Mostrar mensagens com a etiqueta O meu Natal no mato. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta O meu Natal no mato. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21132: Os nossos médicos (88): Fernando António Maymone Martins, especialista de cardiologia pediátrica, ex-alf mil, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1968/70


Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > CCS / BCAÇ 2845 (1968/70) >  Equipa dos serviços de saúde no dia de abertura da enfermaria > Destaque para os alferes médicos Fernando António Maymone Martins e Maxinino Cunha, ambos irão também trabalhar na 2ª parte da comissão no HM 241, em Bissau.



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > CCS / BCAÇ 2845 (1968/70) > Equipa dos serviços de saúde: da esquerda para a direita, de pé: Maymone Martins (alferes), Garrido (furriel), Albino e Garcia; em primeiro plano, Tónio, Borges e Constantino (1º cabo)

Fotos do álbum do Albino Silva, ex-sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) (*).


Fotos (e legendas): © Albino Silva (2011) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não temos,  infelizmente, falado aqui o suficiente dos nossos serviços de saúde militares, dos nossos médicos, dos nossos enfermeiros, dos nossos maqueiros... 

É minha intenção fazer, proximamente, uma nota de leitura de um capítulo de um livro em que também participei (Veloso, A.J., Mora,  L.D., Leitão,  H., eds. –  Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book, 2017, 863 pp.). 

O capítulo a que me refiro, sobre saúde militar,  é o "34. A Guerra Colonial", da autoria de Carlos Vieira Reis, pp. 492-505.  O autor é coronel médico.

Continuamos sem saber, em rigor, quantos médicos, oficiais milicianos ou do quadro, passaram pelo TO da Guiné, entre 1961 e 1974. O autor escreve que "os médicos recém-formados não bastavam para preencher as necessidades". E teve mesmo que se recorrer à mobilização, para certas especialidades, de médicos com mais de 45 anos. Um dado estatístico muito importante é o número de evacuações  dos três TO para a metrópole e que foi de cerca de 30 mil, estando a maioria dos processos clínicos no Arquivo Geral do Exército. 

Dalguns dos nossos médicos temos aqui falado. O descritor "Os nossos médicos" tem, apesar de tudo, 235 referências.

Um desses profissionais que foi mobilizado para o CTIG, e que queremos hoje homenagear, foi o dr. Fernando António Maymone Martins: passou pela CCS/BCAÇ 2845, mas também pelo HM 241, Bissau, nos anos de 1968/70.

Sobre este nosso camarada, que tem participado nalguns convívios do seu batalhão, recolhemos mais os seguintes elementos, a partir da Net, e nomeadamente da rede Linkedin:

• Especialista Sénior em Cardiologia Pediátrica e Cardiologia das Cardiopatias Congénitas
• Director do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Cruz, 1987 - 2010
• Director Clínico, Hospital de Santa Cruz (2003-2004).
• Presidente do Conselho de Administração da Fundação Mater Timor
• Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ajuda de Berço
• Fellow do American College of Cardiology
• Fellow da Sociedade Europeia de Cardiologia
• Presidente da Associação Europeia de Cardiologia Pediátrica (AEPC, 1995-1998)
• Presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (2000- 2004).

Está reformado do SNS mas mantém consultório privado em Carnaxide. Sabemos que em 1974/76 beneficiou de uma bolsa Fulbright, na categoria de estudante, na área de Cardiologia Pediátrica, realizada no Cook County Hospital, Chicago, Illinois, EUA.

NA RTP Arquivos pode ser visto um vídeo, de 2 de junho de 1990, em  entrevista do jornallista José Eduardo Moniz, em estúdio, ao dr. Maymone Martins, "cirurgião, responsável pela nova técnica de intervenção para a correção de deficiências cardíacas, o cateterismo".

É uma homem de causas, que incluem, por exemplo, a cooperação com Timor Leste na área da saúde materno-infantil.

Naturalmente que gostaríamos que ele aceitasse o convite para integrar a nossa Tabanca Grande. Dessas diligências encarregamos o Albino Silva para levar a carta a Garcia...

2. Memória do serviço de saúde comandado pelo alf mil médico Maymone Martins, CCS/BCAÇ 2845 2845(Teixeira Pinto, 1968/70)

por Albino Silva (**)


(...) Comecei meu trabalho na Enfermaria e todos os dias estava de serviço pois ficava sempre na vez de outros camaradas porque gostava daquele serviço ao lado do Médico do Batalhão, Dr. Fernando António Maymone Martins, Alferes, que dava consultas à tropa até às 13h00 e depois ia para o Hospital Civil dar consultas e outros serviços com pequenas cirurgias, aos civis.

O meu serviço diário era logo de manhã tomar apontamentos daqueles que iam às consultas, depois chamar pelos mesmos ao gabinete do médico e ajudar na Enfermaria a atender o pessoal, pois além da tropa, que era muita, também os civis lá iam receber tratamento, e por isso era muito o trabalho para quem estava de serviço. Basta que em média por dia davam-se 300 injeções e havia feridas para serem tratadas , e ainda o pessoal lá internado e uns à espera de evacuação para Bissau.

Era muito o trabalho e ainda a pedido do Furriel Enfermeiro Garrido, fazia a requisição de Material para Bissau, que depois de recebido o ia conferir, mas eu gostava bem do serviço que ia fazendo e assim foi durante 13 meses.

Depois comecei a alinhar com um Pelotão da Companhia de Caçadores 2313, que era comandado pelo Capitão Penim, em saídas para o mato, em escoltas e para a Ação Psicológica, em picagem de estradas com um Pelotão da Companhia 2368, do meu Batalhão, e também em operações com este pelotão.

Para substituir o 1.º Cabo Enfermeiro Vitorino da 2368, que havia sido evacuado para Bissau, fui um mês para o destacamento de Caió, regressando depois a Teixeira Pinto à minha Enfermaria para de imediato sair com uma Secção da 2313 para uma Ação Psicológica lá para as Tabancas de Calequisse e Caió. (...)

3. Natal debaixo de fogo na Guiné. A memória do médico Fernando Maymone Martins
Rádio Renascença, 23 dez 2011 • Sofia Vieira (Reproduzido com a devia vénia...)

 O médico Fernando Maymone Martins fecha a semana que a Renascença dedicou a testemunhos de quem viveu o Natal em situações difíceis, mas com lugar para a esperança.

O Natal vivido no essencial, no meio do mato, durante a guerra colonial na Guiné, em 1968 é o testemunho deixado por Fernando Maymone Martins. Na altura, era um jovem médico militar, delegado de saúde, numa povoação que julgava segura.

Poucos meses antes, decidiu vir a Lisboa, em Outubro, e casou com Madalena. Em Novembro, levou-a para a Guiné, para viverem numa povoação que se chamava Teixeira Pinto.

Só que, em vésperas de Natal, foram alvo de ataque. Fernando Maymone Martins teve de deixar a mulher sozinha, porque teve de ir fazer uma revista de saúde a militares portugueses. “Durante essa semana, Teixeira Pinto foi alvo de ataque e a Madalena passou uma noite inteira debaixo de fogo”.

“A coluna em que eu fui também foi atacada, portanto, tivemos muito vivamente, e isto nas vésperas do Natal de 68, a percepção da vulnerabilidade da situação em que nos encontrávamos e do risco de nos acontecer alguma coisa, inclusive, de morrermos!”, recorda.

