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quinta-feira, 31 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23129: Cartas de amor e paz em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381) (2): Carta à Luizinha

Empada - José Teixeira escrevendo

Em mensagem do dia 30 de Março de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos esta Carta à Luizinha para a série Cartas de amor e paz em tempo de guerra:


Cartas de amor e paz em tempo de guerra (2)


3 - Carta à Luizinha

Chamarra, 6 de fevereiro de 1969

Minha querida Luisinha

A noite de ontem foi vivida no seio da mata. Chegou-nos uma informação de que íamos ser atacados, pelo que decidi partir a meio da tarde com parte dos meus homens, e internar-me na floresta, perto do local de onde costumamos ser atingidos. De vez em quando aparecem ao cair da noite, e raras vezes, de manhã cedinho. Prevenir é sempre o melhor remédio… lá fomos nós dormir ao relento, o que por estas bandas até se torna agradável se não houver mosquitos a apoquentar-nos.

Deitado na terra húmida deixei-me envolver pela noite estrelada e um sentimento de autoconfiança veio substituir a confusão e o medo que antes sentia ao caminhar por entre lianas entrelaçadas pendentes de altas árvores com copas gigantescas talvez centenárias. O negro da noite estendeu-se sobre a terra como um abismo insondável, envolvendo-me. Quanto mais profundas são as trevas mais sombria se torna a minha vida e a minha alma. Porém, a escuridão da noite estrelada, sem a luz da lua por perto, assemelhava-se a um tecido negro e transparente onde miríades de pequeninas luzinhas bailavam no cosmos. O negro da noite ganhou vida e me convidou a retornar ao presente. Por vezes, o céu cobria-se de nuvens e o mundo ficava envolvido num negro tão negro que os nossos olhos como que cegavam. Nessas ocasiões vemos com os olhos da alma que nos convida a sermos persistentes e a mantermo-nos ainda mais atentos ao que nos rodeia.

Na alta madrugada, tempo em que o perigo tinha passado, deixei-me passar por um leve sono.

O dia preparava-se para sair do ventre da noite quando acordei. No cosmos, os astros já tinham perdido o seu inebriante brilho. As estrelas perdiam os seus raios de luz e ganhavam uma cor prateada que o sol nascente, a pouco e pouco fez desaparecer. Apenas uma a mais brilhante atraiu a minha atenção. Um fino raio da sua luz penetrou através dos olhos do meu coração. Deixei-me embalar por esta estrela que me ousara fitar de tão longe, rompendo a densa ramagem da floresta. A lesta imaginação, de uma mente perdida de saudade, leva-me, num ápice, até à minha terra, até junto de ti. Talvez tu, meu amor, te tivesses levantado cedo, como é teu costume, para te dedicares aos livros, e ao veres a estrela da manhã te lembrasses de mim e me encomendasses nas tuas orações a Nossa Senhora.

O sol renascido vertia mil raios de luz e calor, sobre a verdura da copa das árvores que nos protegiam, enquanto a límpida e fresca água do rio murmurava suavemente, espreguiçando-se nas margens do tarrafe em tempo de maré vazante, onde milhares de coloridos caranguejos se passeiam lentamente em busca do pequeno-almoço, tornando as margens num tapete natural de inimaginável beleza. Uma brisa leve e suave bateu-me na face amenizando o extremo calor matinal que o sol teima em projetar. Assim, mal dormidos e mal acordados levantamos a emboscada e seguimos alegres e confiantes o caminho de regresso a casa.

A receber-me, com um monte de roupa lavada e passada a ferro com todo o esmero, estava a minha lavadeira, a Binta. Os seus olhos escuros e penetrantes refletem tranquilidade. A paz em tempo de guerra. Os seus lábios parecem talhados em pedra púrpura, tão precisos são os seus contornos, assim como a fina linha dos seus grandes olhos, debaixo de umas sobrancelhas naturais e bem delineadas, pregadas numa face de tal forma bem desenhada pelo artificie divino que a tornam na mais bela mulher africana que conheci até hoje. As maçãs do seu rosto, de um preto rosado vivo e macio, dão-lhe um toque especial, que aliado ao seu aberto e transparente sorriso a tornam divinal.

Não tenhas ciúmes, minha querida Luisinha. A Binta vai casar brevemente com o Braima, filho do chefe de uma tabanca, não muito longe daqui, que está sob a minha proteção, com quem gosto de jogar às cartas enquanto conversamos sobre o mundo que nos rodeia. O mundo aqui, é muito pequeno, está fechado dentro de duas fiadas de arame farpado. Não fora a guerra que nos atormenta e estaríamos no paraíso, onde toda a gente se conhece e se dá bem, partilha alegrias e tristezas e o pão vai chegando para matar a fome.

Fico-me por aqui, contigo no coração. Sinto tanta necessidade dos teus abraços, do teu sorriso, de te poder dizer olhos nos olhos – amo-te.

E para que não fiques preocupada, os “nossos amigos” devem ter mudado de ideias ou passaram ao largo sem nos incomodar.

Um terno beijinho do teu
Zeca.
Algures no Sul da Guiné

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Nota do editor

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terça-feira, 27 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22408: Estórias do Zé Teixeira (49): Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Em mensagem do dia 23 de Julho de 2021, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais um dos seus contos, para a sua série "Estórias do Zé Teixeira":

Caros camaradas Luís e Carlos.
Está a chegar o tempo de férias, nada como um alegre conto para desanuviar.

Com votos de muita saúde, abraça-vos o
Zé Teixeira


********************

UM DIA DE FESTA EM TEMPO DE GUERRA

Naquele princípio de noite de quinta-feira, o alferes notou que algo de anormal estava acontecendo na tabanca. Do Iero, apenas recebera um alegre sorriso, quando o interpelou sobre o que estava acontecendo com a população. As mulheres andavam num algaraviado rodopio, as bajudas passaram a tarde no “cabeleireiro”, apresentando-se com belos e inabituais penteados, os homens, como de costume, tagarelavam animadamente debaixo ao majestático poilão, que o alferes já fora tentado a abater, pois considerava que era um excelente ponto de mira para o inimigo e se ainda não o destruíra foi pelo respeito que lhe merecia aquela simpática gente. A sua frondosa sombra era a sala de honra onde os homens grandes se reuniam e tomavam as decisões importantes para a vida comunitária local, o salão de festas comunitário, a escolinha onde as crianças, sentadas no chão, ouviam o mestre, na sua aprendizagem corânica.

Ao apreciar esta azáfama deixou-se invadir por um sentimento de felicidade. A sua tabanca estava viva e ativa. Adorava aquela gente, o seu calor humano, os sorrisos que recebia e lhe preenchiam a alma. Havia um inimigo por perto que a todo o momento podia surgir e quebrar aquela harmonia, pelo que se decidiu a visitar, ao cair do sol, todos os abrigos e postos de sentinela e recomendar aos seus homens uma especial atenção para a noite que se aproximava.  

Como era seu hábito ficava uns minutos largos numa silenciosa cavaqueira com cada militar em serviço de vigia e proteção, pelo que recolheu ao seu leito, um pouca tardiamente, depois de se refrescar à moda fula, com umas latadas de água colhida no bidon que tinha à porta da casa.

Sexta-feira, manhã cedo, foi acordado por uma voz feminina que o chamava docemente. "Aferes! Alferes, vem, quero falar contigo!"

Não reconheceu a voz de quem o estava a chamar. Olhou para o relógio, eram sete horas. Voltou-se para o outro lado e deixou-se ficar decumbente a saborear a manhã que se avizinhava bem cálida. Mas a voz insistiu; "Alferes! alferes vem falar comigo! Sou a Djubae, a mãe do Adulai, o teu menino."

Levantou-se célere, enfaixou-se na toalha de banho e abriu a porta. Habitava uma casa típica local que lhe fora cedida pelo Iero. As paredes em cana entrançada recobertas de barro vermelho, encaixavam-se num chão térreo cobertas de palha de capim, que ladeava a casa até a um metro do chão providenciando ao espaço interior uma agradável frescura. Inclinou-se para passar a umbreira da porta e deparou com a Djubae toda aperaltada, com bonito vestido que lhe realçava a juventude e a beleza, com um lenço de seda pura na cabeça.

 Impulsivamente deixou-se espreguiçar enquanto o pensamento lhe devolvia o que tinha apreciado na tarde anterior e pensou: "A festa vai continuar… que se passará com esta gente, meu Deus!?"

- Alferes, o Adulai vem convidar-te para a sua festa!
- Que festa?  - questionou, esfregando os olhos ensonados a precisar de uma chapada de água fresca para acordar.
- Hoje, a tabanca tem festa grande. Allah, louvada seja Ele, deu o dom da vida ao meu menino. Vem visitar-nos o grande Cherno Rachid para fazer oração a Allah o misericordioso, louvado seja Ele.  
Queremos que venhas à festa do Adulai -  disse, num ato repentino como que a despejar um recado que lhe avassalava o coração e se atrofiava na garganta.
- Hum! mas… O Cherno Rachid vem cá e vocês não me informaram para eu criar condições de segurança. Vou ter uma conversinha com o Iero!
- Tem calma, alferes, o Aldje Cherno Rachid pode viajar por toda a Guiné sem risco de vida. É muito respeitado, até pelos bandidos que estão no mato. É um escolhido de Allah e só Allah é Deus protetor e misericordioso - disse calmamente, enquanto pegava na mão do alferes e a encostava ao seu coração.
- Djubae! Djubae! Faltavas tu para prenderes ainda mais o meu coração a esta terra maravilhosa, a esta gente de coração puro, que não merece a pouca sorte a que está votada. Maldita seja a puta da guerra! - vociferou aturdido pelo mavioso convite que acabara de receber. 

Uma lágrima libertou-se do seu coração e escorregou-lhe pela face duramente queimada pelo agreste sol africano. Lágrima que a Djubae recolheu religiosamente na manga do seu vestido domingueiro.
- Vai, disse meigamente o alferes, beijando ternamente a mão da Djubae. Eu não demoro. Quero alimentar-me do vosso júbilo, da vossa enorme vontade de viver. Vai, minha querida!

…E chegou a hora da festa, chamemos-lhe de batizado, para melhor compreendermos o grande significado que tem, para este povo, a entrada na comunidade de uma nova vida.

Em tempo de guerra, não é aconselhável usar o “bombolom” ou os “tam tam” para fazer o aviso e lançar o convite para a festa. Todavia, a tabanca enchera-se de caras que o alferes Barbosa não se lembrava de ter visto por ali. Os homens da terra e das tabancas vizinhas, vestidos de longa batina branca, com a cabeça coberta, solenemente sentados à sombra do poilão aguardavam a chegada do idolatrado Cherno Rachid, emblemático líder religioso a quem toda a Guiné muçulmana independentemente da opção político-militar, se curvava em respeito pelos seus profundos conhecimentos corânicos e pela sua forma de ser e estar no quotidiano da vida. Esta forma de viver tornara-o no homem de Deus mais respeitado em toda a Guiné e até países limítrofes, a quem o Governador da Província se inclinava com respeito e ousava consultar sobre os grandes problemas. Pelas mesmas razões era respeitado pelo bureau político da PAIGC e considerado intocável, pelo que se movia em paz pelas meandrosas picadas da Guiné, sem correr riscos de vida.

