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domingo, 10 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25260: Manuscrito(s) (Luís Graça) (246): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte V: 3. Da medicina mágico-religiosa do templo de Epidauro aos atuais médicos de família

 

Estátua de Asclépio


1. Comecei publicar no blogue, desde meados de março passado, uma série de textos, da minha autoria, sobre as ensinamentos que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer"...

São textos com cerca de 25 anos, que constavam da minha antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

 Chega-se agora ao fim desta série (ou subsérie) "Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles?", de que se pubklicaram 11 postes. As referèncias biblioghráficas não foram revistas (por manifesta falta de tempo).

 
Luís Graça (2000)

Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica.


3. Dos asclepíades aos médicos de família


Se quisermos ir às raízes do modelo salutogénico, teremos que ir muito provavelmente até à origem da própria cultura europeia ocidental, o mesmo é dizer, a uma das suas fontes, a mitologia grega e a cultura helénica.

Já no tempo da antiga Grécia, por volta do Século V a.C., havia santuários - como o grande templo de Epidauro - dedicados a Asclépio (o Esculápio dos romanos). Para os gregos, Asclépio, herói homérico, fruto lendário dos amores de Apolo com uma pobre mortal, tornara-se então o semideus da medicina (Grimal, 1992; Hacquard, 1996). O seu culto prolongar-se-ia até ao princípio da cristianização do império romano e às primeiras invasões dos bárbaros no Séc. IV (Charitonidou, 1978; Graça, 1996).

O seu poder de atracção mágico-religiosa de doentes e peregrinos foi enorme como também, ao que parece, a sua eficácia simbólica e terapêutica, a avaliar pela popularidade e permanência, ao longo de séculos, do culto de Asclépio na civilização helénica e greco-romana.

Estes e outros aspectos da história da medicina estão bem ilustrados nas pinturas de Veloso Salgado na Sala dos Actos da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa (Dória e Silva, 1999)

Sabemos que, do ponto de vista antropológico, o poder médico começa por ser um poder mágico-religioso, independentemente daquele que o exerce (curandeiro, feiticeiro, sacerdote, físico ou cirurgião), tanto nas sociedades primitivas como nas sociedades complexas. 

Esse poder baseia-se sobretudo na crença de que a cura da doença, embora operada por forças divinas, exige a intervenção de um medium dotado de um dom ou carisma. Não é por acaso que o termo terapeuta (do grego therapeutés) significava originalmente "o que cuida, servidor ou adorador de um deus".

Os templos de Asclépio (asclepeions), a avaliar pela reconstituição arqueológica do maior e mais importante de todos, o de Epidauro, eram constituídos basicamente por:

  • Uma nave principal (o templo propriamente dito ou cella, onde se erguia uma imponente estátua da divindade, em ouro e marfim: sentado sobre o trono, Asclépio segurava com uma mão o ceptro enquanto a outra pousava na cabeça da serpente, para os gregos uma animal sagrado e símbolo da própria arte de curar);
  • A fonte sagrada, em frente do templo, cujas águas serviam para os rituais de purificação, bem como os altares, também exteriores, onde os doentes faziam os seus sacrifícios, pedindo a intervenção do deus;
  • O tholos (uma construção circular, de desenho labiríntico, cuja função é ainda hoje enigmática: muito provavelmente, destinava-se a abrigar o túmulo do próprio Asclépio);
  • O abaton, ou seja, o local do templo onde os doentes deviam passar a noite, já que a cura dos seus males decorria durante o sono (incubatio) (Charitonidou, 1978; Lyons e Petrucelli, 1984).

O arqueólogo grego Charitonidou (1978. 13-15) descreve-nos com mais pormenor os rituais e o método terapêutico que então eram usados:

  • O santuário estava sob a jurisdição da cidade de Epidauro, cidade da Argólida, a nordeste do Peloponeso, a qual nomeava anualmente o dignitário supremo, o sacerdote de Asclépio, para o desempenho de funções simultaneamente religiosas e administrativas;
  • Ao sumo sacerdote competia, no essencial, fazer respeitar os preceitos do culto, tomar conta dos ex-voto, das oferendas e das esmolas, e administrar as finanças; 
  • Era ajudado por um corpo de sacerdotes (os asclepíades), cada um dos quais desempenhava funções específicas (o serviço do templo, a guarda dos arquivos sagrados, o transporte do fogo, etc.);
  • Os preceitos de culto, muito antigos, deviam ser fielmente observados pelos doentes que procuravam o templo para cura dos seus males, reais ou imaginários: por exemplo, às mulheres era proibido dar à luz no interior do templo, enquanto os moribundos deviam ser afastados para longe, curiosamente dois interditos que vemos encontrar mais tarde nos hospitais franceses do Antigo Regime;
  • Após os rituais das orações, das purificações e da oferta de sacrifícios (um boi ou um galo, para os mais ricos; frutas ou doces, para os mais pobres), o doente era sujeito a uma série de cerimónias que supostamente iriam pôr à prova a sua fé;
  • Ao que parece, a auto-sugestão era estimulada pelos sacerdotes que guiavam os doentes, de modo a criar as condições propícias ao acontecimento milagroso que se iria seguir durante o sono, com a aparição da própria divindade em pessoa; tudo isto se passava num ambiente de grande recolhimento, acentuado pelos hinos cantados, em coro, pelos peanistes;
  • Conduzido finalmente ao abaton (ou adyton, ou enkoimeterion, "o pórtico da incubação"), o doente devia lá passar a noite: “Nos aposentos sagrados, o doente, em estado de recolhimento, a imaginação febril, cheio de angústia pelo resultado da cura, entregava o corpo ao sono.  Os sacerdotes retiravam-se, deixando as salas na obscuridade. O deus paraceia em sonhos e operava o milagre. De manhã o doente acordava,  curado."(Charitonidou, 1978. 14, tr. de LG, Itálicos meus);
  • Como agradecimento pela cura milagrosa operada, os fiéis deviam presentear o deus com oferendas; havia-as de todo o tipo, para além do dinheiro: vasos de barro, utensílios em bronze, utensílios votivos, estelas, estatuetas, etc.

As estelas (ou inscrições votivas) que foram descobertas pelos arqueólogos constituem hoje uma fonte de informação preciosas sobre o Templo de Epidauro e o culto de Asclépio, os peregrinos que ali ocorriam, a sua origem social, a sua proveniência geográfica, os males de que sofriam e as curas que obtiveram: o paralítico, a criança muda, o homem de Tessália com manchas no rosto, a mulher de Messina que queria ter um filho e que, depois de dormir com a serpente, deu à luz duas crianças, etc.

Até agora não foi encontrado nenhum documento escrito que faça alusão à intervenção médica directa dos sacerdotes ao longo dos primeiros séculos de vida do templo. Eles continuavam a ser terapeutas, no sentido etimológico do termo, servidores do deus Asclépio que esse, sim, é que operava a cura (milagrosa) da doença durante o sono.