Fernando Maymone Martins lembra ainda que nessa época os sogros tinham enviado para a Guiné um pequeno presépio, com “figuras muito bonitas” que ainda hoje guardam “e que foi verdadeiramente o que nos ajudou a criar o ambiente de Natal na Guiné. Sem dúvida, com a percepção de que no meio do mato na Guiné, com a vulnerabilidade inerente aos ataques, estávamos verdadeiramente a ser reconduzidos àquilo que o Natal tem de mais importante – comemorar o nascimento de Jesus”.

O médico recorda também que, um ano depois, já com um filho, comemoraram o segundo Natal na Guiné. Dois momentos que o marcaram e à sua mulher Madalena para o resto da vida.

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8495: Os nossos médicos (32): Fotos do Serviço de Saúde do BCAÇ 2845 (Albino Silva)

(**) Vd. poste de 14 de abril de  2020 > Guiné 61/74 - P20856: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (1): Mobilizado para a Guiné, destino: Teixeira Pinto

Vd. também poste de 11 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11930: Os nossos médicos (67): Maximino [José Vaz da] Cunha, natural de Chaves, ex-alf mil médico, BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto) e HM 241 (Bissau, 1968/70)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20487: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (15): O meu último Natal, 1966, em Bissau, no QG/CTIG (Virgínio Briote)


Não havia azevinho (Ilex aquifolium) na Guiné nem presépio nem reis magos mas, mesmo assim, não deixou de houve Natal, em 1966, ou pelo menos ceia de Natal no QG, em Santa Luzia, ao tempo do gen Schulz... Não faltaram o bacalhau, os doces e sobretudo  o álcool, muito álcool. A um mês de regressar a casa, o alf mil 'ccmd', da CCmds da Guiné, Virgíbio Briote, conta como foi.


Foto (e legend): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





1. O Virgínio Briote, nosso coeditor jubilado, contribuiu também em muito para o sucesso do arranque e desenvolvimento do nosso blogue nos primeiros anos...

Estamos a chegar ao fim do ano de 2019, estamos a blogar há mais de 15 anos (*) e as estatísticas do nosso  blogue falam por si: temos mais de 11,6 milhões de visualizações de página; cerca de 20500 postes publicados: 150 mil comentários; 801 membros da Tabanca Grande (eram 111 em junho de 2006), de todos os continentes, exceto da Antártida (, em contrapartida temos um legítimo representante do círculo polar ártico, um luso-lapão)... 


Para não falar de um enorme acervo documental, a começar pelas fotografias, mas também textos em prosa e em verso... Sem esquecer as dezenas de livros que os grã-tabanqueiros já publicaram, com origem em colaborações no blogue, do A. Marques Lopes ao Zé Saúde...

Parte destes resultados são também devidos ao prestígio, ao talento e ao trabalho do Virgínio Briote, que frequentou a Academia Militar mas não seguiu a carreira das armas, foi quadro superior na indústria farmacêutica; antes disso, fez uma comissão na Guiné como alf mil, CCAV 489 (jan/mai 1965, Cuntima) , e alf mil 'comando', cmdt Grupo Diabólicos, Brá ; set 1965/ set 1966).

Sempre admirei a sua escrita, de primeira água, e hoje vou repescar um texto antigo,sobre o seu Natal de 1966, o seu último Natal na Guiné (**)... Aliás, o Natal do seu "alter ego", o Gil Duarte... A maior parte dos membros da Tabanca Grande nunca leu este texto nem outros do Virgínio Briote: é um dos nossos primeiros postes, o poste P366, de 18 de dezembro de 2005 (**)


Já também dele republicamos, em tempos, uma das mais belas histórias de amor em tempo de guerra, e que merece ser lida e relida (***), e onde de resto se faz referência à bela (e infortunada) estudante cabo-verdiana, Teresa Correia, que foi paixão fulminante do Gil...
 
Gil Duarte, comando do CTIG, é um "alter ego"  do Virgímio Briote... Teresa, jovem estudante, 19 anos, de origem cabo-verdiana, não esconde a sua atração por Gil (e vice versa), mas também não esconde as suas simpatias pelo PAIGC, de que o pai, a trabalhar na Casa Gouveia, quer-se tornar militante... Estamos em Bissau, em meados da década de 60. Vasco e Benilde são os pais de Teresa (Tesa, na intimidade). Vieram da Praia. 


(...) "Durante os primeiros anos do nosso blogue, o Virgínio Briote foi um membro da nossa Tabanca Grande (ou tertúlia, como então lhe chamávamos), fidelíssimo, dedicado, empenhado, ativo, produtivo, ao mesmo tempo que ia produzindo e publicando textos, pessoalíssimos, belíssimos, no seu blogue 'Tantas Vidas': as dele, as do Gil Duarte, as da Teresa, sempre a Teresa, as do Capitão Valentim, as do Capitão Leão, as de uma geração inteira, de homens e mulheres, que amaram e desamaram, viveram e morreram, lutaram e perderam, a Dora, a Clara, a Matilde, o Leonel, o Manaças, o Marcolino da Mata e tantos outros, figuras de carne e osso que povoaram Brá, Bissau, Mansoa, o norte, o sul, o leste, as bolanhas, as picadas, as matas da Guiné... Foi o retrato de uma geração que ele construiu , como um puzzle, a partir da sua experiência, como comando e como homem, no TO da Guiné, nos anos de 1965/67" (Luís Graça, Poste P13194, de 26 de maio de 2014)

É uma pena que o nosso camarada tenha desistido de publicar, em livro, os seus escritos da Guiné, constantes do seu blogue "Tantas Vidas" que, entretanto, ele decidiu descontinuar e acabou por encerrar. Valha-nos, ao menos, o nosso blogue onde republicou a grande maioria dos seus escritos do "Tantas Vidas", e outros, até então inéditos.


Veja-se também a série do blogue "O Meu Natal no Mato" (que tem 70 referências).

__________

NATAL DE 1966

por Virgínio Briote


Uma eternidade aquele mês de Dezembro, nunca mais acabava.

Arrumações no quarto, ordem na papelada, cópias dos relatórios das operações, as centenas de fotos. Estas são para rasgar, isto onde foi, quem é este gajo, apontamentos ao lado, nomes dos camaradas atrás, e depois disto, para onde fui? Anotava o que se lembrava, folhas e folhas, dois anos quase, ali à sua frente, parecia um romance.

O aroma dela nas cartas, falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, pensa em mim. E uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, sem ideias, nem sabia como começar.

Quero estar contigo, só contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, nem sei o que devo escrever.

O sono leve, intermitente, e as malas, o que vou levar? Uma chega, leva tudo. Já pensaste no que vais levar, o que é que vai contigo? Os livros, todos, uma muda de roupa civil, as coisas do quarto de banho. Os sapatos civis e militares, o camuflado, tudo no saco da tropa. Levaria vestida a farda amarela, a que envergara aquele tempo todo, as botas de cabedal e a boina. O resto fica tudo.

O despertar súbito, outra vez muito acordado, uma sensação de medo a aparecer, a tomar conta dele, uma vontade irreprimível de fugir, os pés fora da cama, o que vou fazer, para onde, a tremer como se estivesse com febre. No quarto de banho, frente ao espelho, este sou eu com as mãos na cara, isto vai passar, só falta um mês.

Tinha que ser, numa daquelas tardes entrou no cemitério. Foi directo à campa do Silva. As diligências que fizeram, até o dinheiro que receberam pelas armas que capturaram, reverteu todo para as urnas de chumbo, para as trasladações dos corpos dos camaradas mortos. Tantos trabalhos que ele e o capitão Leão tinham feito e o Silva ainda aqui está, à minha frente.

