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domingo, 12 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4675: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (9): Férias na Metrópole. Não há duas sem três...

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 8 de Julho de 2009:

Caro Carlos:

Estive uns dias em Oviedo, cidade asturiana, daquelas em que apetece viver,
aliás como deviam ser todas as nossas. Foi esse o motivo do pequeno atraso
semanal no envio da IX estória para a série A Guerra Vista de Bafatá, que segue
em anexo.

Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ
8 - Férias na metrópole. Não há duas sem três…


Foto 1 > 1968 > Chegada a Bafatá num Dakota, depois das primeiras férias. Vista parcial da tabanca da Ponte Nova.

Todos têm as suas manias. Eu tenho as minhas. Uma é a de considerar as férias sagradas. Entendo que quem trabalha tem esse sacro direito.

Quando fui mobilizado para a Guiné sabia, à partida, que iria ter direito a um mês de férias em cada ano civil (mais cinco dias, suponho, se viesse à metrópole) mas só podendo vir à metrópole duas vezes, por ser miliciano. Os oficiais do quadro podiam vir três vezes.

Fui para a Guiné em JUN68 e vim em JUN70. Três anos civis com direito a duas férias cá. As regras eram essas pelo que orientei a minha vida nesse sentido.

Gozaria as primeiras em NOV68 e as segundas e últimas em MAR/ABR69. Casaria nestas últimas e a minha mulher mais tarde iria passar umas temporadas à Guiné, em Bafatá, onde tinha possibilidade de alugar uma casa.

Nessas primeiras férias tudo foi pacífico. Passados mais uns quatro meses viria novamente de férias, MAR/ABR69, mas as coisas complicaram-se.

No Agrupamento em Bafatá tinha conhecido um soldado nativo, Seidi, que estava à espera de ser julgado, pensava eu, por algo que teria feito contrário ao RDM. Quarenta anos depois cheguei à conclusão, pela leitura dos livros do Beja Santos, que esse tal Seidi devia ser o mesmo que algures, na zona de Bambadinca, tinha espancado a mulher.

Se tivesse sabido que o Seidi tinha praticado tal javardice talvez eu não tivesse embarcado no que se passou a seguir.

O Seidi foi para Bissau onde iria ficar preso, tendo-me pedido para o visitar na prisão. Passados uns dias sigo também para Bissau a caminho das minhas segundas férias.

Como prometido, procuro a prisão no Quartel General, em Santa Luzia. Já perto, de trás das grades, o Seidi chama-me. Estivemos à conversa e em determinada altura diz-me: Meu Alferes faça-me um favor: sabe que sou muçulmano e que não bebo vinho. Peça ao nosso Major (chefe dos serviços prisionais) que, em vez do vinho, me dêem o correspondente patacão, assim já dá para melhorar o resto do cume.

Fui falar com o tal Major e expus-lhe a situação.

O céu parece ter desabado ali. O homem espumava por todos os lados e aos gritos perguntou:

- O que está a fazer aqui?

- Vim de Bafatá e vou de férias à metrópole.

Aos gritos continuou:

- IA, IA, IA. O nosso Alferes não conhece o RDM? Não sabe que não se podem visitar presos sem a minha autorização?

Vendo a minha vida a andar para trás (e não só a minha), adiantei-lhe que nas férias iria casar, que tinha tudo marcado.

Por isso e talvez por ter conseguido ler os meus pensamentos assassinos, fui de férias.

No princípio do ano de 1970, num fim de tarde estando à conversa com um Major, que por ser do quadro tinha acabado de gozar as suas terceiras férias na metrópole, aquele major sugeriu-me que deitasse o barro à parede, pedindo as minhas terceiras férias.

Depois de pensarmos qual a justificação a apor no requerimento, só se descobriu uma: Conforme casos anteriormente autorizados.

O requerimento foi para Bissau. Ao fim de um mês veio a resposta. Quem deferiu o requerimento ou não conseguiu encontrar a lei que impossibilitava aos milicianos as terceiras vindas à metrópole ou, por pura incompetência, não verificou que eu era miliciano.

Faltavam uns dias para ir para Bissau apanhar o avião com vista às terceiras férias, quando à porta do Comandante (Cor Neves Cardoso) tive uma discussão com um Major que mais tarde se viria a revelar de baixíssimo carácter, que elevou a voz. Como achava que tinha toda a razão do meu lado, elevei também a minha, no pressuposto, no meu subconsciente, que dentro do gabinete do Comandante estaria ainda o anterior Comandante Cor Hélio Felgas, que me teria dado razão.

