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segunda-feira, 9 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9723: História da CCAÇ 2679 (48): Entre as NT não havia apenas gente movida pelo espírito cristão (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 2 de Abril de 2012:

Viva Carlos,
A propósito de um pedido de entrevista sobre memórias que envolvessem militares gay's durante a guerra de África, aqui partilho um texto que reflecte um triste acontecimento ocorrido na minha Companhia, e pode reflectir a podridão humana.

Abraços fraternos
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (48)

Entre as NT não havia apenas gente movida pelo espírito cristão

Os portugueses partiram à descoberta movidos pela expansão da Fé, e pela aventura de dar novos mundos ao mundo, mostrar-lhes a civilização do homem europeu, partilhá-la e desenvolver sociedades de progresso e justiça social. Era assim, quiçá ainda será, que a história era ministrada no jardim lusitano; não se referiam as estórias horrorosas sobre violações, roubos, raptos e esclavagismo, mortes e destruição. Como é comummente aceite, a história é escrita pelos vencedores; ou ainda, uma mentira é tantas vezes apregoada, até passar a ser considerada como verdadeira. Talvez, por isso, a fantástica odisseia de Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, é tão pouco divulgada entre nós. Notoriamente, não convinha ao regime, onde o governo desempenhava o papel de bom entre os bons, e o chefe apresentava-se como imaculado e imprescindível, donde, a verdade era de somenos. E, para melhor acentuar o poder, convinha que o povo não tivesse grande instrução, sentisse que os sacrifícios terrenos teriam compensação eterna, agradecesse a caridade como expressão de equilíbrio generoso, e que, sob um regime corporativo, os pobres não chateassem os ricos, sob pena de criarem fissuras no edifício social.

De facto, a manipulação da memória é obra de todos os tempos conhecidos (constitui uma técnica de sedimentação de grupo), das civilizações que exercem com superioridade o domínio sobre as mais fracas. E os povos, por inércia, por comodidade, por medo, por laxismo, aceitam-na, mesmo, quando essa manipulação é denunciada, como no caso recente da primeira invasão do Iraque, mesmo, quando os efeitos colaterais no Kosovo foram referidos como insuperáveis para que se atingisse a paz. É a alienação, tanto dos que praticam com bestialidade, como dos que não se incomodam com a verdade.

Esta introdução serve para ilustrar, que entre as NT não havia apenas gente movida pelo espírito cristão e, modernamente, que a nossa deslocação para a Guiné correspondeu a um arrebanhar de pessoas, de muitas e diferentes formações de ordem moral e ética; que a instituição militar não tinha capacidade para descortinar em cada um as falências de que seria portador, bastando-lhe o Regulamento de Disciplina Militar para, na sua força coerciva, manter as tropas alinhadas, direita volver, de preferência acéfalas e obedientes.

Em Bajocunda, os militares não tinham praticamente nada, senão obrigações. No entanto, os vinte aninhos imberbes sempre descobriam diferentes actividades, mesmo quando resvalavam para a imoralidade, que permitiam desenvolver a chamada camaradagem, e, unidos na desgraça, arranjar as forças, que as refeições, e o cansaço moral e físico não proporcionavam. Jogava-se a isto ou aquilo, seguiam-se curiosamente as estórias de engates de lavadeiras, discutiam os benfiquistas com os sportinguistas e os portistas, descortinavam-se estórias da juventude, e comungava-se das experiências comuns a todos os jovens.

No entanto, cada um era diferente dos restantes, como acontece em todos os lugares e circunstâncias, se tivermos em conta, não só as diferenças genéticas, como as de educação, nível sócio-económico, instrução, e todas as que contribuem para a formação da personalidade e do carácter. Por isso, também havia os fracos de espírito, os mais facilmente alienáveis, e a consequente diferença de conceitos sobre a vida.

Lembro-me de uma ocasião em que um militar se gabava de ter feito sexo com um homossexual a troco de uma importância e, quando o interrompi, tratando-o de "panasca", para acabar aquela conversa, muito surpreendido, ripostou-me, que paneleiro era o outro, ele apenas teria tido ocasião para ganhar dinheiro. Era difícil transmitir ideias novas a quem tinha tido um desenvolvimento com outras coerências, mas proibi aquele género de conversas.

Mais tarde, já "velhinhos" com alguns meses de "guerra", durante uma paragem no mato surpreendi uma conversa muito animada, em que três ou quatro desafiavam um outro, a contar-lhes o que se tinha passado no abrigo onde dormia, e que metia cenas escabrosas de sexo. E o desafio prosseguia com grande à-vontade, a que o visado, talvez pela minha proximidade, respondia com sorrisos de quem não podia falar, mas sem problemas pessoais.

Interessou-me o assunto, e fiquei a saber que um graduado, individuo de fraquíssima personalidade e comportamento, um dos que pertencia à seita, que sacava do erário e enchia o bornal a coberto das contas da Companhia, tinha fama de colaborar com a PIDE, era medroso e embriegava-se mais do que devia, tinha participado e estimulado. Ao anoitecer, costumava levar bebidas para o abrigo onde pernoitava, e assim semeava um esquema de amizade conivente e colheita de informações, com que exercia a sua influência.

Dessa vez, provavelmente com alguns copos bebidos, e com o bolso a abarrotar de notas, a conversa terá enveredado para o sexo, em termos que nem me interessou esclarecer. Mas soube, que um militar mostrou uma erecção, e o graduado terá oferecido vinte "paus" a quem roçasse o traseiro no membro erecto. Para quem não tinha nada, e sugestionado pelo graduado "amigo", todo-poderoso naquele abrigo, houve quem possa ter dado ares de aceitar o desafio, e ganhou, ou ganharam, aquela importância. Depois, em crescendo, ofereceu cinquenta "pesos", que equivaliam a mais de dez cervejinhas, a quem beijasse. E pagou. Quase a atingir um climax emocional fácil de imaginar, o graduado subiu a oferta para cem escudos a quem se deixasse penetrar um bocadinho. Segundo o relato da época, esta importância foi recusada, porque, obviamente, feria a dignidade masculina da meia-dúzia dos presentes.

Foi tudo a "brincar", claro, muito provavelmente a raciocinarem conforme o álcool, o fumo e a javardice condicionavam, mas não tive conhecimento da motivação do graduado. Do que não restam dúvidas, é que, à bebedeira, à maluqueira, à falta de carácter dos intervenientes, temos que considerar o abuso de poder de um militar em tempo de guerra, que para gaudio pessoal, se permitia explorar daquela maneira abjecta as fragilidades humanas. Depois, as razões do costume foram suficientes para abafar o caso, onde eu só vislumbro um culpado.

JMMD

Nota: Título do texto da responsabilidade do editor
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9502: História da CCAÇ 2679 (47): Um Brigadeiro de visita a Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9502: História da CCAÇ 2679 (47): Um Brigadeiro de visita a Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

1. Em mensagem do dia 16 de Fevereiro de 2012, o nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos a descrição de um episódio estranho, vivido na primeira pessoa.



HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (47)

UM BRIGADEIRO DE VISITA A BAJOCUNDA

Corria a manhã a meu favor: estava deitado entregue a uma qualquer leitura, interrompida aqui ou ali por algum voo do pensamento, que atravessava fronteiras e punha-me em contacto com as recordações da metrópole.

Este "dolce fare nienta" foi subitamente interrompido com uma aproximação em corrida, e uma frase gritada para alguém: procura tu aí na enfermaria. Entrou então um militar que se me dirigiu com a voz estorvada pelo cansaço:
- Furriel, chegou agora um Brigadeiro, e não está cá ninguém para o receber.

Surpreendido ainda retorqui:
- E que tenho eu a ver com isso?
- É que não está cá ninguém, nem o nosso Capitão, nem os alferes, nem os sargentos.

Percebi imediatamente que tinha que ir fazer as honras da casa, e receber sua excelência. Estranhei, no entanto, o insólito da situação: naquele momento eu seria o Comandante de Bajocunda. Vesti uma roupinha, tão depressa quanto a tropa me treinara, e saí preparado para enfrentar as responsabilidades. Dobrei uma vedação e dirigi-me para a pista. O Brigadeiro, mais dois ou três militares da Companhia que o acompanhavam, já vinha por alturas da casa do Silva. Dei uns passos, perfilei-me e bati a palada da ordem, ao que o Oficial-General me correspondeu com um cumprimento militar, um aperto de mão e um sorriso de bons dias. A primeira etapa estava ganha, a seguir era aguentar-lhe a simpatia.

Com mais ou menos lata adiantei, pelo que entretanto ouvira, que o nosso Capitão saíra para Pirada, que se assim o entendesse mandaria uma mensagem para o COT-1, e que estava ao dispor para lhe mostrar e dar alguma informação sobre o que entendesse, na medida em que também eu estava surpreendido naquela condição. O senhor Brigadeiro mostrou-se muito cordial, e a seu pedido, dirigi-me para o celeiro, que funcionava como Depósito de Géneros. Entrámos, e com o choque das diferenças de luz, levámos um bocadinho a localizar a origem do som da viola e de um cantar engasgadote. Logo reconheci a figura do Calvo, Vaguemestre, que indiferente, ensaiava com a viola notas e canções da beatlemania.

O meu camarada deu um pinote quando se apercebeu da ilustre visita. Saiu de cima do saco de batatas, perfilou-se, e bateu a correspondente pala, mas com a cabeça descoberta. O Brigadeiro mostrava-se muito bem disposto com a atrapalhação. Protegidos da torreira do sol, e confortados pela frescura do ambiente, ficámos ali uns momentos numa conversa informal e irrelevante.

Quando saímos do Depósito de Géneros, perguntei ao senhor Brigadiero se pretendia visitar a área de aquartelamento, as instalações, o que me ocorreu, mas não manifestou essa vontade. Também não me recordo se lhe ofereci de beber. Sei que o acompanhei à pista, e que abalou, sempre afável e bem disposto.

Do Capitão, alferes e sargentos, não me lembro que notícias vim a ter, se as tive. Porém, o meu Capitão Trapinhos era um maricas de primeira, não saía do aquartelamento, senão por motivo imperativo. O mesmo se diga em relação aos sargentos. E terem saído todos em conjunto, cheira-me a que tiveram conhecimento prévio da chegada do Brigadeiro, e que não quiseram correr riscos sobre a acção de enriquecimento ilegítimo que ali desenvolviam. Já os alferes teriam as suas actividades de mato, e um deles teria que acompanhar e escoltar a ladroagem. Naquele dia, se eu estava no aquartelamento, os outros alinhavam. Por isso, tenho que focar a atenção naqueles três. Também ninguém me perguntou sobre a motivação do visitante.

Vem isto a propósito de competências, e incompetências. Não posso fazer ideia da razão para a visita do Brigadeiro. Para mais desacompanhado e a viajar de DO. Se viesse em missão de ordem estritamente militar, nada mais natural que fazer-se acompanhar, pelo menos, do Major Comandante do COT-1 de Pirada. Se viesse em missão de inspecção, deveria ser acompanhado de um ou mais oficiais de Intendência. Também não houve notícias que resultassem daquela visita.

Mas posso fazer deduções: se a viajem foi anunciada, os responsáveis bajocundenses fugiram ao visitante; se receberam aviso prévio, também fugiram ao visitante. É (era) absolutamente inimaginável, que o Capitão e os sargentos saíssem em conjunto. Também não estou seguro que fossem a Pirada. Podem ter ficado em Tabassai por um qualquer pretexto. E, nesse caso, porquê aquela seita em conjunto? E, também não estou seguro que tivessem saído em conjunto - embora tenha sido essa a informação - mas, nesse caso, algum sargento ficou acoitado em algum abrigo, e concominado com o pessoal.

