O texto "Alentejanos de pele escura" foi publicado pela primeira vez em 2008 no blogue "Da Kappo" (escrito propositadamente com K), da angolana Paula Santana, que é economista, vive em Londres e usa o nick Koluki. 

Um dia, Koluki convidou-me a escrever um poste destinado  a ser publicado no seu blogue, sobre um tema que eu muito bem entendesse. Como Koluki é negra, lembrei-me de falar sobre os negros que deram origem aos "mulatos de Alcácer".

"Como é que um gajo do Porto se atreveu a escrever sobre pessoas de Alcácer do Sal?", poderás perguntar. Por incrível que pareça, tudo começou na tropa!

Em Mafra, numa das casernas destinadas aos cadetes do 1.º ciclo do COM [, Curso de Oficiais Milicianos], eu partilhei um beliche com um "mulato de Alcácer". Ele dormia na cama de cima e eu na de baixo. 

Não consigo lembrar-me do nome dele, por mais que me esforce. Do que eu me lembro (bem demais) é do seu aspeto nitidamente mestiço, da sua inconfundível pronúncia alentejana, assim como do racismo de que ele era vítima por parte de alguns outros cadetes instalados na caserna. Este "mulato" era troçado e gozado por eles de todas as formas e feitios, naquilo que agora se chama "bullying". 

Como eu não o gozava, e além disso partilhava o beliche com ele, esse "mulato" deu-se bem comigo e contou-me as suas origens e a razão de ser do seu aspeto físico. Ele foi um excelente companheiro, que sofria muitíssimo com as manifestações de racismo de que era alvo, apesar de ser um português da Metrópole como os restantes cadetes.

Mais tarde, no meu pelotão em Angola, houve um soldado que era de Grândola, chamado Nunes. De vez em quando, este soldado fazia referências aos "mulatos de Alcácer", nas conversas que tinha comigo e com o resto do pelotão.

Depois de ter passado à disponibilidade e ao longo dos anos que se seguiram, continuei a ter uma certa curiosidade pelos "mulatos de Alcácer". Fui a Alcácer do Sal várias vezes, assim como a Grândola e ao Torrão, além de ter percorrido a Ribeira do Sado. Fui, nomeadamente, a S. Romão, que é, aliás, uma aldeia muito pequena.

Quando a angolana Koluki me convidou a escrever um artigo para o seu blog, fui à Biblioteca Pública Municipal do Porto consultar a bibliografia que lá existisse sobre os "mulatos de Alcácer" (escassíssima, para minha grande surpresa), no sentido de refrescar a memória e completar a informação que eu próprio tinha sobre o tema. 

Finalmente escrevi o pequeno texto que a blogger Koluki publicou em 2008 e eu próprio reproduzi no meu blog pessoal em 2012.

A concluir, lembro-me de uma canção que foi um grande êxito há uns quantos anos, chamada As Meninas da Ribeira do Sado. Em parte nenhuma da canção é referida a cor da pele das ditas meninas, e por isso toda a gente pensa que elas são tão brancas como as outras alentejanas. Mesmo assim, pergunto-me se não haverá algum racismo nesta canção, que troça das meninas da Ribeira do Sado, assim como foi troçado o cadete de Alcácer do Sal com quem partilhei o meu beliche em Mafra.

Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano, CCAÇ 3535 do BCAÇ 3880, Angola 1972-74

2. Comentário do editor Luís Graça:

Fernando, o seu a seu dono... Eu tinha visto o teu texto, "Alentejanos de pele escura", no blogue A Matéria do Tempo", de Fernando Ribeiro [ 18 de abril de 2012 > Alentejanos de pele escura],  nome que só agora relaciono com a tua pessoa...

Fernando Ribeiro, engenheiro, do Porto, só podias ser tu... Pelo nome, e sobretudo  pelos conteúdos... Aliás, o blogue já era meu conhecido e seguido por mim, ocasionalmente... Reparo agora, com mais atenção, que já existe desde dezembro de 2005, e tem entre os seus "companheiros de jornada" o nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné.). Obrigado, e sobretudo parabéns,  o teu é um blogue de grande qualidade, temática e literária...   Por que é que nunca me falaste dele antes ?