A pessoa era outra e um pouco depois mandou-me chamar para me comunicar que me tinha cortado as férias.

Foto 2 > 1970 > O Cor Neves Cardoso entre o Ten Cor Banazol e o Administrador

Fui lamentar-me junto do Major que me tinha ajudado a fazer o requerimento e este, que não se dava com o outro (aliás ninguém se dava com tal elemento), prometeu-me que falaria com o Comandante.

Fui chamado novamente e lá vim de férias, só que o insólito ainda estava para acontecer.

Em Bissau, já no aeroporto, quando estava com o chek-in feito e a chamarem para o embarque, o meu passaporte militar não aparecia. Procurei, procurei, revi os bolsos várias vezes, várias vezes tirei tudo da pequena sacola que levava e nada.

Só faltava eu embarcar.

Em determinada altura a minha situação chegou ao conhecimento do Comandante do avião. Junto deste tornei a rever todos os sítios possíveis onde poderia estar o documento militar. Em determinada altura o comandante dá a seguinte ordem, sem que eu estivesse à espera:

- Retirem todas as malas do porão do avião até a mala do senhor Alferes aparecer.

Termino, dizendo que o Passaporte Militar não estava na mala… mas vim de férias… com Passaporte Militar.

Obrigado Senhor Comandante.

Foto 3 > ABR1970 > Viagem de Bissau para Bafatá em LDG - 1.ª classe, no regresso das últimas férias.

Foto 4 > ABR > Chegada ao cais do Xime, no regresso das terceiras férias. “Tudo ao monte e fé em Deus”

A próxima estória relatará uma situação simples da guerra de retaguarda à qual eu pertencia e que a meu ver completava a da frente de combate. O tema será uma mina e um poema alusivo de um nosso camarada também poeta.

Até para a semana camaradas.

Texto e fotos: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4637: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (8): À carga no Esquadrão de Cavalaria de Bafatá

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3401: Blogoterapia (70): Notícias da Tabanca Grande (Carlos Vinhal)

I. O Carlos Vinhal, que é um mouro de trabalho, mandou-nos hoje, a todos nós, um ficheiro pdf com a lista, actualizada dos nomes e dos endereços de email do pessoal da Tabanca Grande (ou tertúlia, como dizíamos originalmente, com algum pretensiosismo).

Garantimos que essa lista está em boas mãos, não correndo o risco de ir parar, por exemplo, aos ficheiros dos recrutadores de mancebos para guerras futuras. A verdade é que já somos, entre amigos e camaradas da Guiné, cerca de 280, residentes nas mais diversas partes do país, desde Miranda do Douro a Faro, e da Madeira aos Açores, e até no estrangeiro, na diáspora portuguesa (Austrália, Brasil, Canadá, EUA, França, Holanda, República Checa...). Sem esquecer a nossa querida Guiné-Bissau...

O Carlos aproveitou a oportunidade para esclarecer algumas dúvidas sopbre o envio de comentários, que voltamos a reproduzir aqui:

Caros camaradas e amigos tertulianos

Junto vos envio lista actualizada dos endereços da tertúlia.

Como aparecem amiúde camaradas a solicitar endereços, sugiro que a guardem em ficheiro nos vossos PCs e que a substituam sempre que vos envie outra mais actualizada.

Por outro lado, aparecem camaradas a queixarem-se de que não conseguem fazer comentários no Blogue por não terem conta no Google e lhes ser sugerido abertura de uma.

Deixo uns tópicos para deixarem o vosso comentário. Lembro que é uma forma fácil e rápida de interagirem com os camaradas que escrevem.

1 - Clicar na palavra Comentários existente no fim da cada postagem
2 - Escrever o texo na caixa, não esquecendo de indicar o nome para evitar o anonimato
3 - Introduzir os caracteres produzidos pelo Google na caixa de Verificação de palavras
4 - Na área de Seleccionar uma identidade, escolher a opção Anónimo
5 - Finalmente clicar em Publicar o seu comentário

Os editores estão disponíveis para, dentro dos seu conhecimentos, ajudar nas eventuais dificuldades que possam surgir aos tertulianos.

