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segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20460: Notas de leitura (1246): “Capim Rubro”, de José Monteiro; Chiado Books, 2018 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Não se discute o empenho didático do autor que, do princípio ao fim da sua obra de ficção nos dá apontamentos sobre a instrução na recruta e na especialidade, o que é um aerograma, onde se situa a Guiné, como eclodiu a guerrilha, as etnias existentes, o pormenor das operações, vê-se claramente que se documentou, o que é questionável é o modo como entremeia um acervo de dados consabidos no evoluir da trama.
Alude-se nesta obra de ficção a um drama vivido na região de Fulacunda, o desaparecimento, em plena atividade operacional, de um alferes e um conjunto de militares, seguramente uma das histórias mais dramáticas que se viveu naquele teatro de operações.
Mais um livro autobiográfico, certamente bem intencionado, talvez para que aqueles militares que andaram por Fulacunda e perto do Morés tenham mais um rosário de recordações ao seu dispor.

Um abraço do
Mário


Novamente, com rumo a Fulacunda e depois ao Morés

Beja Santos

“Capim Rubro”, de José Monteiro, Chiado Books, 2018, apresenta-se como uma obra de ficção, tem como palco a guerra de Guiné entre 1965 e 1967, o leitor, em dado momento, constatará existirem claras aproximações com a obra de Rui Alexandrino Ferreira “Rumo a Fulacunda”, obra a que aqui já se fez recensão.

Tudo começa com uma visita, em maio de 1968, do Furriel Silveira à aldeia de António Ribeiro, não longe de Lamego, e antes de sabermos as razões que o ali levam, retornamos ao passado, António dos Santos Ribeiro está em Estremoz, é informado que vai gozar dez dias de férias e depois apresenta-se no Regimento de Infantaria 2, onde irá formar-se o seu Batalhão. António Ribeiro é conhecido pelo 127. Segue-se a paixão assolapada entre o mancebo e a sua apaixonada, Maria do Céu. Com o sangue a ferver, ambos perdem as estribeiras num local chamado a “Pedra da Moura”, António irá para a Guiné, a Maria do Céu ficará grávida enquanto António anda por Abrantes e o Campo Militar de Santa Margarida. Estamos em 31 de julho de 1965, o Batalhão parte para a Guiné a bordo do Niassa. António vai conversar com o Capelão, o Padre Miguel Sampaio, primo direito da sua Maria do Céu, é um capelão muito original, só fala aos palavrões, talvez porque vai a caminho da sua segunda comissão na Guiné, o bispo não o quer a paroquiar, andou envolvido com uma senhora casada. Estamos em agosto de 1965, o autor entremeia a narrativa com dados da vida guineense. Vão a caminho de Santa Luzia, passaram em frente da capela mortuária em cujo interior se amontoava uma pilha de caixões a aguardar barco para Lisboa. Começa a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, um soldado dispara inadvertidamente e atinge mortalmente um companheiro. É a primeira baixa.

Na Cervejaria Bento, o Alferes Varela de Castro disserta sobre o Estatuto do Indigenato, é uma alocução em que ele diz que a guerra colonial foi resultado lógico e natural da conjugação de dois fatores: imobilismo e intransigência do Estado Novo sobre a questão colonial; incapacidade de negociação para responder aos apelos de negociação, repetidas vezes feitos pelos movimentos de libertação. O Furriel Silveira assiste a toda esta exposição e pensa que existe motivação séria para um povo reclamar a sua libertação e definir o seu destino coletivo.

Maria do Céu é maltratada pelos seus pais, é bem acolhida pelos pais de António, este embarca rumo a Fulacunda, os bens dos militares chegam praticamente deteriorados, houvera muita chuva, as malas de cartão prensado desfaziam-se, tudo quanto era papel tornou-se em pasta pegajosa. Descreve-se Fulacunda, começa a atividade operacional, em setembro ocorre a primeira incursão a uma base do PAIGC, é o batismo de fogo, destrói-se o acampamento. Em outubro, durante uma operação, sucede o impensável, o Alferes Varela de Castro desaparece com mais cinco militares, sucedem-se as tentativas de encontrar os desaparecidos à volta de Gamol, onde a tragédia ocorrera (a tal propósito, tem bastante utilidade ler a obra de Rui Alexandrino Ferreira, é um documento pungente em que se procura recriar o drama daqueles homens perdidos dentro da mata e perseguidos pelas forças do PAIGC). Para substituir o malogrado Varela de Castro chegou o Alferes Miliciano Rodrigo, inicialmente recebido de forma fria, quase hostil. Rodrigo ir-se-á impondo, definiu uma estratégia de aproximação, irá ganhar a confiança de todos. Continuam as operações, apreende-se armamento, as abelhas atacam, há mortos e feridos.

O autor não poupa o Capitão Cordeiro, Comandante de Companhia, um manhoso que tudo faz para ser evacuado. Tivera uma ligeira fratura de costelas na queda de um cavalo, preparou a atmosfera para voltar a cair, acabou por ser evacuado para o Hospital Militar de Bissau, em Lisboa tratou da vidinha, reformou-se.
Como escreve o autor:  
“O capitão Mário dos Santos Sobral Cordeiro, no exercício das suas funções do comando no CTI, em plena zona de forte ação da guerrilha, no local em que, com a sua companhia, em plena zona de campanha, montou uma emboscada às tropas inimigas, caiu desamparadamente numa ravina, agravando, de forma irreversível, lesões anteriormente sofridas em duas costelas. E assim se livrou de Fulacunda, se livrou da Guiné e se livrou definitivamente da guerra”.