Mas, ao que parece, com o desenrolar do tempo, o santuário de Epidauro terá começado a sentir a concorrência dos médicos, na sequência do desenvolvimento da medicina grega, a partir de Hipócrates (460-377 a.C.). 

Terá havido então um processo de adaptação aos novos tempos, provavelmente a partir do Séc. II a.C., em seja, em pleno período helenístico. Para manter vivo o culto de Asclépio e conservar a sua clientela, os sacerdotes passaram a inteirar-se dos males de que sofriam os fiéis e ao mesmo tempo a dar-lhes alguns conselhos, antes de os encaminharem para o abaton:

 
"O paciente evocava em sonho os conselhos dos sacerdotes, considerando-os como prescrições do deus. Pela manhã relatava o seu sonho e os sacerdotes, valendo-se dos seus conhecimentos médicos, interpretavaam os conselhos do deus quanto ao tratamento a seguir enquantoiam pedindo ao paciente que permanecesse  no santuário” (Charitonidou, 1978: 15. tr. de LG.).

Tudo indica, a começar pelos achados arqueológicos que se encontram hoje expostos no Museu de Epidauro (incluindo alguns instrumentos ligados à arte médico-cirúrgica), que a partir de certa altura os sacerdotes do templo passaram, também eles, a prestar directamente alguns cuidados de saúde.

Há uma estela, embora já datada do Século II d.C., cujo conteúdo é bem revelador das mudanças que entretanto se tinham operado no templo de Epidauro (e provavelmente dos demais templos de Asclépio):

  • Este já não é apenas um lugar sagrado, um local de fé e de peregrinação religiosa;
  • É também um estabelecimento sanitário;
  • A par de um centro de lazer, cada vez mais mundano, com os seus banhos de águas quentes e frias, as suas pousadas, os seus ginásios, as suas corridas e os seus jogos, para além do seu famoso teatro, construído no Século IV a.C. e considerado o melhor, o mais belo e o mais fascinante da Antiguidade.

Vale a pena citar essa inscrição votiva que nos conta a história de um tal Apellas que "sofria de hipocondria e de terríveis indigestões" (sic), dois males de que se curou seguramente depois de uma agradável estadia nas instalações hoteleiras do santuário e dos sábios conselhos médicos dos asclepíades sugerindo-lhe que mudasse de vida, de acordo com os ensinamentos da medicina hipocrática.

Esses conselhos são espantosamente tão actuais que bem poderiam ter sido dados pelo nosso médico de família:

  • Nada de stresse, nada de te irritares;
  • Cuidado com as mudanças de temperatura;
  • Faz uma alimentação saudável, variada e equilibrada (come frutas, cereais, lacticínios, legumes, etc.);
  • Come e bebe, mas sempre com muita moderação;
  • Procura ser autónomo, dispensando os cuidados de terceiros;
  • Não te esqueças de dar o teu passeio diário e de fazer exercício físico regular;
  • E, por favor, corta-me com esse tabaquinho!...

Tratava-se, em suma, de um verdadeiro programa de promoção de estilos de vida saudáveis. De facto, está lá tudo (excepto... o tabaco, que só será conhecido no Velho Mundo a partir da descoberta da América, em 1492):

 "Enquanto eu me dirigia para o Santuário, ao chegar a Egina, apareceu-me o deus Asclépio e ordenou-me que não me irritasse em demasia. Uma vez chegado ao Templo, mandou-me que passasse a cobrir a cabeça quando chovesse, a comer pão e queijo, aipo e alface, que tomasse tomar banho sem ajuda de nenhum escravo, que fizesse exercício no ginásio, que bebebesse  sumo de cidra, que desse uns passeios a pé... Enfim, o deus mandou-me gravar tudo isto numa estela em pedra. Deixei o santuário em boa saúde e reconhecido a Asclépio" (
cit. por Charitonidou, 1978: 15, tr. de LG).

 A invasão da Grécia pelos Godos levou à devastação, em 395, do santuário, que depois seria definitivamente encerrado por ordem do imperador bizantino Teodósio II (em 426), em nome do proselitismo cristão e da luta contra o paganismo. Mas Asclépio, o deus-médico, o seu culto e os seus templos (a começar pelo de Epidauro, o mais belo e o mais célebre de todos) continuam, ainda hoje, a exercer um grande fascínio sobre nós, sendo uma referência obrigatória para a compreensão da história da medicina, das profissões, das instituições, das representações e das práticas de saúde no Ocidente.

Há que fazer, em todo o caso, uma distinção entre as práticas médicas laicas e as práticas médicas religiosas na Grécia Antiga. É justamente com a medicina racional hipocrática que se fará a ruptura em relação à medicina mágico-religiosa, associada ao culto de Asclépio.

Em todo caso, o termo asclepíades (originalmente, um sacerdote do asclepeion) vai popularizar-se em Roma como sinónimo de médico, como apelido de médicos e até como nome próprio. 

Antes de Galeno, é Asclepíades (muito provavelmente um pseudónimo) o primeiro médico grego a conhecer a glória e o sucesso em Roma, onde chega em 91 a. C. (Sournia, 1995, p. 58). Recorde-se que os romanos consideravam indigno de um cidadão a prática da arte de curar, razão por que esta estava na mãos dos escravos (a cirurgia) ou dos gregos (a medicina).

Em termos escultóricos, a figura mitológica de Ascéplio era simbolizada por um homem jovem, só ou em família, de pé, apoiado num cajado no qual está enroscada a serpente. Tinha, pelo menos, dois filhos, que também eram médicos, e duas filhas, Higia e Panaceia.

Para os gregos, estas duas figuras personificavam a saúde e a terapêutica, respectivamente, ou sejam, duas artes bem distintas: a de curar a doença (Panaceia) e a de proteger e promover a saúde (Higia).
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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série > 



20 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras

4 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

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domingo, 3 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25231: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (20): A abetarda que não é mais desastrada...


A abetarda (Otis tarda),uma espécie eurasiática, parecida com  o peru ("Estado de conservção: Em perigo, em Portugal, pouco preocupante na Europa e vulnerável internacionalmente, segundo a Lista Vermelha da IUNC – União Internacional para a Conservação da Natureza"). 

Fonte: Biodiversidade, by The Navigator Company > Biogaleria > Conheça a Espécie > Abetarda) (Com a devdia vénia...)


1. Aos veteranos, antigos combatentes da Guerra dos Cem Anos,  desculpa-se muita coisa, aos velhos quase tudo e aos avós tolera-se todas as bizarrias... 

Estava eu a frequentar um curso "on line" sobre escrita para crianças, uma organização da empresa escrever escrever, quando tive a 29 passado, na véspera do último dia do curso, de ser operado a uma catarata (senil), um autêntico "pedregulho", segundo a oftalmologista que me operou. Durante 72 horas (que ainda decorrem) não posso expôr-me de todo a écrãs...  A ultima sessão do curso, de duas horas e meia  cada sessão semanal (4 sessões, ao todo), foi sacrificada. Mas já tinha o TPC feito... Partilho, com a vossa paciência e tolerância, uma das historietas que escrevi... Amanhã retomo as atividades bloguísticas. 