Pelos editores
Carlos Vinhal



II. Aproveitamos para reforçar o pedido da equipa editorial para que toda a gente participe também no blogue, regularmente, com os seus comentários, críticas ou sugestões. Participar significa, etimologicamente falando, tomar parte em, ser protagonista, ser actor... Não queremos que sejam sempre os mesmos a mandar bitaites. Além disso, já ninguém precisa mais de pedir licença e pôr-se em sentido, para fazer o seu comentário, crítica ou sugestão. Estamos todos na peluda e esquecemos o famigerado RDM:

Amigo ou camarada da Guiné:

A tua opinião é muito importante para nós. Podes (e deves) escrever, no final de cada poste ou texto, o que te aprouver: um pequeno comentário, uma nota adicional, um reparo, uma crítica, uma sugestão... Basta clicares duas vezes sobre comentários que aparece no fim de cada texto, antes dos Marcadores (palavras-chave).

O teu comentário será publicado instantaneamente, sem moderação. Se voltares ao blogue (clicando no ícone Refresh, por exemplo) , encontrarás logo o teu texto. Escreve com total liberdade e inteira responsabilidade (o que significa respeitar as boas regras de convívio que estão em vigor entre nós: por exemplo, não nos insultamos uns aos outros, somos capazes de conviver com as nossas diferenças, discordamos sem puxar da G3...).

Não precisas de ter uma conta Google/Blogger. Podes fazer um comentário como anónimo, mas é conveniente (e desejável) que deixes sempre um contacto teu (nome, localidade, antiga unidade e, se possível, e-mail, no caso de ainda não pertenceres à nossa Tabanca Grande). Os amigos e os camaradas da Guiné não se escondem no anonimato, são pessoas habituadas a dar a cara.

Um Alfa Bavo (ABraço).
Os editores LG/CV/VB

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2285: Roubaram-me a Caderneta Militar (Júlio Benavente/Carlos Vinhal)


A nossa Caderneta Militar que tinha uma cor muito triste. Neste caso, a minha (CV)...

Foto: © Carlos Vinhal (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do nosso camarada Júlio Benavente, ex-Fur Mil da CCS/BCAV 1905, de 15 de Novembro:

Nunca se sabe o que a net nos pode dar.

Em 1990 fui de férias a Portugal (vivo nos States) e na Batalha fui roubado.

Entre várias coisas, lá foi a minha Caderneta Militar. Parece estranho, mas entre muitas coisas quiçá mais importantes, esta é a que tem mais valor para mim.

Claro que participei o roubo à GNR da Batalha.

Muitos anos já se passaram e, como a vida é cheia de surpresas, é possível que já tenha acontecido o mesmo a outros camaradas.

O que fazer? Ideias?

Julio da Silva Benavente


2. Comentário de CV:

O nosso camarada Júlio Benavente ficou sem o símbolo da sua vida militar. Lá estariam registados todos os passos que ele deu, desde a Incorporação até à Disponibilidade.

Na nossa Caderneta podem constar Unidades por onde passámos, postos, datas das promoções, louvores, punições, licenças, etc.

Para ele, que está nos Estados Unidos, longe da sua Pátria, há tantos anos, a Caderneta representava o tempo em que serviu Portugal para o bem e para o mal. Não tínhamos grande escolha, então. Nas suas entrelinhas podiam ler-se as horas de Sangue, Suor e Lágrimas. Saudades e privações de toda a ordem.

Perguntei-lhe porque razão não pedia uma segunda via, ao que ele respondeu que não seria a mesma coisa. Que interessa um segundo documento onde diz que esteve aqui, ali e acolá, se já não é o original?

Se calhar, muitos de nós nem sabemos onde está a nossa Caderneta Militar neste momento. As gavetas do tempo guardam muita coisa fora de ordem.

Se alguém achar este post despropositado, lembre-se do nosso camarada Baptista que tem sido espoliado, precisamente por lhe negarem o direito de ter uma Caderneta Militar (1).

E se alguém que acede à nossa página tivesse o Documento Militar do Júlio Benavente? Porque não devolvê-lo?

Afinal não serve a ninguém, a Caderneta, a não ser ao próprio.

CV

___________

Nota de CV:

(1) Vd. post de 30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2011: Vamos ajudar o António Batista, ex-Soldado da CCAÇ 3490/BART 3872 (Júlio César / Paulo Santiago / Álvaro Basto / Carlos Vinhal)

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (55): Mataste uma mulher, branco assassino!