Por último, resta-me acusar de incompetência o simpático Brigadeiro: de facto, fosse qual fosse o motivo da deslocação, devia ter tirado ilações sobre a óbvia ausência daqueles profissionais da tropa. Se algum estivesse de férias, ou doentes, ou em trânsito em Bissau, enfim, mas nada disso acontecia, e eu próprio manifestei a minha surpresa pela situação. Ora, um aquartelamento não pode ficar entregue a um Furriel Miliciano que não tinha conhecimento dessa condição. Assim, também o senhor Brigadeiro terá mostrado incompetência, se não soube, ou não quii, tirar as devidas conclusões, e proceder como a situação aconselhava.

Como diz o povo: não há maior cegueira, como a de não querer ver.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9400: Notas de leitura (326): Anticolonialismo e Descolonização, por Luís Filipe de Oliveira e Castro (José Manuel Matos Dinis)

Vd. último poste da série de 14 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9353: História da CCAÇ 2679 (46): SEXA COMCHEFE visitou Tabassi (José Manuel Matos Dinis)

sábado, 14 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9353: História da CCAÇ 2679 (46): SEXA COMCHEFE visitou Tabassi (José Manuel Matos Dinis)


1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 11 de Janeiro de 2012:

Olá Carlos,
Aqui vai mais um pedacinho de história da CCaç 2679. Nada de relevante. Aconteceu, porém, uma inopinada visita do ComChefe a uma tabanca em auto-defesa, onde nunca descortinei o paradeiro das G3 novinhas que ali foram distribuídas - Seria interessante saber se o General teria alguma agenda com anotações dessas visitas.

Para ti e para o Tabancal vai um abraço fraterno
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (46)

"SEXA COMCHEFE visitou Tabassi"

A História da Unidade revela sobre a situação geral durante o mês de Janeiro de 1971:

Durante o mês de Janeiro-71, a actividade de iniciativa IN manteve-se em relação ao período anterior: duas flagelações ao Aquartelamento de Bajocunda e uma ao Destacamento de Copá. É de assinalar a forte intensidade do fogo IN empregue no dia 01JAN71, contra Bajocunda e em 07 contra Copá. Muito embora não causassem quaisquer baixas às NT e à população, os estragos materiais foram um tanto avultados, principalmente no ataque a Bajocunda.
A Companhia mantém o ritmo operacional em relação ao período anterior:
Os dois grupos de combate da CCav 2747 que se encontravam nesta em reforço temporário, regressaram a Piche em 19JAN71, sendo substituídos entretanto por um grupo de combate da CCaç 5 que segue em 21JAN71 para Copá a fim de render o Pel Caç Nat 65, que regressa a esta Companhia em Bajocunda.
A Companhia continua ainda reforçada temporariamente por 01 GrCombate da CArt 2762.
O Pel Caç Nat 65 segue em 22 para Tabassi rendendo 01 GrCombate da Companhia na protecção àquela tabanca.
Em 26JAN71 apresentou-se na Companhia o Pel Mil 298 recém formado em Contuboel que é atribuído de reforço à CCaç.
O Pel Mil 269 continua fixado em Amedalai a fazer a protecção àquela tabanca e diariamente 01 GrCombate reforça Tabassi à noite. Mercê de uma acção psicológica bem orientada a Companhia consegue que se apresentem neste período em Copá, mais 04 elementos da população refugiados na Rep Senegal a fim de ali residir. Em Amedalai também se apresentaram 10 elementos pop que ali fixam residência.
SEXA COMCHEFE visitou Tabassi.


Durante o mês de Dezembro aconteceram os seguintes aumentos ao efectivo:
Alferes Mil de Infantaria Eduardo José Luís Machado Pinto, proveniente da C Caç 2789, para o 4º. Pelotão, e os soldados, Manuel Morais, em rendição individual, e Armando Manuel Lanzana Lapa, proveniente da 26ª. CComandos, ambos para o segundo Pelotão, o Foxtrot. Foram dois elementos de boa valia.

Localização de Tabassi na Carta de Pirada


Minha nota:

Como acabam de ler, o IN mostrou-se bastante colaborante com a NT, pois, sabendo que os elementos da 2679 eram preponderantemente madeirenses, não quiseram deixar-nos passar o ano sem o condigno "reveillon". E no dia 1, pelas 21H45, voltaram a flagelar Bajocunda com um bom potencial de fogo, tendo deslocado morteiros, lança-granadas foguete, canhões s/recuo, e armas ligeiras.

Entretanto, um dia que não assinalei, provavelmente em 27DEZ70, regressei de uma coluna a Nova Lamego e senti-me censado, mas sem qualquer suspeita de doença ou sintoma de mau-estar. Comi, e fui para o meu quarto, onde três ou quatro jogavam cartas. Adormeci naturalmente. Até que a certa altura, já para o tardote, comecei com manifestações estranhas de inquietação e convulsões, acordei, e queixei-me de fortes cólicas, que não me permitiam sossegar. Foram chamar o Vítor que, perante as minhas manifestações, mas sem um diagnóstico (as Companhias em geral não tinham meios de diagnóstico."Guerra, é guerra!"), perguntou-me se eu aceitava uma injecção para acalmar. "Traz lá essa merda, depressa", deve ter sido a minha mais que natural resposta. O Vítor aplicou-me a injecção, que garantia, havia de produzir efeito. Qual quê! Não fez efeito nenhum. Então, o Vítor ministrou-me uma segunda injecção, na falta de medicação alternativa, admitindo que esta segunda dose teria que causar efeito, neutralizando a dor e restituindo-me tranquilidade.

Mais um hiato, talvez de uma ou duas horas, e... nicles. A minha imagem devia ser de desespero, e a malta em meu redor inquietava-se. À terceira dose, o Vítor esgotou os recursos razoáveis, pois não queria matar-me pela cura. Por essa altura, já o Marino, por indicação do Vítor, tinha pedido a minha evacuação.

Amanheceu como todos os dias, mas eu, desesperado, e acagaçado pelo obrigatório ingresso no hospital, não tinha esperança.

Talvez uma horita depois da alvorada, chegou um DO para me transportar ao hospital. Alguns Foxtrot acompanharam-me na despedida com graçolas a que eu nem era capaz de reagir.
Não sei se por efeito do cagaço, se por efeito da altitude, se por "ineficiência" da doença, quando cheguei a Bissalanca sentia-me bem.

Puseram-me numa ambulância e transportaram-me até a um médico que, no hospital, fazia despistagem. Quando me interrogou, disse-lhe da estranha manifestação da doença, e referi as injecções que me tinham dado, o que deveria constar de um qualquer relatório. Depois, despi-me de roupas e preconceitos, e encaminharam-me para a SO - Sala de Observações, um salão com ambiente fresco, onde ocupei a última cama do lado da entrada. Existiam no local oito camas, que passaram a estar preenchidas. Fiz análises e os exames prescritos, e voltei para a cama, onde tapei as vergonhas com um lençol. Era assim, também, para os restantes.

Era um ambiente terrível, e eu não encontrava qualquer razão para estar ali. Todos os meus companheiros de camarata tinham sido vítimas dos acasos da guerra, com excepção do que estava à minha frente, onde permanecia por alguns dias, com o diagnóstico de paraplegia, em virtude de um acidente. Os restantes, feridos em combate, mutilados ou portadores de estilhaços, aguardavam evacuações para Lisboa, e permaneciam em estado de adormecimento, só dando sinal quando as drogas abrandavam o efeito, ou tentavam mudar de posição na cama, e desatavam em choro, quando se encontravam com a nova realidade e as dores emanantes.

Passadas as duas noites a respirar daquele ar condicionado, chegaram os resultados, que revelaram uma amibíase, uma doença provocada por amibas ingeridas com a água que, entretanto, tinham devassado os glóbulos vermelhos. Transitei então para o primeiro andar, onde tomei lugar no primeiro quarto do lado direito, cuja varanda se situava sobre a entrada principal. Quando ali cheguei, apresentei-me ao ocupante da outra cama, o médico de Piche que se "batia" a uma hepatite. Tornei-me um cliente de luxo, pois a par dos mata-bichinhos prescritos, também tinha direito a frutas sul-africanas, e a sumos italianos, sempre em quantidade excedentária, que ainda permitia a alguns camaradas abastecerem-se.

Enquanto ali permaneci, o acontecimento mais relevante foi a operação cirúrgica ao CMDT da Região Militar de Bissau, o célebre "onze". Tinha permanentemente duas sentinelas à porta do quarto, uma atitude lógica, pois qualquer um dos internados poderia tentar-se a fazer justiça perante a oportunidade. E ao fim da tarde, esteve sempre garantido o espectáculo dos oficiais superiores, todos engalanados, a bater com os tacões das botas polidas, nos mosaicos do corredor, numa precipitação para prestarem vassalagem subserviente ao grande senhor enfermo, o grande déspota solitário. Apresentavam-se aos soldados sentinelas, e um deles ia confirmar a autorização para que o interessado tivesse oportunidade para entrar. Foram cenas dignas do magnífico romance de Gabriel Garcia Márquez, "O Outono do Patriarca", que neste caso tentava revitalizar.

Lembro-me ainda de duas situações aberrantes naquele hospital, um furriel miliciano e um soldado, ambos "clientes" da psiquiatria: o primeiro seria refratário por questões políticas, e o segundo teria cometido crimes sobre dois familiares (era o que constava). Ambos tinham o receituário diário, mas uma vez por semana, levavam uma dose extraordinária, uma injecção de vários centímetros cúbicos, que os deixava sem falar e quase sem comer durante dois dias. Aliás, nos períodos intercalares, e tive confirmação disso pelo contacto directo, nenhum deles conseguia manter um diálogo, com nítida falta de capacidade de expressão, e olhares vagos, de ausência. Não sei que futuro tiveram, nem se o psiquiatra contribuiu para a saúde deles.

Estive ausente da Companhia quase por um mês.

No meu regresso fiquei a saber que o Foxtrot, por falta de comando, foi deslocado para Tabassi, onde ficou a defender a tabanca. Durante algumas noites ficaram entregues a si próprios, comandados pelo Cabo mais antigo, ou solidariamente organizados. Também me fizeram queixa de que o pelotão abandonara a aldeia.

Apurei que os almoços eram confecionados em Bajocunda e transportados para Tabassi. Todavia, sem qualquer critério, a chegada das refeições fazia-se tardiamente, a uma hora qualquer, e o pessoal reclamava através da escolta. Coisa que não devia impressionar o capitão e os "sorjas". Até que um dia não se fizeram rogados, e apresentaram-se em Bajocunda para comer no refeitório. Estalou uma bronca, mas o pessoal levou a água ao moinho, e a refeição passou a chegar àquela aldeia pelo meio-dia. Reconheci-lhes razão.

No primeiro dia do ano, o Comandante-Chefe deslocou-se a Tabassi, inopinadamente, pelo que terá confirmado a espécie de ostracismo e displicência a que o Foxtrot estava votado. Não havia nenhuma razão especial para que o General ali se deslocasse propositadamente, salvo quaisquer eventuais informações que lhe chegassem por outras vias, talvez o COT-1; talvez a PIDE, ou o Mário Soares. Também não posso afirmar que se tenha ali dirigido para saudar o Foxtrot. Podia querer cimentar a relação com o chefe de tabanca, um individuo pouco (nada!) atento à condição da auto-defesa, ou saudar a população e a tropa.