É um microconto que é dedicado aos avós, e sobretudo aos nossos netos, com votos de que haja para eles (e para a abertarda) um melhor lugar do que aquele que nos coube, ao nascermos, no velhinho Portugal que continuamos, apesar de tudo,  a amar.

A abetarda que não é mais desastrada…

Por Luís Graça


Foi num passeio ao Baixo Alentejo que a Clarinha viu, pela primeira vez, as “abetardas”. Ao vivo e a cores.

O avô tinha-lhe mostrado um vídeo com o “abetardo” a querer namorar com a “abetarda”.

− Ó avô, não gosto do “abetardo”!

− Não gostas ?!... Mas é tão fofinho!... Com aquele casaco de penas…

E lá explicou à neta que as “abetardas”, eles e elas, os machos e as fêmeas, são um bocado pesadões, e por isso difíceis de ver a voar, aos bandos… Além disso, fazem os ninhos no chão, nos campos de trigo. E depois vêm as máquinas, e zás!, estragam os ninhos. E os filhotes, coitadinhos, fogem com dói-dóis, cheios de medo…

− Mas, ó avô, a tua história é da abetarda… ”desastrada”…

− Mas já não é mais “desastrada”, porque tu agora vais ajudá-la a salvar-se!

− Não tem cuidado, e atravessa a estrada com o sinal vermelho, é isso, avô?!

− Ora vês?!... E depois é atropelada!

E o avô, passando-lhe os binóculos, lá contou que ela não tem culpa, porque ela já lá estava, na sua casinha, com os seus filhotes, muito antes da estrada, e dos campos de trigo, e das máquinas pesadas que andam nos campos…

− Então, vamos ajudá-la… Eu só não gosto é do “abetardo”, que parece um pavão.

− Gosta de namorar, como tu!

− O meu namorado é o Peter Pan, não é o “abertado”… Vou casar com ele quando for grande…

E lá chegaram a uma ideia de salvar a “abetarda” e os filhotes, incluindo o pai, que era o “abetardo”…

Com outros meninos e meninas de Castro Verde, uma terra que fica no Baixo Alentejo e tem umas minas muito grandes de cobre e zinco, fizeram um "herdade" só para as “abertadas”… Lá não entram carros nem máquinas… E todas as “abertadas”, eles e elas, são felizes na sua nova casinha com jardim…

Cansada, mas também muito feliz pela sua boa ação, a Clarinha contou depois à Laura e às sus amigas da Escolinha (o Peter Pan agora está na Terra do Nunca), que a “abertada” já não é mais “desastrada”…

− Já não é atropelada na estrada… E lá combinaram, ela e as amigas, virem um dia, nas férias grandes do verão, brincar com as “abetardas” que agora já não são mais “desastradas”…
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Nota do editor

Último poste da série > 29 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25226: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (19): O Braço e a Perna...

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25226: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (19): O Braço e a Perna...

Foto: Arquivo Blogue 
Luís Graça & Camaradas 
da Guiné 
Contos com mural ao fundo (19) > 
O Braço e a Perna… 

por Luís Graça


Encontram-se no jardim dos avós que tinham andado na Guerra dos Cem Anos…

− Olá, Braço, donde vens ?

− Do centro de saúde onde fui apanhar uma pica…

− A vacina da gripe ?!

− … E da Covid, tamãe !... Pois, e tu ?


A Perna, queixosa, lá contou ao seu amigo Braço, donde vinha. De não muito longe. Duzentos passos, ali mesmo, do ginásio…

− O meu PT mandou-me andar…

− O teu PT ?!...

− O meu professor do ginásio.

− Ah!, o "coach", agora tamãe  tens um "coach", que chique!...

Pois, a Perna ainda andava na escola, numa classe mais atrasada. Era muito preguiçosa, dizia a Cabeça que era uma stôra, e que em tempos fora casada com a Perna. Acabaram por se divorciar por conflito de interesses e feitios. O Braço, não, já era mais crescido. Até tinha uma tatuagem: “I Love You”…

− Ah!, “Gosto Muito de Ti”! – traduziu a Perna, que só sabia essa frase do seu inglês de praia.

E perguntou-lhe de seguida:

− Ó Braço, gostas de quem, afinal ?

− Olha, gosto muito da minha “Canadiana”.

A Perna percebeu que era uma nova “namorada”… E,  como andava atrasado na escola, não sabia o que era uma “canadiana” (sic), a muleta que o Braço usava para se deslocar de casa para a galderice

Era hora do almoço, despediram-se, dando um abraço, o Braço, e uma pernada, a Perna.

E lá voltaram às suas casas, quer dizer, aos corpos a que pertenciam: o Braço a um cadáver que tinha sido doado à Ciência e onde os estudantes de medicina, ali perto, na Faculdade, praticavam anatomia; e a Perna, ao Museu do Combatente, onde passava os dias dependurada num bengaleiro, à espera de catalogação…

Enfim, tinha sido um belo passeio, aquele, com dois dedos de conversa no fim da manhã no Jardim dos Avós, que já eram mais velhos que a Guerra dos Cem Anos.

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25141: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (18): Três amigos, três destinos - II (e última) parte

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25214: Efemérides (430): O "making of" do livro de Spínola, "Portugal e o Futuro", publicado há 50 anos (revelações do biógrafo, Luís Nuno Rodrigues)


Luís Nuno Rodrigues - "Spínola:Biografia".
Lisboa. A Esfera do Livro, 2010,  748 pp.. il.

 1. O biógrafo de Spínola, o académico Luís Nuno Rodrigues, tem algumas revelações interessantes sobre as peripécias da publicação do livro "Portugal e o Futuro" (pp. 211-221),  mas também sublinha e analisa o seu impacto na época (pp. 221-243).

Para os nossos leitores, que não leram (por falta de tempo, interesse, oportunidade, etc.) a volumosa biografia de Spínola, de 748  pp.,  aqui ficam algumas "notas de leitura" (tópicos, apontamentos, pequenos excertos)... 

Refira-se que a obra foi objeto de recensão bibliográfica por parte do nosso camarada Mário Beja Santos, que no entanto dedica apenas uma ou duas linhas ao livro "Portugal e o Futuro" (*).


Retomei há dias a leitura deste notável trabalho, esquecido na prateleira. O exemplar que possuo, tem a seguinte amável dedicatória:

"Ao Luís Graça, com estima e consideração do Luís Nuno Rodrigues. Lx, 2 de abril de 2010."


2. Sobre o biógrafo convirá dizer, resumidamente, o seguinte:

Luís Nuno Rodrigues:

(i) Professor Catedrático do Departamento de História do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa;

(ii) Diretor do Centro de Estudos Internacionais (CEI-Iscte) e do Mestrado e Doutoramento em Estudos Internacionais, na mesma instituição;

(iii) Doutorado em História Americana pela Universidade do Wisconsin e em História Moderna e Contemporânea (especialidade História das Relações Internacionais na Época Contemporânea) pelo ISCTE-IUL.