Guiné > c. 1968 > Bilhete postal > No verso lê-se: " Guiné Portuguesa > Bilhete postal > 103 - Folclore. Edição exclusiva das Galerias Jota Éme para a Casa Gouvêa. Reprodução Proibida". (Cortesia de Cristina Allen: faz parte de uma colecção de postais ilustrados da Guiné, enviados pelo seu então noivo e futuro marido, Mário Beja Santos).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados


Mensagem do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Caro Luis, aqui vai o episódio da semana passada. Tudo farei para recuperar o atraso e manter o stock de segurança em três episódios. Pelas minhas contas, o próximo será provisoriamente o último do primeiro volume. Conto que tu faças o milagre de encontar ilustrações, não tenho propostas. O Queta vem cá em breve para tirar as fotografias que tu reclamas, muito justamente. Recebe um abraço do Mário.


56º episódio da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado a 11 de Julho de 2007 (1). Substítulos do autor e do editor.

Mataste uma mulher, branco assassino!

por Beja Santos


(i) Trabalhos e aflições em Finete

Em 1 de Agosto [de 1969], parto para Finete acompanhado de uma dúzia de colaboradores. Assentara com o Casanova e com o Pires o que havia a fazer em Missirá nesta primeira semana do mês, sendo que as idas a Mato de Cão nos seriam sempre comunicadas em Finete, para onde se deslocaria um contigente de 15 homens, respectivamente com morteiro 60, dilagramas e bazuca, e que aqui seria reforçado com milícias, e eu assumiria, sempre que possivel, o comando.

Continuávamos a ter muitos doentes, militares e civis, quase todos os dias o David Payne [, o médico do BCAÇ 2852, em Bambadinca,] atendia sofredores de malária e múltiplos vírus. Levei rações de combate, colchões, mosquiteiros, o indispensável Lion Brand para afugentar a bicharada, algum material de engenharia para apoiar as obras em curso, e, a despeito dos vendavais e novas enxurradas de água, sempre dentro do ciclo "chove agora copiosamente, daqui a um bocado faz sol, troveja depois", recordo um tempo magnífico, patrulhamentos à volta de Boa Esperança, travessia até Canturé e descida até à bolanha de Gambana. Ao fim da tarde do primeiro dia, encontrámos marcas de sandálias de plástico em trilhos que ligavam Gambana até Malandim. Que desaforo! As gentes de Madina passeava-se mesmo junto a Finete.

A 2 [de Agosto], conferi carga de material enquanto os cabos Benjamim Costa, Dominigos Silva, Alcino Barbosa e António Queirós ajudaram nas obras do novo balneário e de um abrigo reforçado, no alto do morro, com uma posição estratégica para os acessos de Malandim. É nessa tarde que escrevo à Cristina:

"Faz agora exactamente um ano que recebi uma guia de marcha para seguir para Bambadinca. Cheguei a 3 de manhã ao cais de Bissau, foi uma longa viagem que acabou ao anoitecer no cais de Bambadica. Eu era o periquito de Missirá. Na tarde do dia seguinte, há-de aparecer o Saiegh acompanhado de Mamadu Camará e Campino, todos me olham como curiosa novidade. Nunca mais esqueci o olhar do Saiegh, dois carvões iluminados, azeitonas brilhantes que não iludiam um grande ressentimento, como vim a comprovar. Nesse dia, em Missirá, a gente da Madina deixou na fonte panfletos a convidarem os colonialistas a desertar; nessa mesma manhã, Uam Sambu, também não muito longe da fonte de Cancumba, viu o seu peito estilhaçado por uma granada mal armadilhada.

"Será uma noite muito difícil, esta primeira noite em Missirá: oiço uma língua que mal percebo, parece um português arcaico entremeado com diferentes linguajares, o que não estava longe da verdade. Choro mansinho dentro do meu mosquiteiro, num abrigo onde se ouve o tossir áspero do rádio de transmissões para onde o Teixeira de vez em quando se dirige. Estou a dimensionar uma pavorosa solidão, depois de ter visto alguns despojos macabros que o Saiegh guardava em frascos. Desculpa as longas descrições, os pormenores entediantes, os sustos que te dei. Sei que sofreste muito com as minhas cartas, com os meus mortos e feridos, as flagelações. Desculpa tudo, estou certo que Deus assim andou connosco, e nos deu força".


