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domingo, 7 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24293: História de vida (52): O Baú (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

O BAÚ

ADÃO CRUZ
Nossa avó materna, Raquel, na foto, natural de Vieira do Minho, foi para o Brasil, Rio de Janeiro, ainda adolescente. Meu avô materno, Virgolino, na foto, natural de Vale de Cambra, já se encontrava no Brasil. Conheceram-se, tinha ela dezasseis anos, ele raptou-a e casaram. Tiveram quatro filhos, os dois mais velhos, Mário e Maria, na foto, um terceiro que morreu e nossa mãe, a mais nova, nesta altura da foto ainda não nascida.

Nossa mãe nasceu há cento e dezasseis anos, e nossa avó morreu no parto. Pai e filhos regressaram a Portugal quando nossa mãe tinha poucos meses, trazendo todos os seus haveres nesta mala (baú), na outra foto. Nosso avô foi posteriormente para Rio de Frades, Arouca, como capataz das minas de volfrâmio, exploradas por alemães. Os seus haveres foram dentro deste baú.

Toda a família directa de nossa mãe morreu com a Pneumónica. O pai, a madrasta e os irmãos. Ficou apenas a nossa mãe, com dez anos de idade. Sobreviveu também o baú, que por sinuosos caminhos chegou à nossa infância e se manteve fiel a nós toda a vida. Está em casa de minha irmã, e sempre que nele pousam alguns momentos do meu olhar, “fósforos riscados ao vento”, ouço dentro de mim uma melodiosa canção de Grieg, e penso que a poesia, seja ela o que for, felicidade ou drama, reside mais na vida do que no poema.

adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23879: História de vida (51): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - IV (e última): A última comissão, Moçambique, 1973: "Bem-vindos a Mueda, terra da guerra, aqui vive-se, trabalha-se e morre-se"

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24273: Efemérides (389): "Primeiro de Maio", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

PRIMEIRO DE MAIO

Primeiro e único
Verdadeiro
Maio acordado
Maio maduro
Penoso
Duro
Nunca vergado.


Floresta de braços e abraços
Festa dor do Maio primeiro
Carne e alma
Seio fecundo
Onde corre o leite
que alimenta o mundo.


Ir e voltar
Voltar a ir e a vir
Entre a dor e a alegria
Penoso caminho da vida inteira
Para prender um braço de sol
Entre a noite e o dia.


Mãos crispadas
Calejadas
Calor que os filhos aquece
Na esperança de outros sóis
Calar da fome que os adormece
Entre o antes e o depois
Da luta que não esmorece.


Maio de medos e canções
Maio de sempre
Maduro Maio
No fundo dos corações
Terra e vida
Vida dos que amam a terra
Antes morta que vencida.


Na palma da mão
Aberta e solidária
Festa da alegria
Maio dor e lágrimas
Renascido Maio
Nunca Maio da agonia.


Sol inteiro roubado
Sol do acordar de Maio
Vermelho e quente
Sol que é de todos
Maio de sol nascente.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24251: Efemérides (388): Revolução dos Cravos (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)

domingo, 30 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24270: Blogpoesia (791): "Passei o dia a ouvir música", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Passei o dia a ouvir música

Passei o dia a ouvir música
sempre a mesma
alternando Madredeus e Erik Satie.
Como foi possível parecerem-me tão semelhantes?
Que percebe de sons este monocórdico espírito?
Mas foi o mesmo o que produziram em mim:
a sensação amarga de ter atirado fora
uma paveia de sentimentos.
Como vou misturar "É quase certo que nada existe, nada está perto nem eu estou triste"
com "Embryons desséchés e Peccadilles importunes?"
Eu próprio me sinto mistura de contradições e acasos
harmonia de contrastes
santidade e pecado.
Nada percebo de música
mas quero que a música seja ar
chuva ou vento
olhos
boca
sustento
febre
delírio
amor e tormento.
Não sei onde fica a música nem a terra onde ela conduz
sei apenas que é de calor e de luz
ar puro e perfume
o caminho da música para o alto dos montes.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24243: Blogpoesia (790): Reflexão, simplista, sobre a Poesia (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 23 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24243: Blogpoesia (790): Reflexão, simplista, sobre a Poesia (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)


REFLEXÃO, SIMPLISTA, SOBRE A POESIA

adão Cruz

É muito difícil saber o que é a poesia. Sempre duvidei de quem diz que sabe o que é a poesia. Tenho lido e ouvido tanta coisa sobre poesia e muito pouca coisa me convence. Isto não retira a qualquer um de nós o direito que temos a expor o nosso pensamento.

Com a proximidade cada vez maior entre as Humanidades e a Ciência, muito especialmente as Neurociências, uma ampla janela se abre, como nunca se abriu, para o entendimento da natureza e do conceito de poesia.

O Ser Humano é uma estrutura muito complexa de sentimentos, uma infinidade de sentimentos, em sentido neurobiológico, obviamente. Desde os sentimentos mais comuns e mais conhecidos, como o sentimento do amor e do ódio, o sentimento da alegria e da tristeza, o sentimento da coragem e do medo, até sentimentos menos experimentados como o sentimento da beleza, o sentimento poético e o sentimento artístico. Sim, porque eu penso que beleza, a poesia e a arte, à luz das Neurociências, não são mais do que sentimentos.