As mulheres grandes, aformoseadas nos seus trajes típicos, linguarejavam ruidosamente, sempre com o olho fixo na picada de onde surgiria o homem de Deus, enquanto a juventude se divertia a seu modo aguardando o momento mais solene.

O alferes José Barbosa sentado em lugar de honra no meio dos homens, ao lado do felizardo pai do Adulai, ouvia as conversas em linguagem crioula sobre o passado, o presente e o futuro da Guiné, tentando, nos seus parcos conhecimentos linguísticos locais, compreender de que falavam. O sentimento que tivera de se sentir a mais naquele meio desvanecera-se rapidamente. Sentia-se envolvido por um ambiente de bem-estar. Era como se fosse um filho da terra. Um estranho filho da terra.

Ao verem ao longe, no carreiro, a onda branca com o séquito do clérigo, gerou-se um alvoroço espontâneo. 

Dois jovens, engalanados com os mais belos trajes e pinturas guerreiras pelo corpo, munidos de estridentes assobios e braceletes musicais, agarraram os seus tambores, o djembé e o bougarabou, e prepararam-se para iniciar a festa.

Quatro bajudas entre elas a Binta, aproximaram-se dos pilões e tomaram nos macetes, colocando-se em posição de começar a ação de pilar do arroz.
 
O artista convidado afinava o Kora, um instrumento musical feito de madeira ou bambu com ranhuras transversais e uma caixa de ressonância obtida de uma cabaça partida ao meio. Instrumento de origem mandinga que gera uma musicalidade divinal, o que vai dar mais vida à festa do Adulai.
 
O recém-nascido vestido apenas com o fato que a natureza divina lhe dera, é colocado no colo do avô, que tira do bolso uma farpa acastanhada de vidro, arrancada, talvez, de uma inútil garrafa de cerveja. 

-O açougueiro segura,pelo pescoço, o carneiro que vai ser sacrificado em honra do glorioso, o senhor supremo do Universo, louvado seja Ele. Uma naifa afiada na mão espera pacientemente.
 
A mulherada faz então uma longa roda que envolve todo este ambiente, fechado num silêncio espontâneo e expectante. Convidativo à meditação sobre o valor de uma vida. Uma vida humana que nasceu para ser feliz. Merece ser feliz.

O Califa, depois de ser cumprimentado religiosamente pelos presentes, entra no recinto, abre os braços aos céus e começa a orar.

Momento mágico para os olhos e coração do alferes que vê soltarem-se as mãos das bajudas, dos tocadores de batuque, das mulheres, de toda a gente, até do velho avô que começa a rapar com o vidro da gasta garrafa de cerveja, o cabelo negro do bebé Adulai, enquanto o carneiro dá o seu ultimo mééé´!.

O início da festa que irrompe ritmadamente ao som do bater do pilão, dos toques e assobios dos tamborileiros, acompanhados por dezenas de mãos a baterem palmas, com os corpos a gingarem num frenesim e as vozes num harmonioso coro de louvor a Allah, o Criador. Não faltou o acender da fogueira com a panela devidamente colocada pelas ágeis mãos das cozinheiras de serviço. Tudo, num simultâneo festejar da vida do Adulai.

A sonoridade do macete a bater no pilão, alimentado pela cantilena mais linda, que o alferes jamais ouvira, ritmada pelo bater de palmas das suas jovens manobradoras numa cadência alucinante, com os seios, o mais belo símbolo da sua feminilidade, a acompanharem o bailado, revolvendo-se majestaticamente nos seus bronzeados corpos a pingar longas gotas de suor. Um espetáculo divinal, a que aqueles sons arrancados vigorosamente do fundo dos tambores, alimentados pela musicalidade do korá, com o seu toque especial, davam vida e cuja mensagem não conseguia interpretar. 

Tudo isto transporta o alferes Barbosa ao seu Portugal, à sua terra, o Minho das desfolhadas, dos bailaricos animados pela viola e pela concertina, das cantigas ao desafio, deixando-o por momentos perdido na saudade que o devorava.

Procurou o olhar da Binta, mas não o encontrou. Queria suavizar a dor que lhe ia na alma, lado a lado com a alegria de estar ali, a viver com o seu povo (assim o considerava) uma festa tão linda. Precisava de esquecer, nem que fosse por momentos, a sua aldeia natal, nos braços da mulher africana que lhe prendera o coração.

A Binta sentia-se aturdida. Faltava-lhe o seu Braima, que tantas vezes animara festas como esta. Agredia o pilão com raiva desmedida, enfiada dentro dela, cantando sem nexo. O seu coração bailava longe dali. Como ela adorava tê-lo por perto, para lhe transmitir num olhar sereno todo o afeto que lhe enchia a alma. Talvez não estivesse distante assim, pensou, tentando consolar-se. As boas notícias voam rapidamente… perdeu-se no ritmo da festa e continuou a cantarolar, olhando de través para o alferes de quem gostava, mas não se prendia de amores. A vida continuava, mesmo com seu o Braima escondido na mata, não a podia perder.

E assim se passou a manhã, enquanto as mulheres e bajudas davam o seu passo de dança típica e se libertavam dos maus irãs, os homens alinhavam em conversas soltas, até que chegou a hora do almoço. Homens a um lado, mulheres a outro, algumas com as suas crianças. Grandes bacias cheias de arroz e pedaços de cabrito envolvidos em saboroso molho de chavéu, são espalhadas no recinto.

 Aninhados no chão, depois de lavarem as mãos, os convidados banqueteiam-se calmamente conversando de tudo e nada, porque o importante é viver o momento.

Para o alferes reservaram uma pequena bacia de arroz, com a melhor tranche de cabrito e uma colher, que o Barbosa recusou preferindo aninhar-se junto do Iero e partilhar do almoço comum, para alegria dos presentes que o acolheram com um rasgado sorriso de contentamento.

A tarde foi serena. Alguma música e muita conversa. Os visitantes aproveitaram para, em convívio, trocarem ideias, recordarem velhos tempos, projetarem o futuro.

E foram partindo discretamente antes que o sol se escondesse para além da mata

A chegou a noite. Voltou o silêncio. Voltaram os medos.

O Alferes foi ter com os seus homens. Em cada posto de sentinela uns olhos vigilantes espreitavam o futuro.

Sábado seria um novo dia.

Zé Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P19325: Estórias do Zé Teixeira (48): "Um Novo Natal" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

terça-feira, 13 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22100: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII: Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores e a crueldade das minas


Foto nº  1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 >  Cumbijã que construímos, literalmente: com sangue, suor e lágrimas. Em primeiro plano os nossos chuveiros e a hortinha do Zé Carlos aproveitando a água do banho...

 

Foto nº 2  > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 >  O Cumbijã que encontrámos. Á direita,  o Beires levantando mais uma mina e à esquerda o mausoléu em betão onde um camarada acionou uma mina

Fotos (e legendas): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Pormenor dos cuidados colocados no processo de levantar uma mina: Beires (o especialista em minas e armadilhas), Portilho, Vasco da Gama e Abundância conferenciando sobre melhor forma de levantar mais uma Era sempre uma manobra arriscadíssima.

Foto (e legenda: © Vasco da Gama / Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Cumbijã > As minas que levantámos (30)… “Manga de ronco”, mas com lágrimas!

Foto (e legenda): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 5 >Guiné > Região de Tombali > Colibuia   > 1973  >  


Foto (e legenda): © António Murta (2016). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.


 
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex- urriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII (*)

 

Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores 
e a crueldade das minas



Assim se prolongou a nossa missão nestas diferentes tarefas: (i) patrulhas de reconhecimento e segurança no mato (ii) proteção da coluna para Buba (iii) e mais intensamente a proteção ao grupo de engenharia na construção da estrada Mampatá-Nhacobá. 

Com o avançar dos trabalhos o perigo de contacto com o IN aumentou significativamente e começou a guerra mais estúpida e cobarde das minas.

Militares de outras companhias, que também participavam na proteção dos trabalhos de construção da estrada, tinham já acionado uma ou outra mina antipessoal e uma máquina de engenharia uma anti carro. De dia para dia e ansiedade era maior no caminho para a frente de trabalhos. Com mil cuidados, paciência, muita perícia dos nossos picadores e, muita sorte (utilizando a linguagem da bola: a sorte dá muito trabalho), tínhamos passado pelos pingos da chuva, mas, infelizmente, por pouco tempo…

Lembro aqui, com alguma emoção:

• os camaradas “velhinhos” do BCAÇ 3852 (1971/73) que nos receberam principescamente com direito a sopa de capim cozinhado com água turva da bolanha e cerveja a 40 graus (#);

• os camaradas “velhinhos” da CCaç 18 (constituída maioritariamente por elementos nativos), com quem aprendemos, juntamente com o BCAÇ. 3852, a lidar com esta “coisa” estúpida da guerra sofrendo e chorando, juntos, os camaradas mortos e feridos em combate;

• os camaradas “periquitos” do BCAÇ 4351 (1973/74), que nos acompanharam (todos “borrados” - tanto quanto nós nos primeiros dias de Aldeia Formosa) em algumas ações quando a região estava a ferro e fogo com a nossa entrada na base do PAIGC em Nhacobá;

• os nossos camaradas e amigos de 
Mampatá [ CART 6250, 1972/74] :que faziam questão de nos pagar a cerveja sempre que parávamos, junto ao magnífico mangueiro, no seu pacato e simpático destacamento para limpar o pó da garganta, dando-nos ânimo com as suas palmadas nas costas como se despedissem de alguém que ia atravessar o deserto, minado, a caminho do inferno.

Assim se formaram os especialistas das picagens. Um pau com um ferro pontiagudo numa extremidade, como se fosse um caminheiro de São Tiago, que era projetado, durante a marcha, para a terra com a força bastante para sentir um toque diferente, mas não suficientemente forte para não acionar a mina. Convenhamos que era uma tarefa que exigia muita perícia e concentração.

Na marcha em “pirilau” (uma fila de homens ligeiramente afastados uns dos outros) os 2 primeiros, para além da sua arma e restante equipamento também transportavam e manobravam este “sofisticado” detetor de minas.

Para quebrar um pouco a rotina do dia a dia, esporadicamente, Aldeia Formosa era flagelada com granadas de canhão sem recuo e/ou morteiro.

Sempre que Aldeia Formosa era flagelada estava fora do quartel (exceto no batismo) com o meu pelotão emboscado, toda a noite, na frente de trabalhos da estrada - “sempre que eu passava a noite fora, o quartel entrava em alerta máxima!!!”.

Estas emboscadas eram sempre vividas com muito receio (que não é o mesmo que medo!?) e ansiedade, pelo que o nosso sentimento ao ouvirmos a fortaleza de Aldeia Formosa a ser flagelada era de algum alívio mas também de preocupação pelos nossos camaradas que estavam a ser atacados .

Dois grupos de combate faziam durante o dia a proteção aos trabalhos de engenharia e pernoitavam, emboscados, durante toda a noite, na frente de trabalhos.