António Maria Alves da Silva. Nasceu em 17 de Janeiro de 1942. Faleceu em 6 de Março de 1966. Sem flores, sem nada.

A menina Teresa? É noutro lado. Lá em baixo, aquela do meio, sim, à beira daquela palmeira. Uma tampa de mármore. “A saudade dos teus Pais e Amigos. Maria Teresa Campos Correia. Nasceu na Praia em 27 de Maio de 1947. Faleceu em Bissau em 23 de Outubro de 1966. Paz à sua alma”. Um jarro simples com flores frescas.

A guerra via-a de muito longe, como se fosse um assunto que já não lhe dizia respeito. Mas mesmo assim, às vezes não podia esquivar-se aos relatos dos recém-chegados do mato.

A nova companhia de comandos andava por Tite. Raramente saíam com efectivos inferiores a dois grupos. Entretanto chegara outra companhia, de um jovem capitão, um tipo simpático. Então como é isto aqui, fresco, não? As zonas da guerrilha são todas iguais ou há diferenças? Antes que me esqueça, cumprimentos do Manilha, quando chegar a Lisboa contacte-o.

Praticamente inexpugnável o Sul, as NT confinadas aos aquartelamentos. Madina do Boé, um inferno, o Diem-Biem-Phu dos portugueses, o capitão de lá a dizer que só viviam dentro dos abrigos, cavados no solo, suportados por troncos e enchidos com cimento em barda. Passavam os dias a verem a vida em frente por entre os buracos. Abastecidos do ar, os aviões faziam malabarismos para não serem atingidos. Madina vai ser o primeiro aquartelamento a ser tomado pelo PAIGC, era um assunto arrumado, ouvia-se em muitas bocas.

Um Allouette mergulhou numa bolanha, na zona de Tite, não se sabia se fora atingido ou se fora um acidente. Foi montada uma autêntica batalha, daquelas que se veem nos filmes. Fuzileiros e comandos a protegerem o heli, sob fogo cerrado. O coronel da base aérea, ele próprio a pilotar um Dakota teve que se impor para meter os páras dentro do avião. Largou-os na zona da batalha, os pára-quedas abriram-se e toda a gente parou o fogo, não acreditas, Gil?

Um mecânico francês que estava em Bissau a fazer a manutenção dos helis foi transportado para o local com o equipamento todo para ver se conseguia tirar o aparelho das águas da bolanha. E não é que conseguiu, pá?

O norte em brasa, Barro, Bigene, Guidage, o Oio nem se fala, o leste ainda assim-assim!

Natal à porta, as montras de Bissau mudaram a cara, muitos militares nas ruas a entrarem e a saírem das lojas. Devia estar a fazer um ano andava por Barro e Bigene, foi um fim de ano diferente.

No QG [, em Santa Luzia,]  organizaram uma ceia de natal como devia ser, bacalhau e os doces todos. Estava lá toda a oficialada superior, Brigadeiro incluído.

Beberam todos muito bem, alguns demais, como acontece sempre. Depois, ao ar livre, viram um filme italiano, com o Gianni Morandi, um cantor novo que estava na moda, a fazer o papel principal dentro da farda de um soldado, o que é que havia de ser? 

Um apaixonado, aquele Morandi, tirava canções atrás de canções. Tantas que a maralha lá de trás, entusiasmada, começou a acompanhar a música, primeiro muito baixo, depois já se sabe como é, outros entusiastas também, até o Morandi se virou para eles, a cantar de lágrimas nos olhos. Uns alferes de merda, uns comunistóides, que é para isso que agora servem as universidades, dizia um major do cága-e-tosse voltado lá para trás!

No outro dia, corria pelas mesas da messe uma história meio esquisita. Lá para as tantas, um noctívago quando ia a entrar para o quarto, ouviu música de samba a vir da porta entreaberta de uma das vivendas. Quis dançar também, empurrou a porta e fechou-a logo. Deve ter visto mal, uns gajos todos nus a dançarem encostados uns aos outros, pode lá ser?

Se calhar o líquido que tinha nos olhos era álcool! Mas eu vi, o fulano encostado ao sicrano, o beltrano amarrado ao… Estás a ver, nem te lembras dos nomes dos gajos!


____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 20 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20160: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (14): continuando a falar de..."futebol, elites e nacionalismo"


(**) Vd. poste de 18 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P366: O meu Natal de 1966 no QG, em Bissau (Virgínio Briote)

(***) Vd. postes de:



30 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11507: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (11): Teresa, amores e desamores em tempo de guerra (Parte II) (Virgínio Briote, ex-alf mil, comando, Brá, 1965/67)

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20437: Lembrete (33): É hoje, 3ª feira, dia 10, às 21h30, em Beja, na Biblioteca Municipal José Saramago, o lançamento do livro do José Saúde, "Um ranger na guerra colonial" (Edições Colibri, Lisboa, 2019, 220 pp.)




Um das mais de 7 dezenas de crónicas deste livro é sobre o Natal de 1973, o último que os militares portugueses passaram na Guiné. Em Nova Lamego, o autor faz  "o rescaldo de um noite quente e de luar" (pp. 59-61).


1. Recorde-se que é hoje em Beja, na Biblioteca Municipal José Saramago, às 21h30 (*), a sessão de lançamento do último livro do José Saúde, "Um ranger na guerra colonial: Guiné-Bissau, 1973-1974: memórias de Gabu" (**).

No próximo dia 8 de fevereiro de 2020, na Casa do Alentejo, será feita a apresentação do livro em Lisboa.



Ficha Técnica:

Autor: José Saúde
Título: Um ranger na guerra colonial: Guiné-Bissau, 1973-1974: memórias de Gabu
Editora: Colibri, Lisboa
Ano: 2019

Capa: capa mole

Tipo: Livro
N. páginas: 220, ilustradas
Género: Memórias / autobiografia
Prefácio: Luís Graça
Formato: 23x16
ISBN: 9789896899158
Preço de capa: 16€


2. Na página 19, o autor deixa um agradecimento ao nosso blogue de que ele é um ativo colaborador, e de quem sempre tem tido, por parte dos editores, colaboradores e leitores, um especial carinho. Destaco aqui o papel do nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro. Recorde-se que o José Saúde foi fur op esp / ranger, CCS / BART 6523 (Nova Lamego / Gabu, 1973/74, tendo mais de 170 referências no nosso blogue.

"Agradecimento 

"Deixo aqui explícito que esta obra surge por via do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné onde habitualmente debito narrativa acerca da minha presença militar por terras de Gabu.

"Uma experiência que ainda hoje recordo com uma sufragada nostalgia e que me conduz a uma literal elaboração de temas que considero transversais a todos os camaradas que partilharam temáticas idênticas durante a sua comissão na guerra da Guiné.

"Procurei, embora de forma sintética, cruzar histórias, deixar para memória futura realidades que nos vão na alma mas que jamais misturemos a veracidade do conflito real, porque entendo que o teor das opiniões resvalam normalmente para o campo de divergências. Neste contexto, fica o meu profundo respeito, bem como a minha enorme admiração por todos os camaradas que pisaram o solo guineense.

"Obrigado Luís Graça pela aceitação da minha pessoa neste universo de antigos combatentes e a tua singela gentileza como sempre me recebeste, não só como camarada de armas mas sobretudo como fidedigno amigo.  José Saúde".