A Companhia sai de Fulacunda no início de janeiro de 1966, nova conversa entre António Ribeiro e o Padre Sampaio, o palavrão ferve. António parte para Bissorã, é a sede do seu Batalhão. Multiplicam-se as missões, por exemplo, manter a segurança à ponte de Braia, no caminho de Mansoa para Bissorã. A amizade entre o Furriel Silveira e António Ribeiro cresce com o tempo. Há as escoltas a Cutia, bom pretexto para António rever o capelão. Assim se passou o primeiro ano de guerra e inopinadamente há uma forte emboscada entre Mansoa e Bissorã, o Alferes Rodrigo é agora um verdadeiro exemplo de dedicação aos seus homens.

Nasce o filho de Maria do Céu e António, é uma menina. António está delirante, as operações prosseguem. Vamos saber tudo sobre o currículo do Padre Sampaio, de seu nome Miguel dos Santos Almeida Sampaio, e do adultério que o senhor bispo puniu. São frequentes os encontros entre António e o capelão, tudo regado a uísques no clube Os Balantas, em Mansoa. Segue-se a descrição dos quartos-de-final do campeonato mundial de futebol de 1966, entre a Coreia do Norte e Portugal e saltamos para a ponte de Uaque onde um grupo de guerrilheiros do PAIGC ataca furiosamente.
E aqui nos fica um texto, da melhor prosa que se encontra ao longo destas quinhentas páginas:
“Aparentemente não era coisa grave, apenas um pequeno orifício, onde se tinha alojado um estilhaço.
Contudo, por esse minúsculo orifício começou a perder massa encefálica, foi ficando pálido, quedou-se nos movimentos, perdeu a voz, toldou-se-lhe a vista.
Natural de uma pequena aldeia das proximidades de Aveiro, pensou na beleza do pôr-do-sol espraiando-se mansamente na ria. Como por magia, a lona da maca em que se encontrava deitado, foi-se transformando num espelho de água, refulgente de luz, de quando em vez entrecortado pela passagem ritmada e dolente de um moliceiro, como ele aflito e afoito, que na sua profusão de cores deixava nas águas da ria um rasto de rara beleza.
Por breves momentos, recordou a arte da xávega e, numa dolência que já não controlava, recuou aos seus tempos de menino e viu seu pai vestido de camisa branca e curta, feita de estopa, manaia e barrete preto de malha, apanhando o moliço.
Pensou no resto da família. Depois, sem um único gemido, no rosto antes queimado pelo sol e pela maresia, começaram a correr-lhe, ritmada e silenciosamente, lágrimas sofridas. Pensou na namorada, nos sonhos que ambos tinham para concretizar. A cara marfínea em agonia a coalhar de vítreo os olhos glaucos, alguns espasmos e, traiçoeira e injusta, a morte levou-o”.

Não se pode roubar ao leitor a curiosidade em desvendar a trama final, o que aproxima e pode afastar estes dois amigos, Silveira e António.
Intuitivamente, e nada mais, fica-nos a ideia que Silveira é o alter-ego de José Monteiro.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20448: Notas de leitura (1245): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (36) (Mário Beja Santos)

sábado, 30 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20398: Álbum fotográfico de Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7 (Bissau e Fulacunda, 1969/71) - Parte III


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  > Espaldão do obus 10.5 (1)


Guiné > Região de Quínara  > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  > Espaldão do obus 10.5 (2)


Guiné > Região de Quínara  > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  > DO 27: a chegada do correio


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  >  Eu e o furrel Jacinto


Guiné > Região de Quínara  > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  >  Criançada


 Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  >  População local


Guiné > Região de Quínara  > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  >   Operação com helicópteros AL III

 

Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  >  Uma passagem por Tite, sede do BCAV 2867 (Tite, 1969/70).


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  >  Diversão


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  >  Futebolada


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  >  O Manuel e o Quibite



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > c. 1969/70 > 22º Pel Art e CCAV 2482  >  Mulheres


Fotos (e legendas): © Domingos Robalo  (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico (*) de Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda (1969/70); vive em Almada;  tem cerca de 20 referências no nosso blogue.


(...) "Ah…já sabia pelo Jacinto onde era Fulacunda, e quem estava por lá. Os Boininhas [CCAV  2482]. Mas o lugar não era dos mais pacíficos...

Cerca de cinco dias depois, não dois como estava previsto, preparamo-nos para embarcar em três LDM (Lancha de Desembarque Média), 3 obuses 10,5cm, 27 soldados, três cabos, dois furriéis e eu próprio como Comandante de Pelotão. Para além destes militares, íamos acompanhados das mulheres dos soldados e dos respetivos filhos. Cada soldado tinha em média duas ou três mulheres, filhos já não sei.


No dia da partida aportámos a Bolama, onde o pessoal pernoitou o melhor que pôde e eu fui também dormir a uma pensão, cheia de cabo verdianos que não se calaram durante toda a noite. " (...) (**)

A CCAV 2482, "Boinas Negras" era a subunidade que esteva em Fulacunda (entre 30 de junho de 1969 e 14 de dezembro de 1970, regressando nesta data a Bissau).  Foi mobilizada pelo RC 3, pertencia ao BCAV 2867 (Tite,1969/70); partida: 23/2/69; regresso: 23/12/70; antes de Fulacunda, esteve em Tite; comandante: cap cav Henrique de Carvalho Mais.ont




quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20365: Álbum fotográfico de Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7 (Bissau e Fulacunda, 1969/71) - Parte I


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Fotos (e legenda): © Domingos Robalo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Tabanca da Linha > Domingos Robalo.
Foto de Manuel Resende (2019)
1. Fotos do álbum de Domingos Robalo,  ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda;  

[, Foto à direita: Domingos Robalo:

(i) tem página no Facebook desde março de 2009 e administra também o grupo Artilharia de Campanha na Guiné-BAC1/-GAC7;

(ii) vive em Almada, está ligado à Universidade Sénior Dom Sancho I, de Almada, onde faz voluntariado, desde julho de 2013, como professor da disciplina de "Cultura e Arte Naval";