Mas vi que este teu  texto, com maiores ou menores acrescentos (e sobretudo imagens) estava "espalhado" pela Net, desde 2010 a 2019... Tendo tido dúvidas sobre a fonte original, e sobretudo o autor, acabei por "encalhar" no blogue "Comporta-Opina", para mais tinha umas belas gravuras que me convinha reproduzir. Enfim, devia ter apurado a minha pesquisa...

O poste da "Comporta-Opina" é de 2010, mas afinal de contas o texto original é teu, e é mais antigo, é de 2008: como dizes, foi publicado pela primeira vez em 2008, sob pseudónimo ("Denudado", o teu "nickname"), no blogue "Da Kappo", da angolana Paula Santana ("Koluki"). E eu confirmo, acabei por descobrir aqui o link, que reproduzo:https://koluki.blogspot.com/2008/07/be-my-guest-ii-denudado.html.

O lapso foi involuntário, mas aqui fica o meu/nosso  pedido de desculpa... Nestes casos, costumo/costumamos dar a mão à palmatória. (**)

Deixa-me acrescentar que lamento a "praga" do plágio e de outras práticas desonestas,  de violação da propriedade intelectual... O mínimo que temos que é é dar o seu a seu dono, citado as fontes...  Enquanto professor na Escola Nacional de Saúde Pública, apanhei para aí uma dúzia de casos de "pirataria" em trabalhos académicos (em cursos de pós-graduação, mestrado e até doutoramento)... Nunca humilhei ninguém por isso, tinha sempre uma "conversa particular" com o/a prevaricador/a, e dava-lhe uma segunda oportunidade para refazer o trabalho... 

A nota final, naturalmente, ressentia-se. Mas cheguei a dar zero a um grupo de médicos estrangeiros que copiaram um trabalho uns pelos outros... Uma coisa "tosca", "grosseira"... Nos outros casos, havia sempre uma história pelo meio: gente com dificuldades (, a começar pelos estrangeiros que são admitidos em Portugal como médicos e não dominam o português escrito e falado), mas também de alunos, mães e pais, profissionais de saúde, para mais, que tinham dificuldade em lidar com o stress conjugado da vida académica, familiar e profissional...

"Copiar" é sempre mais fácil do que  "criar", mas é um "crime" que acaba por dar nas vistas, mais tarde ou mais cedo, e por não compensar... Eu costumava avisar os meus alunos, logo de início: "A cometerem um crime, que seja um crime perfeito"...

Obviamente, há aqui problemas éticos e deontológicos graves, mas também disciplinares e legais... A Academia só há pouco anos começou a levar estes casos a sério... Mas fico-me por aqui... LG
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terça-feira, 1 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20194: Blogues da nossa blogosfera (111): os alentejanos de pele escura: "Ribeira do Sado, / Ó Sado, Sadeta, / Meus olhos não viram / Tanta gente preta." (Blogue Comporta - Opina, 2/1/2010)





Imagens, sem data, documentando a presença de descendentes de escravos negros na lezíria e ribeira do Sado



Fonte: Blogue Comporta-Opina (2010), com a devida vénia..



1. Com a devina vénia, transcreve-se do blogue Comporta-Opina, este texto interessante sobre a colonização do vale do Sado por escravos oriundos da Senegâmbia, já provavelmente a partir do séc. XVI (*).




Comporta-OPinia > 2 de janeiro de 2010 > 




Durante séculos a Lezíria e Ribeira do Sado foram um território desabitado, com fama de insalubridade, rodeado de charnecas e gândaras. Apenas a exploração das salinas implicava a deslocação de trabalhadores temporários, funcionando o rio como via de comunicação e escoamento de diversos produtos regionais e locais, de onde avultava o sal, produto que, pelo menos desde o século XVI a meados do século XX, constituiu a principal actividade económica das regiões ribeirinhas entre Alcácer e Setúbal.