____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 
9 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20045: Lembrete (32): Lançamento do livro "Ferrel através dos tempos", do nosso camarada Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616 (Empada, 1964/66)... Hoje, em Ferrel em Festa, sábado, dia 9 de agosto, às 17h00

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19310: Estou vivo, camaradas, e desejo-vos festas felizes de Natal e Ano Novo (5): Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); entrou para o nosso blogue há um ano.



Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) >  Dezembro de 1967 >  "Feliz Natal: Noite de Natal, Noite Fria, tão gelada / Tocam os sinos / É noite de Consoada... Guiné 67".

[Cartaz com uma mensagem de Natal, obra produzida e realizada pelo furriel miliciano Rocha, ‘o "Algarvio" . Fez várias de outros formatos, ele desenhava, escrevia o poema, depois arranjava os cenários. Da minha parte fiz pelo menos uma centena de fotos destas, e de outros formatos, mudava apenas o personagem o resto era igual. Depois cada um mandou para as suas famílias um postal ilustrado. Coloquei esta, mas há muitas mais. O fotógrafo era eu.Foto captada em Nova Lamego, provavelmente na primeira ou segunda semana do Dezembro 67].

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira  (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de 14 de dezembro de 2018, do nosso camarada Virgílio Teixeira, 

(i) ex-alf mil, SAM - Serviço de Administração Militar;

(ii) fez parte da CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69);

(iii) tem mais de um centena de referências no nosso blogue:

(iv) é economista e gestor de empresas, reformado;

(v) natural do Porto, vive em Vila do Conde;

(vi) entrou para o nosso blogue em 19/12/2017, é o nosso grã-tabanqueiro nº 763 (*);
 
(vii) foto acima, à esquerda, com a esposa, Manuela, na Tabanca de Matosinhos, Restaurante Espigueiro (ex-Milho Rei), 5 de setembro de 2018 (Foto: LG).


"Camaradas, estou vivo!...
Aqui vai a minha prova de vida!"

Mensagem de Natal 2018

GUINÉ 1968/2018 – Aniversário dos 50 anos
GUINÉ 1967/2018 – Aniversário dos 51 anos

A toda a minha família, por ainda me conseguirem aturar ao longo de 51 anos;

Aos ex-militares do meu batalhão (BCAÇ 1933) que ainda estão vivos, e aos familiares daqueles que já partiram para a sua derradeira comissão de serviço;


A todos os militares e famílias daqueles que passaram pelo terrível  cenário da Guiné, em particular para aqueles 47 homens que morreram na travessia da jangada do Rio Corubal, nas margens de Cheche, em 6 de fevereiro de 1969, da CCAÇ 1790, do meu batalhão (e da CCAÇ 2405, do BCAÇ 2852);

A todos os militares e famílias daqueles que de algum modo participaram na nossa 'Grande Guerra' de África;

A todos os camaradas e famílias do Blogue  que é a nossa história que nunca vamos esquecer;

Ao povo da Guiné que também sofreu por causa desta guerra;

A todos quero expressar, sincera e humildemente, a minha solidariedade desinteressada, pelo sofrimento de que ainda somos vítimas, com desejos de muita saúde, felicidade e amor, e que Deus nos recompense a todos, já que o Homem e o Estado não são capazes de o fazer.


Bom Natal de 2018
Feliz Ano Novo de 2019 (**)


Virgílio Teixeira
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de dezembro de  2017 > Guiné 61/74 - P18107: Tabanca Grande (454): Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); economista reformado, vive entre Vila do Conde e o Porto; grã-tabanqueiro nº 763

(**) Último poste da série > 19 de dezembro de  2018 > Guiné 61/74 - P19306: Estou vivo, camaradas, e desejo-vos festas felizes de Natal e Ano Novo (4): Jorge Picado (ex-cap mil, CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá, e o CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72)

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19084: A galeria dos meus heróis (9): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - Parte I (Luís Graça)


Luís Graça, Contuboel, c. junho/julho de 1969
Texto, em duas partes, escrito, no fim do verão, para a série literária "A galeria dos meus heróis", do nosso editor Luís Graça.


O  "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017)



1. Conhecemo-nos, por um mero acaso, num casamento em Braga, a terra dos arcebispos (um dos quais, o lourinhanense Dom Lourenço Vicente, do séc. XIV, meu conterrâneo). 

A sua história já me tinha sido contada, muito por alto, pelo pai do noivo. Antigos camaradas da Guiné, tinham estado ambos no mesmo batalhão, colocado no setor de Teixeira Pinto (hoje Canchungo), na região do Cacheu. Estavam em diferentes companhias de quadrícula, a uma distância de 20 a 30 km, um do outro, mas encontraram-se, algumas vezes, na sede do batalhão. Foram e vieram no mesmo navio: para lá no "Niassa", para cá no "Uíge"...

Por nascimento e residência, eram de concelhos vizinhos, do Norte. Conheceram-se na tropa e ficaram amigos desde então. O pai do noivo era do Marco de Canaveses, filho e neto de ferroviários, ele próprio maquinista da CP, já reformado.

Eu é que vinha do Sul e sentia-me ali um pouco deslocado, apesar dos laços afetivos que criara (e que mantinha) na região do Vale do Tâmega, desde há cerca de 40 anos, berço, juntamente com o Vale do Sousa, deste pequeno, belo, velho e cansado país que se chama Portugal.

Eu fazia parte do grupo dos convidados da noiva. Tinha sido orientador da sua dissertação de mestrado, na área da gestão em saúde, na Escola Nacional de Saúde Pública / NOVA. Acabámos por estabelecer relações de convívio e até de amizade. Conheci o Jorge, o noivo, por ocasião da discussão, em provas públicas, desse trabalho académico.

O Jorge era médico, interno de medicina geral e familiar. Não tive pretextos nem argumentos  para recusar o insistente e amável convite da Clara (e, por extensão, do Jorge) para ir a Braga ao seu casamento. 

Confesso que nunca gostei de bodas e batizados, e muito menos de funerais. Mas neste caso não consegui arranjar desculpa consistente e convincente para declinar o convite.

Mas não vou falar mais dos noivos, jovens, simpatiquíssimos e felizes, nem da festa, belíssima, que deram num hotel de charme, nos arredores de Braga, rodeado de vinhedos e de carvalhos.

A figura do padrinho do noivo, ou melhor, a sua história de vida, é que me prendeu a atenção, logo de imediato. Encorpado, de estatura meã, olho azul, verbo fácil, sotaque tipicamente nortenho, bom copo – e, no passado, "melhor garfo" −, simpático, sedutor, bem humorado, às vezes também sarcástico e truculento, pareceu-me logo à partida que ficaria bem na minha série dos "Contos com mural ao fundo".

−"Felgueiras", um seu criado! – e estendeu-me a mão, em gesto franco, amistoso e descontraído.


Gostei logo da sua apresentação, sem pompa nem circunstância. Fiquei a saber que "Felgueiras" era "nome de guerra", como de resto já o suspeitava.

−Na tropa e, depois, na Guiné, éramos conhecidos, não pelos apelidos paternos – os Silva, os Ribeiro, os Magalhães… − mas pelos nomes das terra donde provínhamos: o Alenquer, o Peniche, o Setúbal, o Paranhos… Eu era (e continuo a ser) o Felgueiras.

−Então hoje já aqui estamos pelo menos três antigos camaradas da Guiné – respondi eu, beneficiando da cumplicidade do pai da noiva que fez as despesas da minha apresentação.


No contexto festivo de uma animada, ruidosa e farta boda nortenha, o topónimo "Guiné" funcionou logo como uma espécie de senha ou palavra-passe. A par do Alvarinho que foi servido com os aperitivos, ajudou de imediato a quebrar eventuais barreiras.