Era sempre uma emboscada vivida com muita adrenalina, particularmente nas noites mais escuras. Vivíamos em permanente sobressalto desconfiando do mais pequeno ruído. As nossas companhias habituais eram os macacos que “ladravam” como cães (ou não fossem na sua maioria macacos cão!). Sempre que um ruído estranha lhes chegava aos ouvidos, “ladravam” funcionando como sentinelas para as nossas tropas.

Numa das emboscadas um soldado afirmava com toda a convicção que um macaco, na calada da noite, lhe tinha roubado a ração de combate...talvez, não seria a primeira vez, contudo, durante a noite todos os macacos são “pardos”…

Os dedos das mãos e dos pés não chegam para contar o número de vezes que fizemos estas emboscadas, vividas sempre com a tensão nos limites. Contudo, inexplicavelmente, por alguns instantes, conseguíamos alhear-nos da situação de guerra e saboreávamos os momentos extraordinários e únicos de passar uma noite em plena floresta Africana. É algo que nos marca para a vida:

• as noites escuras com o fresco do cacimbo limpando o suor dos 40º do dia, deixando-nos inebriar pelos sons da floresta húmida ouvindo os macacos ao longe e o “piar” de uma ou outra ave;

• as noites de trovoada contínua, que nem as festas da S.ª da Agonia [, de Viana do Castelo], fazendo-se dia com as descargas elétricas violentas de uma beleza indescritível;

• as noites de luar, lindas e quase românticas...sublimando os pensamentos nas nossas namoradas ou madrinhas de guerra;

• as noites das primeiras chuvas que nos limpavam o corpo e a alma, com o agradável cheiro a terra africana.

De manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçavamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir...

Sentíamos que estávamos a ser vigiados permanentemente pelo IN, já que sempre que emboscávamos na frente de trabalhos,  rebentavam com os pontões já construídos em linhas de água na nossa retaguarda. Sempre que emboscavamos juntos aos pontões tínhamos minas na frente de trabalhos.

E sempre que destruíam os pontões,  a coluna ficava retida no local várias horas até se construir um caminho alternativo.

Uma ou outra vez ousaram atacar a coluna que se deslocava para a frente de trabalhos. Num destes ataques um soldado africano foi mortalmente atingido.

Era evidente o esforço do IN em retardar ao máximo a chegada da estrada a Nhacobá, ganhando tempo para não perturbar o ataque contundente que estavam a preparar contra Guileje e Gadamael (##), cujo desfecho dramático não só virou o curso da guerra na Guiné como acelerou a revolução de Abril.

Para o ataque a Guileje e Gadamael, a partir da fronteira com a Guiné Conakry, ter sucesso, era importante manter a sua base no interior (Nhacobá), servindo de tampão e ao mesmo tempo de importante celeiro - aqui encontrámos toneladas de arroz que dava para alimentar um exército durante meses. Era também fundamental para o PAIGC segurar Nhacobá mantendo aberto o importante corredor de Guileje permitindo o transito de homens e material para a zona sul do território.

Para atingirem tal desiderato utilizaram a estratégia mais eficaz e ao mesmo tempo mais cobarde para retardarem a construção da estrada: a guerra das minas.

Chegada a frente de trabalhos a Colibuía (uma das tabancas abandonadas), e uma vez que estava prevista a reocupação da mesma pela nossa companhia, os nossos picadores passaram a “pente fino”, milímetro a milímetro, o local. Dois grupos de combate da companhia passaram a dormir, alternadamente aqui.

Já com as máquinas a terraplanarem esta antiga tabanca, criando as condições para aí nos instalarmos, como era recorrente, surge a contra ordem que afinal iríamos ocupar a tabanca mais à frente – Cumbijã.(**) [Vd, infografia abaixo.]

Chegados a Cumbijã, para aí nos instalarmos definitivamente, detetamos e levantamos cerca de 30 minas (pessoal e anticarro: vd. foto nº  2, acima).  A eficácia na deteção e levantamento de minas foi de quase 100%. Digo quase, porque Infelizmente os quase 100 % não evitou a nossa segunda vítima grave causada por esta estúpida e cobarde guerra das minas (a primeira foi um acidente de um camarada da companhia a manobrar uma granada ofensiva que lhe rebentou na mão).

Um soldado que estava de visita ao destacamento, por pura curiosidade uma vez que não fazia parte dos grupos de combate, abeirou-se, coisa que todos nós fizemos, junto de uma pequena construção em betão (em homenagem a um soldado morto no local e que pertencia à última companhia que ocupou o local) para ler a mensagem gravada na placa de cimento. 

Enquanto as máquinas de engenharia terraplanavam criando as condições mínimas de segurança e habitabilidade, ouve-se um grande rebentamento, julgando eu, na altura, ser uma mina acionada pela máquina, que parou, ouvindo-se de seguida gritos de desespero. Foi o soldado que acionou uma mina, que não foi detetada, no mausoléu.

Por uma questão de respeito ao militar morto neste destacamento, ao entrarmos pela primeira vez no local, decidimos manter o mausoléu.

Por ser, obviamente, local de grande curiosidade, já que todos iriam querer ver a dedicatória inscrita no mesmo, foi o local mais picado e verificado por todos os meios. Ficamos incrédulos como foi possível, logo ali, rebentar uma mina. À volta do mausoléu existia uma estrela desenhada com garrafas de cerveja, e não fomos perfeitos, devíamo-lo ter sido, prevendo tal situação. 

A mina estava colocada debaixo de um grupo de garrafas de cerveja, pisadas pelo nosso querido amigo, pensando ser mais seguro. Este incidente, o segundo, não só abalou o grupo como nos consciencializou que o perigo vivia connosco 24 horas por dia, pelo que qualquer passo ou atitude devia ser sempre muito bem escrutinado.

(Continua)

___________

Notad do autor:

(#) Ao chegarmos a Aldeia Formosa por todo o lado se ouvia: "Piriquito vai no mato, olélélé velhice vai no Bissau olélélélé".

Fomos recebidos, calorosamente, com direito a banho e rancho melhorado. Depois do banho fomos conduzidos ao bar para limpar as goelas do pó da viagem.

Alguns colegas “velhinhos” pediam ao soldado que servia no bar cervejas para eles e para os novos companheiros: para eles o soldado servia uma cerveja fresca para o periquito uma quente. Reclamamos, ao que o soldado nos diz: fresca só para os “velhinhos”, com o encolher de ombros do dito “velho”. Como estávamos intimidados e assustados com todo aquele ambiente ninguém mais reclamou.

Convidados para o jantar, aos “velhinhos” era servido, com deferência pelos soldados, uma sopa com aspeto agradável, aos periquitos era servida uma água turva, com grandes pedaços de capim e com gestos bruscos do soldado entornando a mesma nas nossas calças. Aqui a coisa “piou mais fino” e alguns de nós reagiu com alguma violência. Antes que a coisa descambasse, os soldados que serviam no bar identificaram-se como colegas furriéis, e que tal não passava de uma praxe habitual aplicada aos periquitos. Com tudo esclarecido ... a farra foi até às tantas com direito a cerveja fresca.

Dormimos como justos no chão em colchões insuláveis... ainda vazios…

(##) Entretanto, acontece o impensável, Guileje, o aquartelamento mais bem fortificado da Guiné, e muito próximo de nós, foi abandonado pelas nossas tropas (uma companhia que se formou ao mesmo tempo que nós em Estremoz, todos nossos amigos, a CCAV 8350), em consequência do ataque em massa, com armas pesadas e durante vários dias consecutivos, causando várias vítimas entre militares e população…

O PAIGC ocupando Guileje (só 3 dias depois deste ser abandonado!!!), deslocou todo o poder de fogo aí utilizado para Gadamael, completamente sobrelotado com a chegada dos militares e população de Guiléje...


Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Guileje > Mapa de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Alguns dos topónimos míticos por onde passava o "corredor de Guileje" ou o "corredor da morte", triangulando entre Guileje, Gandembel / Balana e Nhacobá. Ver também posição relativa de Cumbijã e Colibuía, a sudoeste de Aldeia Formosa.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


Comentário de LG: 

Recorde-se aqui a história sumária da Companhia de Cavalaria nº 8351/72:

Identificação CCav 8351/72
Unidade Mob: RC 3 - Estremoz
Cmdt: Cap Mil Cav Vasco Augusto Rodrigues da Gama
Partida: Embarque em 270ut72; desembarque em 270ut72 | Regresso: Embarque em 27Ag074



Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 280ut72 a 17Nov72, no CMI, em Cumeré, seguiu, em 19Nov72, para Aldeia Formosa, a fim de efectuar o treino operacional sob orientação do BCaç 3852 e, a partir de 4Dez72, reforçar aquele batalhão e depois o BCaç 4513/72, com a missão prioritária de segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mampatá-Cumbijã-Mejo, em cooperação com outras subunidades.

Em 3Abr73, quando os trabalhos da estrada atingiram Cumbijã, deslocou parte dos efectivos para esta povoação, a fim de garantir a segurança e protecção do parque de máquinas de engenharia e a continuação dos trabalhos.

Em 17Mai73, com a realização da operação "Balanço Final", instalou-se temporariamente em Nhacobá, até 26Mai73, após o que ficou em Cumbijã, com a mesma missão anterior.

Em 26Ju174, após substituição em Cumbijã por dois pelotões da CCav 8350/72, recolheu a Buba e depois a Cumeré

Em 30Jun74, foi colocada em Bissau, onde passou a colaborar na segurança e vigilância periférica da cidade até ao seu embarque de regresso.

Observações - Não tem História da Unidade.Tem Resumo de Factos e Feitos (Caixa n.º 128 - 2.º Div/4.º Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) :   7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág. 520.

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(**) Vd. também poste de 28 de dezembro de  2008 > Guiné 63/74 - P3675: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (5): Ocupação do Cumbijã e construção das instalações

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa

1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos hoje a última estória desta série enviada a 7 de Fevereiro de 2021 ao nosso Blogue.


8 - O VALOR DA SERINGA

Faltava sempre alguma coisa, na hora da rendição, fossem os atacadores de umas botas, o testo de uma panela, uma cavilha da G3, ou até a culatra de um obus. Quando havia um ataque a um aquartelamento era relativamente fácil, no respetivo auto, incluir a perda de parte de um produto, de um elemento de um qualquer equipamento ou mesmo considerar a sua destruição integral. Na tropa chamava-se a isso o desenrascanço, umas vezes seria uma forma expedita de alguém se livrar da injustiça de pagar por algo de que não tinha sido responsável, mas, nalguns casos não era senão uma vigarice para encobrir furtos.

Quando cheguei a Mampatá tive que acusar a receção de uma série de equipamentos onde se incluía um atrelado sanitário, material para pequenas cirurgias, seringas e outras miudezas. O meu antecessor queria que eu assinasse tudo, quase sem ver e, não sei se propositadamente, deixou tudo para o último dia, o dia de todos as pressas. Fui muito claro e franco:
- Venho avisado para o comportamento costumeiro das rendições, sei que vão faltar algumas pequenas coisas, aliás de pouca monta, como já confirmei, também não sou pessoa para estragar a vida a ninguém, quero por isso que me apresentes uma relação escrita do que falta, só para meu uso pessoal.
Assinei então o auto de receção, confirmando a existência da carga sem qualquer falta, permitindo que o meu camarada regressasse a Lisboa sem problemas. Ele dizia-me que já assim tinha acontecido aquando, dois anos antes, da rendição, entre ele e o seu antecessor.