Além disso, (iv) é autor de 9 livros e coordenador de outros 8, tendo publicado 55 capítulos de livros ou entradas em obras coletivas e mais de 30 artigos em revistas especializadas;

(v) A sua obra "Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963", publicada em 2002, foi galardoada com os Prémios Fundação Mário Soares e Aristides Sousa Mendes;

(vi) Entre outras publicações, conta-se este livro, "Spínola", publicado pela Esfera dos Livros em 2010.



António de Spínola - "Portugal e o Futuro".

Lisboa: Arcádia, 1974, 243 pp.



3. O "making of" do livro "Portugal e o Futuro" (pp. 211/222):

O biógrafo aponta para meados de 1971 a ideia de Spínola começar a escrever um livro que fosse um contraponto às "teses integracionistas" (relativamente ao império colonial português), defendidas por Franco Nogueira (1918-1993), diplomata e antigo ministro Ministo dos Negócios Estrangeiros, no último governo de Salzar ("As Crises e os Homens", Lisboa: Ática, 1971, 545 pp.).

Uma parte significtiva das ideias que Spínola irá defender em "Portugal e o Futuro", incluindo a sua "tese federalista",  já estaria contida num documento enviado a Marcelo Caetano, em 1970 ("Algumas Ideias sobre a Estruturação Política da Nação") (pág. 212).

(...) "Nos últimos meses de 1971 e ao longo de 1971, Spínola escreveu vários capítulos, recebeu textos escritos por colaboradores seus e oficiais que mais de perto com ele trabalhavam, aperfeiçoou  textos em revisões constantes e com múltiplas colaborações" (pág. 212).

O seu novo chefe de gabinete, José Blanoco (que sucedeu a Nunes Barata), recebeu das mãos do general um primeiro texto, datilografado a dois espaços, com centena e meia de páginas. Instado a ler e a comentar, ter-se-á limitado a exclamar: "Isto é uma bomba".

O texto continuaou a ser trabalhado ao longo de 1972, usando Spínola um gravador para onde ditava  as suas emendas, notas, comentários e acrescentos.

Em julho de 1972 escreveria a vários dos seus amigos, em Lisboa, manifestando a sua intenção de publicar um livro, ainda em título: caso dos general Venâncio Deslandes (1909-1985) e  do ministro da Marinha, Manuel Pereira Crespo (1911-1980). Este terá pedido ao amigo,  "encarecidamente",  que nada publicasse sem primeiro falar com ele... O que ele concordou,  acrescntando que  também iria submeter o livro "à prévia leitura do presidente do Conselho" (pág. 213).

Foi nas férias de verão, no Luso, em 1973,  que ficou cncluída a versáo final. O "fiel sargento Gonçalves", de Cavalaria, bateu o texto à máquina.  Francisco Spínola, o irmão do autor, encarregou-se da revisão do texto, e coube a José Blanco, que veio de propósito da Guiné, propor um ou mais títulos. Da lista de doze títulos, Spínola escolheria o último, "Portugal e o  Futuro" (pág. 214).

Depois começaram os contactos com o editor. O contrato com a editora Arcádia  foi assinado em outubro de 1973. Paradela de Abreu ofereceu um aval, do Banco Totta & Açores, para garantir  os direitos de 20% dos  direitos sobre cinquenta mil exemplares da 1ª edição.

O general encarregou-se de  garantir o fornecimento de papel necessário para a publicação do livro, no que contou com a colaboração do António Champallimaud (para o qual Spínola havia trabalhado em tempos, na Siderurgia).

O livro começou a ser composto em várias tipografias (!)... Spínola insistia com o editor que  a data de publicação "poderia ser de um momento para o outro" (sic)... Por outro lado, a ideia era garantir que, caso viesse a ser proibido, fosse possível salvar a maior parte dos exemplares, e depois vendè-los clandestinamente (pág. 215).

Houve cinco revisões finais do livro feitas pelo punho do autor. Nas pp. 215/221, o biógafo faz uma sinopse do livro, que retomaremos mais tarde. (**)

Fiquemos, entretanto, com este excerto do texto que dá início ao cap. 4 ("O Futuro de Portugal"):

(...) "A saída de António Spínola da Guiné representava o fim de uma era, não apenas da política portuguesa naquele território mas, também, do modo português de conduzir as guerras em África. Durante um breve momento, no início dos anos 1970, as Forças Amadas portuguesas tinham conseguido dar 'credibilidade a Portugal em todos os teatros de guerra', conseguindo criar uma janela de oportunidade, um 'compasso de espera', que permitia a condução de negociações sobre o problema colonial português. Na Guiné, esta situação era particularmente visível." (...) (pág. 199),


Citando John Cann, Spínola na Guiné conseguira refrear, em 1970,  o ímpeto do PAIGC e originar um verdadeiro "impasse", com  a sua liderança forte e carismática e o seu programa "Por Uma Guiné Melhor". Mas a correlação de forças começa a desequilibrar-se em 1973. Em Angola , os generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues tinham obtido praticamente uma "vitória militar". E em Moçambique foi só depois de 1970 que a situação se começou a deteriorar...

Quando regressa definitivamente à Metrópole, Spínola trazia imenso prestígio político e militar, a nível nacional e internacional. Era um general que tinha ganho batalhas. Tinha mostrado, além disso, que havia "soluções políticas" para o impasse da guerrs, tendo encetado negociações com o PAIGC e o Senegal, que Lisboa iria desautorizar. Quando regressa, o governo de Marcello Caterno está prisioneiro da extrema direita do regime, completamente desfasado da realidade e sem qualquer visão estratégica. Tem dificuldade em arranjar um general que fosse capaz de suceder a Spínola. Com relutância, Bettencourt Rodrigues aceita... es tá preparado para "sacrificar" a minúscula Guiné para salvar as joias da coroa do Império (Angola e Moçambique)... Por isso, "Portugal e o Futuro" é uma bomba de relógio que veio apressar a agonia de um regime.

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

12 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15738: Notas de leitura (807): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (1) (Mário Beja Santos)

15 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15752: Notas de leitura (808): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (2) (Mário Beja Santos)

(**) Útimo poste da série > 23 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25203: Efemérides (429): Foi há 50 anos, em 22/2/1974, que saiu o livro de Spínola, Portugal e o Futuro um livro que se tornou um "best-seller", que toda a gente comprou e que poucos leram e entenderam, mas que abalou um regime...

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25203: Efemérides (429): Foi há 50 anos, em 22/2/1974, que saiu o livro de Spínola, Portugal e o Futuro um livro que se tornou um "best-seller", que toda a gente comprou e que poucos leram e entenderam, mas que abalou um regime...


Capa do livro, cortesia da Visão (2009)

1. Há 50 anos,  a 22 de Fevereiro de 1974, era publicado  o livro Portugal e o Futuro, do General António de Spínola sob a chancela da editora Arcádia, Lisboa, e por iniciativa do editor Paradela de Abreu.