−Então, à saúde dos noivos! – atalhou logo o "Felgueiras".

− À saúde dos noivos! – repeti eu. – E também à nossa, aos velhos camaradas da Guiné que, como tal, tratam-se por tu! – acrescentei logo de seguida, sabendo que o tratamento por tu, noutras circunstâncias forçado, deslocado, indelicado e até deselegante, contribuiria aqui para criar um clima propício à confidência, à desinibição, à cumplicidade e à partilha de memórias entre três veteranos de guerra.

−Então, à saúde da noiva e do noivo, e dos seus convidados!... E, já agora, à memória dos rapazes que por lá ficaram naquelas terras de Cristo! – brindou o Arlindo, o pai do Jorge, o noivo.

− Mouros e morcões, somos todos iguais, todos portugueses! – brincou comigo o "Felgueiras", visivelmente bem disposto e feliz.

Tinha-se dado o clique para, ganhando a confiança dos meus interlocutores de ocasião, poder explorar melhor (e até aprofundar) a história, algo insólita, do "Felgueiras". Um pouco de fora ficava o pai da noiva, que não tinha feito o serviço militar (ou esteve na tropa já depois o 25 de Abril), sendo mais novo do que nós os três.

Ao longo do dia, e sobretudo depois do copioso e demorado almoço, com as diversas iguarias da mesa minhota, fomos dando uns dedos de conversa, enquanto o "Felgueiras" fazia sala com o noivo e os seus convidados, como lhe competia. Mas, de tempos a tempos, vinha ter comigo e com o Arlindo, puxava-me o braço e retomávamos o fio à meada, entre uns golos de uísque velho que foi o nosso digestivo com o café.

Enfim, com o "material" recolhido nesse dia e com mais umas conversas posteriores, com ele e com informantes privilegiados que o conheciam, a começar pelo Arlindo, pude traçar um primeiro retrato-robô do "Felgueiras", de resto uma figura em tempos conhecida e até popular, na região do Vale do Tâmega. Os mais novos, naturalmente, já não se lembrarão dele.

Não confessei a ninguém, como me convinha, a minha intenção de pôr o "Felgueiras" na "galeria dos meus heróis". Para o leitor, também não preciso de justificar a minha escolha. No final, fará o seu juízo crítico. Por mim, trata-se de uma figura tão digna como as outras que lá estão, afinal seres humanos como eu, com as suas pequenas misérias e grandezas, tendo como traço de união a guerra que um dia se travou na Guiné, entre 1961 e 1974, "guerra colonial", para uns, "guerra do ultramar", para outros, "guerra de libertação" para os militantes e simpatizantes do PAIGC.

O nosso camarada tinha sido 1º cabo de infantaria e estado na Guiné, entre finais de 1966 e princípios de 1969. Passo por cima de detalhes mais concretos, porque ainda há muita gente viva desse tempo e dos lugares por onde passou o "Felgueiras" (bem como o Arlindo e demais camaradas aqui citados).

Era apontador de armas pesadas de infantaria mas, por "azar", não fora colocado num pelotão de morteiros, como ele tanto gostaria. Coube-lhe, isso sim, integrar o 4º pelotão de uma companhia de caçadores, pelotão esse que só tinha 2 furriéis. Na prática, iria comandar uma seção de atiradores, ao substituir um 2º sargento do quadro permanente que ficara em Lisboa com uma úlcera no estômago, a primeira "baixa" da companhia.

− A Dona Úlcera no Estômago foi uma boa madrinha de guerra para alguns safados − atirou o "Felgueiras".

Na realidade, o "Felgueiras" não dera as habilitações literárias corretas, aquando da inspeção militar. Não era caso virgem, outros o fizeram antes e depois dele... Apresentou apenas o diploma da 4ª classe da instrução primária e indicou como profissão a de operário fabril. Queria, intencionalmente, safar-se do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), e de uma mais que provável mobilização para o ultramar como "furriel atirador"… 


Ainda teve a veleidade de sonhar com uma especialidade que o tirasse do mato: cripto, escriturário, ou até mesmo sacristão, mecânico ou estofador… "Condutor auto, nem pensar", por causa das colunas logísticas e das minas. "E enfermeiro, ainda pior: sempre tivera horror ao sangue". Mas orgulha-se de não ter posto cunha a ninguém, muito menos ao seu patrão, o industrial José Joaquim Gonçalves de Abreu, político de peso do regime, presidente da câmara local, futuro deputado e comendador.

E, no entanto, o melhor que lhe coube na rifa foi o posto de 1º cabo atirador de armas pesadas de infantaria.

−Vou ficar no quartel, pensei. Ele haverá lá um morteiro 81, um canhão sem recuo…

− Seguramente uma Breda, ou uma Browning… −acrescentei eu.

 Santa ingenuidade!, fui logo parar à 'tropa-macaca', a que saía para o mato! – lamentou-se o "Felgueiras". 

E explicou:

− Azar o meu: quando cheguei ao quartel, o morteiro 81 já tinha dono, havia lá uma secção de um pelotão de morteiros, uns gajos já velhinhos, completamente 'apanhados do clima'…

Mas lá conseguiu convencer o capitão de que tinha outras competências, da vida civil, que valeria a pena aproveitar e pôr ao serviço da companhia…

Acabou por ficar no quartel com a responsabilidade da horta e do espaldão da Browning 12.7, tendo para o efeito um abrigo "privativo", cheio de cunhetes de munições até ao teto, incluindo balas tracejantes. 

− Ainda fiz o gosto ao dedo, num dos grandes ataques ao quartel. Era um arma do carago, a Browning!... Devo ter despachado uns gajos mais cedo, com carimbo para o inferno, nesse ataque, em que eles vieram quase ao arame farpado...

Enfim, foi o início de um "período de mordomias" que ele nunca teria se fosse um simples "furriel atirador"…

Tinha de facto alguns conhecimentos (básicos) de hortofruticultura. Quando miúdo, ajudava o pai e os irmãos mais velhos na quinta que trabalhavam, de renda, na Lixa, em Felgueiras, em regime da parceria agrícola, versão moderna da servidão da gleba. O pai chegou a estar emigrado em França, onde tratava de cavalos num "château" da região do Loire.

Com as remessas de dinheiro, "suado e poupado", que mandava de França, lá conseguiu pôr o filho mais novo a estudar, primeiro no seminário menor da diocese do Porto, e depois num colégio privado em Amarante.

O "Felgueiras", "mau aluno, cábula",  não chegou a acabar o almejado 5º ano do liceu, para grande desgosto do pai que lhe desejava melhor sorte do que a de "filho de rendeiro". E este não teve outro remédio senão o de dar ordens terminantes à mãe para pôr o filho a trabalhar na Tabopan, logo que completasse os 16 anos. Tinha lá um tio materno que era encarregado e que o podia, de algum modo, proteger.

A Tabopan, na altura, era uma das grandes fábricas da região, dava trabalho a muita gente e era o sustento de muitas famílias de Amarante e arredores. Isto ainda antes da febre da indústria do calçado que, no caso do concelho de Felgueiras, irá enriquecer alguns e desgraçar muitos, sobretudo depois da entrada do País na CEE, em 1986, e da vinda de pipas de massa para a modernização das empresas… 

De facto, de um dia para o outro o pobre "sapateiro remendão" deu lugar a um "garboso industrial" que se pavoneava de Ferrari vermelho, entre Felgueiras e a Foz do Douro… As máquinas que os "sapateiros" (alguns, não generalizemos...) compraram, foram os famigerados Ferraris, que puseram Felgueiras no mapa…
 
− Por más razões...− reconheceu o "Felgueiras", quando eu abordei este tema... delicado para os felgueirenses.