Sem ter a veleidade de pretender impor conceitos de poesia, sinto a necessidade de a entender e de me entender no seu complexo e maravilhoso mundo, tão levianamente tratado por tantos devaneios pretensamente filosóficos. Embora nascendo embrionariamente connosco, os sentimentos têm de ser vivenciados, construídos, apurados e consolidados ao longo da vida, mais ou menos profundamente e de forma diferente em cada um de nós. Comparada com a assombrosa e constante neuroplasticidade cerebral do nosso dia-a-dia, a programação genética é uma componente muito menos decisiva na construção daquilo que somos e na elaboração da nossa mente.

Parece-me, desta forma, que o sentimento poético é um sentimento muito profundo e ao mesmo tempo muito subtil, uma espécie de essencialidade harmoniosa da vida, provavelmente de uma neuronalidade muito delicada. A poesia não é, a meu ver, um sentimento de cópia, mas a simbolização, a evocação e a invocação ao mais alto nível, da beleza e da nobreza da realidade. Para quem possui este sentimento bem enraizado, a expressão poética pode ser entendida não só como harmonia verbal, em que todos os materiais fonéticos e simbólicos se diluem num resultado de suprema fruição estética, mas também como seiva ou brisa mágica que percorre transversalmente qualquer forma de expressão artística. Daí que o chamado poema, considerado a matriz literária onde habitualmente nasce e germina a poesia, pode ser estéril ou constituir mesmo a negação do sentimento poético. A poesia pode ter uma presença mais viva num texto em prosa do que num poema, ou ser muito mais sentida numa pintura ou numa peça musical do que em qualquer forma de expressão literária.

Apesar de demasiado simplista, atrevo-me a concluir através desta reflexão, que é um erro pretender que o sentimento poético chegue às pessoas da noite para o dia, por artes mágicas, como se de uma prenda banal se tratasse. Dito por outras palavras, penso que, não sendo negativa, pode ser enganadora e não racionalmente formadora, a pretensão de levar às pessoas a poesia ou sentimento poético através de celebrações, festividades e dias mundiais.

Dizia Schiller, que o vulgar é tudo aquilo que não desperta outro interesse que não seja o sensível. A arte e a poesia não devem descer ao puramente sensível, à mera receptividade sensorial, à fugaz captação de estímulos incapazes de serem trabalhados condignamente nas complexas oficinas neuronais da nossa mente. Mesmo que seja um lugar-comum dizê-lo, só criando na sociedade, através de verdadeiras políticas culturais, as condições que permitam entender a natureza e a profundidade da poesia e da arte, elas poderão ser sentidas como elemento essencial da vida.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24237: Blogpoesia (789): "Dia de enganos", poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24237: Blogpoesia (789): "Dia de enganos", poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

DIA DE ENGANOS

Uma gaivota beijando a espuma branca das águas fundas
em bailado Grandi Mestri
culminando as chaminés do Cabo do Mundo.
O barco ao longe

estático no horizonte
como eu aqui de olhos fitos nas rochas.
Gaivotas bailando
Rossini
Oh! Péchés de vieilhesse
Mascagni
Massenet
sem ponte nem horizonte
Verdi
Wagner
Bizet
sobre a espuma da tarde sem dia
do dia sem ponte
e sem horizonte para lá das rochas negras e nuas.
Marcia Trionfale em dia de glória
dunas de espuma branca
abraçando as rochas do meu deserto
tão perto do mar imenso tocando as nuvens.
Alguém me leva nas asas da gaivota
por dentro de ti para dentro de mim
em doce Intermezo de rios de sol e mares sem fim.
Alguém me passeia por dentro de ti
Cavalcate Delle Valchirie
avançando a vertigem em turbilhão
até planar bailando sobre o coração
cravado no sol poente
vermelho e quente do sangue que verti.
Bruscamente…o Prelúdio voando dentro de mim
a alma que resta em Meditazioni pelo espaço imenso
tocando aqui e ali as penas das asas que perdi.
Vesti La Giubba meu palhaço trágico
viajante da Barcarola en nuit d’amour
com ar triunfante Va Pensiero
sobre as asas douradas
seguro de quem se apoia nas pedras nuas da orla do mar
esquecendo o mar que navega… infinito… mistério.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24211: Blogpoesia (788): "As Palavras estão gastas" (nova versão), poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 16 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24226: (In)citações (237): "Reflexão sobre a pobreza" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO SOBRE A POBREZA

adão cruz

Formar e educar pressupõe que as pessoas estão em primeiro lugar e não podem ser sacrificadas em nome de uma qualquer estruturação produtiva. É por isso que as relações capitalistas são incapazes, pela sua natureza intrínseca, de promover o conjunto de direitos fundamentais dos seres humanos, a começar pelo direito à vida digna, à educação livre, aos cuidados de saúde, à habitação, ao emprego, à cultura, ao lazer e à aposentação. Não se podem criar verdadeiras escolas e seguir processos de formação de qualidade dentro de um sistema social excludente, desigual e antidemocrático.