O paludismo, localmente conhecido por febre terçã ou sezões, era um mal endémico, correndo ainda hoje a versão que a pouca população existente em períodos anteriores ao século XX era constituída por africanos - supostamente imunes à doença - aí fixados pela Coroa como forma de assegurar alguma agricultura.


Lenda ou não, o certo é que Leite de Vasconcelos na sua monumental "Etnologia Portuguesa", refere e descreve os chamados pretos de Alcácer ou mulatos da Ribeira do Sado, correspondentes a habitantes desta região que apresentavam nítidos traços africanos.


Alentejanos de pele escura

Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta,
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.

Quem quiser ver moças
Da cor do carvão,
Vá dar um passeio
Até São Romão
.

(do cancioneiro popular de Alcácer do Sal,
Alentejo, sul de Portugal)
Ribeira do Sado é o nome de uma região que se estende ao longo do vale do Rio Sado, no sul de Portugal, a partir de Alcácer do Sal e para montante, não longe de Grândola, a Vila Morena. São Romão do Sado é uma das aldeias existentes na referida região.

Quem agora for passear pela Ribeira do Sado, já não verá gente verdadeiramente preta diante dos seus olhos, nem encontrará moças da cor do carvão propriamente dito na aldeia de São Romão. A mestiçagem já se consumou por completo. Mas são por demais evidentes os traços fisionómicos observáveis em muitos dos habitantes da região, assim como a cor mais escura da sua pele, que nos remetem imediatamente para a África a Sul do Sahara.

Nem sequer é preciso percorrer a Ribeira do Sado. Se nos limitarmos a dar uma ou duas voltas pelas ruas de Alcácer do Sal, por certo nos cruzaremos com uma ou mais pessoas que apresentam as características físicas referidas. São os chamados mulatos de Alcácer, por vezes também designados carapinhas do Sado. O seu aspecto é semelhante ao de muitos cabo-verdianos, mas eles não têm quaisquer laços com as ilhas crioulas. São filhos de portugueses, netos de portugueses, bisnetos de portugueses e assim sucessivamente, ao longo de muitas gerações. Quando falam, fazem-no com a característica pronúncia local. São alentejanos.

É frequente atribuir-se ao Marquês de Pombal a iniciativa de promover a fixação de populações negras no vale do Rio Sado. Mas não é verdade. Existem registos paroquiais e do Santo Ofício que referem a existência de uma elevada percentagem de negros e de mestiços em épocas muito anteriores a Pombal. Segundo tais registos, já no séc. XVI havia pessoas de cor negra vivendo nas terras de Alcácer.


O vale do Rio Sado, no troço indicado, é um vale alagadiço onde hoje se cultiva arroz. Até há menos de cem anos, havia muitos casos de paludismo nesse troço. A mortalidade causada pelas febres palustres fazia com que as pessoas evitassem fixar-se naquela região.


No séc. XVI, muitos portugueses embarcavam nas naus, o que agravava ainda mais o défice demográfico existente. Terá sido esta a razão por que, naquela época, os proprietários das férteis terras banhadas pelo Sado terão resolvido povoá-las com negros, comprados nos mercados de escravos. Os mulatos do Sado dos nossos dias são, portanto, descendentes desses antigos escravos negros. (**)


[Nota, a posteriori: a autoria deste texto, não das imagens, deve ser atribuído ao nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, que o publicou aqui, originalmente, sob pseudónimo ("DEnudadp"), no blogue "Da Kappo", da angolana Paula Santana ("Koluki"). 

Link: https://koluki.blogspot.com/2008/07/be-my-guest-ii-denudado.html ]

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Notas do editor:

(*) Últino poste da série > 7 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19756: Blogues da nossa blogosfera (110): O livro "Imagens e Quadras Soltas", de JERO e Manuel Maia, no Blogue da Tabanca do Centro (José Eduardo Reis Oliveira)

(**) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 63/74 – P20192: Agenda cultural (703): Livro do nosso camarada ranger António Chaínho "A escrava Domingas". (José Saúde)

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20182: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte V: O que nos fizeram foi criminoso (pp. 43-48)


"De tudo quanto vejo me acrescento", Fernando de Sousa Ribeiro dixit, 
citando a grande poetisa do Porto (e de Portugal) Sophia de Mello Breyner Andresen, 
cujo centenário se celebra este ano.