Sobre a visita, a História da Unidade regista a seguinte frase no contexto situação em Janeiro/71: "SEXA COMCHEFE visitou TABASSI".
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9311: (Ex)citações (171): A propósito de citações e comentário do Mais Velho (José Manuel Matos Dinis)

Vd. último poste da série de 29 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9285: História da CCAÇ 2679 (45): Um aniversário em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9285: História da CCAÇ 2679 (45): Um aniversário em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Dezembro de 2011:

Olá Carlos, boa noite,
Ainda agora vivemos o Natal, e já deixo escapar a baba pelo canto da boca, só de pensar no magnífico almoço de aniversário que tive em Bajocunda. Envio-te uma presunção de relato desse evento, com liberdade para decidires sobre o destino a dar-lhe.
Anexo duas fotografias tiradas no Silva. Uma delas tem quatro personagens, a saber da esquerda para a direita: Zé Tito, Pedro Dinis e Marino. A outra é da frontaria.
Desejo-te, e ao Tabancal, que o ano de 2012 possa surpreender-nos pela positiva.

Abraços fraternos
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (45)

UM ANIVERSÁRIO NA GUINÉ

Decorria o mês de Dezembro do ano da graça de 1970. Os dias sucediam-se com o caracteristico calor húmido, o capim ainda alto, e as tarefas normalmente atribuídas ao Foxtrot, o Pelotão a que honrosamente pertenci, tudo numa rotina sobre a qual pairava o perigo e a impertinência militar que nos tolhia o apetite turístico. A população procurava abrigo nas sombras dos alpendres das três lojas de Bajocunda, onde também se exercita o múnus dos alfaiates. Situavam-se as lojas num cotovelo do que poderemos chamar a rua principal (resultando da fusão dos acessos que para sul se dirigiam ao Gabú, e na direcção oeste ligava a Pirada), que marginava a parada, e em frente à messe virava para a pista, na direcção de Copá, conservando nesse local algumas mangueiras de bom porte. A última loja do lado direito, era também a residência do casal Silva, que ali exercia a actividade comercial.

Aquela loja era a melhor apetrechada para as vertentes do comércio que ali se praticava. Nas traseiras, o Senhor Silva possuía um espaço de quintal, onde também provocavam frescas sombras duas ou três copas frondosas de outras árvores, e proporcionavam um ambiente ameno para três ou quatro mesas, onde se podia abancar. Era, por isso, um lugar apetecível para tomar uma cerveja, quiçá acompanhar a beberagem com um petisco. Na cozinha triunfava um cozinheiro africano que teria aprendido com arte a movimentar-se entre sertãs, tachos e panelas. O interior dividia-se entre a residência do casal e a loja, onde havia um colorido de produtos e materiais que se amontoavam, ou pareciam cair do tecto, e uma quantidade de gente falava e reclamava nos seus vagares sobre as virtudes dos artigos em venda, ou sobre o quotidiano da aldeia enquanto aguardavam atendimento.

Em Dezembro conjugaram-se os astros para que eu tivesse nascido no Monte Estoril, mesmo em frente à residência do Comandante Rosales. Para alegria dos meus pais, e do Sr. Salazar que, assim, passaria a contar com mais um jovem para as necessidades militares da nação. Essas necessidades já contavam quase vinte e dois anos, e o mancebo parecia dar-se bem em África, e andar com aquela estrelinha que lhe garantia a sorte nas voltas que a guerra impunha. Vinte e dois anos era uma linda idade, e estava mesmo a merecer uma celebração. Face às circunstâncias teria que pagar umas "piquininas" a quantos me surpreendessem naquele evento. Mas o que eu queria mesmo, era comer, banquetear-me com algum petisco de truz.

Havia, porém, uma possibilidade para frustração deste projecto: a normal actividade operacional que poderia obrigar-me a uma deslocação fora do arame, que não fosse uma coluna ao Gabú, um lugar onde era possível apreciar uma refeição diferente, como no restaurante que frequentava à saída para Sónaco/Pirada, onde costumava alambazar-me com um guisado de coelho (ou de gato, tendo em conta a insalubridade do clima e as dificuldades de distribuição logística, dedução coroada pelo facto de aquele ser o único restaurante a disponibilizar o petisco). Mas fui cauteloso, de tal modo me revelava determinado a comemorar a data, e com o capitão fiquei a saber que, naquele dia, o meu Pelotão não sairia do aquartelamento. Fantástico! Ora, nesses dias dedicava-me à preguiça, e só uma aparição do IN poderia perturbar o "dolce fare niente".

Na véspera do dia D, com a cautela e discrição que se exige para as mais importantes operações, fui falar ao Sr. Silva no sentido de garantir a minha bela refeição, uma auto-prenda com que congeminava regalar-me. Que sim, poderia contar com ele, e combinámos um galo de fricassé (que poderiam ser dois, se houvesse necessidade), especialidade de que o cozinheiro se safava com mérito. Imaginem só o requinte: um galo de capoeira, alimentado com os restos da cozinha, mais umas folhas e algum milho, com carne fibrosa... à antiga!

No entanto, ainda que fosse bastante glutão, a comemoração só o seria se devidamente testemunhada. Ora, o resto da furrielada estaria ausente de Bajocunda no desempenho das tarefas de que eu me sentia liberto. No entanto, os meus amigos e conterrâneos; o Zé Tito e o Pedro, o primeiro que engenheirava reordenamentos, e o segundo que assistia à lenta morte das viaturas e costumava apresentar-se com borrões de óleo no corpo e na roupa, esses estavam garantidamente na localidade. Que boa circunstância, poderíamos partilhar duas pernas, duas asas, dois peitos, e dois... perdão, não cabe aqui fazer referências aos finalmentes, e um vinhinho do Dão que naqueles trópicos nos fez sentir deuses.

E foi assim que festejei o meu aniversário, em data que não vale a pena precisar porque já passou (se bem me lembro), e não descortino leitores com vontade para me oferecerem prendas retardadas. Não tenho qualquer dúvida em referir aquela como a melhor e mais saborosa refeição que tive na Guiné, de tal modo que dela me recordo algumas vezes. E dou os parabéns ao cozinheiro, onde quer que ele esteja, porque fricassé daquele apuro não voltou a passar-me pela gorge.

Na foto, da esquerda para a direita: Zé Tito, Pedro, Dinis e Marino

Frontaria da casa do senhor Silva
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9259: Notas de leitura (315): De Campo em Campo, por Norberto Tavares de Carvalho (José Manuel Matos Dinis)

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9026: História da CCAÇ 2679 (44): Uma coluna reforçada a Copá (José Manuel Matos Dinis)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9026: História da CCAÇ 2679 (44): Uma coluna reforçada a Copá (Jose Manuel Matos Dinis)


1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 10 de Novembro de 2011:

Hoje envio um novo pedacinho da história da minha Companhia, que não foi boa, nem má, nem assim-assim... foi peculiar.

Abraços fraternos para o Tabancal.
JD



Uma coluna reforçada a Copá

Chamaram-me à presença do capitão, já o sol ia alto e preparava-me para não fazer nada. Atrevessei a parada mal ataviado como de costume, e entrei na secretaria, local onde não nutria grandes amizades, mas dei os bons-dias em voz alta, e bem disposto.

Passei ao gabinete do "chefe" e encontrei-o à secretária. Disse-me logo para preparar o pessoal para ir a Copá. Já não era cedo para uma viagem depois de um ataque àquele destacamento, pois mandava o bom-senso fazer uma picagem cautelosa. Mas ainda não era excessivamente tarde. Pensei com os meus botões que durante a noite o comandante do pelotão ali estacionado teria enviado alguma mensagem a referir necessidades. Provavelmente as do costume: munições que se gastavam em barda nos ambientes de festins bélicos, e que ao outro dia deixavam todos muito apreensivos com receio de novas visitas. Basicamente era disso que se tratava.

Estava quase a transpor a porta, quando chegou um rádio oriundo da PIDE em Pirada a avisar que o Nino estaria emboscado naquele percurso. Ouvi a informação e, imediatamente, imaginei o grande trinta-e-um em que me ia meter. Dirigi-me ao capitão e reagi à notícia dizendo-lhe que naquela circunstância não ia.

Felizmente que o nosso capitão Trapinhos era uma pessoa sensata, de constante e judiciosa ponderação, pelo que me inquiriu em resposta à minha atitude:
- Porquê? Está armado em maricas?

Mantive-me calmo e retorqui que não senhor, que se o capitão fizesse a viagem eu teria todo o gosto em escoltá-lo. Se isto não corresponde ipsis-verbis ao diálogo, será por diferença mínima. A esta minha reacção retorquiu o capitão com uma afirmação e uma ameaça: que não se justificava a sua deslocação a Copá, e que se eu me recusasse a ir, dava-me uma "porrada", que na gíria correspondia a uma sanção disciplinar.
- À vontade - disse-lhe, e virei as costas regressando ao meu quarto.

O capitão deve ter ficado a pensar o que fazer comigo, e eu pus-me a pensar que estava metido num molho de bróculos, mas de corpinho bem feito ao encontro do Nino é que não ia. Pensei também na malta que ficava em ânsias com a falta das munições, e de alguns géneros que também eram pedidos. E fez-se-me uma luz. Ia passar a bola ao capitão.

Voltei ao gabinete e disse-lhe que sim senhor, eu ia a Copá, mas precisava de seis viaturas. O Trapinhos espantou-se:
- Para que raio você quer as seis viaturas se não chegam a vinte homens? Além disso você sabe que só temos duas viaturas a andar.

Aqui enchi o peito vitorioso e respondi: pois é, diz-me que só tem duas viaturas a andar, mas o parque automóvel é de quatro vezes mais, e se eu tenho que fazer essa viagem, eu é que decido as condições em que vou. O capitão ficou meio atordoado, nem sei se terá pensado que os mapas para Bissau mencionavam aquele material todo a circular com os correspondentes gastos em gasolina que a Companhia pagava na Casa Gouveia. Balbuciou qualquer coisa e eu atalhei, que ficasse seguro de que eu só ia a Copá com seis viaturas, e pelo avançar da manhã, dava-lhe meia-hora para que elas ali estivessem, ou ia e só regressaria no dia seguinte.
- Nem pense - respondeu-me - não pode lá ficar. Mas como quer que arranje as seis viaturas?

Referi:
- Peça a Pirada e mencione que só tem a tal meia-hora. Se não quizer assim, pode dar-me a "porrada", que eu sei como retribuir.

Neste parágrafo a conversa reproduzida foi neste tom, embora, admito, não tenha a mesma correspondência.

E pisguei-me, tranquilo, a gozar a cena. Entretanto pedi a uns quantos que ali andavan para que o pessoal se aprontasse e reunisse em vinte minutos. Ali chegados fui à tabanca das Transmissões e pedi os "bananas" lá pendurados. Disse-me o Marino que eu estava maluco, e que os aparelhos não funcionavam.
- Não preciso que funcionem, vai tudo! - respondi.

Espantosamente chegaram as viaturas de Pirada, provavelmente o Major Comandante do COT-1 viu mais longe, ou terá imaginado que ia sair uma força mais substantiva. Carregou-se a pouca mercadoria, e abalámos com o sol lá no alto. Passámos a pista e andámos um pouco na picada, quando mandei parar.