A pobreza, ou o holocausto da pobreza como alguém lhe chamou, é a maior e mais cruel das violências, a mais descarnada evidência do fracasso social, o resultado exponencial de todas as ganâncias. Seria o flagelo da consciência dos ricos, se esta não estivesse dominada pela iniquidade económica e pela insensibilidade ao sofrimento e ao drama de cada um. Não só a pobreza do sul do planeta, do terceiro mundo, mas também a pobreza dos excluídos do primeiro mundo, onde o abismo entre pobreza e riqueza é cada vez maior por força de um sistema altamente injusto, corrupto, explorador dos fracos, que não se coíbe de matar, massacrar e praticar genocídios, para aumentar os superlucros e as mais-valias que já não sabe como utilizar. Degradam-se as condições de vida porque as necessidades humanas são geridas pela política das sobras. Destrói-se a natureza pela proliferação de indústrias que nada produzem além de lixo. Envenenam-se as relações entre pessoas e países pela luta de interesses e pela invenção das guerras. Combate-se a cultura em todas as frentes. Impõe-se uma pretensa e soberana eficácia de todas as panaceias que originam fabulosos lucros, através da intoxicação comunicacional.

Toda esta religião do mercado, todos estes rituais dos sacerdotes do poder espalhados pelos cultos reverenciais do dinheiro são consagrados em cimeiras, onde um profundo défice de moralidade define a repartição do que ainda resta para roubar. Toda esta lógica neoliberalizante, tão cara ao primarismo de tantos chefes de estado e seus correligionários, insensível à exclusão social e à generalização da pobreza, tende para a anulação do homem e para a promoção de uma cultura de gestão, cuja meta não é outra senão a mecanização de uma sociedade em que os homens não são mais do que peças.

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24195: (In)citações (236): "Reflexão sobre a Ciência" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 9 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24211: Blogpoesia (788): "As Palavras estão gastas" (nova versão), poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

AS PALAVRAS ESTÃO GASTAS (Nova versão)

As palavras estão velhas
estão gastas as palavras.
Mesmo velhas
mesmo gastas
as palavras são olhos d’água
as palavras são miragem de horizonte.
As palavras são bonitas
são bonitas as palavras ditas e não ditas.
São boas as palavras
por dentro e por fora
mesmo as palavras más
nos lábios de alguém que chora.
São precisas as palavras
para falar com a paisagem
para sentir a poesia de Grieg
numa Canção de Solveig
ou a melodia de Smetana
nas ondulações do Moldava.
Mesmo velhas
as palavras gastas ainda têm dedos
olhos e lábios.
Eu ainda acredito nas palavras velhas
puídas
sem cor
eu ainda acredito que nelas vivem
algumas sementes de amor.
São as palavras gastas
as velhas palavras de outrora
que ainda acordam a saudade
e acendem as noites com olhos de fora.
Não matem as palavras gastas
assim sem mais nem menos
não deitem fora as palavras velhas
até que me ofereçam
no dia em que ficar mudo
uma caixa de palavras novas.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24120: Blogpoesia (787): "Botão-flor da primeira folha verde", poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24203: Blogoterapia (311): A sombra do jagudi (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

A SOMBRA DO JAGUDI

adão cruz

Acordei com um sol baço, esfreguei os olhos, espreguicei-me a todo o comprimento dos braços e bocejei a toda a largura da boca. Na rede mosquiteira, um grande insecto, enredado nas malhas, desesperava por se libertar, arrancando das asas um zumbido estridente de raiva e de agonia. Ainda ensonado, achei que era eu próprio a libertar-me da prisão onde me enfiaram.

Só tinha adormecido pela madrugada, com um peso no peito e um amargo na boca, deixado pela repetida leitura da carta da mãe da Sónia.

A Sónia vivia na África do Sul. Conheci-a em Lisboa, onde ela passava as férias com os pais, que eram amigos da família do meu colega Carvalho Santos. Era uma lindíssima miúda de vinte anos, cheia de sol e futuro. Com ela convivi durante os dias que precederam o meu embarque para a guerra da Guiné e o regresso da Sónia à África do Sul. O tempo suficiente para que dentro de nós se criasse uma linda relação e uma promessa de correspondência futura.

Entra a Guiné e a África do Sul, trocámos tantas cartas quantas o tempo e a distância o permitiram. Todas levavam e traziam as mais bonitas palavras que cada um de nós tinha dentro de si. Mas este fio de água cristalina que tão bem refrescava o calor da Guiné, subitamente secou. Durou metade da guerra. De um momento para o outro, as cartas deixaram de aparecer, como se no céu as estrelas se apagassem. A última que recebi foi da mãe da Sónia, dizendo que a filha morrera, vítima de um cancro da medula. Nunca de tal coisa a Sónia me falara. Nunca as suas cartas se escureceram. O estrondo que senti dentro do peito não foi menor do que o duma bazuca. Fugi para o meu quarto e encolhi-me até onde as carnes se dobraram. Dentro da carta vinha um pequenino alfinete de ouro, “a singela joia de que ela mais gostava” e que ainda guardo… mas não sei onde.