Nele se defendia, no essencial, a ideia de que a solução para o "problema ultramarino" passava por outras vias que não a sorte das armas, e nomeadamente a solução política, com a concessão de progressiva autonomia para as "províncias ultramarinas", integradas numa espécie de "Commonweath" lusófona tardia (a chamada "tese federalista").

O livro não foi censurado, e a alguma comunicação social, sujeita à censura ("Exame Prévio"), pôde noticiar o seu lançamento. (Portugal continuava a ser um "país amordaçado" desde 1926, mas jornais como a "República" e o "Expresso" deram cobertura ao evento, transcrevendo inclusive alguns excertos; no "Diário de Lisboa", por seu turno, não há uma única linha sobre o acontecimento, nas edições de 22, 23 e 24 de fevereiro de 1974.)

Marcello Caetano, apesar da irritação do Ministro do Ultramar e da clara oposição do Presidente da República, Américo Tomás, não quis impedir a saída do livro (receoso das repercussões que a notícia da proibição poderia ter, a nível nacional, nomedamente entre os militares, e sobretudo a nível internacional) que foi autorizada pelo nº 1 da hierarquia militar, o CEMGFA, o gen Costa Gomes. 

O livro, de 248 páginas, tornou-se um best-seller. Mais de 300 mil exemplares foram vendidos, num ápice, dentro e sobretudo fora do circuito normal do mercado livreiro. Toda a gente o comprou. Mas poucos leitores, na época, terão tido a pachorra de o ler de fio a pavio e de entender e analisar as suas propostas (de algum modo, tardias, desfasadas e confusas) para pôr fim à "guerra de África" e repensar o regime... 

Confesso que eu fui um deles. A obra era um estopada. E estupidamente não me aprecebi da sua importância naquele momento da nossa História. Hoje dou a mão à palmatória. E prometo ir ao sótão  limpar-lhe o pó. 

É daqueles livros que se vende ainda hoje nas feiras de velharias, em saldo, a preço de um euro ou menos. Mesmo assim foi seguramente um dos livros que abalou uma época e um regime, e  ajudou a acelerar o caminho para o 25 de Abril. (Os oficiais das Forças Armadas, mais conservadores,  cautelosos, reservados, mas descontentes com a sua carreira devorada por uma guerra interminável), acabaram também por aderir às "teses spinolistas"; o livro deu-lhes respaldo moral e disciplinar para o seu descontentamento e até revolta, como aquela que, logo a seguir à demissão de Spín0la e Costa Gomes, foi ensaiada no dia 16 de março de 1974, o chamado "golpe das Caldas".

Recorde-se (porque a memória é curta) que, a 17 de janeiro de 1974, Spínola fora nomeado vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, por sugestão de Costa Gomes (CEMGFA). U cargo criado só para ele,  considerado um herói da guerra de África e com muito prestígio... Menos de 2 meses, a 15 de março, os dois generais serão afastados dos seus cargos (o topo da hierarquia militar) devido à recusa em participar na manifestação de apoio ao Governo e à sua política ultramarina, cena que ficou conhecida como a "brigada do reumático".

A demissão de Spínola e Costa Gomes (que teve amplo eco nos jornais da época, apesar da censura), acabou por ser um tiro de ricochete, isolando, desautorizando e fragilizando ainda mais o Govermo de Marcello Caetano que  já em 28 de fevereiro havia apresentado um pedido de demissão ao Presidente da República, Américo Tomás (que obviamente o recusou). 

Já antes, no dia do lançamento do livro, em reunião com Costa Gomes e Spínola, Marcello Caetano terá oferecido de bandeja o poder aos dois generais (que obviamente recusaram o presente envenenado).

Ao que se sabe hoje, Spínola oferecera um exemplar autografado a Marcello Cateano e pediu a sua autorização para o publicar, como mandavam as regras (sendo um militar no ativo, e n.º 2 da hierarquia militar, o vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas). No dia 20 de fevereiro de 1974, o professor e primeiro-ministro acabou de ler o livro. Confessaria, mais tarde, nas suas memórias, que o golpe militar que ele pressentia e temia há meses, já estava em marcha e era imparável. 

Há 15 anos atrás, o jornalista Luís Almeida Martins publicou, a propósito desta efeméride, na revista Visão,  (edição nº 833, de 19 a 25 de Fevereiro de 2009) um artigo com o título (irónico), "Portugal e o passado", e que termina com este parágrafo:

" (...) Poucos dias antes de morrer, a 13 de agosto de 1996, com 86 anos, [Spínola] foi visitado no Hospital da Estrela por Nino Vieira, presidente da Guiné-Bissau e antigo comandante do PAIGC. Ao sair do quarto, Nino trazia uma lágrima no olho. Os guerreiros têm uma conceção própria da vida e da morte. Não sabem é ler o futuro, como o livro de Spínola demonstrou à saciedade"... 

Curiosamente, Nino voltaria a referir este episódio, na audiência que concedeu, doze anos depois, em 6 de março de 2008 (a um ano de ser brutalmente assassinado), a um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guiledje, em que eu estava presente, e que registei.

De qualquer modo, o livro "Portugal e o Futuro" abalou Marcello Caetano e o seu regime, defendia, ha 15 anosm  o jornalista da Visão;

"Pela primeira vez, um oficial-general atrevia-se a discordar da doutrina oficial"... 

E não era um oficial qualquer. 

(...) O homem do "pingalim e monóculo" ganhara uma "aura castrense talvez só suplantada pelas de Mouzinho de Albuquerque e de outros chefes militares das campanhas coloniais da viragem do século. Dando uma no cravo e outra na ferradura, combatia a guerrilha, enquanto, de pingalim na mão, organizava congressos dos povos guineenses e delegava poderes nas autoridades tradicionais. O seu monóculo tornou-se lendário. Alcunharam-no de 'Caco' e tinha uma corte de admiradores de camuflado que bebiam as suas palavras" (...).
 
O alcance efectivo da obra de Spínola e da sua tese do federalismo e do "diálogo" com os movimentos nacionalistas africanos, a começar pelo PAIGC (como solução política para uma guerra que não poderia ter solução militar), ainda é hoje objecto de discussão e controvérsia  entre especialistas, historiadores e antigos combatentes (como é o nosso caso).

De qualquer modo, importa sobretudo sinalizar a efeméride, mais uma vez. Ao fim e ao cabo, Spínola foi o comandante de muitos de nós, entre 1968 e 1973... e a ninguém deixou indiferente, pela positiva ou pela negativa, a sua figura, a sua conduta, o seu pensamento, a sua estratégia, o seu percurso. Um lugar na História da nossa Pátria ninguém lho tira.
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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25196: Efemérides (428): Homenagem aos Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar do Concelho de Resende - Freguesia de Anreade, no dia 13 de Abril, pelas 15h00 e S. Romão de Aregos, no dia 4 de Maio, à mesma hora

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25193: Efemérides (427): José António Paradela (1937-2023): um ano de saudade... ("Sou um ilhéu de nome, um ilhavense, um antigo insular, mas também faço parte de um arquipélago mais vasto, que é afinal o mundo todo, à minha volta")

Ílhavo > Costa Nova do Prado > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Por aqui andava o nosso Zé António,  José Antóno Boia Paradela, de seu nome completo, arquiteto e escritor, amigo de família... "Fez a tropa" na pesca do bacalhau... É membro da nossa Tabanca Grande... Com a sua morte (em 21 de fevereiro de 2023), os seus amigos também morreram um pouco...  Mas agora também eles são todos, um pouco, "ilha...venses" de nome... 