(iii) trabalhou na Lisnave; é praticante de golfe;

(iv) e passou a integrar a Tabanca Grande, com o nº 795, desde 21 de setembro último]


Legendas das fotos acima publicadas (*)


(...) A minha mobilização para a Guiné ocorrera para cumprir uma rendição individual de um militar que não teve oportunidade de chegar ao fim. Ia substituir o furriel miliciano Batista [, António da Conceição Dias Baptista, natural de Murtal, São Domingos de Rana, Cascais ], que infelizmente não terminara a sua comissão no tempo normal. No dia 14 de fevereiro de 1969, morre heroicamente ao lado do seu Comandante de pelotão, o alferes Gonçalves [, José Manuel de Araújo Gonçalves, natural de Lisboa], São vítimas de um ataque IN no aquartelamento de Guileje.

(...) A sete de maio de 1969, embarco no “Niassa” com destino a Bissau (Fotos nº 1 e 2].

(...) Ao fim da manhã do dia 12 de maio, o navio “Niassa” está ao largo de Varela, aguardando a ida a bordo da Autoridade Marítima. Ao fim da tarde do mesmo dia está a acostar ao cais de Bissau.

(...) Sou dos últimos militares a desembarcar, por ser de rendição individual e por o meu destino ser o quartel da BAC 1 [Bataria de Artilharia de Campanha nº1, sediada junto ao QG (Quartel General)]. [Fotos 3, 4 e 5]

(...) Chego finalmente ao aquartelamento da BAC1, onde me espera um quarto com cama feita.
Sou recebido por Furriéis e Sargentos e Oficiais que me aguardavam com amizade e simpatia. Ainda hoje me encontro com alguns desses meus camaradas, o Mendes, o Glória, o Faro, o Chaves, o Correia, o Mendes de Almeida e outros tantos, e até o meu Comandante, à altura o Capitão M. Soares.

(...) Durante cerca de quatro meses permaneci em Bissau [, na BAC 1], participando nas “escolas de recrutas” que era levada a efeito com soldados do recrutamento da Província. [Fotos nºs 6. 7 e 8]

(Continua)

____________

Nota do editor:
Vd. postes de :


3 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20202: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte II: recruta no RI 5, Caldas da Rainha, na 5ª companhia, comandada pelo ten inf Vasco Lourenço


9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20222: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte IV: Depois de 4 meses a dar formação de artilharia de campanha, a graduados de pelotões de morteiro, sou colocado em Fulacunda, a comandar o 22º Pel Art

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20364: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - IX (e última) Parte: Nunca mais esquecerei aquele abraço, num lojeca em Bissau, antes do meu regresso a casa, daquele negro de Fulacunda, o Eusébio, suspeito de colaborar com o IN, e a quem poderei ter salvo a vida...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda >  22º Pel Art (Fulacunda, 1969/71) > "Eu e o Eusébio" [, um antigo milícia, suspeito de colaborar com o IN)

Foto (e legenda): © Domingos Robalo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >   "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Montagem de segurança > Um obus 14, rebocado por uma Berliet. Para i o desse e viesse...


Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > IX (e última) parte 

[ Foto à esquerda: 
Domingos Robalo, 
ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda; vive em Almada]


Está esta prosa mais longa do que eu imaginaria que fosse. Não termino sem antes referir o seguinte: em visita ao aquartelamento, o Comandante Chefe, General Spínola, é recebido com a formatura em parada. Repara que na parada estão alguns militares aprumados, mas sem a “boina negra” na cabeça, pergunta:

- Quem são aqueles que não têm boina negra?  [,os "boinas negras" era a malta da CCAV 2482]


- São o pessoal da Artilharia! [, 22º Pel Art, comandado pelo fur mil art Domingos Robalo]

Mudou o olhar, aconchegando o seu monóculo, concentrou-se nas tropas e população que o “adorava”, e é bom não esquecer estas palavras nem ter medo de as pronunciar. Falou de uma “Guiné Melhor”, a ser construída pelos Guineenses e seriam eles a decidir o seu futuro….

Estou a escrever estes factos, muito resumidamente, 50 anos depois de eles terem acontecido. Só agora dou o verdadeiro valor à memória. Coisas que aparentemente estavam escondidas ou apagadas, aparecem como se ontem tivessem sido vividas.

Mas, o deslizar a pena é como se estivesse a mexer um caldeirão onde as letras aparecem já escritas e a memória as traga à tona. Ideias que já estavam esquecidas, ultrapassadas e limpas aparecem agora em turbilhão.

Quase quatro anos de vida militar, por muito sacrifício que se tenha passado, não tem sido maior do que passar 40 anos com memórias que não tivemos oportunidade de contar ou “carpir”, como contributo de um desabafo coletivo que todos os jovens adultos do meu tempo deveriam ter feito. 


Ter-se-iam, porventura, poupado muitos dos traumas que vamos tendo conhecimento. O 25 de abril de 1974 trouxe-nos uma mudança radical de vida e de pensamento, com a esperança de uma vida em paz e de convivência com os povos que foram por nós colonizados. Com o golpe de Estado deu-se a “independência” aos povos das Colónias (então Províncias Ultramarinas), mas aprisionando-se memórias com uma barreira imposta, e auto-imposta como capa de proteção por um período da vida de quase todos os jovens adultos daquele tempo.

Conforme estou escrevendo, vou avivando essa vivência, mas também não posso nem devo calar o afronto que se fez aos militares portugueses de origem africana que, após a independência, foram assassinados por grupos que se diziam de libertadores. Libertadores de quê? 


Mais grave considero ainda que as autoridades portuguesas tenham tido conhecimento da situação e à época fez-se um silêncio total.