Foto (e legenda) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;
(v) vive no Porto, mas também tem boas recordações de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vi) tem página no Facebook;

(vii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974; esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(viii) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo;  as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(ix) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia 
(Episódios do Meu Serviço Militar)

por Fernando de Sousa Ribeiro




O QUE NOS FIZERAM FOI CRIMINOSO (pp. 43-48)(*)


Que finalmente seja reconhecido o extraordinário valor dos operacionais do nosso batalhão, cujas vidas estiveram nas mãos de gente, no mínimo, sem escrúpulos... Depois de tudo o que suportou, o Batalhão de Caçadores 3880 mostrou ser o melhor do mundo. Mostrou mesmo.

Em Santa Margarida, onde estivemos durante cerca de dois meses antes de partirmos para Angola, não tivemos Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO). Diziam-nos os nossos superiores hierárquicos que só iríamos ter IAO em Angola, quando o batalhão ficasse completo com a integração dos angolanos que iriam constituir o chamado Grupo de Mesclagem. 


Por isso, o que o nosso pessoal teve em Santa Margarida foi uma instrução meio a sério e meio a brincar, apenas para ir mantendo a malta ocupada e minimamente ativa até ao dia da partida para Angola. Enquanto isso, o Batalhão de Caçadores 3885, que também se encontrava em Santa Margarida e estava mobilizado para Moçambique, passou o tempo todo em IAO, numa atividade frenética que contrastava de forma chocante com a semi-indolência do nosso. 

Se eu próprio não tivesse tomado a iniciativa, que foi exclusivamente minha e de mais ninguém, de dar uma instrução intensiva aos meus próprios subordinados em Santa Margarida, ter-me-ia visto em situações muito complicadas em Angola. Ninguém, em todo o comando do nosso batalhão, parecia estar minimamente preocupado com a nossa preparação para a guerra.

Em Angola também acabamos por não ter IAO nenhuma. À nossa chegada disseram-nos que ela iria acontecer no Úcua, que era onde os cursos de Comandos costumavam fazer as semanas de campo, mas isso não aconteceu. Não houve IAO no Úcua, nem houve em lado nenhum. Partimos do Grafanil diretamente para a guerra, sem qualquer IAO que se visse.

Aos nossos magníficos companheiros angolanos ainda fizeram pior do que a nós. Mal aqueles nossos camaradas acabaram a especialidade, em Sá da Bandeira, foram levados diretamente para o Grafanil, para se nos juntarem e irem para a guerra connosco. Em janeiro de 1972, eles tinham começado a recruta; cinco meses depois já estavam na guerra! Tal como aconteceu connosco, também eles não receberam nenhuma instrução que se parecesse com uma IAO. Fomos todos para a guerra com uma preparação de merda, brancos, negros e mestiços. Poucas unidades terão partido para a guerra tão mal preparadas como o nosso batalhão.

Se o que se passou até então foi de uma imperdoável gravidade (e foi), o que dizer do que nos fizeram a seguir? 

O que nos fizeram a seguir foi simplesmente isto: durante os primeiros seis meses de comissão, obrigaram-nos a fazer a guerra completamente sozinhos. Exatamente, sozinhos, como se não houvesse mais tropas ou apoios em todo o território de Angola! Não, não estou a exagerar nem um bocadinho. Desde junho de 1972 até janeiro de 1973, as companhias operacionais do nosso batalhão foram as únicas (!) forças militares que combateram nas zonas de Zemba, Cambamba e Mucondo. 

Repito, para que não restem dúvidas. Ao longo dos nossos primeiros seis meses de comissão, nenhuma outra força atuou na área do nosso batalhão, além das companhias operacionais do próprio batalhão. Não houve qualquer intervenção de Comandos, nem de Paraquedistas, nem de companhias de intervenção, nem de TE, nem de GE, nem de "Flechas", nem de Artilharia, nem de Aviação, nem de nada! Nada de nada!