(ii) A emboscada em Malandim


E portanto a 3 de Agosto vamos emboscar em Malandim, vamos mostrar a quem se abastece em Mero e Santa Helena que não estamos impassíveis ao descaro. Trabalhou-se até cerca das 5 da tarde, escolhi um grupo de quinze homens, cuidadosamente, com o auxílio do Benjamim Costa e do Domingos Silva expliquei como íamos actuar: ficaríamos em linha numa clareira, muito perto do mato denso que vem da destilaria de aguardente abandonada da fazenda de Malandim; ficaria no meio rodeado do Tcherno e de Mamadu Djau; ninguém dispararia a não ser à minha ordem, e a haver uma retirada viríamos pelo trilho até Finete, deixando os sentinelas de sobreaviso quanto a essa emergência.

Levara para Finete alguns livros, tais como A vida de Charlot, por Georges Sadoul, um volume com as aventuras Sherlock Holmes, um belo livro polícial de Ellery Queen, um romance que mal iniciei de Truman Capote e estava a meio de um policial de Erle Stanley Gardner, O caso do pato afogado. Este último, envolto num plástico, acompanha-me até à enboscada de Malandim.

Estamos devidamente posicionados quando a repentina noite tropical caíu sobre nós. Aqui e ali ainda se ouve um cantil que vai à boca, um mastigar de comida, um pedaço de cola que ajuda a passar o tempo e quebra a secura. Penso mais no dia de amanhã que no de hoje, amanhã quero levar as folhas dos vencimentos a Bambadica, procurar trazer arroz, encomendar comida para a nossa messe em Missirá, ver se já chegaram alguns cunhetes para suprir as munições desaparecidas na noite de 15 de Julho.


(iii) A histérica reacção do Cabo Costa


A 5 de Agosto vou escrever à Cristina:

"Não podes imaginar a dor com que te escrevo, estou chocado e não sei conter a amargura que me trespassa a alma. Tens que me ouvir. Montei uma emboscada na noite de 3 perto de Finete, onde estive até ontem. Aguardávamos com ânimo elevado a borrasca dos céus e o desfiar das horas, até alta madrugada. Eu estava estirado na pequena picada que conduz às ruínas da fazenda de Malandim. Silêncio sem o piar das aves até que, passava das 7, não estávamos ali há mais de uma hora, oiço o brado do Mamadu Camará que passa como um chicote pelas minhas costas: alto, alto já! rodopio, há um vulto que avança para mim, é um manto que me parece esverdeado que vacila diante de mim, não sei se vem armado, crivo-o de balas, oiço um suspiro breve, é como se uma massa mole que me cai nos braços.

"Estala o pânico, ouvem-se passos em fuga, é naturalmente o grupo que se reabastecera em Mero que parte em fuga. Acometido por uma violenta histeria, o cabo Costa pragueja e insulta-me: matou uma mulher, és um branco assassino. Uns procuram dominar o dementado, outros querem caçar os fugitivos, é uma desordem geral com a berraria do cabo Costa que continuava a vociferar e a insultar-me.

"Coisa curiosa, estou sereno, ordeno a retirada para Finete, aqui peço ao Bacari para ir buscar o corpo e os despojos, informo que vamos todos seguir para Bambadinca, sei e sinto que é necessário cortar pela raiz este sinal de insubordinação. Os quilómetros enlameados que levo até Bambadinca dão para pensar no que devo ao Benjamim Lopes da Costa, seguramente o mais culto dos meus cabos, sempre prestável, militar aprumado a quem reconheço a qualidade da solicitude e o valor da lealdade. Mas não se pode passar uma esponja sobre o que aconteceu".


(iv) Uma conversa surreal com o meu comandante, na presença dos meus homens

Atravessado o Geba, parece que corremos até à rampa de Bambadinca, em segundos alcanço a messe de oficiais onde Jovelino Pamplona Corte Real joga bridge. Cá fora fica o grupo acompanhante, tudo gente que presenciou os acontecimentos de Malandim.

Uma conversa quase extraordinária com o Comandante do BCAÇ 2852:

- O que o traz aqui a estas horas?

- Meu Comandante, fizemos uma emboscada perto de Finete, surpreendemos um grupo que ia para Madina, matei um dos elementos, um dos meus cabos perdeu a cabeça e insultou-me, chamando-me "branco assassino". É indispensável que se reponha a ordem. Tem que ficar aqui preso. É a si que compete dar voz de prisão.

- Homem, nem pensar. Na guerra, não se prende toda a gente só porque se perde a cabeça. Fale-lhe a bem, obrigue-o a pedir desculpa, vai ver que não houve insubordinação nenhuma.