Para o nosso cabo, a Tabopan foi uma das suas "faculdades da Universidade da Vida" (sic), a par da tropa e, depois, da Guiné.

−Abriram-me os olhos!

Self made man, gosta muito de evocar a "escola da vida" em que se formou e não esconde o seu desdém pelos "doutores de Coimbra".

−Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra!... Era o que se dizia até à reforma do Marquês de Pombal… − contemporizei eu.

−No meu caso, valeram mais os quatro anos de Tabopan e outros tantos de tropa, Guiné e, depois, Angola. (Fiquei a saber que ele também tinha passado por Angola, depois de vir da Guiné.)

Na Tabopan, com as boas graças do tio que procurou puxar por ele, o "Felgueiras" percorreu quase todas as secções, desde a produção à distribuição, do armazém ao escritório, onde aprendeu a escrever à máquina no teclado HCESAR.

−Quando assentei praça, já era um homem feito e vivido. Mas já que estamos aqui entre amigos e camaradas, juro que nunca fui um gajo 'putanheiro' e muito menos… 'azeiteiro'.

−O que é bem diferente de dar uma facadinha no matrimónio, de vez em quando – acrescentou, timidamente, entre dentes, o Arlindo, olhando em redor, não fossem as senhoras ouvi-lo...

−Ora… quem as não deu?! –interrogou-se o “Felgueiras”.

−Jesus Cristo, que, tanto quanto se sabe, não era casado…− galhofei eu.

Sete ou oito meses depois, lá vai o 1º cabo "Felgueiras" (mais o furriel Arlindo) no T/T Niassa a caminho da Guiné.

Mas passemos por cima dessas peripécias da pequena história pátria: não se deu mal com as novas funções que lhe foram atribuídas, a de 1º cabo hortelão da companhia (uma especiaidade que, diga-se de passagem não existe na tropa).

A horta cresceu e ajudou a equilibrar as "finanças" da companhia.

−Não sei se havia essa categoria no exército, a de 1º cabo hortelão… Não me lembro –repliquei eu.

−Os furriéis, que eram quase todos do Norte, chamavam-me o "Pencas", os alferes que eram do Sul, puseram-me a alcunha do "Couves"… Os meus camaradas, soldados e cabos, esses, tratavam-me, como sempre me trataram, desde o IAO, por "Felgueiras"… E foi essa alcunha que vingou.

− "Pencas"… mas porquê ?

− Imaginem que no segundo Natal que passámos no mato, em 1967 (e ainda haveríamos de passar um terceiro…), eu apostei com o meu capitão, que era nortenho, que ele iria ter pencas (a couve "tronchuda"…) na noite da Consoada, a acompanhar o bacalhau…~

−Meu capitão, arranje-me o bacalhau e as batatas, que eu trago-lhe as pencas. Para si, para mim e para o resto do pessoal.

Ele não acreditou e perdeu a aposta (100 pesos, ainda se lembrava o "Felgueiras"=…

−No primeiro Natal, mal chegámos, em finais de 1966, comemos uma merda liofilizada, uns grelos, um desconsolo.

O clima da Guiné não ajudava a criar pencas, a couve portuguesa, devido às temperaturas elevadas… Por outro lado, não fazia frio nem geada, muito menos neve, para "cozer" as "tronchudas", antes do Natal… Mas a verdade é que o "Felgueiras" conseguiu obter sementes pelo correio… mais uns "pozinhos de perlimpimpim" (sic). Em dezembro, afinal, fazia frio de rachar, à noite!... 


Com o "Paranhos", seu "ajudante de campo", conseguiu operar "o milagre das pencas" lá na região do Cacheu. Primeiro, fez um viveirinho de plantas. Depois, plantou-as e pôs, a toda a volta, no talhão das couves, uma rede em tecido camuflado para as pencas não apanharem o sol direto (ou em excesso) e evitar a passarada… 

Ninguém acreditava, até o comandante de batalhão foi lá um dia visitar a horta… 

− Sim, senhor, nosso cabo... Bela horta!

Enfim, "houve bacalhau com batatas e tronchudas na noite de Natal, se calhar pela primeira vez na Guiné!"...

− Foi uma alegria, sobretudo para a rapaziada do Norte, do Minho e do Douro Litoral… Sim, porque os gajos de Trás-os-Montes têm a tradição do polvo, e vocês, os alfacinhas, a mania do peru recheado... Com a tua licença, uma merda afrancesada...

Foi um sucesso, a horta. E as "tronchudas" ficaram na memória de todos, mesmo que nem todas vingassem. A horta cresceu e multiplicou-se para gáudio do capitão, do 1º sargento e do furriel vagomestre…

O nosso cabo tinha especial habilidade para descobrir talentos, tendo desde logo garantido o concurso do tal "Paranhos", que também trabalhara num quinta do Porto, antes da tropa.

− No tempo em que ainda havia quintas no Porto, justamente em Paranhos… Hoje o betão e o alcatrão tomaram conta de tudo – esclareci eu que ainda conheci o Porto… "rural", em 1975.

− E consegui depois arranjar mais dois ou três civis de uma tabanca próxima. Tinham em tempos trabalhado na horta das missões católicas do Cumeré, se não me engano. Eram manjacos, cristãos, falavam razoavelmente o português. Foram-me recomendados pelo capelão do batalhão, um gajo do Norte, também porreiraço. Eram pagos em patacão e em géneros. Formávamos uma bela equipa, tenho saudades deles, confesso... Chamavam-me o "irmão hortelão". O meu braço direito era o "Paranhos", que sabia muito mais de horta do que eu.

Foi aproveitada uma antiga "ponta", abandonada, que pertencera em tempos a um cabo-verdiano, da Ilha da Brava. A terra era fértil e a água doce abundante. Até tinha um poço com uma nora, desconjuntada.

− Na realidade, a "ponta", com uns bons hectares, não tinha sido totalmente abandonada. De facto, uma parte, junto à casa, continuara a ser cultivada por uma família manjaca, cristã, que trabalhava para o cabo-verdiano, ainda antes da guerra.

− O que é que lhe aconteceu, ao dono ? − perguntei eu.

− Nunca soube ao certo, contavam-se várias versões da história. Dizia-se que era compadre do Amílcar Cabral e que estaria em parte incerta. Uns juravam que tinha ido para Conacri. Outros garantiam que tinha sido morto em 1962, quando se deslocava na sua camioneta até Canchungo. Também era comerciante de arroz e mancarra.

− Não seria um tal Brandão ?

− O nome já não me lembro, nem para o caso aqui interessa. Era conhecido dos meus manjacos, e não seria mau tipo: deixou boas recordações.

Veio-se a descobrir, mais tarde, por finais de 1964 ou princípios de 1965, graças ao "trabalho de sapa" do agente da PIDE de Teixeira Pinto, que o tal manjaco, que fora empregado do cabo-verdiano, e que desde 1962 tomava conta da "ponta", fazia parte de uma "célula civil" do PAIGC… Foi acusado de ajudar (e até de abastecer) os "turras do Choquemone".

− Acho que se chamava Gomes e ainda por cima era o sacristão da igreja local, o sacana… – acrescentou o "Felgueiras" – mas isso não era do meu tempo… nem da minha conta.