(Jagudi era o nome dos abutres, na Guiné)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23944: Blogoterapia (310): Não estou bem, e como anteriormente já dissera, voltei a ir para o "Corredor da Morte" (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA)

terça-feira, 4 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24195: (In)citações (236): "Reflexão sobre a Ciência" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO SOBRE A CIÊNCIA

adão cruz

Sou um materialista convicto, no sentido filosófico-científico, sem qualquer angústia sobrenatural ou metafísica, não perfilhando qualquer dualismo corpo-espírito, a não ser em termos académicos. Desta forma, considero a Ciência como a mais segura plataforma de partida para o caminho do saber e da verdade.

A Ciência oferece-nos perspectivas francamente inovadoras, mesmo sem contribuir com respostas directas e imediatas para todas as questões. A Ciência constitui a mais segura contribuição para a descoberta do homem e do mundo. A permanente interacção da evolução dos conhecimentos científicos com a cultura deve fazer parte da vida de todos nós. A Ciência, em permanente desenvolvimento, interfere constantemente em todos os domínios do quotidiano, e cria a necessidade de critérios de excelência em qualquer dos campos da educação e do progresso, a fim de tornar mais fácil o entendimento da vida. Sem a Ciência não há educação que resista, não há educação da verdade, não há verdade que não esteja conspurcada de crendice. Todavia, nem a Ciência nem a técnica têm sentido se não forem instrumentos para a realização plena da humanidade.

Ao apresentar-me assim, como intransigente defensor da Ciência, fazendo a apologia da Ciência como o mais verdadeiro de todos os caminhos, não deixo de ter em atenção a posição dos que atribuem à Ciência um cunho elitista, considerando-a parte de uma invenção diabólica que apenas serve para a consolidação cada vez maior do poder económico dos senhores do mundo. Neste sentido, a Ciência passaria a ser um instrumento de produção, mais associada ao poder de enriquecimento do que à criação do saber. Daqui a grande contradição entre a maravilha da Ciência e a perversidade das suas aplicações. Não podemos conceber, no entanto, um desenvolvimento sem Ciência, a grande luz contra todos os obscurantismos. Podemos e devemos, isso sim, ter sobre ela uma visão crítica, reconhecendo o seu incomensurável papel no desenvolvimento da humanidade e não desprezando os seus perigosos desvios. Um campo infinito, apaixonante e imparável, que tanto pode ser usado para reforço do poder dominante, como pode estar ao serviço de uma sociedade mais justa, mais verdadeira, mais progressista e igualitária.

Podemos concluir, dizendo que o mal não está nem nunca esteve na Ciência, mas no uso negativo que o ser humano lhe dá.

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24186: (In)citações (235): "Reflexão sobre as palavras" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 19 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24154: Os nossos seres, saberes e lazeres (562): Os meus livros. Ao todo, quinze (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico)

1. Em mensagem do dia 17 de Março de 2023, o nosso camarada Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68), enviou-nos uma listagem dos seus livros publicados, cujos temas vão desde a Medicina à poesia, passando pelo Conto e pela pintura.
Felizmente o nosso blogue tem já muitas publicações dos seus trabalhos de pintura, normalmente ilustrando os seus apreciados poemas. Alguns dos livros mais antigos estão há muito esgotados.


Os meus livros.
Ao todo, quinze. Falta o primeiro, escrito há largos anos, do qual tenho um exemplar, mas não sei onde pára. Era um livro de cardiologia, com o título "Cirurgia geral no doente cardíaco".

Por ordem cronológica:


1 - Cirurgia geral no doente cardíaco.
2 - ESTA ÁGUA QUE AQUI VEM DAR (Poemas e pintura)
3 - VEM COMIGO COMER AMENDOIM (Contos e poemas)
4 - PALAVRAS E CORES (pintura e poemas)
5 - ADÃO CRUZ - Tempo, Sonho e Razão (Pintura e texto).
6 - ADÃO CRUZ - Hora a hora rente ao tempo (Pintura e texto).
7 - ADÃO CRUZ - Um gesto de silêncio (Pintura e poemas).
8 - Poemas do lusco-fusco (Poemas).
9 - Poemas do ser e não ser (poemas).
10 - Poemas estoricônticos (Poemas).
11 - VAI O RIO NO ESTUÁRIO - Poemas de braços abertos (Poemas).
12 - VAI O RIO NO ESTUÀRIO - Cores de braços abertos (Pintura e texto).
13 - CENAS DO PARAÍSO (Contos).
14 - CONTOS DO SER E NÃO SER (Contos).
15 - Entre as mãos e o sonho (Poemas).
Adão Cruz
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24152: Os nossos seres, saberes e lazeres (561): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (94): Da bela Tavira a uma exposição sobre a Ordem de Cristo em Castro Marim, com José Cutileiro em pano de fundo (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 5 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24120: Blogpoesia (787): "Botão-flor da primeira folha verde", poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Botão-flor da primeira folha verde

Há uma mulher de alvor azul com um fio de azeite nos lábios finos e uma gota de água no canto dos olhos secos.

Os lábios foram carnudos e vermelhos de sangue e os olhos eram verdes como o sol quando o sol era verde.

Tem o rosto sumido na sombra descaída ao longo dos braços, como vela despregada de navegar.

Outrora, o mar encapelado e nu brilhava-lhe nos olhos, cobrindo de espuma branca as alamedas do desejo.