Convoquei toda a gente, ou pelo menos os operacionais, a quem chamei a atenção para a eventualidade de acontecer uma bronca (omiti a informação da PIDE), que ia dividir o Pelotão em três grupos, mas que todos deveriam ter muita atenção às ordens que desse. Na divisão do pessoal coloquei o Transmissões e o Enfermeiro a meio da coluna com três ou quatro atiradores; na frente seguiam quatro picadores, eu, o Pauleiro e o Ribeira Brava. Os restantes elementos seguiam na retaguarda. Avisei a todos que em caso de surpresa, a primeira reacção seria a de protecção, e que em seguida deviam identificar as posições do IN e fazer tiro de pontaria para elas. E que deviam ser muito criteriosos para lançar granadas e dilagramas. No entanto, se a bronca fosse atrás, que tivessem especial cuidado, porque eu e aqueles dois faríamos uma tentativa de envolvimento, a não queríamos levar da nossa tropa. Nas viaturas seguiam apenas os condutores, que deviam manter uma distância razoável entre elas.

Todos compreenderam e, curiosamente, há dois anos no Funchal, o Valentim lembrava-se do episódio.

Picámos a quase totalidade de metade do percurso, porque de Copá, de manhã cedo, saíra uma força a picar o restante trajecto. Ao longo da caminhada, de doze a quinze quilómetros, volta-e-meia olhava para trás e não conseguia visualizar a totalidade das viaturas, dado o recorte curvilínio da picada, o mato e as copas das árvores que marginavam quase sempre. Fiquei até com a sensação de que seríamos menos do que éramos na realidade. Perfeito. Fomos e votámos a Bajocunda sem notícias do Nino. Se ele lá estava, fiquei sem o saber, e comprova o velho adágio de que quem tem cú, tem medo, pois a ideia que lhe queria impingir, era que ele estaria denunciado e o pessoal, supostamente uma força muito maior, estaria a envolvê-lo, deixando-nos na estrada como isco. Os bananas sempre vísiveis e em profusão, deixá-lo-iam sob ameaça do apoio aéreo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8728: História da CCAÇ 2679 (43): Aquele hôme (José Manuel Matos Dinis)

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8728: História da CCAÇ 2679 (43): Aquele hôme (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 31 de Agosto de 2011:

Carlos,
A história da CCaç 2679 tem estado em banho-maria. Agora, ao ter deparado com uma caricatura** de um amigo, resolvi enviá-la e juntei o texto alusivo ao caricaturado.

Pode ser que a seguir dê continuidade a outras estórias daquela história.
Para a coisa ser apresentada decentemente, é obrigatório referir que a caricatura, com 40 anos, foi desenhada com esferográfica sobre aerograma, e saiu das mãozinhas do Zé Tito Martins, um gajo capaz de alindar o mais feio dos mortais.

Um abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (43)

Aquele hôme

Conheci o Abreu no fim do verão de 69, na capital da Pérola do Atlântico, onde fui colocado para dar instrução militar aos mancebos locais. O dito já lá estava. Magricela como eu, enfezava-se na farda número três, ou de trabalho, ossudo de cara, apresentava-se, no entanto, simpático e sorridente, bom companheiro e sempre disposto a alinhar. Não o parecendo, levava uma vida difícil e sofrida, pois apresentava-se obrigatoriamente à hora matinal que a tropa impunha, acompanhava tanto quanto podia os exercícios matinais, quando havia crosses até Câmara de Lobos, desenfiava-se por alturas do Lido num qualquer bananal, e numa qualquer tasquinha de beira da estrada aguardava pelo regresso da tropa corredora e, acautelando-se da vista do BM, integrava o pelotão até ao centro da cidade, onde se situava o 19, e não debandava das teóricas da tarde, apesar de deixar para outros mais jeitosos as explanações que os instruendos não percebiam. Com o fim das actividades diárias, o pessoal retirava-se, cada um ia a casa para o necessário banho, mudança de roupa, e logo se juntavam para convívio, nos cafés e esplanadas em redor da Sé.

Dali partia-se em passeata predadora, trocavam-se olhares e piropos com as jovens da cidade, bebia-se um aperitivo para a janta, vigiavam-se os acontecimentos na "pontinha", e a horas marcadas o pessoal encaminhava-se para a tasca ou snack onde se praticava a arte de jantar. O Abreu, naturalmente, integrava a procissão e contribuía com o sotaque e piadas à moda do Porto para a alegria geral. Depois de jantar, para ajudar a digeri-lo, o pessoal ainda passava por algum café, "boite", ou visitava um dos vários antros de animação noturna, que às vezes mais pareciam pesadelos sem movimento nem alegria. Pelas dez, onze, ou meia-noite, conforme corressem as coisas, o pessoal recolhia a casa para o sono reparador. Mas o Abreu, coitado, tinha responsabilidades, adormecia quase em corrida, porque, pelas três ou quatro da manhã, chegava a menina com quem partilhava a cama, e que já vinha suficientemente excitada do local de trabalho, onde os mânfios a apertavam e apalpavam quanto podiam durante os passos de dança, como meio indemnizatório do excessivo preço do espumante achampanhado, ou das cervejas e cocktails que o Porto Rico cobrava.

Ora, todos sabemos, elas não matam, mas moem.

E foi sempre assim, tanto, que quando chegou a hora de embarque para a Guiné, o Abreu sentiu uma espécie de alívio, uma libertação física.

E lá portou-se bem e com galhardia. Mas sonhava com o Funchal, passou a faltar-lhe o calor da companheira no estreito colchão da tropa, dos cigarros finos que ela lhe trazia das diferentes proveniências do grande mundo, das lembranças traduzidas em isqueiros Dupont, de outros mimos e carícias. Por isso, frequentemente, acordava em erecção, qual espadachim pronto a perfurar o inimigo, mas, desta feita, com boas intenções, oferecia aos camaradas que dele se quisessem servir, um original serviço de chamadanhas para Tóquio, parece que uma cidade de uma ilha distante, nos confins orientais, onde existem belas e sofisticadas mulheres, de proporções e movimentos delicados, capazes de enfeitiçarem os machos latinos.

Não consta que alguém tenha praticado a curiosa interpelação que o Abreu propunha, mas todos os dias era inexcedível na generosidade.

Atirador de Infantaria, palmilhou por trilhos e bolanhas, bebeu do próprio suor nas cálidas caminhadas, deixou uma marca da presença lusitana em terra de fulas e bajudas com corpinho inspirador. Mas o clima e a alimentação agrediam, e o nosso herói acabou por sucumbir a uma dolorosa e prolongada prisão-de-ventre, que o prostrou durante duas semanas, com dispensa de alinhar no mato, ou de desenvolver actividades de exigente verticalidade. As dores dilaceravam-no. Gemia que nem uma piegas. Perdeu o elegante porte de militar brioso. Aos camaradas pedia com aflitivo aspecto, que lhe levassem à cama um caldinho, e mamava uma malga de ervas liofilizadas, uma aguadilha que ele dizia assentar-lhe bem. Um dia, não se sabe como, se impulsionado por dor impiedosa, se por teimosia convicta, saiu da cama, desencantou um penico, e sentou-se nele à espera que provocasse efeito.

A cabeça tombava mal sustentada pelo pescoço quase desvitalizado, os olhos murchos exprimiam muito sofrimento dos dias acabrunhados, a boca inclinada deixava escapar uns lamentos quase terminais. Assustava. A fotografia daquela cena foi de imediato transmitida com aflição exagerada por um furriel especialista, a quem perturbava imaginar ter que dormir num quarto onde alguém falecesse, do que resultou uma reacção imediata dos restantes furriéis operacionais, que invadiram o quarto e depressa constataram que a questão metabólica não seria suficiente para levar o Abreu.

Eram jovens os furriéis, havia pouco tempo, ainda se inteiravam das histórias da banda-desenhada e, talvez por isso, algum de entre eles lembrou-se que poderia tratar-se de um problema de mau olhado, ou de perturbação dos espíritos. De inicio não o levaram muito a sério, mas face às insistentes argumentações daquele, e perante o total desconhecimento da causa de tanto sofrimento, lá se desencadeou uma dança com caráter religioso de pedido e desagravo a Manitú, com o pessoal a dançar, ora para um lado, ora para o outro, em redor do Abreu que sofria, e queria cagar-se a rir, mas Manitú não quis saber da solidariedade manifestada, e nem um cagalhãozinho esperançoso lhe deu expectativa de salvação.

O problema acabou por ter solução, mais tarde, já não sei se por causas endógenas, se exógenas.

O certo é que o Abreu deixou de alinhar no mato, passou ao exercício da função não menos digna de vague mestre e, não sei se para não alterar os hábitos da Companhia, o rancho não registou qualquer melhora substantiva, constando, até, que o homem estaria a dar-se bem com a escrita da bianda e dos estilhaços, embora, também corresse a ideia de que ele não mandava nada, nem era responsável pelos mapas contabilísticos. Eu perfilho desta ideia.

O Abreu safou-se, tem levado uma rica vida lá para as bandas do Porto, e nem umas doençazitas que o afligem, são capazes de o demover a comparecer em convívios com os camaradas. Como referiam os madeirenses: "é aquele hôme!".
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8321: (Ex)citações (139): Comentário ao Post 8318 - Notas de Leitura - Porque Perdemos a Guerra, de Manuel Pereira Crespo (José Manuel M. Dinis)

(**) Caricatura não publicada por suscitar dúvidas de ser contra à política de conteúdos do Google. O nosso camarada Zé Manel não ficou muito zangado com os editores.
Quem quiser receber particularmente a dita caricatura poderá solicitá-la a mim ou ao camarada José Manuel Matos Dinis.

Vd. último poste da série de 13 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7276: História da CCAÇ 2679 (42): A noite em que ninguém queria ir levar o rádio a Tabassi (José Manuel Matos Dinis)

sábado, 13 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7276: História da CCAÇ 2679 (42): A noite em que ninguém queria ir levar o rádio a Tabassi (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 11 de Novembro de 2010:

Carlos,
Aqui vai um episódio em que fui um dos intérpretes. É verdade, verdadinha, mas até parece mentira.
Um abraço para ti, e outro mais abrangente para o Tabancal.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (42)

A noite em que ninguém queria ir levar o rádio a Tabassi

Um dia, ao entardecer, o Foxtrot ficava dentro do aquartelamento e eu estava deitado a aguardar o jantar, quando se desencadeou algum burburinho junto da pseudo porta-de-armas, em frente ao meu quarto, a escassos três ou quatro metros. A razão era a seguinte: o 3.º Pelotão desdobrava-se em duas saídas noturnas. Dois terços foram com o Ramalho passar a noite em Amedalai, os restantes acompanhariam o Transmissões que levava o rádio para passar a noite em Tabassi (não havia rádios suficientes, pelo que, ao fim do dia, um dos rádios que saíam para o mato ou em colunas seguia para aquela aldeia), e dois furriéis da Companhia de Cavalaria com dois grupos estacionados em Bajocunda, um dos quais em Tabassi.

Por alguma razão a saída atrasara-se, o sol declinava, e o pessoal recusava-se a sair de noite com furriéis periquitos. Pareceu-me mais uma qualquer revanche, do que uma justificação suficiente. No entanto, a resistência para sair era persistente e teimosa. Nem os furriéis demoviam o pessoal, nem o pessoal encontrava outra lógica que não fosse a recusa de os acompanhar a pé, meia dúzia de quilómetros.