Estivemos completamente sozinhos (!) frente aos guerrilheiros da FNLA e do MPLA, que eram mais numerosos do que nós e atuavam num terreno que nós não conhecíamos e que era de uma extrema dificuldade. Durante esses primeiros seis meses, só a Força Aérea é que deu sinais de vida, e foi só para evacuar os nossos infelizes companheiros feridos! 

Acho que até hoje ainda ninguém chamou a atenção devida para a gravíssima situação em que nós nos encontramos durante esse tempo e nesse lugar, situação ocorrida precisamente numa ocasião em qua ainda éramos inexperientes e, ainda por cima, estávamos mal e porcamente preparados. Numa altura em que, mais do que nunca, deveríamos ter recebido apoio, não tivemos apoio absolutamente nenhum, fosse de quem fosse, fosse de que forma fosse. O que nos fizeram foi criminoso.

Foi ainda mais criminoso porque foi deliberado. Sim, esta solidão forçada a que estivemos sujeitos durante os primeiros seis meses de comissão foi propositada, por vontade do próprio comandante do nosso batalhão, o então tenente-coronel Azevedo. 


Foi lá mesmo, em Zemba, que eu tive conhecimento desta vontade do comandante. Ouvi-a revelada por um alferes da CCS, já não me lembro de qual. Talvez tenha sido o Sousa. Ou então foi o Rico. Enfim, não importa saber qual foi. O que importa é que o comandante conseguiu convencer o brigadeiro de Santa Eulália a não enviar tropas de intervenção ou quaisquer outras forças para o subsetor de Zemba. E, pelos vistos, o brigadeiro era um banana e satisfez a vontade ao ten cor Azevedo.

Inacreditável! E porque é que o Azevedo não queria que forças estranhas ao batalhão atuassem no subsetor? Porque queria ser ele a ficar com os louros e mais ninguém. Todos os êxitos militares que acontecessem no subsetor seriam da exclusiva responsabilidade do batalhão; logo, dele mesmo, como comandante do batalhão que era. [ O 
comandante do Batalhão de Caçadores 3880 foi promovido a coronel quando ainda só tinha passado um ano de comissão, mas manteve-se no comando do batalhão até ao fim.]

Se o comandante e o segundo comandante do batalhão, tenente-coronel Azevedo e major Lacerda, fossem bons comandantes, teriam pelo menos tentado apoiar-nos e animar-nos. Mas não só não fizeram nada disso, como fizeram precisamente o contrário. O comandante, sobretudo, não fazia outra coisa que não fosse ofender-nos e insultar-nos, chamando-nos coirões, sacanas e, nas nossas costas, outros nomes menos reproduzíveis, aqui, em público. Salvo uma única e solitária vez, nunca ele reconheceu o nosso esforço e o nosso sacrifício. Para ele, fizéssemos o que fizéssemos ou deixássemos de fazer, éramos sempre uns sacanas de uns coirões!

O major não nos insultava, é verdade que não, mas não só nunca manifestou o mais pequeno reconhecimento pelo esforço sobre-humano que estávamos a empreender, como fez ainda pior: não contente com os feridos que a minha companhia tinha sofrido, exigiu que sofresse ainda mais baixas!!! Ainda mais! 

Por mais inacreditável que isto possa parecer, aconteceu mesmo! Juro! Ele não exigiu que causássemos mais baixas ao inimigo, como seria de esperar que um militar fizesse. O homem exigiu que fôssemos nós a sofrê-las!!! Juro que ele o fez! Juro mesmo! 