Nenhum prejuízo resultou da falta daqueles objetos, alguns deles já em desuso, razão pela qual não fazia sentido adotar outra atitude eventualmente mais rígida. Mais tarde, pensava eu, logo se veria a volta a dar ao problema. Os meses foram lentamente passando sem que eu me quisesse sujeitar a pedinchar ao Sargento e ao Capitão da Companhia a colaboração na elaboração de um auto de destruição de forma a que o material em falta fosse abatido à carga. Fui empurrando com a barriga, porque, naquelas circunstâncias, quanto mais tarde melhor, e eu até podia, com o meu dinheiro, comprar o material em falta, quando julgasse oportuno, que não era nenhuma fortuna.

A inesperada chegada do 25 de Abril, quase concomitante com o fim da comissão, veio, num primeiro momento, facilitar-me a vida, porque, julgava eu, que acabada a guerra, já não me teria que submeter à operação da transmissão dos materiais a nova companhia, mas, simplesmente, seria feita a doação de todo o equipamento e medicamentos remanescentes aos representantes do novo governo. Enganara-me, o material seria ainda entregue a uma companhia recém-chegada ao território. De pronto, evitando a sujeição aos trâmites burocráticos da tropa, encarreguei o meu amigo 1.º Cabo Enfermeiro Celso Mendes, de, na sua ida a Bissau para uma consulta, adquirir com o meu dinheiro, o material em falta, livrando-me de qualquer problema, aquando da rendição da nossa companhia ou de fazer a outrem o que não gostaria que a mim me fizessem. Por outras palavras: quando o dinheiro puder resolver não devemos, por causa dele, arranjar problemas de consciência ou outros.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

Nhacobá, entrada norte
© Foto: Vasco da Gama


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sétima.


7 - O MILAGRE DE NHACOBÁ

Naquele dia os medos não me deixavam dormir e as piores antevisões do que poderia acontecer, nas horas pesadas que se aproximavam inexoráveis, sucediam-se na minha corrente de pensamento, não deixando espaço para admitir um só cenário otimista que fosse. Se no primeiro dia da tomada daquela tabanca tinham morrido quatro camaradas, quem acreditaria que não morressem dois ou três mais, no dia seguinte. E podia até ser eu! Porque não? Ou então podia calcar uma mina, como tinha visto acontecer ao Albuquerque, ir pelos ares e voltar ao chão, já sem uma perna, sob uma espessa nuvem de pó. Depois viria o helicóptero para me levar para o Hospital Militar. Nesse caso podia até ter mais sorte que o Albuquerque, sobrevivendo sem uma perna, a direita ou a esquerda, tanto fazia. Mas, sem a perna, ainda jovem, a minha namorada gostaria de mim assim? Bem pior, muito pior, era ficar sem as duas pernas ou morrer mesmo. Porque é que me resignei em ir para ali, para o meio do mato de África, lutar numa guerra sem fim? Afinal, não havia ali brancos que precisassem que os defendêssemos das catanadas dos pretos. Aquilo era um verdadeiro suplício de Sísifo, a uma vitória de hoje sucedia amanhã uma derrota, numa interminável caminhada sangrenta, iniciada, naquela pequena colónia, em 1963, e sem fim à vista.

Tinha-me sentado, já a noite tinha feito adormecer as mulheres e as crianças daquela morança, numa espreguiçadeira igual a muitas que havia por toda a tabanca, nalguns casos mais do que uma por casa. Acordado estava só o More, o homem da casa, soldado do pelotão da milícia, combatente desde a primeira hora, do lado de Portugal. Era assim que ele gostava de dizer:
- Eu sou português, eu não quero governo de PAIGC, eu gosto de General Spínola.
Ele escutava-me pacientemente, como se não tivesse que se levantar antes das seis horas do dia seguinte. Não era um soldado qualquer, tinha sido condecorado pelo Governo de Portugal com uma Cruz de Guerra e era talvez o melhor combatente de Mampatá. Baixo e magro, aliava a sua destreza felina à experiência adquirida desde os primeiros recontros da nossa tropa com o inimigo Eu sabia que, na madrugada seguinte, ambos sairíamos a caminho da tabanca de Nhacobá, integrados numa força equivalente a duas companhias, que tinha sido tomada , no dia anterior, pela nosso exército, onde permaneceríamos por um dia e meio, até sermos substituídos por outras forças. Quem melhor do que ele me poderia fortalecer o ânimo, naquelas horas que precederam a arriscada operação. Dizia-me, na sua islâmica convicção, que tudo iria correr bem, porque eles tinham fugido deixando mortos no terreno e assim demorariam algum tempo até se recomporem da derrota.. Que me fosse deitar no meu quarto, porque no outro dia nem um tiro seria preciso dar.
Posição relativa de Nhacobá-Cumbijã.
Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné

E lá fui apalpando a escuridão por entre carreiros que me levaram até à solidão da minha cela que ficava justamente ao lado da enfermaria. Refrescado o corpo por um minuto debaixo do chuveiro deixei-me cair no catre onde já dormira cerca de trezentas longas noites. Mas, perturbado por pensamentos cheios de mutilações e morte, só por intermitentes momentos tinha passado pelo sono, durante aquela madrugada, quando ouvi, em frente à janela do meu quarto, o barulho que faziam os meus camaradas a levantar munições, granadas e algum armamento especial para aquele dia. Estava na hora de fazer a minha parte. Não podia dar sinais de fraqueza, por isso aprovisionei a minha bolsa de enfermagem, de tudo o que poderia ser precioso em caso de ferimentos graves, onde não poderiam faltar garrotes, soro fisiológico, ampolas hemostáticas, morfina, pensos e os mais diversos comprimidos. Carregaria ainda a minha G3, que um rapazinho da tabanca tinha lubrificado no dia anterior, as cartucheiras e uma caixa com a ração de combate. E aí vou, de medo disfarçado, ao encontro dos meus camaradas. Olhava-os como se fizessem parte da minha família, e eram mesmo, porque desde que o avião nos despejara, em Bissau, largos meses antes, estávamos ali entregues à nossa sorte, no meio do mato, sem que os nossos pais, irmãos, avós, esposas e namoradas pudessem imaginar as agruras dos nossos longos dias. Em camiões militares depressa percorremos aqueles quinze quilómetros, pela estrada recentemente concluída, até à tabanca nova de Cumbidjã, onde dois ou três meses antes se tinha instalado uma nova companhia. Empreendemos então, apeados, o trajeto até Nhacobá, pelo itinerário já desbravado pelas máquinas da engenharia, onde nos esperavam os camaradas de outras companhias que íamos render. Ante os nossos olhos havia um conjunto de casas de planta quadrangular cobertas de capim, abandonadas pelos seus moradores de etnia balanta. Era uma comunidade de gente dedicada à cultura do arroz de bolanha, ao contrário dos fulas, nossos amigos de Mampatá, que cultivavam o arroz de sequeiro. Se o ambiente era, aparentemente, seguro, para tanto contribuía a vastidão de mata capinada e terraplanada, permitindo abranger um extenso horizonte visual. O perigo, por certo, não viria enquanto a noite não chegasse e nos impedisse de vermos o inimigo, porque ele, escondido lá longe, aguardaria, pacientemente, pelo momento propício, como o leão espera pela gazela.

Segundo o plano previamente estabelecido, cada grupo de combate ocupou o seu lugar, no interior de valas, constituindo-se numa formação de quadrado defensivo, ficando no centro o espaldão das peças de artilharia e um abrigo subterrâneo onde o Capitão Marcelino, o More, o Pinheiro das transmissões e eu próprio iríamos passar aquela noite em alerta permanente. O More estava ali como guarda-costas e conselheiro do Capitão. Quem como ele conhecedor daquelas matas desde pequeno, habituado a distinguir os ruídos dos animais da mata, poderia melhor perscrutar os sons da selva e interpreta-los? Por isso estava ali, ao nosso lado e transmitia-nos confiança. Por momentos eu dormitava escudado pelo estado de vigília permanente do More, mas quando me tirava do sono ele dizia-me, em crioulo, quase paternalmente :
- Durme, perigo não tem gora.
As castanhas de cola, que continuamente mascava, mantinham-no arrebitado, como a todos convinha. Vi-o rezar, dentro do abrigo, balbuciando em palavras árabes, orações que sabia de cor. Não pediria a Deus, em absoluto, que o salvasse da morte, antes lhe rogaria que, caso morresse, o acolhesse no paraíso celeste. Pedi eu, igualmente, ao mesmo Deus, que me salvasse da morte, mas já não me importei em pedir-Lhe o paraíso celeste, caso não me quisesse ou pudesse livrar da morte. Na verdade o único paraíso que eu queria era o que eu conhecia bem, a minha família e aquela que eu desejava ardentemente constituir, nada de paraísos metafísicos. Ele era muçulmano, mas ambos sabíamos que o Deus de Moisés era-nos comum e que só Jesus Cristo e Maomé nos separaram nos catecismos que nos formataram na infância.

De repente, um tiro, dois, muitos, logo seguidos de rajadas, interromperam o sono de uns e as evocações e invocações de outros. O ataque tinha começado. Os clarões dos rebentamentos de granadas faziam da noite dia e ouvia-se gritaria indecifrável no meio da trovoada das armas. O Pinheiro, da Vila das Aves, deixou o rádio e saiu do abrigo, indo instalar-se a fazer fogo num sector que lhe pareceu mais desprotegido, sendo secundado pelo More.

No fim, caladas as armas, só por milagre não teríamos um ou mais mortos, e, por certo, muitos feridos, pensava eu. Na verdade só arranhões! Um milagre!

O More, esse fidelíssimo e intrépido soldado do exército português, admirado e protegido por nós, foi fuzilado pelo PAIGC, passado pouco mais de um ano, por ter apostado no lado errado – aquele que lhe parecia o certo.

A razão é sempre a dos vencedores, ávidos de vingança, ciosos, das suas conquistas e dos seus despojos, os do lado certo.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados

HM 241 de Bissau

1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sexta.


6 - O SOLDADO DOS PÉS INCHADOS

O rapaz apareceu-me tão cedo, na enfermaria, que me tirou da cama. Aquele assunto era mais do que urgente para ter que esperar pela hora oficial da abertura dos serviços. Dentro de poucos minutos ele tinha que estar na formatura, incorporado no seu grupo de combate, ali junto à árvore grande dos passarinhos, bem no centro da tabanca, fardado, com a arma, cartucheiras, cantil e ração de combate. A saída para o mato incutia-lhe algum receio, porque tinha já ouvido o alferes, no dia anterior, à noite, avisar que iriam montar uma emboscada num carreiro, onde era altamente provável a interceção de um grupo inimigo.
Há dias assim, em que mesmo o combatente mais afoito, nas suas elucubrações, tem uma premonição que o adverte para uma desgraça fatal. E foi isso mesmo que o atormentou a noite toda. E como havia ele de se livrar do mato, pelo menos naquele dia que lhe parecia poder ser o último dos seus verdes vinte anos? Tinha que engendrar um plano. E quando acordei, atordoado, com aquelas pancadas repetidas na janela, ao mesmo tempo que chamava por mim como se estivesse com muitas dores, foi só o tempo de calçar os chinelos e abrir-lhe a porta.
- Então, que se passa Sousa, perguntei-lhe?
- Olhe para os meus pés. Acha que eu estou em condições para sair para o mato, assim, com os pés inchados?