Através de um tripulante do navio Rita Maria ou Alfredo da Silva [, já não recordo ao certo,] fui sabendo de situações que ocorriam na Guiné. Segredo, pedia-me ele; as informações eram muito confidenciais.

Na minha Unidade, em Bissau, foram-me atribuídas várias funções:

-Participar na instrução básica e de cabos na especialidade de artilharia a militares naturais da Província da Guiné;

-Participar nas principais ações do TO, sempre que a artilharia era requisitada;

-Participar nas regulações de tiro de artilharia e elaboração das respetivas “cartas de tiro”, nos vários pelotões espalhados pelo TO;

-Participar, junto do Comando da Unidade, na então designada “sala de informações e operações”...





Infografia da emboscada de 22/2/1971,no decurso da Acção Mabecos, que envolveu forças do BCAV 2922, numa operação de escolta e segurança a forças de artilharia no trajecto Amedalai - Sagoiá - Rio Sagoiá - Rio Cimangru [... e não Camongrou] - Piche 4E545 - Rio Nhamprubana. As baixas das NT foram todas da CART 3332 (**).


Participei na Acção “Mabecos”, na terça-feira de carnaval no ano de 1971 [, em 22 de fevereiro de 1971, três meses depois da Op Mar Verde,invasão de Conacri]. 

Operação complicada, malo rganizada / planeada, com três mortos  e um soldado apanhado à mão que apenas foi libertado no pós-25 de abril de 1974 [, º 1º cabo Duarte Dias Fortunato, foto à direita]: nesta operação, debaixo de fogo na emboscada que sofremos [, no subsetor de Piche, perto da fronteira,quando íamos flagelar Foulamory, na região de Boké] eu próprio tomei a iniciativa de “ordenar”, ao pelotão [, Pel Art,]  de Sare Bacar, para desengatar um obus 14,0 cm e responder ao fogo IN, que estava a ser intenso.



Guiné > Região de Gabu > Carta de Piche (1957) > 1/50 mil > Detalhes > Percurso Piche > Amedalai > Sagoia > R Sagoia > R Cimongru > R Nhamprubana. A sudeste dwe Piche ficava a base do PAIGC, Foulamory,na região de Boké, ao alcance, a partir da fronteira, da artilharia portuguesa (peça 11.4 e obus 14).

Infografia: Blogue Luís Graça % Camaradas da Guiné (2019)



Eu estava sob as ordens do Capitão Osório, homem da artilharia, já falecido. No relatório desta operação está referido a forma elevada como o pessoal da Artilharia participou na resposta ao fogo IN.

O tempo vai correndo inexoravelmente. Estamos em abril de 1971, já com a comissão quase a chegar ao fim. Por vezes vagueei por Bissau na compra de alguns objetos para fazer embarcar num navio com destino a Lisboa.

Num desses dias, acompanhado pelo Furriel Franco, vagueávamos pelas ruelas transversais à avenida onde se situava o hospital civil [, hoje Hospital Nacional Simão Mendes]. Entrámos numa pequena loja, com uma montra muito pequena, onde estavam expostas uma camisas azuis com um monograma interessante.

Entro na loja,  secundado pelo Furriel Franco, e dirijo-me ao balcão onde estão dois “negros”.  De repente sinto-me abraçado por um deles e o peito a apertar. Não percebia o que se passava, mas a primeira impressão era o de estar a ser alvo de agressão.

Passado o sufoco e o outro negro olhando impávido e sereno para mim, recupero o fôlego e sinto que o abraço forte afinal tinha aspeto fraternal. Mas se aquilo é um abraço...

Olho para a cara do “negro” e não podia acreditar... Quem era aquele negro que assim me abraçava? Nem mais: 


- O Eusébio de Fulacunda!!!... (*)

Aquele “negro” reconhecendo-me, estava com aquele abraço a agradecer o pouco que eu, uns meses antes, lhe tinha feito naquele final do mês de setembro de 1969.

Para mim, tinha sido pouco o que lhe fizera. Mas para ele terá representado o reconhecimento de que era um ser humano como qualquer outro. Daí, aquele abraço que eu senti ter a força do Universo. Não é a cor da pele que diferencia os homens.

Onde quer que estejas, Eusébio, nunca me esquecerei de ti nem daquele abraço.

Para finalizar o meu texto. Não posso nem devo esquecer os mortos e os estropiados que as guerras sempre provocam. Elas podem ter um início, mas nunca sabemos quando terminam. Será que a nossa já terminou?

Domingos Robalo

Furriel de Artilharia, 

nº 192618/68

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de novembro de 2019 
Guiné 61/74 - P20313: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VIII: Fulacunda, usos e costumes... Lembro-me pelo menos de uma menina que foi a Bissau ao "fanado", e não voltou... Não havia, na época, preocupação de maior com a Mutilação Genital Feminina, por parte das autoridades. civis e militares


Vd. postes anteriores:

25 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20274: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VII: Em Fulacunda, também havia milagres...

20 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20260: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VI: Eusébio, um preso que eu mandei tratar com dignidade e que me vai ficar reconhecido

12 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20232: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte V: Rumo a Fulacunda, com o 22º Pel Art, passando por Bolama, e com batismo de fogo

9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20222: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte IV: Depois de 4 meses a dar formação de artilharia de campanha, a graduados de pelotões de morteiro, sou colocado em Fulacunda, a comandar o 22º Pel Art

5 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20206: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte III: recebido em Bissau, pelos camaradas do BAC 1, de braços abertos, na noite de 12/5/1969

3 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20202: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1

26 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20178: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte I: Apurado para todo o serviço militar


(**) Vd.poste de  23 de fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3926: Efemérides (17): Piche, 22 de Fevereiro de 1971 ou... Carnaval, nunca mais! (Helder Sousa)

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20313: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VIII: Fulacunda, usos e costumes... Lembro-me pelo menos de uma menina que foi a Bissau ao "fanado", e não voltou... Não havia, na época, preocupação de maior com a Mutilação Genital Feminina, por parte das autoridades. civis e militares


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  Lavadeiras... Mas aqui também, se praticava a Mutilação Genital Feminina, coisa que nunca preocupou nem Spínola nem Amílcar Cabral...