Houve intervenções de alguns graduados, mas foram infrutíferas, e só serviram para consolidar a posição dos contestatários. Veio o Trapinhos, finalmente, para resolver a situação. Eu acabei por me levantar e assistir ao que se ia passar. O Trapinhos ficou a um nível mais alto, na extrema da varanda, em frente à janela do meu quarto. Em redor, alguns graduados aguardavam curiosamente o desenrolar dos acontecimentos. Tal como eu.

Nesse interim, o capitão terá constatado que não era capaz de persuadir o pessoal a sair com os furriéis e o rádio, pelo que começou a levantar a voz e a prometer porradas. A reacção foi de desafio, ele se quisesse que desse porradas, mas dali, sem outras condições, não arredavam o pé. Esguio, os ombros salientes das carnes magras e o olhar encovado, o Trapinhos dava um ar de incapaz, bradava que isto e aquilo, mas ninguém lhe ligava puto. Entretanto, engrossara o número de observadores, pois uma parte do pessoal passava por ali na direcção do refeitório, e ficava na assistência, de onde se ouviam risadas e dichotes. O nosso Comandante crescia em desespero e não tinha qualquer capacidade para se fazer respeitar, nem qualquer ideia brilhante que salvasse a situação. Os dois furriéis, por seu turno, referiam ali perto que sozinhos também não iam.

Era um imbróglio. Alguns dos graduados dirigiam-se aos contestatários perguntando-lhes se não achavam que era chato passar uma noite sem rádio em Tabassi, e se não tinham solidariedade pelos camaradas da outra Companhia que lá estavam; outros referiam-se menos apropriadamente, dizendo-lhes para não serem maricas, que não custava nada fazer meia dúzia de quilómetros, e assim acicatavam a resistência.

Dirigi-me ao meu quarto, vesti o camuflado, calcei as botas, peguei na arma, no cinto de carregadores, e a coberto da noite contornei aqueles que ladeavam o capitão já aos berros. Chamei dois cabos do grupo de resistentes, e perguntei-lhes se saíam comigo. Que sim, comigo saíam. Disse-lhes para chamarem os restantes, sem banzé, mandei avisar os furriéis e o Transmissões que já estava a andar, e a pequena coluna já estava organizada e em andamento ao passar pelo depósito de géneros.

O curioso, é que por força da escuridão, o pessoal assistente não se deu conta da ocorrência, e o Trapinhos, lá do alto, ainda se ouvia a refilar com autoridade, no enunciado de porradas e perseguições.
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Nota de CV:

Vd. último opste da série de 1 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7207: História da CCAÇ 2679 (41): Uma visita do Gen Spínola (José Manuel Matos Dinis)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7207: História da CCAÇ 2679 (41): Uma visita do Gen Spínola (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 31 de Outubro de 2010:

Ora viva, Carlos!
Há algum tempo que não dou notícias da CCaç 2679, mas hoje retomo com o envio deste breve episódio.

Para a Tabanca Grande, e para ti em especial, dedicado editor e camarada,
Um grande abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (41)

Uma visita do General Spínola

Dia 27 de Dezembro de 1970. Na modorra de Bajocunda, quando não tinha actividade operacional, passava uma boa parte do tempo na cama, à pai-Adão, tão fresco quanto possível, na legítima tarefa de descansar e deixar o tempo a passar. Dei-me conta do ruído do reactor de um héli que se aproximava. Depois, baixou, e abrandou as rotações até se imobilizar. Algum tempo após chegou a notícia de que o General tinha chegado. Ele que tinha passado a uns dez metros da minha janela escancarada, e nem me dei conta. Deixei-me estar. Passados alguns momentos, veio a notícia de que o Caco Baldé queria falar-nos, era para formar a Companhia. Já estavam a interferir com a minha tranquilidade.

O Gen Spínola numa das suas visitas ao interior da Guiné, desta feita a Mansabá.

Levantei-me e fui escanhoar a barba em frente a um pedaço de espelho que havia na casa-de-banho. Era conveniente melhorar o aspecto, não fosse cair mal a minha imagem. Quando regressei ao quarto, verifiquei que era o único furriel ausente da formatura que, espreitei da janela, já perfilava na parada. Vesti uma camisa, calças, calcei as botas, pus a boina, e lá fui. A Companhia dispunha-se à frente dos edifícios do Comando e da cantina o que, de certa maneira ocultava, a minha aproximação. No entanto, não havendo ninguém à frente do Pelotão, arrisquei, furei entre o pessoal, e tomei o meu lugar de destaque. O homem-grande notou, mas não se interrompeu na ladainha. Eu dera-me conta de que o Pelotão estaria representado aí a cinquenta por cento.

Logo a seguir, o Virgílio Fernandes aproximava-se em grande galhofa, ainda pelo exterior do arame que nos separava da área civil. Atirava o quico ao ar, e saltava-lhe em cima na queda, enquanto cantarolava qualquer coisa como se o Spínola trouxesse cervejinhas pequenininhas. Todos contiveram a vontade de rir, e o Virgílio, ao passar a pseudo-porta de armas, colocou o quico na cabeça, e com ar desengonçado integrou a formatura. No silêncio que provocou, deu-se ares de sério à espera da continuidade do discurso. O Soldado-Velho (como gostava de referir-se) seguiu com o olhar todo o movimento, mas prosseguia o relato sobre os traidores da retaguarda, quando passámos a ouvir os melodiosos acordes da gaita de beiços que o Antão Mendes, outro famoso elemento, produzia na aproximação à formatura. O General fez nova pausa, deu até a ideia de ser apreciador do género musical fixando o olhar no artista. O Antão ainda perguntou onde é que começava o Foxtrot, já que os Pelotões estavam juntos num só corpo, e integrou a formatura. O Velho devia estar meio baratinado, mas prosseguiu o discurso que ninguém entendia, pois não mencionava nomes, apenas referia que o inimigo estava na retaguarda. Quem seria o inimigo, o Marcelo? o Ministro do Ultramar? o Governo todo? o povo? ou quem desviava o melhor da Manutenção, as cervejinhas? Podíamos conjecturar tudo isto, mas não entendíamos tamanha falta disciplinar, nem o significado. Seria uma forma de estimular o pessoal de se insinuar como a pessoa em quem poderíamos confiar? Talvez, pois também se referiu aos soldados heróicos que garantiam a presença portuguesa em África. Depois, desejou-nos sorte e felicidades, um bom ano novo, e a Companhia recebeu ordem para destroçar.

Nenhum de nós teve coragem para denunciar a quadrilha de xicos que nos roubavam com desprezo, receosos do poder corporativo da tropa. E o estrondoso almoço de Natal tinha sido apenas há dois dias.
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Nota de CV:

(*) vd. poste de 25 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7174: Convívios (196): Encontro do Grupo do Cadaval no Couço-Coruche (José Manuel Matos Dinis)

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6968: História da CCAÇ 2679 (40): Vinte paus por um feitiço (José Manuel M. Dinis)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6968: História da CCAÇ 2679 (40): Vinte paus por um feitiço (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 9 de Setembro de 2010:

Carlos,
Aí vai mais um pedaço sobre os 15 dias que passei em Copá.
Imagino que regressas de férias com a pujança toda para as edições no blogue. Por isso, a minha colaboração.

Um abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (40)

VINTE "PAUS" POR UM FEITIÇO

Corria a canícula em Copá, aquele destacamento juntinho à fronteira com o Senegal, lá longe, quase no fim do mapa, a noroeste de Canquelifá. As noites, quando calmas, mostravam os milhões de luzes que suspensas no firmamento nos deslumbravam, e quando soprava uma ligeira brisa oriunda de norte, transportava-nos o ruído do comboio que, a muitos quilómetros, atravessava aquele país vizinho na direcção do deserto. Era o reflexo da pureza climática, associada a um modelo plano de relevo.

O dia-a-dia primava pela sorna. Incrivelmente comíamos bem. Carne do lombo e petiscos das miudezas. O resto da carne de cada vaca, o Mamadu, o magarefe que contratei em Bajocunda (e, entretanto, ficou sem a bicicleta algures no território senegalês), vendia-a às populações. Face ao prejuízo, voltei a compensar-lhe o preço do negócio, mas resultava. Por vezes comíamos apenas pão e carne, ou petiscos ricos em tempero para a molhança trigueira. Descansávamos de arroz e dávamos alegrias à gula e ao colesterol desconhecido.

Nesta espécie de paraíso, onde quase não havia ocasião para banhos, nem preocupações concomitantes, quer com a higiene do corpo, quer com a da cozinha, havia quem jurasse estar disposto a ficar ali durante o resto da comissão. Proibi as saídas para a bolanha, que atravessava a fronteira, onde despontava um pretexto suplementar, a caça aos pombos verdes. Mas o perigo era eminente, com a vantagem toda para o IN.

Pouco depois do ataque relatado anteriormente, uma avioneta sobrevoou o aquartelamento e logo se fez à pista. Alguns momentos após chamaram-me, que era o major comandante do COT-1, e estava rodeado por populares. Verifiquei que reclamavam da suspensão da venda de géneros, e queixavam-se de passarem fome. Ao Major dei a explicação da decisão, mas logo de entre os ocupantes do DO-27 destacou-se um tenente de milícias, que me acusou de não gostar da população, e como prova disso referiu que eu já tinha agredido o chefe de tabanca em Tabassi. A coisa ficou negra, subiu de tom o burburinho dos fulas. O major não me pediu qualquer explicação, apesar de as coisas não terem sido como dizia o milícia, e já contei anteriormente. Mas a "psico" tinha disto, e ninguém queria correr riscos em relação à clique de Bissau. O major referiu-me para preparar o saco que no dia seguinte, provavelmente, seria substituído. Troca de paladas, e... bye-bye.

Depois de almoço, mandriava na tabanca do comando, quando o puto que a limpava se me dirigiu e interpelou sobre o acontecido de manhã junto à pista. Mostrou-se cauteloso e solidário, que as pessoas não queriam saber das dificuldades, e exigiam que enquanto houvesse arroz, teria que ser para todos. Depois, mostrou-se preocupado com alguma sanção disciplinar que me afectasse. Devo ter encolhido os ombros, mas já estava engatado com a lengalenga. De imediato perguntou-me se não me importava que chamasse ali um tio conhecedor de feitiços, para que nada de mal me acontecesse. Que sim, viesse lá o tio.

Momentos após, apresentou-se com o tio, um fula magricela, meia-idade, descalço a mostrar os pés calejados de uma vida de andanças, coberto com pedaços de roupa que já tinham tido cor e evidenciavam falta de botões e alguns rasgos. Humilde, disse alguma coisa como que a pedir licença, e entrou. Não falou português, e o puto é que estabelecia traduções sobre os interesses em presença. Quando ele sentiu que eu alinhava, pediu licença para o tio se sentar no chão da tabanca para prosseguir o feitiço.

Sentado a noventa graus, com as pernas estendidas, tirou uma guita ou cordel que tinha no bolso, e estendeu-a de uma mão para o dedo grande de um pé, onde dava a volta e voltava para a mão. Fez assim uma fiada, concluída com um nó bastante dissimulado. Antes de concluir, porém, o puto traduziu que o tio não poderia continuar o seu trabalho benevolente, sem que eu exportulasse vinte paus. Pronto, uma das partes já via o proveito da cerimónia. Seguidamente, dobrou sucessivamente a fiada, de modo a ficar um pequeno novelo, que mandou-me colocar em redor do cinto, como uma presilha. Para concluir e produzir bom efeito, mandou-me pôr em cima de uma pedra, virado para Meca. Eu sabia a direcção da cidade santa, não havia problema. Cumpri escrupulosamente. Pois, se já tinha pago!