O problema parecia-me grave, até porque ele não me ajudava mesmo nada a diagnosticar o mal. Na verdade isso era o que menos lhe interessava. Que não estava em condições de cumprir aquela missão era a única certeza que eu tinha. E era isso, apenas, que interessava ao Sousa. Apressei-me a comunicar ao Alferes que aquele homem não estava operacional, partindo o grupo para a operação, sem ele.

Não me achando capaz de debelar aquele mal, nem lhe conhecendo a origem, encaminhei-o para o médico, colocado na sede do batalhão que, por sua vez, na ausência de meios complementares de diagnóstico o fez evacuar para o Hospital Militar de Bissau. Ao fim de alguns dias regressou o Sousa a Mampatá, já sem inchaço.

Só há meia dúzia de anos o Sousa me contou como me enganou, assim como ao Alferes médico. Naquela noite ele tinha aplicado uma espécie de garrote em cada perna, que desapertou imediatamente antes de me bater à janela, “aflito”.

Não fiquei agastado com o Sousa, nem tinha que ficar. Afinal, na operação em que ele não participou correu tudo bem, mas podia ter corrido mal.

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quinta.


5 - DORMIR COM O INIMIGO

Conhecia-os bem, porque passavam, de vez em quando, pelo nosso aquartelamento de Mampatá, a caminho do mato, sempre que as operações decorriam na área do sector atribuído à nossa companhia. A sua companhia era de intervenção, o que significava que não tinha apenas uma área fixa à sua responsabilidade operacional, mas intervinham às ordens do comando do batalhão, ora num subsector ora noutro. Era na verdade uma companhia muito prestigiada e com uma atividade operacional muito intensa a Companhia de Caçadores n.º 18, designada por nós a CCaç 18, a que aqueles dois furriéis pertenciam.

A maioria dos seus militares era natural da Guiné, e só a minoria composta pelo capitão, quatro alferes, 1.º sargento, alguns furriéis e uns tantos cabos especialistas, eram oriundos da então chamada metrópole portuguesa. Mas estes dois furriéis que viajavam comigo num batelão de mercadorias, em pleno rio Grande de Buba, eram guineenses de pele bem escura. E se nos conhecíamos de Mampatá e até de encontros fortuitos em Aldeia Formosa, durante aquelas longas horas entre Buba e Bissau, com escala na ilha de Bolama, falámos de tudo, mas especialmente da guerra e das previsões que dela faziam aqueles dois meus camaradas de armas. Sim parecia-me que entre nós os três havia muito em comum, embora não deixasse de considerar que eles estavam no seu solo e no seio da sua cultura.

Ambos eram manjacos, um dos grupos étnicos não islamizados, combatentes do exército português, tal como eu. Os três iríamos desfrutar de um mês de férias, eu em Medas-Gondomar, eles em Bissau. Pelo que tenho presente nenhuma reserva mental se interpunha entre o meu pensamento e as ideias que exteriorizava sobre aquele conflito sugador de bens, ávido de sacrifícios e predador de vidas. Parecia-me, pelo lado de ambos, algum desconforto na impossibilidade de me dizerem tudo o que lhes ia na alma. Sentir-se-iam eles de consciência absolutamente tranquila, cientes de que lutavam dentro do seu território contra, pelo menos, uma parte do seu próprio povo? Ou criam naquela ideia, utópica para uns, realizável para outros, de uma Guiné integrada num espaço pluricontinental e pluricultural, beneficiando da proteção de uma metrópole europeia capaz de assegurar a formação de quadros técnicos e apoio na construção de infraestruturas, num território delas tão carente? Mas como poderia Portugal, então sob um regime de ditadura, garantir a uma ou a todas as suas parcelas dispersas pelas mais diversas geografias, um governo autónomo resultante de uma escolha democrática?

Um era o Furriel Baticã, do outro já se me varreu o nome da memória, mas ambos me pareciam apreensivos quanto ao seu futuro, vestindo uma roupagem que não lhes assentava na perfeição. Mesmo assim, no decurso daquela viagem até Bissau, muito aprendi da sociologia da Guiné, dos usos e costumes, dos dialetos, do comércio esclavagista, do fluxo demográfico da Guiné para Cabo Verde e, posteriormente, da migração de cabo-verdianos para a Guiné.

Desembarcados em Bissau, combinámos beber umas cervejas no Café Bento, logo ali à direita, no início da avenida mais importante da capital guineense, onde daríamos os últimos retoques à conversa e nos despediríamos. E foi assim, na despedida, que os dois camaradas da CCaç 18 me convidaram para passar, na casa que tinham na cidade, os dois ou três dias que teria que esperar pelo meu embarque para o Porto, via Lisboa.
A casa era modesta, para os padrões europeus, mas boa no contexto da Guiné. Num amplo quarto estavam dispostas meia dúzia de camas de ferro ladeadas por uma mesinha de cabeceira. Tudo muito sóbrio num chão de cimento coberto aqui e ali por esteiras de confeção artesanal.

Naquela casa entravam e saiam, continuamente, familiares e amigos dos meus anfitriões, aceitando com naturalidade e até simpatia a minha presença. Por certo todos estavam informados de quem eu era. Pela minha parte sentia-me à vontade, mais seguro até do que se estivesse num local onde predominassem militares de pele clara. Bissau começava a ser um local pouco seguro, a que chamávamos a Saigão da Guiné, sobretudo desde o ataque, com foguetões, ao aeroporto.

Mais tarde, depois das férias que correram vertiginosamente na metrópole, e regressado ao mato, reencontrei estes hospitaleiros camaradas guineenses e até ao fim da comissão tive oportunidade de lhes reafirmar a minha gratidão pela forma simpática como me receberam em sua casa onde passei dois ou três agradáveis dias, num bairro onde só se viam pessoas de pele escura.
Alguns anos depois da independência da Guiné, vim a saber, com algum espanto, que o Furriel Baticã, foi integrado no governo do PAIGC, ao contrário de muitos outros guineenses que foram fuzilados por terem integrado as Forças Armada Portuguesas. Posso então dizer que dormi na casa do inimigo.

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Uma manada de vacas, cambando o Rio Udunduma... Possivelmente pertencentes a um notável fula da região (Amedalai, por exemplo, que era a tabanca mais perto)... Só com muita relutância os fulas vendiam cabeças de gado à tropa... O gado era, tradicionalmente, um "sinal exterior de riqueza", um símbolo de "status" social...

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quarta.


4 - A VACA

Para além dos sofrimentos da alma, dos perigos sempre no horizonte mental, das agruras do clima, da omnipresença dos incomodativos insetos, havia, ainda, uma alimentação monótona e quase sempre imprópria para seres humanos.

Os alimentos e quase tudo o que consumíamos estava dependente do seu transporte, desde Lisboa até ao local recôndito onde estávamos instalados, com recurso a sucessivas operações de carregamento e descarregamento, por entre navios, barcos mais pequenos, camiões, aviões e outros meios, suportando dias de exposição ao calor e à chuva, chegando ao destino, muitas vezes já afetados no seu estado de conservação ou literalmente adulterados.

Os aquartelamentos implantados junto à margem dos grandes rios ou braços de mar tinham um abastecimento mais regular, visto que recebiam diretamente, por barco, as suas provisões, mas aqueles, como era o caso de Mampatá, que tinham que organizar colunas de reabastecimento, sofriam os constrangimentos quer de eventuais ataques da guerrilha ou rebentamento de minas, quer das indiscritíveis condições de transitabilidade por caminhos que pareciam rios, na estação das chuvas.
Nalguns casos o transporte planeado para certo dia era adiado, porque numa situação de guerra de guerrilha, o espaço não era ocupado apenas por um dos beligerantes, mas sujeito sempre à presença, ainda que esporádica, do inimigo. Havia aquartelamentos implantados bem perto de tabancas habitadas por população que tinha um comportamento duplo, ora connosco ora com o inimigo. Nestes casos, ocorriam operações em que eram roubadas vacas que depois eram abatidas para abastecimento do depósito de géneros da companhia. Não era o nosso caso.

Estávamos em setembro de 1973, em plena estação das chuvas, e talvez por isso a chegada de géneros alimentícios tardava, e parecia que não havia mais nada que comer para além daquela fastidiosa massa com rodelas de chouriça de colorau, ao almoço e ao jantar. Para ser mais exato havia uma variante, arroz em vez de massa. Mas que fazer? O caçador da milícia bem se esforçava, saindo de noite para a zona periférica do quartel onde esperava horas pelo aparecimento de uma gazela ou de um porco do mato. Mas nada! Nem para ele nem para nós.

Um dia, mais uma vez, interpelei o meu Capitão, dizendo-lhe que até na enfermaria se repercutiam as consequências de uma dieta tão monótona promotora de um agravamento generalizado do estado de saúde da rapaziada. Ele, farto de me ouvir, e não tendo solução para um problema que também o trazia preocupado, propôs-me:
- Ó Carvalho, você, que até se dá muito bem com a população, veja se consegue convencê-los a venderem-nos uma vaca!

Pois o desafio era esse, convencê-los a venderem-nos uma vaca, e se não resolvia o problema estrutural, amenizava-o, pelo menos.

Os Fulas, grupo étnico predominante naquela região, no sul da Guiné, tinham muita relutância em vender uma das suas vacas que pastavam capim no lado exterior da cerca de arame farpado que nos protegia dos ataques do inimigo. Na verdade, a nossa perspetiva eivada de etnocentrismo impedia-nos de perceber que, para eles, as vacas constituíam a sua propriedade que geriam de forma muito parcimoniosa.

Devido às altas temperaturas tropicais e à ausência de meios de frio, os fulas matavam, para consumo próprio, uma vaca de cada vez, numa escala rotativa por entre todos os possuidores de cabeças de gado, sendo que toda a carne de um animal era distribuída em doses proporcionais ao número de membros de cada agregado, para consumo num único dia. Para eles, a venda de uma vaca não lhes interessava, porque alterava todo o esquema estabelecido no seio da comunidade. Era então preciso sentarmo-nos à mesa, como se diz em Portugal, para tentarmos convencer os donos daquelas vacas pequenas e magras a venderem-nos uma.

Confiante na minha facilidade de comunicação com a população de Mampatá, primeiro falei com o Régulo, Aliú Baldé, só depois com alguns dos homens grandes da terra. O régulo é assim uma espécie de presidente de Junta, mas com mais autoridade, talvez um misto de presidente de junta e regedor.
Disse-me ele, naquele seu modo seguro mas ponderado, que o assunto iria ter um bom desfecho, mas que era preciso fazer uma reunião com a presença dos proprietários das vacas, cerca de uma dúzia, e nós os dois.