Foto (e legenda): ©  Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > Parte VIII


[ Foto à esquerda: Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda]



Dentro da população, tínhamos o Alferes de 2ª linha, o Malan, que era um homem sensato e que tinha a habilidade de nos contar histórias/lendas do seu povo.


Recordo que alguns desses contos foram reproduzidos no boletim que a Companhia publicava quase mensalmente e que se chamava “O Boina Negra”. 

Entre muitos dos que colaboravam, estava na linha da frente o Alferes  Barbosa,  e eu próprio escrevi alguns artigos. Recordo-me também de reproduzir situações bem conhecidas do “Zé da Fisga”, na contracapa.

Ao fim da tarde, era frequente ver furriéis e soldados passearem pela Tabanca para gáudio dos miúdos que brincavam ao vento. 


Conhecíamos alguns hábitos e costumes destas gentes e entrávamos nas suas tabancas com alguma frequência apenas com a curiosidade de poder conhecer o seu “modus vivendi”. 

Sabíamos que era frequente terem várias mulheres, de acordo com as suas regras de vivência. O dono da morança dormia numa esteira no quarto que só a ele pertencia e os mais afortunados já tinham uma tarimba no seu quarto. As mulheres, normalmente, dormiam todas em outro quarto e ao chamamento do marido lá eram escolhidas para uma noite de acasalamento. 

Quando um homem pretendia casar com terceira mulher, já deveria ter quase sempre em mente o casamento com a quarta mulher,  o mais depressa possível. É que ter três mulheres em casa provoca um desequilíbrio grave pois uma delas virava quase sempre vítima das outras duas.  Até nesta forma de viver os Africanos tinham as suas regras de vivência pacífica.

Com condições de vida muito precárias, viviam de alguns trabalhos que emanavam do Comando da Companhia. Semeavam mancarra, amendoim, que frequentemente iam vender a Bissau, normalmente à Casa Gouveia, pertencente a (ou contratante de) o Grupo CUF.

Havia, também, outras vivências. Recordo de um ou dois casos de raparigas com os seus oito ou dez anos, terem ido a Bissau fazer a ablação do clitóris. Uma delas não voltou, porque, segundo se constou, não sobreviveu às infeções a que estavam expostas. 


Eram rituais da população que ao que sei, à época, as autoridades não dariam muita importância, assim como a circuncisão dos rapazes.

Hoje, sabemos que se está fazendo um esforço de sensibilização para se evitarem tais atos nefastos para a saúde das raparigas, futuras mulheres. Fazem-se leis, mas de difícil cumprimento porque a África é demasiado grande e os meios de comunicação demasiados lentos e escassos. Os costumes milenares levam sempre muito tempo a serem mudados ou erradicados.


Quando havia disponibilidade e sossego para isso, tinha grandes conversas agradáveis com o Comandante [da CCAV 2482]. 


Era um jovem Capitão, Oficial e Cavalheiro da Arma de cavalaria. Tinha um trato fácil e simpático. Era respeitado pelos seus Homens, por quem estes tinham e demonstravam ter uma estima como se de um protetor se tratasse.

Não me lembro de ordens ríspidas ou despropositadas. Era um “ranger” que também respeitava os seus Homens, embora quase todos a iniciarem a maioridade, que na época se alcançava aos 21 anos, a menos que ingressasse nas Forças Armadas com idade inferior. Hoje a maioridade é reconhecida aos 18 anos, mas de uma imaturidade que brada ao Altíssimo. 


(Continua)
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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20274: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VII: Em Fulacunda, também havia milagres...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  A famosa "torre de vigia" que já existia no tempo dos Boinas Negras, a CCAV 2482 (1968/70)


Foto: © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > Parte VII


[ Foto acima: Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda]





Estou a viver os primeiros dias em Fulacunda e os dias irão decorrer de acordo com a normalidade corresponde às razões da nossa mobilização.

Oficiais e sargentos partilham uma messe conjunta e periodicamente faziam-se umas paródias de confraternização. Cantava-se, improvisavam-se instrumentos musicais e o "Pitchas", como era alcunhado o Zé Luís, arranhava na guitarra. O Comandante acompanhava ao xilofone e eu tinha uma bateria improvisada com os invólucros das munições do obus 10,50cm, que tinham um som estridente e ao mesmo tempo suave. Tocava com umas "baquetas" que um soldado tinha feito de forma artesanal. Havia dois ou três dos presentes que emprestavam a voz e lá íamos comendo uns camarões e bebendo umas "cervejolas".

Periodicamente, o nosso 1º Sargento trazia-nos de Bissau uns camarões que constituía sempre uma noite especial.

Com os meus soldados do 22º PEL 
ART (Pelotão de Artilharia) e a colaboração sempre imprescindível dos meus camaradas e amigos, os furriéis Jacinto e Branco, íamos construindo os espaldões para os três obuses 10,50cm que tinham sido posicionados junto à pista de aviação.

Algumas árvores foram abatidas para permitir a redução do chamado "ângulo de sítio",  sempre que se fizesse fogo com os obuses e, mais importante, podermos fazer tiro direto.



Embora estes trabalhos 
tenham sido levados a efeito pelos soldados da artilharia, não devo esquecer aqui a ajuda de soldados "Boinas Negras” [, CCAV 2482, Tite e Fulacunda, 1968/70], do qual o único que mais me marcou foi um rapaz chamado Lérias. Corpulento de físico, mas com uma disponibilidade para ajuda e uma alma grande como se ajudasse os amigos da paróquia.