Foi preso, interrogado, torturado e, com sorte, deportado, sem julgamento, para a Ilha das Galinhas, nos Bijagós. Um ano antes teria ido parar ao Tarrafal.

− Houve quem, por menos, tivesse acabado numa vala comum ou na bolanha com um balázio na testa – confidenciou o "Felgueiras"... – Pelo menos os meus manjacos contaram-me algumas merdas que a polícia administrativa  de Canchungo terá feito no início da guerra.

− A polícia ou a milícia do régulo…? Como é que ele se chamava ?

− Não me lembro, mas adiante… Disseram-me que mais tarde o Gomes foi solto, já a gente tinha acabado a comissão. Deve ter sido por volta de 1969, por ordem do Spínola.

O administrador do Canchungo acabou por tomar conta da propriedade e, em data posterior, cedeu-a à tropa. Tinha uma bela casa de sobrado, de traça colonial, que foi logo ocupadas pelos alferes.

A mulher e os filhos do Gomes foram recambiados para a ilha de Pecixe, donde eram originários. A casa e a horta foram cercados de arame farpado, passando a ser integradas no perímetro do quartel que, de resto, confinava com a tabanca.

A "ponta" sempre dera boa e abundante fruta tropical como a banana, o mango, a lima, a papaia, o abacate, o abacaxi… O nosso cabo introduziu culturas hortícolas europeias, adaptadas ao clima e ao terreno, graças a sementes que conseguiu obter da granja de Pussebé onde, por ironia, tinha trabalhado o engº Amílcar Cabral, e outras que encomendou à Intendência ou mandou vir da metrópole, pelo correio, através de um antigo colega, mais velho, do colégio de Amarante, que se formara como regente agrícola. 


Os terrenos, por sua vez,  foram lavrados e estrumados. Bosta era coisa que não faltava na "vacaria" do quartel… Como estavam de pousio, começaram logo a produzir em grande.


A produção de frutas e legumes dava para abastecer não só a companhia como o pessoal da CCS  e a outra unidade de quadrícula que estava em Teixeira Pinto. Para gáudio do médico do batalhão que, logo de início, alertara o comando para as insuficiências nutricionais que os militares iam sofrer ou já estavam a sofrer. Havia muita falta de "frescos", frutas e legumes, as companhias eram abastecidas, com alguma irregularidade, quer por colunas terrestres quer por avioneta (que também trazia o correio).

Com os restos do rancho e com as sobras da horta, o nosso cabo montou uma pocilga (uma "corte") e um galinheiro. Passados escassos meses, a companhia já era autossuficiente em galinhas, frangos, ovos e até leitões.

Quando o furriel vagomestre foi evacuado
 para o Hospital Militar 241, em Bissau, e dali para a Metrópole, com uma hepatite (o raio de uma doença que "toda a gente queria apanhar", já  que dava, na altura, direito a evacuação imediata para o Hospital Militar de Belém, especializado em doenças infecto-contagiosas…), o capitão, por sugestão do 1º sargento, achou que o "Felgueiras" era o homem certo para o lugar certo. Para já, não havia nenhum sargento ou furriel disponível para o lugar de vagomestre e, quanto ao substituto, já pedido, só viria lá para as calendas gregas. 

Interinamente, o nosso cabo, "até porque tinha estudos", ficaria a desempenhar o cargo de vagomestre. Como, de resto, ficou, até ao fim da comissão, "a contento de todos".

− A ganhar como 1º cabo, estás a ver?!

Por outro lado, o 1º sargento ia também, muito em breve, deixar a companhia para frequentar, em Águeda, a Escola Central de Sargentos. Tratava o "Felgueiras" de modo algo paternal, e os dois sempre tiveram uma boa relação desde a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). De resto, a companhia irá ficar sem sargentos: um outro 2º sargento do quadro permanente,que era operacional, teve um problema disciplinar, e acabou por ser colocado em Bissau. O 1º sargento não chegou a ser substituído em tempo útil. Na prática, foi o capitão quem assegurou o serviço de secretaria com o 1º cabo escriturário.

O "Felgueiras", que sabia escrever à máquina, e era voluntarioso, também ajudou a montar a secretaria da companhia e até chegou a fazer alguns trabalhos, a "stencil", quando o "escritas", o 1º cabo escriturário, não dava conta do recado. E os dois, o 1º sargento e o "Felgueiras" lá se entendiam com a "contabilidade criativa" da horta e da pecuária, incluindo a vacaria que tinha sempre meia de dúzia de cabeças de gado vacum, que o "Felgueiras" ia comprar aos fulas de Sonaco.

− Foi um pai e um mestre, para mim! – disse-me o "Felgueiras", já no fim da tarde, quando os mais novos, na festa do casório,  se divertiam ao som de uma banda de música rock… − Nunca mais o vi. Pena que t
enha morrido, cedo, com o posto de capitão SGE, ao que me disseram. 

Para o comandante da companhia, capitão de infantaria, miliciano, 33 anos, solteiro, "homem bom", antigo seminarista, professor de português num colégio particular, a "horta", a "corte", a "vacaria" e o "galinheiro" da companhia foram uma bênção do céu. Resolveram uma grande parte dos problemas de abastecimento e de segurança alimentar da companhia (e até do batalhão). 


O capitão ficou, por outro lado, bem visto pelos seus superiores hierárquicos, pelo empenho e apoio que deu a estas iniciativas. E até os comandantes das companhias em redor não lhe regateavam elogios. Mas "ninguém mexeu uma palha para seguir o seu exemplo"...

Por outro lado, com a "contabilidade criativa" do 1º sargento, a companhia passou a ter um "histórico superavit". Não cabe aqui contar, neste espaço, como é que o capitão reinvestiu esse patacão em obras para a melhoria do bem-estar dos militares (camaratas, casas de banho, campo de futebol…) e da população civil (posto escolar, centro médico, chafariz…), juntamenente com o patacão que vinha do batalhão para a "psico-social". Até deu para fazer obras de ampliação e beneficiação da pequena igreja local, para contentamento do capelão.

− Um homem com H, um grande capitão, mesmo que já não tivesse grande jeito (nem idade) para alinhar no mato e comandar tropas… 

− Voltaste a encontrá-lo ?

− Sim. Estivemos, pelo menos,  em dois encontros, em convívios anuais da companhia, que eu organizei por aqui perto, um em Fafe, e outro no Marco de Canaveses. 

− No Marco ?

− Sim, na tua terra... Ainda hoje, vinte e tal anos depois, a malta fala da grande almoçarada que eu proporcionei: a vitela assada à moda de Fafe, em Fafe, num ano; e logo, a seguir, num outro ano, o anho assado com arroz de forno,  lá no Marco… Até convidei o Ferreira Torres, de quem eu era amigalhaço, mas o homem nessa data tinha outros compromissos. Mas, mesmo assim, foi lá de propósito só para me dar um abraço e saudar a rapaziada.

− E essa história da padaria e dos leitões assados, de que me falou aqui o nosso camarada (e teu compadre) Arlindo ?

− Foi a cereja no bolo, camarada! – respondeu o "Felgueiras", orgulhoso. − Vim no "Uíge", fizeram-me uma festa de despedida, fui car
regado em ombos… Até parecia que eu era um herói de guerra, carago!

− Conta lá como isso foi, camarada. Se me deres licença, quero tomar boa nota dessa história.