Havia uma cidade entre os lábios, envolta em lagos de montanha, com peixes verdes voando entre os pinheiros.

Não havia qualquer pomba branca caída no chão da cidade morta nas ruínas da ilusão.

Um edifício branco e muito alto, assente nas paredes do deserto, rompia o céu de nuvens negras.

No vão da noite que acolhe os sonhos, o botão-flor da primeira folha verde inverteu a vida entre o real e o imaginário, nas dobras do tempo, em universal dilema.

Há uma mulher de alvor azul com um fio de azeite nos lábios roxos e uma gota de água gelada no canto dos olhos.

E cedo se fez tarde a madrugada, sem tempo para morrer na vida de um poema.



adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23626: Blogpoesia (786): "O meu poema azul", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P24119: A nossa guerra em números (24): a composição orgânica de uma companhia de caçadores

 

Composição orgânica de uma companhia

 de caçadores

Comando

4 Gr Com, cada um com:

Capitão

1º Sargento

2º Sargento

4 Furriéis:

- Vagomestre (SAM /Alimentação)

- Enfermeiro (Serviço de Saúde)

- Transmissões (Trms)

- Manutenção Auto

1 alferes

3 sargentos (furriéis)

6 cabos

14 soldados atiradores

1 sold apontador de metralhadora

1 sold apontador de morteiro

1 sold apontador de LGF – Bazuca

1 Radiotelegrafista (RTL)

Praças

- 14 a 17 condutores autorrodas

- 4 mecânicos auto

- 1 mecânico de armas ligeiras

- 4 auxiliares de enfermagem

- 4 operadores de trms

- 1 operador cripto

- 1 escriturário

- 3 cozinheiros

- 1 padeiro

- 1 operador de reconhecimento

- 4 corneteiros /clarins

 

Total: 45 a 48

Total (Gr Comb): 28 x 4 = 112

 

Total (CCaç) = 157 / 160

 Fonte: Adapt. de Pedro Marquês de Sousa -  "Os números da Guerra 

de África". Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 49.


Composição orgânica de uma companhia de caçadores  (175 homens) 

(modelo de 1972)

Comando

3 Pel Caç,

cada um com:

1 Pel Acom-

panhamento

1 capitão

1 alferes médico

Secção de comando:

1º Sargento

Escriturário

Corneteiro/clarim

2 quarteleiros (também condutores e um barbeiro)

Secção de Transmissões:

Furriel (tb responsável pelo SPM / Correio)

2 Operadores cripto

4 radiotelegrafistas

4 radiotelefonistas

Secção de Alimentação:

Furriel (reabastecimento)

2 cozinheiros

3 auxiliares cozinheiro

1 padeiro

2 serventes (tropa local)

Sec Auto e Manutenção:

Furriel mecânico auto

3 ajudantes mecânico

1 mec armamento lig

15 condutores

Sec  Sanitária:

Furriel enfermeiro

4 auxiliares enf

Equipa acção psicológica:

1 alf (em acumulação)

1 fur (arm pesadas, em acumulação)

1 soldado

Comando:

1 alferes

1 radiotelegrafista (RTL) (do Comando da CCAÇ)

1 observador atirador especial

1 corneteiro/clarim

 

3 Secções Metralhadora Ligeira:

1 furriel

1 cabo apontador metralhadora

3 soldados

(3x 5 = 15)

 

1 Esquadara LGFog:

1 cabo

1 sold apont LGfog 8.9

3 soldados atiradores

 

1 Esquadra deAtiradores:

1 cabo

4 soldado

Comando:

1 alferes

1  RTL (do Comando)

1 observador atirador especial

1 corneteiro/clarim

1 enf aux (do Comando)

 

3 Secções Metralhadora Ligeira:

1 furriel

1 cabo apontador metralhadora

3 soldados atirad

(3 x 5 = 15 homens)

 

1 Secção Morteiro  Médio (81mm) (*):

1 furriel

2 cabo apontad

2 sold municiad

 

3 Secções Morteiro Ligeiro (60mm):

1 cabo

3 sold atiradores

(3 x 5 = 15 homens)

 

 

Observ.:

 

(*) Secção destinada a operar armas coletivas na defesa do aquartelamento

 

Total= 53

28 x 3 = 84

38

 

 

Total (CCaç)= 175

Fonte: Adapt. de Pedro Marquês de Sousa -  "Os números da Guerra de África".

 Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 50.


1. A "unidade de combate básica", na guerra do ultramar, nos três teatros de operações (Angola, Guiné e Moçambique) era a Companhia de Caçadores (CCaç). Era uma companhia, de 150 a 160 homens, composta por atiradores de infantaria (ligeira). Dividia-se em:

(i) Comando de companhia;
(ii) Quatro grupos de combate (ou pelotões).

O comando de companhia incluía o  comandante (do QP ou miliciano) + uma pequena equipa de apoio (de combate ou operacional, logístico e administrativo), nas áreas da alimentação, trasmportes e manutenção auto, saúde e comunicações / transmissões.

Cada grupo de combate (Gr Comb) era comandado por um oficial (alferes, em geral miliciano) + 3 secções, comandadas cada uma por um furriel (miliciano); cada secção estava dividida em duas equipas ou esquadras, sob o comando de um 1º cabo.