Ílhavo > Costa Nova do Prado > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 >  O anfitrião e amigo, o ilhavense arquitecto José António Boia Paradela (pseudónimo literário, Ábio de Lápara (Ílhavo, 1937- Aveiro, 2023)


Ílhavo > Costa Nova do Prado > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Costumávamo passar um dia, no verão, com o Zé António e a Matilde, na sua adorada Costa Nova, antes de seguirmos para as vindimas, para o Norte, para Candoz, nos últimos dias de agosto... Na foto, a Alice e o Zé António atolados no "tarrafo" da ria... De repente, vi-me transplantado para as margens do Geba Estreito, nas proximidades de Mato Cão, quarenta anos atrás...
Fotos (e legendas): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados.[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É mais do que um ano de saudade, Zé António… São muitos anos de convívio e de amizade, grande parte, afinal,  das nossas vidas, ao longo do tempo em que os nossos filhos cresceram e se fizeram homens e mulheres…  Continuamos desolados com a tua perda, irreparável.

No ano em que se comemoram também os 50 anos do 25 de Abril, não podemos deixar de evocar o teu exemplo, não apenas como criador, arquiteto e artista de obra feita, mas também como cidadão, justo e livre, e  como homem, bom, afável, culto… 

Sempre foste amigo do teu amigo, estar contigo era um prazer e uma fonte de conhecimento, tu que tocavas tantas teclas do piano da cultura humana, das artes plásticas à música, da literatura às ciências do mar, da história pátria à “epopeia da faina maior”... Tu que adoravas o mar, as Berlengas, a tua ria de Aveiro, as tuas tertúlias, um bom copo,  um bom peixe vivinho da costa, um bom marisquinho,  o ensopada de enguias da tua Costa Nova do Prado … Tu que  sempre quiseste (e lutaste por) o melhor para a tua terra e o teu/nosso  querido país.   

Por tua causa, por "mor de ti (como se diz no Norte, na terra da Alice) somos também um pouco “ilha...venses", o que para ti queria dizer: 

"Sou um ilhéu de nome, un ilhavense, um antigo insular, mas também faço parte de um arquipélago  mais vasto, que é afinal o mundo todo, à minha volta; um ilhéu, mesmo de nome,  quando deixa a sua ilha  ou a sua península, quando embarca para a Terra Nova, na “Faina Maior", ou vai para Lisboa estudar e trabalhar, nunca destrói as pontes, nunca corta o cordão dunar e umbilical que o liga ao passado e ao futuro"...

Eu e a Alice (e seguramente também o João e a Joana) não podíamos deixar de te deixar aqui uma palavrinha de ternura, à procura das peugadas cósmicas que marcam ainda os nossos trilhos em vida... Um palavra que é também de conforto para com os teus (a Matilde, o Marco, o Jorge, a tua neta, a tua nora, os teus amigos mais próximos…).

 Teu "mano" Luís.

PS – Última mensagem do seu “alter ego”, Ábio De Lápara, no Facebook (foto *a esquerda), no dia em que se despediu da Terra da Alegria:

21 de fevereiro de 2023,  14:33

Querido Facebook, o destino levou-me para um local etéreo, onde descanso agora. Como última paragem despeço-me de todos os meus amigos dia 23 na Igreja Matriz de Ílhavo, por onde andei em seu redor descalço durante a minha meninice.

Agora, o início de algo que desconheço. Parti em Paz junto dos que me amam.

Cuida da minha conta,  meu Querido , um até já.

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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25167: Manuscrito(s) (Luís Graça) (245): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte V: 'Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - Merda para a medicina': 2. O autoritarismo sanitário do Estado Novo


O manual escolar mais famoso do Estado Novo. Da autoria de Barros Ferreira. Ilustrações do talentoso artista "Emmérico", Emérico Hartwich Nunes. 4ª edição, Porto Editora, 1958. Reimpressão, Editora Educação Nacional, janeiro de 2008.  Era o manuel mais "ideológico" da nossa instrução primária, mas era também aquele de que eu mais... gostava.



Capa do livro do musicólogo Luís Moita (1894-1967): O Fado, canção de vencidos: oito palestras na Emissora Nacional. Lisboa:  [s.n.] [Lisboa, Oficinas Gráficas da Empresa do Annuário Comercial], 1936, 357 páginas. Ilustrações de Bernardo Marques (1898-1962). 

Foi, na época, o inimigo público nº 1 do fado... "Enquanto cantamos o Fado, de cigarro ao canto da boca, olhos em alvo e paixão a arrebentar o peito, não passamos de um povo inferior, incapaz de compreender a vida moderna das nações civilizadas. Por isso repito aos rapazes  [da Mocidade Portuguesa] : ' Não cantem o Fado!' " (pág. 229). 

Tanto à esquerda como à direita, em diferentes quadrantes político-ideológicos, o fado nunca foi bem aceite pelas elites portuguesas... a não ser mais recentemente com a sua consagração como "património  imaterial da humanidade, pela UNESCO (2011). (Temos mais de 7 dezenas de referèncias com o "tag" ou descritor "Fado")


1. Comecei publicar no blogue, desde meados de março passado, uma série de textos, da minha autoria, sobre as ensinamentos que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer"...

São textos com cerca de 25 anos, que constavam da minha antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Dediquei uma boa parte da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... Não gostaria que alguns dos muitos textos que escrevi (em suporte de papel, e em formato digital) se perdessem, independentemente do interesse que ainda possam ter hoje. Não os vou atualizar (em termos de bibliografia, etc.).  Poderão interessar a alguns leitores do nosso blogue, mesmo não tendo a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou terão mesmo ? Tudo depende das "grelhas de leitura" de cada um... 

Contando com a complacência (e sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores, espero, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito.   Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": vai fazer 20 anos (!) em 23 de abril de 2024 (se lá chegar, se lá chegarmos). E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três ou quatro postes... Estes textos também funcionam, às vezes,  como uma espécie de "tapa-buracos"... Estão a ser publicados na série "Manuscrito(s) (Luís Graça! (*).

Luís Graça (2000)
Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica.