Sempre atento, o Comandante [, cap cav Henrique de Carvalho Maia,] indagava-me se tudo estava bem e se precisava de alguma coisa.

Recordo que aos fins-de-semana havia futebolada. Por vezes a disputa era acesa e a luta aquecia. Era o reflexo da adrenalina que vinha ao de cima e que era necessário controlar q.b.


Um dia sou convidado para jogar. Recusei, porque não era dotado para aquela prática, ao contrário do Jacinto que era um craque e por isso sempre disputado para a equipa A, ou B. Havia também um rapazito africano, o Seco, nome de um jovem de Fulacunda que trabalhava na messe conjunta dos Oficiais e Sargentos, servindo à mesa.

De vez em quando éramos alvo de umas rajadas de "costureirinha" [ A irritante Shpagin PPSH 41, de calibre 7,62 mm Tokarev, mais conhecida por "costureirinha", de origem soviética]. Embora o aquartelamento fosse defendido segundo o método de "postos avançados" e com a artilharia sempre a postos, normalmente não se respondia ao fogo IN, por ser de fraca in
tensidade. 


Se bem me lembro, enquanto eu estive em Fulacunda, teremos respondido ao fogo uma ou duas vezes. Da que tenho mais presente, mas cuja data não menciono aqui, deu-se ao fim da tarde de um determinado dia, com morteirada forte.
Perto da hora do jantar estamos na messe.  Com o fogo intenso, o Comandante sai para subir à "torre de vigia" para tentar referenciar a origem do fogo e por analogia a posição do IN. Sigo o Capitão e,  na subida à torre pela escada exterior, passa-nos um rocket, que de raspão bate na parede da torre e não explode. É aí que sinto ficar ferido muito ligeiramente no braço esquerdo.

- Vem do lado da pista! -  grita o Comandante.

Desço da torre de vigia com a intenção de me deslocar rapidamente para os obuses.  Um dos alferes dá-me a chave de um dos jipes e vou acelerando para junto da pista onde estavam os 10,50cm.

Junto à casa do antigo Chefe de Posto, uma morteirada cai a uns 80 metros à frente do jipe. Um clarão que não impediu que o jipe se desviasse do trajeto. Sigo em frente e, já junto aos obuses, dou instrução de tiro:

- Vamos apontar para a orla da mata, rápido, rapazes, vamos lá mostrar como se faz fogo.

Os três obuses continuam a fazer fogo por cima da pista para a orla da mata. O IN, entretanto, tinha cessado o fogo.

Passados uns minutos, tudo fica em silêncio. A tensão mantém-se, o alerta é total.

Já não tenho presente o detalhe da situação, mas lembro-me de o Comandante ter chegado junto dos obuses um pouco "exaltado", por não estarmos a fazer fogo para o local que ele tinha identificado quando fez a observação da torre de vigia. Teríamos feito tiro na direção correta, mas para a orla da mata, estando o IN, entre a orla e a pista de aviação. O tiro passou por cima.

Ainda estamos nesta fase de tensão e eis que chega junto dos obuses o alferes que me tinha dado a chave do jipe. Ele estava confuso e confuso eu fiquei quando me diz que a chave que eu trouxe não era do jipe que eu tinha 
conduzido. Que teimosia se estabeleceu... Fomos experimentar.

Na verdade, a chave que eu tinha não entrava na ignição do jipe que eu tinha trazido. Experimentou-se com a chave que o alferes trazia na algibeira e foi uma "palhinha",  entrou na ignição e o jipe começou a trabalhar que nem uma máquina de costura.

Curiosidades destes aspetos da guerra. Afinal, não deve haver milagres, mas na ânsia de pôr aquele jipe a trabalhar devia ter enfiado a chave com mais pressão que a normal. Suavemente não entrava.

Mas..., ainda estávamos no rescaldo do ataque IN.

Pela manhã cedo do dia seguinte, um pelotão sai do aquartelamento e vai em reconhecimento ao local de onde se supunha ter vindo o ataque no dia anterior. Solicito autorização ao Comandante para acompanhar o pelotão de reconhecimento, que me foi concedida.

Após alguns minutos de marcha com a cautela que as condições recomendavam, lá encontrámos, em frente á pista de aviação, os vestígios do grupo terrorista atacante de véspera. Várias "camas" no chão sobre o capim vergado, com invólucros de munições espalhadas e vestígios diversos de que houve ali gente.

Passámos pela orla da mata e verificou-se a zona de fuga do IN.

De volta ao quartel, passámos pela pequena capela existente no aquartelamento onde os crentes podiam fazer as suas orações e assistir à realização da missa.

Um grupo de soldados está junto à capela,  o que revelou que algo se passava aos que se aproximavam. A Capela tinha sido construída sem a parede frontal e o telhado era de zinco. Na parede de topo da Capela, havia um nicho, estando nela colocada uma imagem de Nossa Senhora. Mas qual o espanto e a justificação de tantos à volta e dentro da capela, naquele preciso momento?

É que a capela tinha sido atingida com mais do que uma morteirada, a avaliar pela picagem das paredes e do estado das chapas de zinco que constituíam a cobertura. Perante tais morteiradas, tudo pareceria normal, não fosse o facto de o nicho e a imagem de Nossa Senhora estarem intactas. Isto é, sem o mais pequeno vestígio de estilhaço. Na prática, o telhado de zinco quase tinha ficado desfeito, as três paredes de suporte da Capela todas picadas pelos estilhaços da explosão das morteiradas.

A perplexidade de todos era, sem dúvida,  a circunstância da imagem de Nossa Senhora e o nicho onde esta se encontrava estarem incólumes.