Além dos 10 graduados (1 alferes, 3 furriéis e 6 cabos), o Gr Comb dispunha de 14 soldados atiradores, mais 1 apontador de metralhadora, 1 apontador de morteiro (60 mm) e 1 apontador de LGFog / Bazuca), e ainda 1 RLT (Radiotelegrafista).

Este modelo também se aplicava às companhias de artilharia (CArt) e de cavalaria (CCav), que na prática eram companhias de atiradores (da arma de artilharia ou de cavalaria).

Em 1972 apareceu um modelo que previa mais pessoal (c. de 175 militares), procurando melhorar o emprego da companhia como "unidade independente (sem depender de um comando de batalhão)" (Sousa, 2021, pág. 51): dispunha, em teoria, de médico próprio, de uma equipa de acção psicossocial e  de mais potencial de fogo (nomeadamente morteiro médio 81mm). 

Foi um modelo aprovado por Despacho Ministerial, de 18 de agosto de 1970, alterado em 27 de abril de 1972 (Sousa, 2021, pág. 50).

Este modelo, oficial, da orgânica de um companhia, dita independente, previa a existência de 3 pelotões de caçadores e um pelotão de acompanhamento. No TO da Guiné, usou-se mais o primeiro modelo, ou seja, o dos 4 Gr Comb. (*)

Estranha-se não haver um sapador: na prática havia um alferes ou um furriel, em geral de operações especiais, que possuía o curso de minas e armadilhas.

Também se usava, no TO da Guiné, o LGFog 37mm, a par da bazuca 89mm, e do dilagrama. 

Veja-se, por exemplo, a composição orgânica da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Sendo uma companhia da guarnição da província, de intervenção (e não de quadrícula), com praças do recrutamento local, não dispunha de armas pesadas de infantaria (nomeadamente, o morteiro 81 e metralhadores pesadas como a Browning). 

Originalmente era constituída por 167 homens,  sendo 76 de origem metropolitana (graduados e especialistas) (**).

Rapidamente, com as baixas (em combate, por acidemte ou por doença), a constituição de uma equipa para o  reordenamento de Nhabijões  e a afetação do furriel enfermeiro ao serviço de saúde do batalhão (a que a companhia  estava adida, primeiro o BCAÇ 2852 e depois o BART 2917), a CCAÇ 12 rapidamente ficou desfalcada...

Nunca estive em quadrícula, pelo que não posso falar, de experiência própria, do modelo (oficial)  do quadro orgânico de 1972.

Na CCAÇ 12, cada Gr Com tinha, originalmente:

  • um LGFog 8.9, cada um com o seu apontador e municiador (4 x 2 = 8):
  • um LGFog 3.7, cada um com um apontador (=4);
  • um Morteiro Ligeiro 60, cada um com o seu apontador e municiador (4 x 2 = 8);
  • uma Metralhadora Ligeira HK 21,com o seu apontador e municiador  (4 x 2 =8);
  • mais 7 ou 8 apontadores de diligrama ...
Mas houve operações em que se utilizou o Morteiro Médio 81 (recorrendo ao Pel Mort adido ao Batalhão).
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 21 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6447: A minha CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971) (1): Composição orgânica (Luís Graça)

domingo, 29 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24021: Blogues da nossa blogosfera (175): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (76): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


O Homem é um ser uno e indivisível, muito complexo

ADÃO CRUZ
© ADÃO CRUZ

Ele é, no entanto, composto por uma infinidade de subunidades, todas elas intimamente ligadas entre si. A mais importante de todas, se assim podemos dizer, a unidade soberana, é o cérebro. Este órgão, bem guardado numa caixa óssea, feita da substância mais dura do corpo humano, é constituído por cerca de cem biliões de neurónios em permanente actividade, através dos quais se processam em cada momento, provavelmente, triliões de neuro-transmissões. O nosso esquema cerebral é idêntico em todos nós mas o conteúdo de cada cérebro é totalmente diferente.

A Humanidade não é um mero conjunto de homens e mulheres. A Humanidade é uma profunda e intrincada rede de relações, de relações humanas muito complexas. O cérebro de cada um de nós, apesar de encerrado num compartimento estanque, não se encontra isolado. Relaciona-se, permanentemente e mais ou menos intimamente, com todos os outros, e todos os outros se relacionam com ele de forma mais ou menos profunda, através dos múltiplos canais de comunicação que vão desde a linguagem, falada, escrita ou gestual, à mímica, à postura, às atitudes, aos comportamentos, não falando já de outras formas de comunicação menos conhecidas, que estão na base da investigação de hipotéticas concepções, como a existência de campos ou configurações electromagnéticas extra-cerebrais. Todo o homem se relaciona mais ou menos activamente com os inúmeros fenómenos que o rodeiam e com tudo o que vê e não vê, com tudo o que entende e não entende. O diálogo do Homem com o homem e do Homem com o mundo no seio da natureza e da Humanidade é permanente, profundo e inevitável. Assim vai ele construindo, dia após dia, o seu emaranhado mundo relacional, o seu autêntico microcosmos regido por todas as inimagináveis forças da sua microgaláxia.