Custa a acreditar? Eu sei que custa, mas é absolutamente verdadeiro! Ele disse-me pessoalmente, em duas ocasiões distintas, no meio da parada de Zemba, o seguinte, textualmente, tal e qual: «Exijo que vocês sofram mais baixas. Não se ganham guerras sem sofrer mortos e feridos. Por isso exijo que vocês sofram mais baixas». E repetiu, martelando as sílabas: « E... XI... J O !». Tais palavras ficaram gravadas a ferro em brasa na minha memória.Os guerrilheiros que nos combatiam eram chamados terroristas. Com razão ou sem ela, a verdade é que os guerrilheiros lutavam por uma causa e estavam dispostos a matar-nos por ela. O comandante e o major, por outro lado, não lutavam nem defendiam causa nenhuma, mas estavam dispostos a matar-nos para receber louvores, medalhas e promoções. Queriam mostrar ao mundo uma elevada estatística de mortos e de feridos sofridos pelo batalhão, à semelhança de um velho leão que exibe as suas cicatrizes como testemunho de lutas e de vitórias passadas. A diferença em relação ao leão é que, enquanto os leões lutam, o comandante e o major não queriam lutar e não lutaram, nem quando tiveram a obrigação de o fazer.

Queriam que fôssemos NÓS a lutar e a morrer, para que eles pudessem exibir as "cicatrizes" e receber os louros por elas. Os verdadeiros terroristas não estavam na mata; estavam dentro do quartel de Zemba.

Em janeiro de 1973, deu-se uma reviravolta na guerra do nosso batalhão. O brigadeiro de Santa Eulália (um tal Rebelo de Andrade, que veio transferido do setor do Cuanza Norte) resolveu criar um comando operacional só para combater o MPLA.

Foi chamado COP1 (Comando Operacional nº 1) e nele foram integrados o batalhão de Quicabo e as companhias de Santa Eulália e do Mucondo. Ficando com a companhia 3537, do Mucondo, fora da sua alçada operacional, o nosso batalhão passou apenas a poder contar com a 3535 e a 3536. 

Além disso, as regiões da FNLA que tinham sido da responsabilidade da companhia do Mucondo (concretamente as regiões do Catoca e do Mufuque) passaram também para a 3535 e a 3536. Como a partir de então só podia contar com duas companhias, o tenente-coronel não teve outro remédio senão aceitar a intervenção de forças estranhas ao batalhão no subsetor. 

Foi então que vieram os Paraquedistas, vieram os "Flechas", veio a Artilharia, vieram os aviões e vieram os helicópteros. Finalmente! Foi o fim do nosso isolamento operacional. Deixamos de estar sozinhos e submetidos apenas ao terrorismo psicológico do Azevedo e do Lacerda.

As operações a nível de batalhão deviam ser comandadas pelo comandante ou pelo segundo comandante do batalhão, como é evidente. Não era por acaso que elas eram chamadas «a nível de batalhão». No entanto, no Batalhão de Caçadores 3880 tais operações nunca foram comandadas por nenhum dos dois. Nem uma só! O tenente-coronel ou o major atribuíam a responsabilidade pelo comando de uma tal operação a um capitão ou a um alferes (chegaram a atribuí-lo a mim mesmo) e
ficavam refastelados à espera dos resultados, bebendo whisky, o major,  e insultando-nos pelas costas, o tenente-coronel. 

Como é evidente, nenhum capitão nem nenhum alferes, com pouco mais de vinte anos de idade e ainda por cima miliciano, tinha conhecimentos ou preparação suficientes para poder comandar cem e mais homens num teatro de guerra! Comandaram como souberam e puderam, só Deus sabe em que condições. 

Em contraste, as operações a nível de batalhão que eram feitas no subsetor de Quitexe, pelo Batalhão de Caçadores 3879 (vizinho do nosso na geografia e na numeração), eram efetivamente comandadas pelo próprio comandante do batalhão em pessoa, e assim é que devia ser. 

No nosso caso, depois de terminada uma operação a nível de batalhão, o tenente-coronel ou o major exigiam ao alferes ou ao capitão, que a tivesse comandado, que escrevesse um relatório sobre a mesma. Este era um relatório sem qualquer valor, que se destinava apenas a servir de rascunho a um outro relatório, este sim oficial, a ser enviado ao brigadeiro de Santa Eulália e onde era contado um grande filme, no qual o tenente-coronel ou o major é que tinham comandado a operação!