Milagre, clamavam alguns..., mas, a vida é o que é e a crença pertence a cada um. O respeito por situações não compreensíveis ou inexplicáveis à luz da razoabilidade é o mínimo que se deve ter.

Os "Boina Negras" tinham uma relação fácil, amistosa e recíproca com grande parte da população de Fulacunda. Havia muitas crianças que, no tempo de "inverno", corriam contra o vento com uns panos passados pelos ombros acompanhando os braços, parecendo "Ícaros" a pretenderem levantar voo. 


No período em que eu estive em Fulacunda estes meninos não tinham escola. Porém, pouco tempo depois da minha saída passaram a ter aulas com a chegada de professoras primárias, naturais da Província. 

(Continua)
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Nota do editor:


ÚLtimo poste da série > 20 de outubro de  2019 > Guiné 61/74 - P20260: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VI: Eusébio, um preso que eu mandei tratar com dignidade e que me vai ficar reconhecido

domingo, 20 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20260: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VI: Eusébio, um preso que eu mandei tratar com dignidade e que me vai ficar reconhecido




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Cerimónia do içar a Bandeira Nacional.

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > Parte VI


[ Foto à esquerda: 

Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda]





[Imagem à direita, guião da   2482, "Boinas Negras", subunidade que esteve em Fulacunda,  entre 30 de junho de 1969 e 14 de dezembro de 1970, regressando nesta data a Bissau; esta subunidade foi  mobilizada pelo RC 3, pertencia ao  BCAV 2867 (Tite,1969/70); partida: 23/2/69; regresso: 23/12/70; antes de Fulacunda, esteve em Tite; comandante: cap cav  Henrique de Carvalho Mais]

Fonte:   Cortesia de © Carlos Coutinho (2007).
 



Já não sei precisar, mas uns dias depois da minha chegada a Fulacunda (*), em finais de setembro de 1969, o Comandante [, do CCAV 2482,] vai de férias à Metrópole. Entretanto, eu sou escalado para “sargento de dia”.

Efetuou-se o ritual militar para a rendição e o içar da Bandeira Nacional. Recebi a braçadeira de “sargento de dia” do furriel que tinha feito o serviço antecedente.

Terminada a cerimónia/ritual, há um soldado “Boina Negra” que me diz que havia que tratar do preso.

- Do “preso”?! - retorqui.

- Sim, meu Furriel, temos ali (, apontando para um edifício,) um preso.

Na altura fiquei lívido. O Furriel que me tinha passado o serviço não me avisara de tal situação e é um soldado que me informa que há um preso para tratar? Terá pensado que eu tivesse conhecimento?!...

- Vamos lá!... E a chave da prisão?

- Está aqui, meu Furriel.

Abre-se a porta e lá estava o prisioneiro que se encontrava deitado no chão térreo amarrado pelos pulsos. Os soldados mostraram alguma agressividade e descarregaram no coitado.

Rapidamente tive de intervir e ordenei que cessassem de imediato tais atos. Eu não tinha sido militarmente preparado para aquelas situações e os negros não eram para ser tratados daquela forma. Esta era a realidade que o general Spínola nos incutia, para além de que os meus soldados eram africanos e alguns estavam presentes comigo

Estava em curso por toda a Província a “Psico”, uma ação que tinha em vista “que para se ganhar a guerra tinha de se ganhar a adesão da população”.

Os soldados tentaram reagir à ordem,gritando;

- Meu Furriel, por causa destes turras, “filhos da puta”, é que nós estamos aqui.

Eu percebi que aquela reação era do foro íntimo e pessoal, porque sabia que também eles não tinham sido preparados para terem aquela reação. Só que eu não podia permitir tais atitudes, mas compreendia perfeitamente aqueles soldados. Eram contra tudo o que o Governador da Província e Comandante-chefe pretendia. A "Psico" estava por todo o território. Havia necessidade e era imperioso que o Povo Guineense fosse recuperado para a nossa bandeira. O General Spínola estava a iniciar um trabalho de fundo.

Fui ajudado por dois ou três soldados “Boinas Negras” que colaboraram na minha posição de acalmar a situação.

No fim desta confusão toda, deparo com o “turra” que estava simplesmente de boca aberta. Alguém o tinha safo de ser pontapeado e sei lá o que mais poderia ter acontecido. Eu próprio desamarrei os pulsos e requeri a presença do enfermeiro para que o “preso” fosse tratado. Mandei providenciar o pequeno-almoço junto da cantina e o “preso” nem queria acreditar no que estava acontecendo.

Entretanto, aproximaram-se mais uns soldados juntamente com soldados do meu pelotão testemunharam os restantes factos. Perguntei ao preso o nome, o que este respondeu:

- Eusébio.

Os pulsos já tratados pelo enfermeiro, e com o pequeno-almoço tomado, davam algum conforto ao Eusébio. Aí, o Eusébio pede para fazer chichi. Apercebendo-me eu que existia uma lata onde este urinava e defecava, percebi que aquilo não eram as condições mínimas para tais necessidades. Tomo a iniciativa de o deixar ir aos urinóis ali ao lado da prisão.

- Furriel, ele vai fugir - alguém questionou.

Mentalmente apercebi-me do risco que eu estava a correr. Virei-me para o Eusébio e com voz autoritária disse-lhe:

- Tu vais aos sanitários, mas vão dois homens atrás de ti, com G3 em punho e prontos a disparar se tentares fugir.

Cabisbaixo, foi aos sanitários, regressou e permaneceu o dia fechado na prisão com banco, almoço e jantar. Tinha diariamente as refeições, não apresentando sinais que indicassem o contrário. Durante o dia e à noite não ficou com os pulsos amarrados. Os pulsos foram tratados novamente ao fim do dia e colocados dois sentinelas posicionados à porta da prisão.

Passados estes momentos de tensão, tudo se acalmou. Os soldados perceberam que não tinham agido corretamente e a situação não mais se repetiu.