Deixo um pouco de lado este homem-relação e vou imaginar que um qualquer de nós, encontrando-se num qualquer ponto do macrocosmos, no seio do Universo, a milhões de anos-luz de distância, resolve vir por aí abaixo (ou por aí acima!) dar um passeio. Vai-se aproximando, aproximando, passa por triliões de estrelas e por outros tantos triliões de outros corpos celestes, e ao fim de biliões de quilómetros encontra uma pequenina bola de berlinde a que chamam Terra. Pára um pouco para pensar e chega à conclusão de que a Terra, afinal, é um pequeníssimo e quase desprezível grão de areia no meio do Universo, sem qualquer valor ou significado. Continua a viagem, aproxima-se, aproxima-se um pouco mais, e repara que sobre essa bolinha chamada Terra se mexe uma multidão de pequenos bichinhos chamados homens. Pára novamente para pensar e definitivamente se convence de que o Homem, afinal, não é, rigorosamente, o centro de nada. Vai-se aproximando, aproximando ainda mais até penetrar dentro do próprio Homem, onde depara com o tal microcosmos que deixei atrás, na minha descrição. Conclui, então, pelo que lhe parece, que o Homem vive entre duas poderosas forças. Uma força antropocêntrica, que o atrai e o arrasta para a sua natureza, para a sua condição humana e para a sua esfera relacional, da qual não pode, de forma alguma, libertar-se, e uma outra força de sentido oposto e centrífugo dentro da permanente expansão do Universo, que tende a projectá-lo em cada momento na dimensão universal a que pertence.

Nesta zona de divergência, nesta interface, na fronteira entre estas duas poderosas forças, reside, a meu ver, a verdadeira vida, a vida que procura fugir e transitar da sua natureza palpavelmente biológica, para um estádio que, sem deixar de ser material e biológico, cada vez mais se integra na natureza cósmica da sua origem-destino. Nesta zona de divergência, nesta poderosa interface reside, em minha opinião, a mente, a verdadeira ponte entre as duas naturezas, que o são apenas na aparência. E quem diz a mente diz o desenvolvimento mental, quem diz o desenvolvimento mental diz o desenvolvimento cultural, e quem diz o desenvolvimento cultural diz o desenvolvimento da expressão artística, talvez o maior vector humano nesta força de projecção universal. Toda a natureza humana muda e altera em cada momento as relações do seu microcosmos, podendo fazê-lo de forma negativa ou positiva, isto é, cortando ou abrindo as asas da mente. Só as alterações e mudanças que levam ao saldo positivo da mente permitem o salto positivo da mente, a travessia desta ponte, para além da qual se dá a verdadeira evolução do Homem, a que conduz ao equilíbrio da sua concomitante expansão como ser do Mundo e do Universo e à preservação da harmonia cósmica da nossa existência.

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Notas do editor

Poste anterior de 18 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23890: Blogues da nossa blogosfera (170): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (75): Palavras e poesia

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domingo, 25 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23916: (In)citações (226): "O pedinte da berma da estrada" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

"O PEDINTE DA BERMA DA ESTRADA"

adão cruz

Lá estava o seu rosto velho e sulcado, arranhado do mundo e da vida, meio escondido na barba espessa e negra que o ninho havia impregnado de pequenas arestas de palha. Já quase não vivia, no magro sentido biológico. Apenas pensava. Por isso algumas vezes o julgaram morto quando ele verdadeiramente vivia. Outros apelidaram-no de filósofo.

Os olhos esquecidos por detrás das pálpebras negras e sujas não paravam nem por escassos instantes no rosto de alguém. Apenas um relance veloz como o raio constituía a única manifestação vital desse corpo, quando, frente a ele, alguém detinha ou abrandava o passo.

Todas as vezes que o vi me pareceu ver o meu retrato, mas sempre muito distante, muito longe. Um capote gasto e roto como a pouca vida que o mantinha ainda à flor da terra caía-lhe dos ombros magros como uma cruzeta. Há anos, muitos anos, que tal veste fora nova e de um castanho torrado como o cair da folha. Nunca deixara de cobrir aquele corpo, pois a ele o haviam cosido as mãos da miséria.

O próprio cachorro, cuja idade lhe comia no lombo grandes tufos de pelo, não reconheceria o dono sem capote, o dono cindido em dois. Cão e mendigo, esqueléticos e mudos, parados como um pântano, posavam para o mundo, para a grande tela da vida. Constituíam os dois uma só peça, uma única escultura cinzelada numa só pedra.

Não falavam. Apenas de hora a hora gemiam. Se era a goela a queixar-se, mexia-se a mão apergaminhada e ossuda do velho a acariciar-lhe tremulamente o focinho esguio. Se o gemido nascia do peito humano, brandamente o cachorro se aconchegava a ele, lambendo-lhe os olhos e a boca, como se quisesse mostrar-lhe quanto valia o amor de um cão perante a pobreza do mundo. E o coração do pobre velho sorria sobre um mar de tristeza.

Muita gente vinda da feira passava na estrada de regresso a casa. Todos recordavam esse capote de corte fino e um cachorro felpudo de raça. Mas todos passavam. Do grande homem de outrora nada existia, além de uma recordação que a palavra louco viera definhando com o decorrer dos anos.