Em conclusão: conforme o major ditara, fui substituído pelo Ramalho. O pessoal manifestou-se pesaroso, mas tinha que ser. Depois disso, passaram fome de criar bicho, já que o Mamadu deu às de vila Diogo. Ainda ali permaneceram alguns dias, até regressarem antecipadamente a Bajocunda. Quanto a sanções disciplinares, nicles! Nem, sobre o assunto, alguma vez alguém conversou comigo. Donde, serve de prova este meu testemunho, sobre os poderes desses muitos feiticeiros que zelam pelo interesse do próximo, e exercem os seus místeres quase anonimamente por esse mundo fora.
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Nota de CV:

Vd. poste de 2 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6921: História da CCAÇ 2679 (39): Uma Flagelação (José Manuel M. Dinis)

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6921: História da CCAÇ 2679 (39): Uma Flagelação (José Manuel M. Dinis)

1. Em mensagem de 22 de Agosto de 2010, José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos o 39.º episódio da História da sua Companhia.


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (39)

Uma Flagelação

O ramerrame de Copá foi interrompido cerca das 19H30 do dia 10, quando um grupo IN estimado em 30/40 elementos flagelou, com RPG-2 e armas ligeiras, durante 05 minutos. O fogo dos RPG-2, aproximadamente 50 rebentamentos, caíu a maior parte fora da vedação de arame farpado, não causando qualquer tipo de baixa às NT ou à população. As NT que reagiram bem e prontamente pelo fogo, provocaram a retirada desordenada do IN. O 19.º PEL ART em Canquelifá apoiou com fogo muito certeiro. Entretanto uma força do Destacamento, quando cessou o fogo de artilharia, saiu procurando envolver o IN.

Esta conversa, que exalta o determinismo corajoso dos militares portugueses, consta do relato da História da Unidade. Porém, não sei se corresponde à realidade. Melhor, acho que não corresponde a nada do que se passou, antes fica a dever-se à fértil imaginação de quem preparava relatórios e justificava prejuízos. Referia-se retirada desordenada, sempre que não havia especiais vestígios deixados pelo IN. Impressionava.

O nosso fogo de reacção não foi certeiro, pela simples razão de que nenhum elemento IN ficou para amostra. Aliás, no dia seguinte indignei-me com o desperdício de munições, para mais numa situação de escassez. E quando eu me indignava ninguém ousava retorquir ou arranjar desculpas tolas. O comportamento foi o contrário do que eu queria que fosse, uma bandalheira provocada pelo medo, ou pela excitação de dar uns tirinhos a coberto do ataque. A verdade, é que ficámos mais expostos a uma reincidência. Da situação dei o necessário e natural conhecimento à sede da Companhia, que respondeu, alegando dificuldades logísticas (falta de viaturas), não poder, nem saber, quando enviaria uma coluna de reabastecimento.

Ruminei umas ofensas aos xicos que deixavam a degradação chegar a tal ponto. Imagine-se uma emergência... e nicles! Não havia viaturas a funcionar, pronto! E isto foi frequente durante a quadricula.


Uma Coluna

Felizmente que aquela guerra tinha critérios muito tolerantes. Refiro-me desta maneira, tendo em conta a descrição do que se segue:

Já bastante depois do almoço, não me recordo se com aviso prévio, ou totalmente à balda (não houve picagem, nem se deslocou ninguém para a segurança à picada, pelo que, provavelmente, não chegou qualquer mensagem de aviso), ouvi ruídos de motores em aproximação. Era apenas um motor, mas escandalosamente ruidoso. Uma velha GMC, oriunda de Bajocunda, com o motor à vista por falta de capot, sem bancos nem taipais, trazia uma dúzia de bravos. Ao volante, o Pedro, o meu amigo Pedro Nunes, um homem que partira para a Guiné com todos os medos, que a falta de preparação operacional acentuava. Pois o Pedro, e os seus mecânicos, prepararam de urgência a velha GMC, carregaram-na das munições que pedíramos, organizaram a escolta, e fizeram-se à picada, numa demonstração de extraordinária solidariedade. Por conta própria.

Tratei-o mal, quase que lhe batia. Às minhas interrogações violentas sobre a eventualidade de uma mina, ou de uma emboscada, o bom do Pedro respondia:

- Tens aí o material. Precisavas de mais alguma coisa?

Desarmava-me com aquela inocência. Mas não era de inocência que se tratava. Apesar de virem na escolta elementos que não faziam ideia sobre a guerra, outros participavam dela no dia-a-dia, como os condutores.

Foi um gesto lindo, digno de um filme de heróis místicos, daqueles que tratavam as dificuldades com a generosidade mais genuína. E o Pedro, por todas as dificuldades que passou na Guiné, a maior parte delas de pressão psicológica, bem merece um lugar na galeria dos heróis.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6886: História da CCAÇ 2679 (38): Situação Geral durante o mês de Dezembro de 1970 (José Manuel M. Dinis)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6886: História da CCAÇ 2679 (38): Situação Geral durante o mês de Dezembro de 1970 (José Manuel M. Dinis)

1. Em mensagem de 22 de Agosto de 2010, José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos mais um episódio da História da sua Companhia.


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (38)


SITUAÇÃO GERAL DURANTE O MÊS DE DEZEMBRO DE 1970
(extraído da História da Unidade)


Durante o mês de Dezembro assinalaram-se várias manifestações de iniciativa IN no Sub-Sector da Companhia: duas flagelações ao Aquartelamento de Bajocunda e uma ao Destacamento de Copá.

A actividade operacional também foi neste período bastante grande. Efectuaram-se várias operações e patrulhamentos de contacto com a população e emboscadas nocturnas, sem que, no entanto, houvesse a registar qualquer contacto com o IN.

Neste período a Companhia foi reforçada temporariamente com 02 GComb da CArt 2762, devido à grande actividade operacional dispendida pela Companhia que, além disso, tem de continuar a dar protecção às tabancas de Amedalai, com o PEL MIL 269 e a TABASSAI, ora com GComb da Companhia, ora com os da CCav 2747.

O Natal foi celebrado com a armação de presépios, almoços melhorados e espectáculos de variedades organizados pelo pessoal. SEXA COMCHEFE visitou então o Aquartelamento de Bajocunda e os destacamentos de Copá e Tabassi (fim de citação).


Da actividade respigo as seguintes acções durante o mês:

Em Bajocunda: 7 operações; 5 emboscadas nocturnas; 5 patrulhamentos de combate; 5 patrulhamentos sociais; 3 patrulhamentos de contacto; 1 patrulhamento de reconhecimento.

Em Copá: 1 patrulhamento de combate; 1 patrulhamento de reconhecimento.

Em Amedalai: 1 patrulhamento de reconhecimento.


Minhas notas relativamente ao que antecede:

Sobre a visita de Natal que nos fez o ComChefe, no dia 27, o pessoal cortou-se a denunciar o descarado locupletanço dos xicos da Companhia, que no dia de Natal ignoraram o subsídio de vinte e cinco tostões para melhoria do rancho, e o que foi servido, foi a habitual bianda com estilhaços. Nessa ocasião, o pessoal revoltado no refeitório, não tomou especial atitude, mas dois ou três militares aproximaram-se da messe, onde os graduados e um civil comiam um frugal bife, mas bife, com batatas fritas, julgo que com vontade de dar umas bocas.

Eu estaria próximo da posição deles, e pediram para me falar. Quando me contaram a ocorrência no refeitório, nem quis acreditar, e dirigi-me ao local para confirmar. Ali chegado iniciou-se um burburinho, mas contiveram-se de seguida. Disse-lhes que, dada a circunstância, não me parecia viável fazer uma nova refeição, e aconselhei-os a comer o que era disponibilizado, mas chamei a atenção ao Jesus, o cantineiro, para que a seguir franqueasse o bar, e que o pessoal se servisse à minha ordem.

Regressei à messe e interpelei o capitão, dando conta do que vira e da minha decisão subsequente. E acrescentei que não tinha intenção de pagar qualquer despesa, nem me apetecia acabar a refeição naquela mesa. Peguei no prato e fui para o meu quarto. Seguiu-me um outro furriel, que já não consigo identificar, e sem preocupações perguntava: o que é que os filhos da puta fizeram?

Do caso não resultou nada, mas eu também não denunciei a atitude durante a visita do General. Pairava sempre a desconfiança da protecção que a tropa dava aos carreiristas. Talvez por isso, ninguém se manifestou. Deve salientar-se a falta de escrúpulos e fanfarronice do capitão, como dos sargentos, por terem registado a aldrabice na História da Unidade.

No fim de Novembro o Foxtrot deslocou-se para Copá. Ali permaneci apenas duas semanas, como a seguir revelarei. Encontrei o destacamento e a tabanca com falta de tudo. Falta de munições e falta de alimentos. Dei logo conhecimento da situação.

Era costume os graduados para ali deslocados manterem um negócio de géneros com a população, a quem vendiam arroz e vinho temperado. As provisões eram mínimas e eu fora avisado. Contratei um magarefe, a quem pagava um pouco mais, mas ia ao Senegal comprar vacas e cebolas, o que nos garantia uma alimentação quase de luxo, pois só ficávamos com o melhor da carne e as miudezas para petiscos. Havia farinha com alguma suficiência.

A falta de água era outra constante. Havia um poço muito pouco profundo, dois ou três metros, que de manhã proporcionava uma água argilosa, castanha, que, mais ou menos filtrada, aproveitávamos para a cozinha. Praticamente não tomávamos banho. O clima era o mais agreste que encontrara, com nítidas influências do deserto.

No destacamento havia um lugar de grande responsabilidade, o de encarregado pela tabanca dos géneros: se antes era um lugar da confiança dos graduados, que geriam a alimentação do pessoal e ainda negociavam com a população, actividade que rendeu uns Breitlihgs (relógios populares na época), agora, em regime de vacas magras, determinei a cessação das vendas, e era preciso alguém de muita probidade para ajudar à gestão equilibrada. Não era difícil entre o Foxtrot nomear alguém de aceitação tácita, e, se não me recordo do designado, a coisa funcionou. Tão bem funcionou, que ao fim do dia lá estava o chefe-de-tabanca na palhota que servia de comando, a reclamar por não terem sido atendidos os populares que demandavam por compras. Nunca fui entusiasta em alimentar a preguiça, e aqueles indivíduos eram preguiçosos. Não sei como arranjavam dinheiro suficiente para o supermercado, mas isso indiciava bons negócios com a tropa, pela venda de galinhas, cabritos, e pela prostituição das filhas. Nos arredores havia uma plantação de caju, que não exigia cuidados especiais e garantia rendimento certo.

Ao chefe referi que havia escassez de géneros, que não havia garantia de fornecimento para os próximos dias, e, por isso, estavam suspensas as vendas. Houve algum blá-blá em dialecto, entre o chefe e alguns populares surpreendidos pela novidade, mas a decisão estava tomada. Competia-me garantir a melhor solução para o meu pessoal, apesar de, aparentemente, atentar contra as regras da psícola que, francamente, ignorava, pois nunca tivera acesso a ordens ou instruções que clarificassem essa política de protecção (mais do que colaboração) às populações.

Outro aspecto que critico na política do Governador e ComChefe: a falta de meios para implementação e fiscalização de actividades, à semelhança da ribaldaria que resultava da descentralização de poderes nas companhias, sem que funcionasse alguma auditoria. Entendia eu, que para dar execução às vendas, seria necessário um stock generoso que não comprometesse o quotidiano do pelotão. Nem sabia, nem me interessava, se os géneros eram extraviados de Bambadinca até Copá. Se eu tivesse tido essa incumbência, muitos "rádios" teriam transmitido a situação.