No dia seguinte, pelas três horas da tarde, lá estávamos todos na morança do Régulo Aliú. Ele próprio, com a paciência de Fula, num tom monocórdico, expôs o objeto da reunião, no dialeto local, permitindo-me, mesmo assim, perceber que argumentou em favor da minha pretensão, dando-me, de seguida, a palavra.

Em rigor aquela reunião não decorria à volta de uma mesa, mas simplesmente nos encontrávamos sentados, cada um sobre uma esteira, no chão de terra. E foi assim, naquela roda democrática, que intervim aduzindo argumentos em favor da minha companhia, usando palavras em crioulo mescladas com muitos termos do dialeto fula. Disse-lhes que estávamos ali todos irmanados no mesmo objetivo, que também, inúmeras vezes colaborávamos com a população nas suas atividades agrícolas e que, por isso, agora que tínhamos problemas de saúde pela falta de uma alimentação variada, precisávamos que nos vendessem uma vaca.

Todos quiseram dar a sua opinião, mas eu estava certo que nenhum deles se iria opor. Na verdade apenas havia que se cumprir aquele ritual, e a mim nada custava deixar passar o tempo e as cerimónias próprias daquele ato diplomático.

Os Fulas eram quase todos boas pessoas e eu sentia-me bem em tratar daquele assunto. No dia seguinte uma vaca foi sacrificada, e centena e meia de soldados tiveram uma refeição melhorada.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

1. Lembremos a mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2021:

Meus caros amigos, combatentes.

O que vos mando é mais um capítulo do meu livro, para, caso entendam, o publicarem no nosso blog. Como é bastante volumoso poderá ser publicado de modo fatiado, admitindo até que algumas partes possam ser desinteressantes, logo não publicáveis.

Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.



3 - O CANHANGULO

O Samba era um soldado da milícia de Mampatá. Fazia parte do grupo de três ou quatro dezenas de civis armados da povoação, cuja missão principal era a defesa da população civil, perante um eventual ataque do inimigo. Todos eles tinham as suas famílias na localidade e ocupavam-se, paralelamente, dos seus afazeres, quase sempre, na cultura do arroz e do amendoim. Recebiam uma remuneração modesta do Exército Português, por participarem no esforço daquela guerra. Algumas vezes o dinheiro não lhes chegava até ao fim do mês, por isso, era frequente pedirem algum emprestado com a promessa de o devolverem, logo que voltassem a receber.

O Samba era um dos que me batiam à porta sempre que o mês se tornava mais longo que o dinheiro. Quando a importância era de valor muito residual fazia de conta que me esquecia, coisa que lhe agradava.
Da última vez tinha-me pedido setenta pesos, com a promessa de mos devolver, logo que recebesse, no fim desse mesmo mês. Passaram-se dias, semanas e até meses, e o Samba, sempre que o interpelava, respondia-me com aquela ingenuidade de quem acha que os prazos só são de cumprir quando se pode:
- Não pode ainda, eu tem filho doente, mulher está mal, espera mais.

Não tinha eu outro remédio, senão esperar.

Quase a acabar a minha comissão, já convencido que aquela dívida não seria mais cobrável, numa das minhas digressões pela tabanca, passei pela morança do Samba. Conversávamos do meu regresso a Lisboa, do fim da guerra, da revolução do 25 de Abril, abrigados pela sombra da cobertura de capim daquela casinha construída da forma mais primitiva que se possa imaginar, quando uma espingarda de fabrico artesanal, encostada a um canto me despertou a atenção. Pelo seu aspeto, coberta de poeira e um pouco desconchavada, não me pareceu que lhe merecesse muito apreço nem que lhe servisse de alguma coisa.
Para mim, aquele objeto ferrugento teria algum valor, se o mandasse restaurar por mãos habilitadas, quando regressasse às Medas. Mas era preciso que ele mo vendesse, coisa que me parecia muito provável quer pela amizade que havia entre nós quer por já não lhe servir de nada. Tomando-a nas mãos, como a mostrar-lhe o meu interesse por aquela arma inerte, perguntei-lhe se ma queria vender. Admirado pelo meu interesse numa arma que já não fazia fogo, agradado por me fazer feliz, como se me quisesse manifestar gratidão, recusou vender-ma, como se isso manchasse a nossa amizade.
- Se tu quer essa arma, leva ela pro Lisboa, eu não vendo, eu dá para ti.

Não tendo que lha pagar, sempre achei oportuno, declarar-lhe que, no mínimo, considerasse que já não me devia os setenta pesos, amortizados por aquele ato generoso e desprendido de sua parte. Só então, perante o seu ar de espanto, percebi que teria sido melhor não fazer referência à sua dívida, porque ele tinha-se desligado dela e só me pagaria num qualquer dia, se eu precisasse daquele dinheiro e a ele não fizesse falta.

Obrigado, amigo Samba, por me teres ensinado, que existem no mundo, outros paradigmas culturais, para além dos nossos conceitos ou preconceitos judaico-cristãos.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2021:

Meus caros amigos, combatentes.

O que vos mando é mais um capítulo do meu livro, para, caso entendam, o publicarem no nosso blog. Como é bastante volumoso poderá ser publicado de modo fatiado, admitindo até que algumas partes possam ser desinteressantes, logo não publicáveis.

Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.




2 - DESPEJADO NA GUINÉ

Aos dezoito meses de tropa fui convocado para me apresentar no Quartel da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, onde me havia de juntar à Companhia de Artilharia n.º 6250 e seguir por avião para o território da Província da Guiné, no dia 27 de junho de 1972. 

Era o pior local aquele que me coube, poderia ser Moçambique, melhor ainda Angola, e muito melhor qualquer um dos outros territórios do Portugal Ultramarino onde a guerrilha não se tinha imposto. Mas era aquele e não outro. Pensei ainda, num ou noutro momento, dar o salto para França, manobra muito mais arriscada agora do que se o tivesse feito antes dois ou três anos. Pode ser que tudo corra bem, cogitava eu, lembrando-me do meu irmão mais velho, o Neca, que já por lá tinha passado quase incólume. É certo que ele me tinha feito alguns “desenhos” sobre a realidade guineense e que não eram muito agradáveis, mas pode, caros leitores, uma reportagem sobre uma realidade ser compreendida inteiramente, sem a presença do corpo e da alma?

Falava-me de patrulhamentos sob temperaturas escaldantes, de milhões de mosquitos e outros insetos incomodativos, de noites inteiras debaixo de chuvas torrenciais, de sede, de péssima alimentação e também de gritos de feridos e outras cenas tétricas. E era ele, segundo me disse mais tarde, e eu próprio vim a perceber, muito contido nas descrições.

Passadas quatro horas, desde a partida do aeroporto de Lisboa, lá estávamos nós a divisar, por entre as nuvens, as coberturas de zinco da maioria das casas da cidade Bissau, o que nos dava por antecipação uma ideia de pobreza da cidade capital. As portas abertas do avião, logo que se imobilizou na pista, deixavam entrar uma aragem muito quente e húmida que nos fazia ensopar o corpo e a farda de abundante suor. Estávamos já em plena época das chuvas que se inicia em maio e acaba em novembro, com temperaturas muito altas de dia e de noite. 

Depois de uma apressada formatura ainda na pista para a apresentação da praxe às autoridades militares, seguiu-se uma deslocação, em camiões, daqueles cento e cinquenta soldados para o Quartel dos Adidos, onde esperaríamos por nova etapa. O Quartel dos Adidos destinava-se precisamente a acomodar tropas em trânsito quer inseridas em unidades inteiras, como era o caso, quer no acolhimento individual de soldados. A estadia era normalmente muito curta e em péssimas condições. No nosso caso ficámos ali deitados no chão de cimento, sobre malas ou roupas, até que, pelo meio da madrugada, fomos acordados aos gritos, porque estavam já no exterior alguns camiões que nos conduziriam ao cais de Bissau, onde embarcaríamos com destino à Ilha de Bolama.

O Zé Manel da Régua não foi só um dos soldados da minha companhia, ouvia-lhe opiniões e leituras das realidades exóticas daquela terra e das suas gentes e gostava da sua autenticidade e honestidade, sobretudo da sua humanidade e do seu espírito generoso e disso tudo resultou uma amizade para toda a vida. 

Hoje julgo que as vivências em situações extremamente difíceis como é a guerra constituem o cadinho ideal para a consolidação da amizade. Tinha ele aquele ar de despreocupado (que ainda mantém) muito marcante, algumas vezes desligado da realidade, quiçá a congeminar um dos seus poemas. Estivesse ele, naquela madrugada de 28 de junho a dormir profundamente, ou às voltas com o conteúdo e a forma de mais uma poesia, a verdade é que ele ficou ali no chão da caserna sem dar conta da nossa partida e só quando estávamos já no meio da boca gigante do rio Geba, a caminho da ilha de Bolama é que ele acordou. Apareceu no dia seguinte, com umas botas emprestadas, por ter perdido as suas, numa boleia de uma avioneta que algum amigo lhe arranjou, com o ar mais despreocupado que se pode imaginar.

Permanecemos nesta ilha durante cerca de trinta dias, em exercícios de aperfeiçoamento operacional. Bolama era de certo modo o espaço ideal para o efeito, porque tinha características de vegetação idênticas às que iríamos encontrar e era território insular e, por isso, sem guerra. Como é sabido, numa ilha é quase impossível a sobrevivência de guerrilha por ausência de apoios externos e caminhos de fuga. 

Mas havia de ser nessa ilha, durante um exercício com arma de lançamento de granadas, que havia de assistir, a poucos metros de distância, à morte de dois soldados, no fatídico dia 10 de julho de 1972 quando contávamos apenas treze dias de presença na Guiné: o Soldado José Mata e o Alferes José Carlos Figueiredo, o primeiro jaz sepultado no cemitério de Valbom – Pinhel, o segundo tem o seu corpo depositado no cemitério de S. Pedro do Sul.

Bolama tinha sido capital da Guiné, entre 1879 e 1941, por isso deslumbrava-me com alguns exemplares do seu património arquitetónico, apesar do seu estado de abandono e ruína, como o antigo Palácio do Governador, o edifício dos Paços do Concelho e as desativadas instalações do Banco Nacional Ultramarino. Nada que me mitigasse a saudade dos que tinha deixado por cá, como da minha namorada com quem, se não fosse o execrável estorvo da guerra, teria já casado, dos meus pais, dos irmãos, da minha tia materna, dos avós, dos amigos, das coisas boas da vida normal sem sobressaltos nem medos. 

E naquela noite, mais triste que qualquer outra que tivesse já vivido, em pleno cemitério de Bolama, à luz de velas, amortalhava os corpos dilacerados daqueles dois soldados, cujas vidas se tinham esvaído nesse dia, num mar de sangue, vertendo irreprimíveis lágrimas por entre soluços de revolta. Como era bem pior a guerra do que dela me contara o meu irmão Neca! E imaginava eu, enquanto, ajudado por outros, depunha nas urnas, com o maior respeito, quase veneração, aqueles camaradas martirizados por uma causa inútil: como seria o sofrimento dos pais destes jovens com promissores projetos de vida, quando lhes baterem à porta os arautos da indizível desgraça dos seus filhos!?