2. O autoritarismi sanitário em Portugal (Estado Novo, Séc. XX)


Os ensinamentos da Escola de Salerno  (**) são tardiamente retomados, entre nós, no célebre livro de Francisco da Fonseca Henriques (1665-1731), a Âncora Medicinal para Conservar a Vida com Saúde (Lisboa, 1721): Médico da corte de D. João V, também conhecido por Mirandela (cidade de onde era natural), Francisco da Fonseca Henriques "cita os princípios que a Escola de Salerno indicava para conservar a saúde e as seis coisas que era preciso ter em conta para o seu bom uso e administração" (Lemos, 1991, Vol. II: 143), a saber:

  • O ar e o ambiente;
  • O comer e beber;
  • O sono e a vigília;
  • O movimento e o descanso;
  • Os excretos e os retentos;
  • As paixões da alma.

A Anchora Medicinal é um dos mais conhecidos tratados de higiene do Séc. XVIII, tendo tido quatro edições entre 1721 e 1754. Embora não sendo um livro propriamente original, seriam dignos de nota, na opinião do conhecido historiógrafo médico (Lemos, 1991) , os "capítulos relativos aos alimentos e bebidas em particular": neles se dão conta de "grande número das substâncias alimentares que entre nós eram e são consumidas". 

É de presumir que Francisco da Fonseca Henriques conhecesse a edição original, em latim, do Regimen Sanitatis Salernitanum, ou das suas muitas versões (em latim e línguas vernáculas) que nessa altura corriam no Ocidente.

Nos conselhos para conservar a saúde e "viver largo tempo" (sic), indicavam-se invariavelmente a dieta moderada e a vida regrada ("Para longa vida regra e medida no beber e na comida"). Obviamente, tais conselhos "destinavam-se especialmente às classes abastadas", havendo pouca [ou nenhuma] preocupação com a alimentação e outras condições de saúde das classes populares (Ferreira, 1990, p. 192, itálicos nossos), incluindo as condições de trabalho cujo estudo só muito mais tarde, lá para o final do Séc. XIX, é que começa a interessar um ou outro médico (por ex., Miguel Bombarda, João Ferraz de Macedo) (Mira, 1947).

Diga-se a propósito, que ainda não encontrámos referência, na nossa literatura médica até à alvorada do Séc. XX, ao papel pioneiro de B. Ramazzini (1633-1717) e ao seu tratado sobre as doenças dos trabalhadores: De morbis artificum diatriba (1700; ed. rev., 1713).

A repulsa pelo trabalho manual é, de resto, um traço que distingue a sociedade senhorial (aristocrática, fundiária) da sociedade liberal (burguesa, capitalista, industrial), e que está bem patente em provérbios tais como (Quadro XIII, em anexo):

  • "Dá ofício ao vilão, conhecê-lo-ão";
  • "Deus ajuda a quem trabalha, que é o capital que menos falha";
  • "Há mais aprendizes que mestres" ;
  • "Mais vale bom administrador do que bom trabalhador";
  • "Mais vale um bom mandador que um bom trabalhador";
  • "Mão de mestre não suja ferramenta";
  • "Mãos de oficial, envoltas em sandal";
  • "Quem sabe de luta luta e quem não sabe labuta";
  • "Se o trabalho dá saúde que trabalhem os doentes";
  • "Sete ofícios, catorze desgraças";
  • "Só trabalha quem não sabe fazer mais nada";
  • "Trabalhar é bom pró preto";
  • "Trabalhar que nem uma besta";
  • "Trabalhar que nem um galego";
  • "Trabalhar que nem um mouro";
  • "Trabalhar que nem um negro";
  • "Trabalhar que nem uma puta";
  • Ou, ainda, como hoje se diz no Rio de Janeiro, "trabalho se fez para burro e português".

Essa repulsa pelo trabalho manual está bem patente na composição sociodemográfica das nossas misericórdias no Ancien Régime. Apesar de serem instituições de composição estatutariamente interclassista, estas confrarias só admitiam membros das elites locais (e do sexo masculino!) : nobreza e alto clero, por um lado; oficiais mecânicos, por outro, incluindo profissões as liberais - como o letrado, o jurista ou o físico (médico) -, os negociantes abastados, os mestres de oficina, os lavradores proprietários e categorias equivalentes.

De um modo geral, os oficiais mecânicos representavam a elite do artesanato urbano. Condição essencial para a sua admissão como irmãos na misericórdia local era não trabalhar por suas mãos, o que, pelo menos em teoria, implicava a categoria de mestre de oficina (Sá, 1996: 137. Itálicos nossos). Em teoria, porque na prática não era bem assim: vamos encontrar entre os irmãos das misericórdias categorias como os cirurgiões, os barbeiros-sangradores e os boticários que claramente trabalhavam por suas mãos (contrariamente aos médicos e aos juristas, por exemplo).

Séculos mais tarde, o Estado Novo saberia tirar partido, na formação ideológica dos portugueses (ou melhor, do "homem português"!), dos preceitos dos velhos higienistas e sanitaristas.  Em meados do século passado, ainda se ensinavam às criancinhas portugueses os aforismos atribuídos a Hipócrates (c. 460-c. 377 a.C.) ou à escola hipocrática, retomados mais tarde pela Escola de Salerno (!), justamente numa altura em que:

  • A taxa de mortalidade infantil era a mais alta da Europa (126 ‰ em 1940);
  • A esperança média de vida à nascença a mais baixa (48,6 anos para os homens e 52,8 para as mulheres, em 1940);
  • As condições de vida e de trabalho miseráveis, com a tuberculose a ser uma das principais causas de morte dos portugueses (200 mortes em cada 100 mil habitantes; 10% de todos os casos de morte).

Com a mais cínica das canduras defendia-se já então, num país que nem sequer tinha um ministério da saúde (!), a teoria do blaming the victim:

"Quando os homens (sic) chegam a velhos, é frequente ouvi-los dizer: Não há bem como a saúde; mas a gente só sabe o que ela vale, depois de a ter perdido para sempre. Eu, se agora começasse a viver, havia de ter mais cuidado" (Caixa 2, em anexo. Itálicos nossos).

Cuidar da sua saúde era responsabilidade principal do indivíduo e da sua família, cabendo ao Estado uma função meramente supletiva. Daí os conselhos dos higienistas de serviço: 

Se quiseres gozar de "saúde e alegria" até aos oitenta anos (!);

  • leva "uma vida regrada e higiénica";
  • depois, procura "viver em casa que tenha bom ar e boa luz";
  • a "vassoura" é importante para manter a higiene da tua casa;
  • mas, atenção!, "é o sol que destrói os micróbios";
  • também precisas de "bom ar";
  •  e, de preferência, deves "dormir em quarto que contenha pelo menos vinte e cinco metros cúbicos de ar por pessoa";
  • e, com o clima tão benigno que Deus nos deu, "o melhor é dormir de janela aberta" (!)

"Cuidar do corpo" (Caixa 3, em anexo) também fazia parte dos "preceitos de conservar a saúde", de uma maneira mais explícita do que "cuidar da alma" ou das paixões da alma. Assim, em caso de doença:

  • deves consultar o médico e não o curandeiro (sic), a bruxa, o endireita, a ervanária, etc.
  • e, antes de tomares qualquer remédio, lê com atenção o rótulo.
Mas o melhor é evitar as doenças,  e para isso deves:
  • não beber água fria;
  • não apanhar correntes de ar;
  • ser moderado na comida e, principalmente, na bebida;
  • lavar bem todo o corpo (e não apenas as mãos e a cara), com destaque para a cabeça que deve andar sempre limpa (leia-se: de parasitas...) e os cabelos penteados.