Assim, limitava-me a gerir a presença militar. Mais uma vez manifestava uma atitude anti-social, que poderia vir a sair-me cara.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6861: (Ex)citações (92): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 13 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6589: História da CCAÇ 2679 (37): Como se pode ser vítima da sua própria armadilha (José Manuel M. Dinis)

domingo, 13 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6589: História da CCAÇ 2679 (37): Como se pode ser vítima da sua própria armadilha (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 11 de Junho de 2010, com mais um episódio da História da sua Companhia, tendo como protagonista principal um técnico de Minas e Armadilhas, ele próprio:

Carlos,
Cá o jeitoso ia arranjando um trinta e um, dos valentes.
É disso que dou conta neste epísódio.

Por ti, envio um abraço tabancal.
Até breve.
JD


Não me lembro das circunstâncias, mas o gerador devia estar inoperacional quando o Trapinhos me incumbiu de armadilhar a área interior às vedações de arame, numa zona relativamente extensa, talvez de cem a cento e cinquanta metros, entre dois abrigos de defesa periférica virada para Amedalai, sendo que um deles era o abrigo com cavalo-de-frisa na saída para aquela localidade e Copá, frente ao local onde mais tarde foi construído o heliporto.

Quando o sol se punha, era quando aumentava a possibilidade de flagelação por parte do IN, por isso, durante aquele período, crescia o medo em muita gente. A falta de iluminação, e a maior distância entre abrigos, deviam espevitar algumas cachimónias na imaginação de aproximações e infiltrações de elementos IN, o que, sendo bastante improvável em virtude da limpeza e do terreno plano, deve ter influênciado algumas queixas junto dos intrépidos sargentos e capitão, militares que aliavam muita falta de imaginação com muito cagaço.

Era para montar três ou quatro armadilhas, apesar de eu ter alertado o capitão para a mais que provável detonação, a provocar por cabras que naquele espaço eram visitas frequentes.

Pedi ao Valentim para me ajudar. Peguei na bolsa de sapador e nas granadas ofensivas, e lá fomos. A seca já durava havia três meses, e o capim sêco, partido, acumulava-se pelo chão numa malha inextrinçável. O terreno devia ter sido limpo, mas era para ser assim mesmo, e a erva sêca ajudaria a dissimular.
Pronto, siga a tropa!

O Valentim era um tipo calmo, mas resoluto, que nunca levantava objecções, e competente no desempenho das tarefas. Aquela era uma tarefa minha, mas para o que fosse preciso, o Valentim podia ajudar e garantia confiança.

Comecei por instalar uma granada pelo método tradicional, localizando o local para constar num mapa, espetando dois paus de onde se suspendiam os arames de tropeçar, tensos, com a granada quase descavilhada, a meio, suspensa dos arames. Estava feita a armadilha, coisa de minutos.

Eu, de cócoras sobre o engenho, enquanto dispunha algum capim sobre a granada, no intuito de a tornar irreconhecivel, desempenhava a função com a sabedoria ministrada no Casal do Pote e experimentada em situações anteriores.
O sol, lá do alto, atirava-nos raios de fogo, mas não causavam qualquer perturbação, porque a nossa piriquitisse já levava muitos meses de matos e bolanhas, e dera-nos habituação. Também não devia entregar-me a outras cogitações extra-curriculares, na medida em que a natureza da função devia absorver-me a atenção. Estávamos tranquilos e solitários.

O Valentim deslocou-se a buscar qualquer coisa na bolsa. Uma enormidade de tempo depois, tive a sensação de ter ouvido um clic, e outra enormidade de tempo levei para lhe perceber a origem. Não podia ser, o trabalho estava a correr perfeitamente, e nós não éramos perturbados, nem estávamos à conversa correndo o risco de distração, que raio de ideia!

Mas olhei para baixo, para baixo de mim, e lá estava a granada, verdinha, cilindrica, meia encoberta, caída no chão, e afastada alguns centímetros, também no chão, da cavilha presa a outra extremidade do fio, que, quando se liberta do corpo da granada, onde trava os ímpetos explosivos, determina a sorte de quem se expuser à explosão irrevercível. Sei lá quanto tempo decorreu. Durante a instrução dizia-se que mediavam três segundos, mas na realidade seriam quatro.

De alguma margem beneficiei, pois impulsionei-me num mergulho para a frente, enquanto gritava para o Valentim, que não se fez rogado e copiou o movimento. Alisámo-nos na terra, corpos estendidos, enquanto a granada se peidava estrondosamente, perto dos meus pés, interrompendo a pacatez daquela manhã na aldeia.

Caíu alguma terra que aumentou a minha apreensão. Que descoberta faria a seguir? Não me dava conta de qualquer ferimento, e os pés sentia-os dentro das botas. Ao Valentim, mais distante, perguntei se estava bem, e ele reagiu, levantou a cabeça com um sorriso, que sim, que merda foi aquela, perguntou.

Levantei-me. A pouco mais de um metro, uma razoável cratera, talvez de trinta a quarenta centímetros de diametro, e com uma profundidade de quinze a vinte centímetros, registava o acontecimento. Olhei para o buraco enquanto concluía: e nós porreiros.

Depois reflecti sobre o que acontecera. Parecia haver apenas duas hipóteses a equacionar: a granada descavilhara em virtude do peso incidir sobre uma extremidade exígua da cavilha, que provocara o deslizamento e libertação da mesma; ou descavilhara por acção de algum movimento sobre o cordão de tropeçar já tenso.

Sem arredar definitivamente a primeira possibilidade, poisa operação já teria alguns minutos para a considerar preponderante ou exclusiva, considerei quanto à segunda possibilidade, que só houve um momento possível para aquele desfecho, quando o Valentim se deslocou até à bolsa. Foi curta a deslocação, talvez de dois ou três metros, mas suficiente para deslocar capim, que entrançado arrastaria mais capim, num arrastamento que afectaria a estabilidade do arame, tal como viemos a verificar.

Assim, concluí pela conjugação das duas possibilidades para potenciar a suavidade de um movimento e torná-lo capaz de activar o dispositivo.

Desta maneira dei-vos conta de uma acção de guerra que correu mal, mas, simultâneamente, também correu bem, ou não estaria aqui a descrevê-la.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6470: Controvérsias (76): Carta aberta a António Martins de Matos (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 20 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6442: História da CCAÇ 2679 (36): O jogo do gato e do rato (José Manuel M. Dinis)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6442: História da CCAÇ 2679 (36): O jogo do gato e do rato (José Manuel M. Dinis)

1. Em mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 17 de Maio de 2010 recebemos mais este pedaço da História da sua Companhia:

HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (36)
O jogo do gato e do rato
Com um pedaço de pão limpei o óleo, quase côr de sangue, que cobria o fundo da lata de chouriço. O petisco salgado soubera-me muito bem, e esta gordura prolongava o prazer do paladar. O local era fresco, se assim se pode dizer de uma temperatura ambiente idêntica às dos meses de Verão em Portugal, mas a sombra proporcionada pelas muitas árvores, conferia uma frescura que nós valorizávamos.

Um ou outro chamamento das aves que esvoaçavam entre as copas, contribuía para o ambiente bucólico da savana algo densa nesta região fronteiriça com o Senegal.

Apeteceu-me saborear o sol. Assim, a modos que um qualquer turista em região de excursões, deixei escorregar o corpo num local onde incidiam os raios do astro, apoiei a cabeça sobre as cartucheiras, abri a camisa e senti o efeito da luz rarefeita pela folhagem, mas que me aquecia o peito como se estivesse em estância balnear.
Em redor, o pessoal também adoptava atitudes pachorrentas.

Era muito improvável que, àquela hora e naquele lugar (fora de trilhos e linhas de passagem na fronteira), tivéssemos um inesperado encontro com o IN, por isso dava oportunidade à descontração.

Passaram-se alguns momentos naquele estado de ausência, em que a mente voava para outras paragens familiares e saudosas.
Até que do ar, lá longe, da direcção de Pirada, chegou o ruído grave e mecânico de um helicóptero. Abri os olhos, apurei os sentidos, e parecia que o aparelho pairava suspenso no ar, como quem me procurava. Mau, pensei para comigo. De facto, o Foxtrot estava muito longe do percurso desenhado para uma daquelas patrulhas de combate, pomposa designação que nos dá a ideia de termos saído à caça do IN, como os caçadores saem de casa, caçadeira ao ombro, e embrenham-se no campo, de onde regressam com meia-dúzia de rolas, enquanto os canitos alegres fazem correrias espevitados por cheiros de animais que passaram pelos caminhos. Pois era destas sugestões que viviam os nossos gestores de Operações, que faziam traços coloridos sobre as cartas, para a tropa devassar numa lógica de que se ali passassemos, a guerra estava controlada.

Entretanto, aquelas ondas sonoras provenientes do movimento das pás e dos motores, pareciam garantir-me que, lá do alto, alguém queria observar os nossos movimentos em terra. Talvez por isso, ou porque eu sabia perfeitamente que me estava a baldar para o percurso, que devia estender-se precisamente naquela direcção, dei um salto e dirigi-me para o Transmissões:

- Nuno, dá cá a pilha do rádio!

O Nuno quase não reagiu, com um olhar surpreso, calado, sem esboçar qualquer movimento, como se lhe tirassem a vida, tirando-lhe a pilha do rádio.

- Dá cá a pilha, não ouves? insisti.

Ouviu, e incrédulo retirou a pilha do rádio para ma entregar. Guardei-a, e perante os olhares atónitos justifiquei-me:

- Malta, nós devíamos estar naquela área que o héli sobrevoa, mas decidi ficarmos por aqui a descansar. Esta minha decisão pode custar uma porrada para mim, por isso não quero qualquer comunicação. Se vocês se dispuserem a fazer uma corrida de quatro ou cinco quilómetros, pode ser que a coisa passe, sobretudo se o héli voltar àquele lugar.

O Pelotão, estimulado por dois ou três, decidiu imediatamente, que sim, que num instante nos poríamos lá.

Começámos a correria, toc-toc, com as mochilas a bater nas nádegas e nos cantis, tropeçando em raízes e lianas, em gincana por entre os obstáculos da vegetação.

Até que chegámos ao rio Mael Jaubé.

O rio apresentava-se quase seco, limitado a três ou quatro drenos onde a água, praticamente estagnada, esperava os efeitos da vaporização até à seca derradeira. Não era um obstáculo, mas as botas submergiram à sua passagem, encharcando os pés e dificultando a marcha. Não desistimos, que o Foxtrot era um grupo determinado e teimoso. Prolongámos a corrida por mais um pouco. Do héli já não havia sinal, ainda progredimos um bocado, até que a pedido de alguns fizémos uma paragem. Houve quem tirasse as botas e meias húmidas. Deixámo-nos estar ao sol, como bacalhaus a secar.

Quando decidi regressar ao aquartelamento, havia pessoal que não conseguia calçar as botas por terem os pés inchados. Surpresa ingrata aquela, que não permitia o regresso normal da patrulha. No entanto, aqueles poucos reagiram que andariam descalços, não haveria problema.