Em ocasiões diferentes, a CCaç 3535 foi comandada pelo capitão Lamas da Silva, pelo alferes Arrifana, por mim e pelo capitão Antunes. As pessoas podem ter gostado ou não do capitão Lamas da Silva. Podem ter gostado ou não do alferes Arrifana. Podem ter gostado ou não do alferes Ribeiro. Mas se houve alguma coisa que o Lamas da Silva, o Arrifana e o Ribeiro fizeram, de meritório, foi defenderem e protegerem os militares da CCaç 3535 dos caprichos do comandante, sempre e em todas as circunstâncias. 

Com efeito, o comandante do batalhão estava decididamente apostado em fazer dos militares da 3535, e só os da 3535 (já se vai ver porquê), uns escravos às suas ordens e para todo o serviço, por mais absurdo que fosse este serviço, e muitas vezes era. 

Como se não bastasse a intensíssima atividade operacional da companhia, que esgotava até extremos inimagináveis os seus elementos, tanto do ponto de vista físico como psicológico, o comandante queria que eles fizessem todo o tipo de tarefas e de trabalhos enquanto estivessem no quartel, por mais penosos e desnecessários que fossem. 

Ao mesmo tempo, os militares da CCS mantinham-se de costas ao alto. Nem saíam para a mata, nem trabalhavam como uns desgraçados no quartel, porque o seu comandante de companhia, capitão Óscar, protegia os seus subordinados e não aceitava que o tenente-coronel interferisse nas competências que ele considerava serem suas. 

O capitão Óscar era um homem carismático, que só com a sua presença infundia respeito. Nem o próprio comandante tinha coragem para se lhe impor. Assim, como não se atrevia a impor-se ao capitão Óscar, insistia em querer impor-se a quem estivesse à frente da C. Caç. 3535.

[Foto à esquerda: Capitão Óscar Augusto de Oliveira, o carismático comandante da Companhia de Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão de Caçadores 3880]

O que aqui fica escrito pode parecer de uma violência verbal excessiva. Dir-me-ão que estou a exagerar. Não estou. Juro que não estou. Esta minha violência verbal nada é, comparada com o tratamento que recebemos da parte de quem teve os nossos destinos nas mãos durante o nosso serviço militar obrigatório.

Ora vamos lá ver se nos entendemos. Quem tivesse enveredado por uma carreira de oficial das Forças Armadas, então seguiu uma carreira para a qual a vida humana pouco ou nada valia. Isto dito assim parece uma ofensa gratuita dirigida aos oficiais do quadro permanente, mas não é. É a verdade, tirando algumas exceções (algumas delas insuspeitas), que eram muito honrosas, sem dúvida nenhuma, e às quais presto a minha homenagem mais sincera, mas eram exceções. 

De resto, sempre que acontecia algum incidente do qual resultassem baixas, por exemplo, a primeira pergunta que os oficiais do quadro permanente faziam era: «Quantos mortos? Quantos feridos?» Números. 

«Exijo que vocês sofram mais baixas», dizia-me o major Lacerda com toda a brutalidade. Números. «Quantos hectares de lavras foram destruídos?», perguntavam o tenente-coronel e o oficial de operações em Zemba, assim como o brigadeiro em Santa Eulália, que queriam provocar a fome à população civil e obrigá-la a entregar-se. Números. 

Era verdadeiramente chocante verificar até que ponto podia chegar a fria insensibilidade perante a morte e o sofrimento dos outros, mesmo dos mais inocentes, da parte destes oficiais oficiais de carreira.

Aliás, a palavra "carreira" era, sem qualquer sombra de dúvida, a palavra mais usada por eles nas suas conversas. A propósito de tudo e de nada, lá falavam eles na sua carreira militar. Nada lhes interessava a não ser a sua progressão na carreira. Em face deste seu desígnio supremo, todos os valores morais e humanos se apagavam
para eles. Mortos e feridos? Números.


(Continua)

[Fixação / revisão de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 26 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20096: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte IV: O respeito pelos homens que comandei (pp. 33-42)