- Mas, porque estava o Eusébio preso? - comecei eu a questionar-me a mim próprio.

Perguntei aos meus camaradas, que me contaram:
O Eusébio fazia parte de um grupo de milícias que colaborava com a Companhia. Antes de eu ter chegado a Fulacunda, havia na prisão uma “turra” que terá sido apanhado. Numa noite chuvosa, estando o Eusébio de sentinela ao “turra” preso, este foge. As condições meteorológicas terão ajudado a esta situação. A forma como tudo ocorreu, ao certo, nunca soube.

Porém, o Eusébio afirmava que o “turra” tinha fugido aproveitando a noite de chuva e trovoada, mas é a ele que é imputada a responsabilidade e a “facilidade” concedida para a fuga do “turra” preso.

Por algum tempo o Eusébio continua preso e periodicamente lá vou fazer o meu “Sargento de Dia”. O Eusébio estava bem, fisicamente, já que psicologicamente “sentia-se preso”. Pouco tempo depois foi enviado para Bissau, debaixo de prisão.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20232: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte V: Rumo a Fulacunda, com o 22º Pel Art, passando por Bolama, e com batismo de fogo

sábado, 12 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20232: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte V: Rumo a Fulacunda, com o 22º Pel Art, passando por Bolama, e com batismo de fogo



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 2 > "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Chegada de uma LDP.

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]



[ Domingos Robalo:

(i) tem página no Facebook desde março de 2009 e administra também o grupo Artilharia de Campanha na Guiné-BAC1/-GAC7;

(ii) filho de militar, foi fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71;

(iii) vive em Almada, está ligado à Universidade Sénior Dom Sancho I, de Almada, onde faz voluntariado, desde julho de 2013, como professor da disciplina de "Cultura e Arte Naval";

(iv) trabalhou na Lisnave; é praticante de golfe;

(v) e passou a integrar a Tabanca Grande, com o nº 795, desde 21 de setembro último]




Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > Parte V


Ah…já sabia pelo Jacinto onde era Fulacunda, e quem estava por lá. Os Boininhas. Mas o lugar não era dos mais pacíficos...

Cerca de cinco (5) dias depois, não dois como estava previsto, preparamo-nos para embarcar em três LDM (Lancha de Desembarque Média), 3 obuses 10,5cm, 27 soldados, três cabos, dois furriéis e eu próprio como Comandante de Pelotão. Para além destes militares, íamos acompanhados das mulheres dos soldados e dos respetivos filhos. Cada soldado tinha em média duas ou três mulheres, filhos já não sei. 


No dia da partida aportámos a Bolama, onde o pessoal pernoitou o melhor que pôde e eu fui também dormir a uma pensão, cheia de Cabo Verdianos que não se calaram durante toda a noite. 


No dia seguinte e após ter “matado o bicho”, cruzei-me com um amigo e colega de escola, o Abel. Abraço para aqui, abraço para acolá, que fazes por aqui? Vou para Fulacunda, e tu estás aqui em Bolama? Sim, vou entrar de serviço. Vou agora á prisão; anda daí. Fez questão que visitasse o local.

Por fora parecia uma pequena prisão. Quando se abre a porta, meu deus!... Grades de ferro separavam muitas celas, assemelhando-se á jaula dos “macacos” no jardim zoológico. Presos, eram às centenas; uns novos outros mais velhos. Percebi logo que aquelas pessoas estavam presas, não por terem cometido crimes cíveis, mas por serem “terroristas”. Estavam simplesmente a ser tratados “abaixo de cão" ou pior. Não encontro outro qualificativo.

Cerca das 10 horas da manhã,  zarpámos de Bolama com destino a Fulacunda. Trinta a quarenta minutos depois estávamos a ser atacados da margem à morteirada.

Eu ia na LDM que fechava o comboio. A primeira morteirada cai ligeiramente à proa por estibordo, a segunda morteirada cai à nossa proa em alinhamento com o nosso rumo. O intervalo do tiro não foi cadenciado, pelo que a terceira morteirada caiu a ré da LDM, sem nos ter atingido.

Entretanto o patrão da lancha, pede instruções a Bissau se pode bater a zona com as “Boffers”. Pedido recusado,  e lá vamos navegando sem ter respondido com um tiro. Estranha guerra esta, pensei para com os meus botões, agachado entre o resguardo da “Boffer” e a borda falsa da zona da ponte.

Ao princípio da tarde, aportámos ao porto improvisado de Fulacunda, a alguma distância, por caminho de picada e envolto por capim que assustava.

Tenho a imagem de ter sido recebido de forma simpática e informal pelo jovem Capitão, vestindo uma T-shirt branca e com boina na cabeça.

Já não me recordo quem o acompanhava, mas vi, na forma disciplinada e organizada, que aqueles soldados tinham estima pelo seu Comandante.

Como no início referi, desde muito novinho que aprendi, na vivência com o meu pai, que comandar implicava cumplicidade com os subordinados, não só no tratamento e no trato, sem se perder a disciplina e a hierarquia.

No dia seguinte apresentei-me bem uniformizado ao Comandante, com a formalidade que um militar deve ter ao apresentar-se a um seu superior:

-Apresenta-se o Furriel Miliciano, Domingos Robalo, 192618/68, que por estar mal uniformizado não o pude fazer ontem.

O Comandante ficou algo surpreendido, pois certamente não era isto que esperava quando solicitei ao 1º Sargento para ser recebido pelo Comando.

Decidiu-se o local para a posição dos três obuses 10,5cm, recaindo a escolha junto à pista, com espaldões por construir e com algumas árvores a abater para minimizar o “ângulo de sítio” durante o tiro. Daquele local, haveria decerto, algum dia, a necessidade de fazer tiro direto.


(Continua)

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