Do héli não tivemos mais notícias, nem sei se alguém tentou contactar-nos durante o percurso. A chegada verificou-se com os pés descalços fazendo chalaças sobre a situação.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6309: Controvérsias (72): Uma Página Negra (José Manuel Matos Dinis)

Vd. último poste da série24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6236: História da CCAÇ 2679 (35): De estórias se faz a história de uma Companhia (José Manuel M. Dinis)

sábado, 24 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6236: História da CCAÇ 2679 (35): De estórias se faz a história de uma Companhia (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Abril de 2010:

Meu Caro Amigo,
Também de estórias se faz a história de uma Companhia. Por isso, hoje, vão duas narrativas, mais uma, que são duas aglutinadas. São só três, mas podiam ser quatro. Isto até parece táctica para confundir o IN, mas não é.

Outra coisa: até recentemente, a exposição dos "posts" era mais duradoura. Provavelmente haverá boas razões para a alteração que se regista. Parece-me, no entanto, que o blogue não fica a ganhar.

Carlos, para ti e para o Tabancal, vai um grande abraço.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (35)

De estórias se faz a história de uma Companhia

Estória n.º 1 (incompleta)


Seriam duas da manhã, quando acordei, surpreso, com o grito do Tito a simular alguma aflição: "Zé, acorda!".

Havia luz, uma luz amarelada, sumida, garantida pelo ronronar do gerador que, naquela ocasião, providenciava a iluminação periférica ao arame farpado, limite da aldeia e aquartelamento, não fossem os turras cortar o arame na escuridão da noite, e surpreender-nos. Ora, havendo iluminação no exterior, também havia no interior.
A pálida luz revelou-me o Zé Tito, com o riso suspenso do bigode, à Eroll Flynn, com ar de velhaco, enquanto estendia na minha direcção uma garrafa de qualquer "mustela", argumento suficiente para que eu não me chateasse com o importuno, estremunhar e ordenava: "bebe um bocado, bate-te à hepatite!".

Durante a comissão nós dois fomos sempre clientes dos quartos, nunca dormimos em abrigos, debaixo da terra, lugares onde os odores sudoríferos combinavam com ventosidades expelidas pelos ânus, vulgarmente conhecidas por peidos e bufas, conforme se manifestavam ruidosamente, ou pela calada, e ainda outros cheiros, como restos de comida e o conhecido cheiro da terra, principalmente enquanto húmida, contribuindo no conjunto para ambientes de nausea. Por isso, quais pi-pis da linha, arranjámos sempre pretexto para dormir nos quartos, lugares muito mais arejados, e com um mínimo de densidade populacional.

Nunca fiz concorrência às toupeiras e, uma ocasião, quando o Trapinhos distribuiu os furriéis no comando dos abrigos, contestei e aleguei que não dormia naquelas condições, além de que tinha que garantir o manuseamento do "81" em caso de ataque do IN. O resto da furrielada só às tantas, ou de manhã, regressava aos aposentos.
Molhei o bico. Voltei a adormecer.

Não sei se por estas, se por outras, é que o Zé Tito, aquando do segundo período de férias na Metrópole, foi à consulta externa no Hospital Militar, onde foi diagnosticado como sofrendo de uma qualquer hepatite, porque, como é sabido, há várias espécies de hepatite que não sei como se distinguem entre si, mas, naquele tempo e circunstâncias, tal maleita, a ser confirmada, dava direito a passar à peluda. Os exames complementares de diagnóstico que lhe fizeram, não lhe propiciaram tanto bem, mas renderam-lhe o prolongamento das férias por mais dois ou três meses, quando já pouco faltava para o final da comissão.

Entre nós havia uma cumplicidade que resultava de sermos amigos da juventude, e termo-nos acompanhado sempre ao longo da tropa, desde o primeiro dia, quando nos apresentámos em conjunto. Para onde um era colocado, o outro seguia o mesmo caminho, e à mesma hora. Coisa do acaso!

Durante o Verão de 71, o Zé escreveu-me um aerograma, descrevendo a nova situação militar em que se encontrava, e dava conta das grandes farras em que andava metido com o Carlos Santa, um amigo comum, mais tarde mobilizado para Nova Lamego, gozo esse patrocinado por umas francesas, descritas como muito jeitosas, alegres e dedicadas, que o aliviavam da ausência da saudosa Guiné. Nessa missiva, ainda me pedia para embrulhar os livros e as camisas, e para lhe mandar para casa, pois, imaginava, já não voltaria ao seio dos camaradas em Bajocunda. Tudo descrito com muito bons modos e delicadeza, que o rapaz tinha uma educação refinada.
Por acaso, nem sequer respondi.

Alguns dias mais tarde recebi novo aerograma, letras largas e margens vazias de texto, onde ele considerava que eu não teria lido o anterior, dava uma breve notícia da actividade na Metrópole e, depois, tratando-me de sacana, verberava para que eu lhe enviasse as camisas e os livros, na medida em que, para a Guiné... jamais!

Por razões quaisquer, de que a mais relevante é a minha tendência para a sorna e o deixar-andar, voltei a não responder. Até que...

Recebi um terceiro aerograma, simples e ordinário, onde me dispensava um tratamento de filho da mãe, e ingrato para com o amigo, leal e dedicado, que voltava a pedir para lhe enviar a merda da encomenda, com as camisas e os livros, coisas que eram pessoais, não interessavam a mais ninguém, e não queria deixar na Guiné. Assinado com um miserável rabisco. Nem lembranças para os camaradas.
O resto da estória espero ter ocasião para contar, quando me reportar à época dos acontecimentos, cerca de um ano mais tarde, corria o mês de Outubro, com vinte meses de comissão.

Em tempo, uma intervenção do camarada Zé Tito

Caro Zé Dinis
Ainda bem que te restam algumas memórias dos tempos “trágico marítimos”, no entanto, após leitura atenta da estória n.º 1 (incompleta), apercebi-me de que te esqueceste de contar de que, no último aerograma te disse com letra alterada, de que se não me enviasses os livros e as camisas, os ia buscar pessoalmente a Bajocunda, o que de facto aconteceu.

Também te esqueceste de mencionar de que, quando fui verificar o estado das minhas camisas que tinham ficado à tua guarda, notei um cheiro nauseabundo a merda retardada que verifiquei na altura dever-se à falta de papel higiénico em Bajocunda e, de tu, teres estado na minha ausência a limpar a peida nelas depois de teres limpo o cu aos meus aerogramas, daí nâo mas teres enviado, porque te estavam a fazer geito.

Zé Tito
15ABR2010



Na companhia havia uma grande nódoa. No entanto, a furrielada era uma força considerável. Na imagem distinguem-se quatro feras: mim, Zé Tito, Morais e Marino


Estória n.º 2

Um belo dia vinha com o Marino na direcção da cantina, talvez proveniente do depósito de géneros, à passagem pela arrecadação do material de guerra, quando demos com o seguinte trabalho: dois militares, o Mário, primeiro cabo mecânico de armas ligeiras, e o Matias, soldado básico, esperto que nem um alho, desventravam a pá e pica a rija terra, consolidada por sóis terríveis, em frente à referida arrecadação, num vértice entre aquele ponto, o quarto do capitão e o gabinete, tudo mais ou menos equidistante, enquanto o Trapinhos, de braços cruzados, comandava a operação.

A torreira do sol, e o inesperado da situação, fizeram que desconfiássemos. O Marino atirou logo, interrogativamente, qual a finalidade do buraco que provocava tanto esforço.

O Trapinhos, praticamente sem se movimentar, os ombros amarrecados, e o peito para dentro, que naquele corpo franzino mais se assemelhava a um fugitivo do Caramulo, fez um ligeiro sorrizinho, e respondeu:

- Estamos a fazer um abrigo.

Rimo-nos. O capitão, especado ao sol, falava como se padejasse a terra ao lado dos outros.
Mas a situação era estranha, porquê ali um abrigo? Aquelas praças tinham lugares reservados em abrigos periféricos, embora, recordo, durante uma flagelação a meio do dia, o Matias atirou-se para uma vala junto do depósito de géneros, praticamente no meio da localidade, e dali, bravamente, disparou uma G3 em improvável direcção que atingisse o IN.

O Marino, no entanto, não era de modas, nem se fez rogado:

- Mas então, para que é que se faz aqui um abrigo?, perguntou.

Respondeu o Trapinhos, voltando a evidenciar outro confiante sorrizinho:

- Então? é para nós. Se houver ataque, fica mais perto - disse a gozar a superior capacidade para discernir sobre como defender o coiro em caso de uma investida dos turras. Ainda não se lhe tinha esgotado o ar de Monalisa, e atirou-nos, agora ele, com uma exclamação surpreendente:

- É aquele trio!!.

Interiorizando a intenção do capitão, de se refugiar ali em vez de comandar a tropa a partir das Transmissões, um pouco mais além, o Marino caracterizou em voz alta, divertida, e imediatamente:

- Um trio de merda!.

Voltámos as costas e rimo-nos da ideia extraordinária.


Estória n.º 3 - (compacto de duas)

3.1


O Virgílio Fernandes foi um Foxtrot de comportamento irregular e surpreendente, em conformidade com o nível de sobriedade que apresentava. Felizmente essas oscilações apresentam um saldo positivo, que acentuaram um camarada solidário, bem disposto, bem educado, e orgulhoso do grupo a que pertencia. No entanto, quando bebia excessivamente, tornava-se resingão e chato, inoportuno, provocador, como é norma desses estados comportamentais.

Tive com ele uma única situação dificil, que acabou por se resolver sem deixar marcas de frustração.

Mas trago o Virgílio à colação, para relatar dois episódios em que foram intervenientes, ele e o Trapinhos.

Quando pretendia beber e não tinha dinheiro, o que era frequente, o Virgílio insinuava-se, pedia que lhe oferecessem e, se não dava resultado, fazia trabalhos, "arranjava" géneros alimentares para o petisco, podia tratar de armas, o que fosse preciso.

Um dia, junto à cantina, virada para a parada e ao lado do edíficio do comando, apostou que apalparia o cú ao Trapinhos. Feita a aposta, e porque o "alvo" se encontrava sob o alpendre da secretaria, lá foi o Virgílio naquela direcção, improvisando uma dança a solo, com passos curtos para um lado e outro, até se aproximar o suficiente para lançar uma mão às nádegas que lhe valeriam a cervejinha.

Alcançado o objectivo, o Virgílio desatou numa risada em direcção ao parceiro da aposta, reclamando vitória e o prémio, enquanto à porta da cantina algum pessoal fazia comentários e ria sobre o que acabavam de ver. Nesse dia, ainda houve outra aposta de igual teor, que o Virgílio ganhou, e celebrou no meio de espalhafatosas manifestações.


3.2

O outro episódio aconteceu após a chegada do Trapinhos, que estivera na Matrópole em gozo de férias.

Ainda sob o mesmo alpendre, numa ocasião em que descontraidamente ali permanecia algum pessoal, o Virgílio terá perguntado se as férias tinham corrido bem, ao que o Trapinhos correspondeu a dizer que sim, claro, e ajuntou algumas razões para a sua satisfação. Até que levou a mão ao bolso da camisa, tirou uma fotografia, e mostrou-a ao Virgílio que especava os olhos no retrato.

- Quem é? - perguntou este.

- É a minha mulher! - respondeu o Trapinhos.

Seguiu-se um silêncio que o Trapinhos interrompeu com uma pergunta:

- É boa, não é?.

Isto foi o que se comentou durante alguns dias, e a que o Virgílio juntava algumas propostas de intenção, esclarecendo sobre as virtudes fotográficas evidenciadas, enquanto o pessoal ria despregadamente com as narrativas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6118: História da CCAÇ 2679 (34): Situação geral em Novembro de 1970 (José Manuel M. Dinis)