No dia seguinte uma avioneta fez o transporte dos dois combatentes, para Bissau e, passados alguns dias ou poucas semanas, estariam os sinos das suas terras a chamar os amigos e vizinhos para o enterro destes jovens que tinham perdido a vida pela Pátria. Nós sairíamos daquela ilha, integrada no chamado arquipélago dos Bijagós, no dia 28 desse mesmo mês de julho, com destino ao sector onde devíamos substituir outra companhia e aí permanecer durante cerca de vinte e quatro meses.

A viagem teve duas etapas, porquanto saímos de Bolama numa embarcação idêntica à que nos trouxera de Bissau, uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) que nos levou por um braço de mar até à povoação de Buba e só ao segundo dia partimos de Buba para Mampatá, o nosso destino, no dia seguinte. Uma LDG servia para transportar tudo: camiões, materiais de qualquer tipo e tropas, e tinha a particularidade de pode acostar em qualquer ponto da costa ou da margem dos rios, mesmo que desprovidos de cais. 

Pois seguimos então do canal de Bolama para a embocadura do rio Grande Buba, na verdade um dos muitos braços de mar muito comuns no território guineense, avistando ambas as margens de floresta cerrada para onde, de vez em quando, os tripulantes da embarcação disparavam alguns tiros aleatoriamente, com o intuito de dissuadirem eventual tentativa de ataque por parte dos guerrilheiros do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). 

Passado um dia e uma noite lá nos aparecia, ao longe, a povoação e aquartelamento de Buba e à medida que nos aproximávamos, mais nítidos se tornavam os contornos dos edifícios e depois as silhuetas dos soldados da companhia aí instalada. Logo depois a vozearia festiva da nossa chegada quando a LDG abriu a sua bocarra para deixar sair camiões, tropas e materiais como chapas de zinco, madeiras serradas, cimento, cerveja, arroz e outros géneros alimentícios. Ainda nem todos tínhamos abandonado a barcaça mas a festa da receção aos periquitos prosseguia com a passagem, na nossa frente, de camiões transportando supostos soldados feridos, numa encenação em que a companhia instalada em Buba pretendia assustar-nos. Não teria transcorrido mais que uma hora, quando nos preparávamos já para o início da segunda etapa, por estrada, num percurso de cerca de vinte e cinco quilómetros, rebentou uma emboscada no itinerário por onde deveríamos passar, e logo depois começaram a chegar soldados dessa companhia de Buba, feridos reais, numa reedição autêntica daquilo que tínhamos visto, anteriormente, a brincar.

Logo ali, ainda antes de chegarmos ao nosso sector, fui solicitado para colaborar na assistência ao soldado Bento que estava entre a vida e a morte. A enfermaria estava instalada dentro de um abrigo subterrâneo e eu auxiliava o furriel enfermeiro da companhia de Buba na tarefa penosa de mantermos vivo aquele jovem que tinha um estilhaço alojado no tórax. Por entre gemidos do ferido e os estrondos das saídas das granadas das nossa peças de artilharia instalava-se, entre nós os recém chegados, a sensação de que tínhamos vindo parar a um dos piores sítios da Guiné. O contacto com os guerrilheiros tinha ocorrido quase no fim da tarde e, em pouco tempo, a escuridão sobreveio e por isso não mais foi possível a evacuação aérea do ferido para o Hospital Militar de Bissau. 

No outro dia, pela manhã, lá apareceu a avioneta que transportou o Bento para o hospital. Debalde porém. O Bento fenecia gradativamente e nem os melhores cirurgiões de Bissau o puderam salvar. Está sepultado em Ferreira das Aves - Concelho de Satão.

No dia seguinte iniciaríamos a nossa jornada de vinte e cinco quilómetros até Mampatá, alquebrados de corpo e de espírito pelos acontecimentos do dia anterior. Nos camiões que nos transportavam seguiam também materiais de construção, munições e víveres. Ao meu lado, sentado sobre um saco de arroz, olhos perscrutantes sobre a mata cerrada, um soldado do recrutamento local, o More. Magro e baixo não parecia nada o guerreiro destemido que vim a conhecer na convivência quotidiana, em Mampatá. Dizia-me o More :
- Não preocupa, aqui perigo não há, se PAIGC atacou ontem, hoje não vem mais. 

Trinta e sete anos mais tarde havia de procurar este soldado da milícia do exército de Portugal, em Mampatá, quando aí voltei para rever o sítio onde penei e as pessoas que me suavizaram o sofrimento. Alguns ainda ali viviam e com eles recordei, com indizível emoção, os vinte e quatro meses mais longos da minha vida. 

Mas o More, aquele soldado condecorado com a Cruz de Guerra, cujas cavaqueiras me adoçavam os dias compridos, já não fazia parte do mundo dos vivos. Pouco tempo depois do fim da guerra, aquela Cruz de Guerra que recebera do governo de Portugal, enaltecedora dos seus feitos, tornou-se, por traição da história e vingança dos fracos, a prova da sua culpa. Pouco depois da independência acordada entre Portugal e o PAIGC, os novos governantes ajustaram contas com todos os que serviram o exército de Portugal, escapando apenas os que fugiram. Tribunais improvisados presididos por desumanos guerrilheiros sedentos de vingança, prendiam e matavam a esmo. O More foi, assim, barbaramente assassinado.

Os meus olhos focavam-se na mata densa procurando entrever qualquer sinal de perigo no espaço marginal à picada, preocupado com a iminência de uma emboscada e pouco interessado na beleza da floresta de onde se ouviam apenas os guinchos dos macacos. Estariam eles a avisar-nos de algum perigo ou, pelo contrário, tendo celebrado um acordo com o inimigo, anunciavam antecipadamente o nosso massacre. Estes e outros pensamentos fluíam da minha imaginação como se houvesse alguma relação lógica entre aquela guincharia e a nossa sorte. 

E passadas algumas horas, talvez quatro, por entre buracos cheios de água, viaturas atascadas na lama e paragens por desconfiança de alguma emboscada ou porque os soldados apeados tivessem assinalado alguma mina, lá chegámos a Mampatá, onde uma ruidosa companhia constituída maioritariamente por açorianos nos recebeu em ébrio delírio. Não era motivo para menos, porque, com a nossa chegada, iniciar-se-ia a sua partida de regresso à paz de suas casas. 

 Mampatá era uma tabanca habitada por cerca de trezentas pessoas e nós ficaríamos ali instalados por entre moranças cobertas de capim, numa perfeita amálgama entre civis e militares, sem qualquer barreira entre as instalações militares e as casa dos civis. De certo modo esta familiaridade amenizava o ambiente e permitia-nos uma convivência quase sempre fraterna. Na verdade será errado chamar civis aos moradores daquela povoação, porquanto, excetuando as crianças e as mulheres, quase todos estavam mobilizados para a guerra: uns incorporados numa unidade militar local – o Pelotão de Caçadores Nativos n.º 68, outros integrados no Pelotão de Milícias e, finalmente, todos os homens tinham uma espingarda do género das que até ainda há pouco tempo equipavam a GNR de Portugal. 

Já havia uma escola básica naquela aldeia, construída por uma companhia anterior mas, como se tornasse insuficiente, fomos incumbidos de erigir uma segunda escola. Os professores eram dois militares que faziam o melhor por aquelas crianças e até pelos adultos que queriam aprender a ler e escrever. Ademais, naquele tempo, muitos soldados do recrutamento metropolitano não tinham a quarta classe e era obrigatório que voltassem à vida civil com esse diploma. 

De certo modo, aquelas duas escolas e os sorrisos das crianças que as frequentavam, pintavam aquele cenário distópico, de cores esperançosas, apesar da fogueira da guerra sempre presente e reavivada de tempos a tempos. Um dia, à noite, quando estava a substituir um camarada professor, corri para o exterior, seguido pelos alunos, procurando abrigo deitados junto ao muro do recreio. Tinha sido o tiroteio provocado por uma emboscada a um pelotão nosso, a um quilómetro ou dois do arame farpado que nos tinha feito sair apressados. A atividade operacional, para além da defesa daquela povoação, era constituída por patrulhamentos, montagem de emboscadas e segurança do itinerário entre Mampatá e Buba. 

Esta era a rotina dos dias mas, ainda em 1972, com o início dos trabalhos da abertura e pavimentação de uma estrada, tudo se alterou. A Engenharia Militar precisava de constante proteção enquanto as máquinas de terraplanagem revolviam o solo. Esse trabalho de proteção era absolutamente desgastante porque obrigava a uma presença constante durante o dia e da noite para se impedir os ataques aos trabalhadores e a montagem de minas.

Se alguém fazia anos havia sempre cerveja e algum vinho a regar uma refeição melhorada, com a presença dos amigos mais chegados. Normalmente os furriéis comemoravam em conjunto com os alferes e vice-versa. Os cabos e soldados festejavam normalmente por secção. Nalguns casos, os militares de especialidades com poucos componentes, como os mecânicos, os enfermeiros e os transmissões juntavam-se nos festejos de aniversário em função da respetiva especialidade. 

No dia 17 de fevereiro de 1973 coube-me comemorar o meu próprio vigésimo terceiro aniversário, na companhia do capitão, dos alferes e dos furriéis, e não faltou um cabrito assado no forno com batatas, nem faltou cerveja e vinho naquela noite, cuja despesa era assumida na totalidade pelo aniversariante, porque era assim que estava estabelecido. Os mais poupados, aqueles a quem nós apelidávamos de forretas, naquele dia bebiam muito mais do que o habitual. 

Nessa noite demorei muito tempo até chegar ao meu quarto. Peguei no sabonete e reguei-me durante algum tempo debaixo do chuveiro, e lembro-me de o ter segurado nos dentes enquanto me refrescava. Cheguei ao quarto e deixei-me cair sobre a cama. Só me lembro de acordar aflito, já dia, com o barulho de um mango a cair sobre a cobertura de chapa.

Passados três dias coube-me sair para o mato com um pelotão. Não era frequente sair, o meu trabalho estava diariamente ligado à enfermaria que dava assistência a militares e à população civil. Talvez estivesse algum cabo enfermeiro de férias e cumulativamente um outro doente. Certo é que, pelas seis da manhã, como era comum nas operações de segurança aos trabalhos da construção da estrada, lá estou eu com um grupo de combate a caminho da frente da estrada, logo a seguir à tabanca de Colibuia. 

A missão era percorrer cerca de um quilómetro até nos internarmos na orla da mata onde nos deveríamos manter em alerta até às catorze horas, quando os trabalhos eram interrompidos para prosseguimento no dia seguinte. Quando já estávamos a chegar à orla da floresta rebentou um grande “fogachal” proveniente da nossa frente, de onde não divisávamos o inimigo. 