− Pois, foi assim … Quando substitui o vagomestre (que Deus nosso Senhor o tenha em bom descanso!), havia muitas queixas das nossas praças, em relação ao pão que era servido às refeições. Até então, andava tudo de bico calado… Quando eu assumi funções, não houve cão nem gato que não reclamasse. "O casqueiro está uma merda, ó Felgueiras!"… 

− O costume, dá a mão ao vilão, morde-te logo a mão! − atalhou o Arlindo que estava a seguir a conversa.

− Bom, tive que tomar providências imediatas. O capitão deu-me carta branca. Arranjei um rapaz do Carregado, o "Alenquer", que andava a coçar o cu pelas tabancas, e promovi-o a ajudante de padeiro. Já era padeiro na vida civil. Em contrapartida, o padeiro da companhia era um básico, que nasceu sem jeito para nada a não ser para a sornice. Melhorámos a mistura das farinhas, fizemos obras no forno, começamos a fazer pão com chouriço e torresmos ao fim de semana… E às tantas um leitãozinho. E não é que a coisa pegou ? 

E depois, já com um brilhozinhonos olhos, o "Felgueiras" arrematou:

O Schulz, não, mas o Spínola, ainda "periquito", chegou a lá ir atrás do cheiro, ainda em 1968. Ele adorava o nosso pão… O leitão, às tantas, não chegava para as encomendas. Começámos também a "trabalhar para fora", até para restaurantes em Bissau… A rapaziada fazia umas "horas extraordinárias", mas todos comíamos da 'gamela'… 

− Queres dizer... ?

− Isso mesmo, ao fim do mês, havia mais patacão para cada um poupar ou gastar… Tudo com o "ámen" do capitão que nestas coisas tinha vistas largas... Pergunta ao "Paranhos", se um dia o encontrares lá nessa tal Tabanca de Matosinhos, de que me falaste, e que eu não conheço, mas um dia ainda tenho mesmo que lá ir… Almoço à quarta-feira, é isso ?

− Sim, vou-te dar os contactos e as coordenadas... Vais adorar, há lá malta do teu tempo e da região do Cacheu.

(Continua)




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Missirá> Pel Caç Nat 52 > c. 1973/74 > A horta,  Não havia quartel ou destacamento que não tivesse a sua horta... E hortelãos diligentes e trabalhadores, na maior parte dos casos mal aproveitados...

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 24 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18949: A galeria dos meus heróis (8): os seminaristas (Luís Graça)

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18881: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 63 e 64: que grande burro!, aposto que nenhuma mulher acreditava nesta treta [, o meu voto de castidade]...





Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Aerograma do Natal de 1973


Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*):

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;


(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook;  é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.


2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerograma as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;

(xxii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xxiii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xxiv) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xxv) vê, pela primeira vez. enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; mada um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...

(xxvi) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné.


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 63 e 64

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


63º Capítulo  > Natal e  Passagem de Ano 1973 


Adoeci e fui evacuado para o hospital, em Bissau. Não havia camas vagas na enfermaria e fui parar ao quartel dos Adidos, medicado com meia dúzia de comprimidos e um xarope. Não informei nenhum familiar, nem escrevi a ninguém sobre o meu estado de saúde. O meu mapa ficou em branco durante três semanas.

Apenas tenho comigo uma foto da noite de Natal de 1973 para provar que a passei nesse local. Embora não goste, vou contar de memória, e muito resumidamente, o que se passou na noite de Natal.

Os únicos soldados estranhos à unidade que estavam nos Adidos eram eu e mais cinco colegas. Falhara o nosso regresso a Fulacunda que devia acontecer antes do Natal, por falta de transporte. Não sabendo que não iríamos regressar ao quartel, eu e os meus colegas gastámos o dinheiro quase todo na boémia, em Bissau.

Orgulho-me do que fiz nessa época, juntamente com um sargento que nunca conhecera antes. Alugámos um táxi e fomos ao quartel-general, onde o cabo cozinheiro que ficou a substituir o meu amigo Castro nos arranjou batatas, bacalhau, grão-de-bico, ovos e me emprestou mil escudos. 

Dividindo os gastos com o senhor sargento, comprámos bebidas e vários produtos ligados ao Natal, que conseguimos encontrar nas lojas de Bissau. Com autorização do oficial de dia nos Adidos, pudemos usar a cozinha e recordo que cozinhámos em terrinas e não em panelas. O certo foi que mais uma vez festejei a ceia de Natal em franco convívio e, podem acreditar, também nessa noite as bebidas chegaram para mais de cem soldados dessa unidade que eu e o sargento andámos a distribuir por quem estava de serviço.

Acordei de manhã na cama do sr. oficial de dia com uma garrafa de whisky ao lado. Foi ele que mandou o ordenança deitar-me completamente embriagado.

Obrigado, sargento.

Na noite de passagem de ano de 1973 para 74, ainda pior estávamos. Tinham-nos dito que regressaríamos antes do fim do ano sem falta e isso não aconteceu. O dinheiro que ainda restava do empréstimo teve de chegar para todos. Comemos o rancho do quartel.

No dia 3 de Janeiro de 74 já estava em Fulacunda e no dia seguinte voltava ao normal. Se é que conto a seguir pode entrar nos padrões da normalidade!


64º Capítulo  > A boite Shá Tuá [Chez Toi]


“Deves estranhar só teres recebido dois aerogramas meus neste tempo todo e um apenas dizendo que ia para Bissau e outro com desenhos alusivos à quadra natalícia”.

A realidade é esta: durante um tempo achei que não me safava e decidi cortar com tudo.

- Penso que não devo andar a ficar muito bom da tola -disse eu ao 1º sargento Santos.

“Estive doente e devo voltar para o hospital outra vez em breve parece que será logo no inicio de Fevereiro. Ninguém me diz o que tenho, ou não sabem, ou não querem dizer. Sei que estou a ficar outra vez com pouco peso, se morrer que se foda estou farto disto.

Agora temos de viajar de barco porque derrubam os aviões. Disseram-me que os “turras” tem uma arma nova que se chama RPG 7, decerto é com essa arma que derrubam os nossos aviões. Ou decerto até tem mísseis. Até o Zé Leal que foi passar uns dias a Bissau em gozo de férias, foi no barco que eu vim. Tive pena dele não ir quando eu estava lá.

Ao menos tenho aqui aquele chato do Zé Alves e os outros amigos do costume, mais o tal que conheceu a namorada por carta que também tem nome. É outro Silva.

Durante os dias que estive em Bissau fui a um local frequentado pelas chamadas mulheres da vida fácil é uma boite (diz-se buáte) que se chama Shá Tuá mas fui lá só para ouvir música. Está lá um conjunto formidável cujo baterista é um rapaz chamado Álvaro Azevedo que ainda é primo dos meus familiares de Amarante e que era o baterista dos Pop Five Music Incorporated. Só estive lá mais ou menos duas horas mas nem dancei contentei-me apenas em ouvir musica e em tomar umas bebidas.

Não posso de maneira alguma dizer que naquele ambiente não senti desejo de ter relações sexuais, senti sim até porque as boites existem mesmo para isso, simplesmente sempre que se trate de mulheres que não sejas tu eu não levo ao fim os meus desejos, contigo custa-me resistir mas se não estás a meu lado está a tua imagem e pelo muito que te amo não posso de maneira alguma trair-te. Confesso que nunca fui assim e até era bastante mais volúvel, mas agora sou teu e apenas vivo para ti, portanto podes ter confiança em mim, eu amo-te e apenas os teus braços é que me abrigam pois só envolto neles tenho a certeza dum amor cheio de pureza”.


Que grande burro! Aposto que nenhuma mulher acreditava nesta treta. Então a Amélia é que nem pensar!