Todos passavam. Alguns, ao vê-lo, contorciam a boca, na impossibilidade de compreenderem o negro decalque do presente sobre a luminosa gravura do passado. Outros nem um olhar gastavam. Era a humanidade que assim seguia, apática e obtusa, incapaz de perceber que um pobre velho sempre a lastimara e jamais lhe invejara a sorte e os bens.

Eu havia acabado, para esse dia, o meu trabalho. Como sempre, ao dirigir-me a casa, parei frente ao pedinte da berma da estrada. Sim, parei junto àquele que fora nos meus tempos de criança o grande empreiteiro. Um relance de olhos ao chapéu meio podre pousado na berma poeirenta mostrou-me algumas moedas de cobre, negras e tristes como a miséria daquele velho e daquele cão. O rosto cavado e dorido notou-me e espremeu uma lágrima. O cachorro gemeu, esticando as patas finas numa languidez de velhice. Que tristeza me tomou!

Ali me detive, na ânsia de ouvir daquela boca seca um sopro que fosse, da voz longínqua que nunca se apagara da minha mente. Mas essa voz morrera e da loquacidade de outrora nada existia. Negava-se a língua a articular qualquer sílaba, do mesmo modo que as pernas anquilosadas se negavam empreender qualquer movimento. Senti o coração mergulhar num vazio pesado. Pobre homem!

De repente, os anos palpitantes da meninice afloraram ao meu espírito como estrelas brilhantes e inquietas num céu sedoso e longínquo. Como eu os senti, como eu rapidamente os revivi nesse encontro com o pedinte da berma da estrada! Era como se um lírio murcho reabrisse as pétalas ao mais fraco lampejo de sol primaveril. Os meus olhos perderam-se num mundo de sonho que ficava para além da esquelética face do pobre velho.

Tudo corria dentro de mim num fluir delicioso e colorido de imagem em bola de cristal. E eu via-o, via-o no centro de tudo, indelével em todos esses quadros mágicos, como se formasse o fundo imóvel da torrente do passado. Ele era a esse tempo a pessoa mais importante das redondezas.

Já a noite caía sobre as copas negras das árvores quando dei por mim. Um poente que mais parecia uma fogueira pintava a orla marítima do céu, e um vento leve e frio, nascido do anoitecer da serra, fazia tremer. Fitei o rosto do infeliz no qual buliam alguns pelos da barba e pensei: como dorme! Era tão grande e resplandecente a paz daquela face amachucada que eu quase senti, ao olhá-la, um sagrado respeito.

O frio de que o cair da noite se envolveu tornou-se tão cortante, que me obrigou a ceder à ideia de levar o velho pedinte a algum abrigo. Quantas vezes eu pensara arranjar àquele homem o pão e a cama dos derradeiros dias. Mas havia sempre um resto de orgulho a impedi-lo de abrir a mão ao meu auxílio. E como me doía matar esse bocadinho de orgulho que o aquecia ainda como a frouxa chama de uma vela.

Nesse dia não podia deixá-lo. Toquei-lhe as mãos pálidas e estremeci. Estavam geladas como pedra sepulcral. Palpei-lhe nervosamente o rosto e a barba que mais me pareceu uma mão cheia de palha seca. Subi-lhe as pálpebras mas já não havia luz que me permitisse enxergar-lhe os olhos. Tentei convencer-me de que respirava, mas nem o respirar dos anjos era mais leve. De repente, ouvi por sobre o coração pancadas tão fortes que me pareceram arrancadas de um tambor. Em breve percebi que não passavam de silêncio, do mais profundo silêncio.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23731: (In)citações (225): As questões éticas nos cuidados de saúde (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 18 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23890: Blogues da nossa blogosfera (170): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (75): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


Atravessei o deserto infinito

ADÃO CRUZ
© ADÃO CRUZ


Atravessei o deserto infinito
aqui e ali um oásis repousante.
Por cada terra que passei a ambivalência cresceu.
Virgem ou não
deus ou demónio
a tudo o corpo cedeu
idêntico a si mesmo
na espiral concêntrica do desejo.
Ao cimo de todas as escadas nada vi
e para descer dentro de mim
tive de pendurar meus passos
nas descarnadas sílabas
do silêncio da madrugada.
Fechei as feridas do mundo
em versos secretos e fechados
e rasguei-os mais tarde na feira
perante o riso dos pobres.
No silêncio dos ruídos e das ruínas
me escondi
de metáforas democráticas
me discursei.
Um dia
cheguei ao rio que vai dar ao mar…
ainda me encontro a caminho do mar
onde espero sentar-me
na rocha húmida e fria
vestida de algas e maresia
olhar bem longe…
e começar alguma vida nesse dia.

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Nota do editor

Poste anterior de 26 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22846: Blogues da nossa blogosfera (168): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (74): Palavras e poesia

Último poste da série de 26 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23461: Blogues da nossa blogosfera (169): O blogue de Alberto Hélder, antigo árbitro de futebol, e que fez a comissão de serviço militar em São Tomé e Príncipe (1964/66): destaque para as séries já concluídas: A Polícia Militar no Ultramar, Os Comandos nos três teatros de operações da guerra do ultramar; o Estado da Índia - 466 anos de história... E para a série em curso, As Companhias Móveis de Polícia