Quem já esteve debaixo de fogo há de perceber o que sentíamos, naquele ambiente de berros, de pó que se levanta, de ramos traçados por projeteis a cair sobre nós, da sensação de que aquilo nunca mais acaba, de que é impossível não haver mortos ou feridos graves, de que a todo o momento alguma bala ou estilhaço nos vai furar. Do desespero evoluímos para a certeza de que, se não fizermos fogo, se não reagirmos, podemos até ser apanhados à mão, como se diz em linguagem de guerra. Havia mais tropa ali por perto, pelo que chegariam reforços certamente. À minha esquerda, o António Carola do Nascimento, apontador do morteiro, grita-me por ajuda porque estava ferido. Olhei-o e perguntei-lhe onde era o buraco. Que era nos tomates, respondeu-me. Disse-lhe eu, num rasgo que hoje me causa admiração: 

- Nascimento, se falas é porque não estás muito mal, faz fogo com o morteiro senão morremos aqui todos

Respondeu-me ele como se esquecesse milagrosamente do seu ferimento:

 - Mande-me para cá granadas que eu mando-as para aqueles gajos

Assim é que era falar, pensei eu. Rolava sobre mim mesmo, bem colado ao chão, e trazia mais duas granadas dos camaradas do meu lado direito que o Nascimento se encarregava de remeter por via aérea. Já o fogo do inimigo parecia estar a diminuir, quando um dos soldados do grupo que acorreu em nosso auxílio se acerca de mim e, numa atitude que nunca esquecerei, carrega-me com as mãos sobre os ombros e preocupado intima-me:

 - Deita-te tu estás ferido

Dava ele importância ao sangue que me escorria do dedo mínimo da mão esquerda e me tingia todo o antebraço, mas que ele julgava provir do tórax. E de seguida, de pé, atrás de mim, com um destemor singular, aquele soldado do Pelotão de Nativos n.º 68, Ussumane Buaró, islâmico, disparou alguns dilagramas com a sua arma, contribuindo de forma que julgo decisiva para a fuga do inimigo.

Em 2009, quando fui à Guiné, numa caravana solidária, transportando alguns bens preciosos para o povo de Mampatá, procurei o Ussumane Buaró, dele só já pude ver a campa onde seus restos mortais foram sepultados no redor da tabanca. Ao seu filho mais velho deixei uma recordação num modesto gesto de homenagem e gratidão a alguém que se preocupou com a minha sobrevivência. No dia 16 de março de 1973, saiu, pelas seis horas da manhã, um grupo de combate da minha companhia, com destino à frente de trabalhos das obras de abertura e pavimentação da estrada entre Mampatá e Nhacobá. A cerca de um quilómetro o soldado Albuquerque pisou uma mina antipessoal e com o estampido uma nuvem de pó visível de longe, fazia crer o pior – a perda de uma perna, na melhor hipótese. Transportado de helicóptero para o Hospital de Bissau e operado, morreu passados cinco dias. Está sepultado no cemitério de Barcelos.

Um poema de homenagem ao Albuquerque – Autor: Josema, pseudónimo do meu amigo e camarada da companhia José Manuel Lopes:

Puseste o pé em sítio errado
um som violento o pó levantado
escondeu por algum tempo
o teu corpo violentado

sem pensar em outras minas
correram em teu socorro
o sangue fugia do teu corpo
e o “hélio” não chegava

tua cara ainda de criança
ficava cada vez mais pálida
tudo num silêncio angustiado

apesar dos teus vinte anos
a vida fugiu-te em golfadas
porquê tanto sangue derramado?


Concluída a primeira estrada foi preciso construir uma outra, ligando o nosso destacamento ao importante quartel de Buba, ficando quase toda a atividade operacional condicionada pelo lema spinolista: "Por Uma Guiné Melhor". O General Spínola tomou posse como Governador e Comandante Chefe da Província da Guiné em 1968, e na tentativa de subtrair a população do controlo dos guerrilheiros organizou os chamados congressos do povo que eram assembleias consultivas constituídas por régulos, chefes religiosos e pessoas com ascendência social relevante que funcionavam como câmaras de eco das aspirações da população. Ao mesmo tempo desenvolveu um grande esforço no domínio da construção de estradas e de escolas. 

No plano estritamente militar ele implantou um programa de africanização da guerra, recrutando cada vez mais tropas naturais do território. Este plano pareceu inicialmente dar alguns bons resultados, mas o PAIGC tinha cada vez mais apoio internacional e o seu apetrechamento, em 1973, com lançadores de misseis térmicos, capazes de derrubar os nossos aviões mais modernos, tornou a guerra insolúvel. E a declaração unilateral de independência por parte do PAIGC, em 24 de setembro de 1973, foi o corolário dessa mudança de curso da guerra, quando os nossos aviões começaram a ser derrubados.

Naquele primeiro semestre de 1973 a situação militar piorava cada vez mais, e o abandono do quartel de Guileje bem como o massacre a que foram sujeitas as nossas tropas em Gadamael, no Sul e em Guidage, no Norte, resultavam sobretudo da grande dificuldade que os pilotos da Força Aérea Portuguesa sentiam agora, face ao uso dos novos misseis, pelo PAIG. Esse constrangimento repercutia-se não só num desempenho menos eficiente, por parte da Força Aérea, na proteção das nossa tropas, como também, na evacuação de feridos e no transporte aéreo de víveres, tabaco e correio. Este era absolutamente fundamental para o estado psicológico da maioria dos soldados e a falta de correspondência escrita, durante muitos dias, provocava desânimo. 

A carta ou o chamado aerograma, que dispensava selo, eram os únicos meios de comunicação disponíveis, naquelas circunstâncias. Havia ainda o telegrama para o envio ou receção de mensagens curtas, como a que recebi em meados do mês de outubro informando-me do falecimento do meu avô, mas que eu considerei ser a minha avó porque, erradamente, alguém trocou o acento circunflexo por um acento agudo e, por isso, andei cerca de um mês a pensar que tinha perdido a avó e não o avô. Em novembro Spínola, descrente quanto à possibilidade de se ganhar a guerra e impedido pelo governo de Lisboa de negociar um plano de autonomia para a província, abandonou o seu posto, sendo substituído pelo General Bettencourt Rodrigues. Com o início da estação das chuvas a situação estabilizou um pouco, mas a atividade militar iria recrudescer em 1974, fazendo aumentar o número de feridos e mortos e acrescer inúteis sacrifícios a todos, o que me angustiava cada vez mais.

Houve dois grandes momentos de eufórica alegria, durante a comissão: a notícia da revolução do 25 de Abril e o dia do regresso a Portugal em 24 de agosto de 1974. Naquela manhã, aparentemente igual a tantas outras, depois de ter já cumprido a minha rotina na assistência aos doentes da população civil, passando pelo bar para tomar alguma bebida fresca, vi junto ao posto de transmissões alguns camaradas que dialogavam entre si, com gestos e expressões de espanto e notável felicidade. 

Que caso seria aquele? Não era nada de trivial. Ao aproximar-me logo me envolvi naquela atmosfera de esperança, de quase certeza quanto ao fim daquele calvário. Não haveria retrocesso, Spínola estava por trás daquilo, agora era mesmo a sério, não era um arremedo, como tinha sido o golpe do dia 16 do mês anterior, desta vez era mesmo o derrube do regime, uma mudança radical de política, negociações imediatas com o PAIGC, e fim imediato da guerra com regresso antecipado a Lisboa. 

Não foi bem assim, porque as hostilidades ainda prosseguiram por mais algumas semanas embora em decréscimo e a nossa partida não foi antecipada. Mas a convicção de que tudo estava a acabar era geral e, por isso, quando a noite chegou, nesse mesmo dia, com a confirmação de notícias mais consistentes sobre o sucesso definitivo da revolução, em Mampatá, perante o espanto e algum entusiasmo da população, os soldados extrovertiam toda a sua alegria com algum álcool à mistura. E assim estaria a acontecer por todos os aquartelamentos da Guiné. 

Estariam os guerrilheiros do PAIGC tão felizes quanto nós? Não sei. Os eventos inimagináveis, um mês antes, surpreendiam-nos a cada semana: 14 de maio teve lugar uma reunião entre representantes do MFA e oficiais e sargentos das unidades do sector da qual resultou a certeza inequívoca de que a guerra era para terminar; nos primeiros dias de junho recebemos em Mampatá um Comissário Político do PAIGC que reuniu com a população e com os militares guineenses integrados no Exército Português; no dia 26 de junho cerca de uma centena de guerrilheiros do PAIGC, inimigos de ontem amigos agora, entraram na povoação e trocaram connosco crachás e outros adereços. Estava assim garantido o estabelecimento definitivo da paz. 

Depois foi só a paciência de esperarmos mais dois meses, já sem a pressão da guerra, mas com o peso dos dias vagarosos que pareciam não mais acabar. No dia 24 de agosto, com aqueles 150 camaradas dentro do Boeing 707, parecia que nunca mais levantávamos voo ao encontro de quem tínhamos por cá deixado, mas quando, finalmente, a força dos reatores nos despregaram do chão, a alegria sem peias brotou exaltada do coração de todos nós. Perdiam-se gradativamente do alcance dos nossos olhos as ruas de Bissau e a floresta frondosa envolvente, eram já os grandes rios parecidos com regatos e depois só nuvens que tudo encobriam menos os dias amargos que deixávamos e até, porque não dizê-lo, também uma imperecível marca de convivência com culturas diferentes que nos proporcionaram o conhecimento de outras religiões, outras culturas e uma visão plural da humanidade.

Tinha assistido ao fim de um conflito evitável e sem qualquer proveito para ambas as partes, no qual perderam a vida, nos três territórios de Angola, Guiné e Moçambique 8831 jovens portugueses, num total de 800.000 militares mobilizados durante 13 anos. E aos que propagam a teoria de que a guerra de África não era uma causa perdida e que até já estava quase ganha responde o silêncio de 98 jovens mortos, só na Guiné, no período decorrente entre 1 de Janeiro e 25 de Abril de 1974. 

E são estes números apenas os das nossas hostes, mas não são, nem nunca a minha sensibilidade o aceitaria, desprezíveis os milhares de mortos, do lado dos que combateram pela independência, entre militares e civis. Caberá aqui evocar uma reflexão de Pirro, rei de Epiro, depois de sair vitorioso de vários confrontos com exércitos da península itálica, no decurso de século terceiro a.C. nos quais perdeu, ainda assim, algumas dezenas de milhar de soldados: Se formos mais uma vez vitoriosos, numa batalha contra os romanos, perdendo idêntico número de soldados, ficaremos arruinados. Julgo que terá sido esse pensamento do rei de Epiro, reportado pelo historiador grego Plutarco, que norteou a decisão histórica do General Spínola, quando fez saber ao governo de Lisboa da sua indisponibilidade para prosseguir numa guerra de vitórias pírricas.

As guerras deverão ser sempre o último recurso das nações civilizadas, nunca uma opção estratégica. Dirão outros que aquele era um território português e como tal tinha que ser defendido. A esses asseverarei que os estados têm como dever prioritário não propriamente a defesa do território, mas a defesa de todas as pessoas que nele habitam, assegurando que todos tenham direito à satisfação das suas necessidade básicas, à liberdade, à democracia e à justiça.
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...