Last but not the least : meus queridos, "de pequenino é que se torce o pepino"! Ou seja: "Os hábitos de asseio contraídos em criança mantêm-se por toda a vida, e, além de auxiliarem a conservação da saúde, influem muito na consideração das pessoas que nos rodeiam" (sic).

Em suma, o projecto de educação sanitarista do Estado Novo não podia ser mais explícito: trata da tua saúde, trata do teu corpo, que nós depois tratamos do resto, ou seja, das paixões da alma... 

Era o mesmo projecto, tendencialmente totalitário, que levava, no ano da graça de 1936, o germanófilo (mas não necessariamente nazi...)  Luís Moita a gritar aos microfones da Emissora Nacional: "Rapazes, não cantem o fado!". 

Os rapazes eram a "Mocidade Portuguesa" (MP) que acabava de ser criada, no âmbito das reformas da "educação nacional", decretadas pelo poderoso ministro A. F. Carneiro Pacheco (1887-1957).

Organização de tipo miliciano, a MP visava o enquadramento político-ideológico da juventude, era de inscrição obrigatória para todos os estudantes do ensino primário e secundário, e potencialmente mobilizava todas as actividades circum-escolares: a educação cívica, o lazer, os cuidados de saúde, a preparação física, o dsporto, a formação política e militar, etc. (Rosas, 1994, pp. 282-283).

"Canção de vencidos", "cocaína de Portugal", o fado era visto por certas personalidades da direita integralista e nacionalista (incluindo escritores e musicólogos) como um "herança maldita vinda do ultramar" (referência ao lundum, "avô do fado", que nos terá chegado do Brasil, com o regresso da corte de D. João VI), subproduto de uma "raça abastardada" (sic) e que entre nós se havia expandido justamente "nos bairros onde, há trinta anos ainda, se albergavam o vício, o crime e a vadiagem" (sic!), em contraste com as "canções alemãs, fulgurantes e alegres" das cervejarias de Munique e dos wanderfogel (Moita, 1936, pp. 217-218).

Daí a cruzada do musicólogo e conferencista pela educação nacional contra a licença, pela saúde contra a deliquescente morbidez, pelo folclore nacional e pelo canto coral contra os "caldos de cultura" do fado gemido, de cigarro na boca e copo de vinho na mão, numa taberna imunda onde espreitavam o bacilo de Kock, a sífilis e até, hélàs!, as ideias subversivas no meio de versos heróicos, "entrelaçados na foice e no martelo" (sic)...

Em contrapartida, há um longo silêncio sobre as repercussões do trabalho na saúde. Só com o início da internacionalização da economia portuguesa, a partir de finais da decada d 1950 (enrada de Portugal na EFTA - Associação Europeia do Comércio Livre), é que os homens do Estado Novo começam a manifestar preocupações com a elevada incidência de acidentes de trabalho e doenças profissionais como a silicose (nomeadamente nas minas e pedreiras, na construção civil, na cerâmcia, no vidro, na metalomecânica, etc.)

Na justificação da Campanha Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, organizada dentro do melhor estilo propagandístico do Estado Novo, aponta-se para o facto de "a Nação [ vir ] sofrendo anualmente incalculáveis danos de ordem material e moral" (sic).. 

Sem citar números concretos, o Ministro das Corporações e Previdência Social, Henrique Veiga de Macedo, não pode mais esconder a realidade da sinistralidade laboral: 

"Quem compulsar as estatísticas ou se der ao cuidado de tomar contacto com a vida dos tribunais do trabalho ficará impressionado ao verificar a frequência dos sinistros registados e a gravidade das suas repercussões, quer para os trabalhadores e suas famílias, quer para a economia nacional" (Do preâmbulo da Portaria nº 17118, de 11 de Abril de 1959. Itálicos nossos).


Caixa 2 - A higiene da casa

Quando os homens chegam a velhos, é frequente ouvi-los dizer assim:

Não há bem como a saúde; mas a gente só sabe o que ela vale, depois de a ter perdido para sempre. Eu, se agora começasse a viver, havia de ter mais cuidado.

Lembram-se então, quando já não há remédio, do mal que fizeram em não tratar da saúde.

Muitos nem precisam de chegar à velhice, para se sentirem gastos e doentes.

E, pelo contrário, há pessoas de oitenta anos que gozam de saúde e alegria como muitos jovens não têm. É que eles levaram uma vida regrada e higiénica.

O homem deve, pois, cuidar da saúde e esforçar-se por melhorar as condições da sua vida, para se tornar forte e sadio.

Primeiro que tudo, procure viver em casa que tenha bom ar e boa luz. Não se deve dispensar a vassoura, mas é o sol que destrói os micróbios, que se não vêem. É necessário que o sol entre em casa, para acabar com o bolor e a humidade, tão prejudiciais à saúde.

Também se precisa de bom ar.   Deve-se dormir em quarto que contenha pelo menos vinte e cinco metros cúbicos de ar por pessoa. Se o clima o permitir, o melhor é dormir de janela aberta.

Fonte: Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 66 (Itálicos nossos)


Caixa 3 - Cuidemos do nosso corpo

Precisamos de cuidar do nosso corpo, para que não nos falte a saúde.

Se estamos doentes, devemos consultar o médico, porque só ele tem o saber necessário para averiguar a causa dos nossos sofrimentos e para nos curar. Evitemos, pois, os curandeiros que por toda a parte existem, sustentados pelos ingénuos que se deixam iludir com as suas palavras enganadoras.

Ao tomarmos os remédios, ou ao ministrá-los, é bom ler sempre os respectivos rótulos, para se evitarem confusões que podem ser fatais. Muitos doentes têm morrido envenenados com medicamentos tomados por engano.

Melhor ainda que tratar das doenças é evitá-las, não transgredindo os preceitos de conservar a saúde.

Não devemos beber água fria quando estamos a transpirar,  expor-nos a correntes de ar, para não darmos causa a resfriamentos ou pneumonias.

É preciso haver moderação na comida e principalmente na bebida. O alcoolismo é um vício horrível que todos os dias faz numerosas vítimas.

Todo o corpo deve andar sempre bem lavado, e não apenas as mãos e a cara; a cabeça precisa de  andar limpa, e os cabelos penteados.

Os hábitos de asseio contraídos em criança mantêm-se por toda a vida, e, além de auxiliarem a conservação da saúde, influem muito na consideração das pessoas que nos rodeiam.

Fonte: Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 65 (Itálicos nossos)

(Continua)

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(**) Vd., poste anterior;

1 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25026: Manuscrito(s) (Luís Graça) (243): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte V: 'Pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina - Merda para a medicina' 1. A arte de bem conservar a saúde