- Meu comandante, mantenho com todos os militares em Missirá e Finete uma relação de autoridade e estima que não posso nem quero perder. Não vou agora fazer um relatório com este episódio aldrabado. Não pudemos capturar o inimigo por este desrespeito, este acto insensato que estragou o patrulhameto ofensivo. Os meus soldados nunca entenderiam ter-se feito silêncio sobre este acontecimento. Aliás, não aceito desculpas aos soldados que adormecem no posto, nunca deixo passar em branco as tentativas àqueles que querem pagar reforços para fugir ao serviço. O cabo Costa ou é punido ou eu não volto para Missirá.

- Acalme-se, vamos para o meu gabinete.
E fomos, eu fiz sinal para que todos viessem atrás de nós. Entrei a seguir ao comandante no seu gabinete, a luz acendeu-se, ele sentou-se e voltou a propor-me um exercício de cortesia.

- Veja se serena. Quando se é implacável em excesso, corre-se o risco de perder o verdadeiro respeito que a tropa nos deve ter. O melhor é o cabo ficar aqui, eu converso com ele, eu trago-o à razão.

- Não, meu comandante. O cabo Costa chamou-me branco assassino na presença de todos os camaradas. Sei que é um excesso, conheço as suas qualidades, mas vida militar faz-se de exemplos. Ou ele entra na prisão à sua ordem, ou eu informo os meus soldados que a partir de hoje não os comando. E juro-lhe que não voltarei ao Cuor se não se fizer justiça pelas suas mãos. Asseguro-lhe que não volto atrás.

O comandante olha-me intensamente, o tempo suficiente para perceber que era escusado tentar demover-me. Não estou em pânico nem exaltado, a dor que me atravessa não é reparável por qualquer voz de prisão.

- Bom, vou mandá-lo prender, ele fica à minha custódia. Depois vejo o número de dias de prisão que lhe vou dar.

- Desculpe, o meu comandante vai mandá-lo conduzir para a prisão na nossa presença. Os meus soldados precisam de ver com os seus olhos quem faz justiça, quem castiga a insubordinação.


(v) Oito dias de prisão disciplinar para o Cabo Costa


Levantando-se a custo, como se deslocasse todo o peso do seu corpo e da sua decisão, Jovelino Pamplona Corte Real chama o oficial de dia. Quando este chega, ordena-lhe que conduza o cabo Costa para a prisão, que era qualquer coisa como um galinheiro ali em frente. Apercebendo-se do que estava a acontecer, o Benjamim procurou justificar-se. Insensível a qualquer pedido de reparação, perfilei-me e informei que ia partir imediatamente para Finete.




Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Teor da punição dada ao 1º Cabo Benjamim da Costa Lopes, do Pel Caç Nat 52, pelo Cmdt do BCAÇ 2852, Ten Cor Pamplona Corte Real:


"Puno com a pena de 8 (oito) dias de prisão disciplinar, o 1º Cabo nº 82535864 - BENJAMIM LOPES DA COSTA, do Pel Caç Nat 52, por no passado dia 03 de Agosto cerca das 19H00, no decurso de emboscada na estrada FINETE-MALANDIN, perante uma atitude legítima do seu Comandante de Pelotão, dirigiu-se-lhe em tom e termos denotando falta de respeito, seguindo-se-lhe uma crise de nervos e de choro, facto este que inibiu ser adoptada uma medida de perseguição imediata a um grupo IN que se revelara, sobre o qual momentos antes o Comandante do Pelotão tinha aberto fogo e abatido um dos seus elementos.


"Não é mais rigorosamente punido atendendo-se ao seu bom nível operacionmal bem c0mo uma razoável capacidade de colaboração já demonstrada em outras ocasiões, além das desculpas que pouco depois apresentou, alegando o seu temperamento nervoso e emotiona

"Infringiu o dever nº 2 do artº 4º do R.D.M."

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).


Não falo com ninguém, nem durante a viagem nem depois. Mais tarde, frente a toda a tropa formada na parada de Missirá, leu-se a ordem de serviço com a punição: 8 dias de prisão disciplinar por se ter dirigido ao seu comandante em tom e termos denotando falta de respeito, atitude que impediu a perseguição imediata de um grupo inimigo, porque o seu comandante tinha aberto fogo e abatido um dos seus elementos. E não era mais rigorosamente punido devido às suas qualidades e capacidades de coloboração.

Aquela noite mudara a minha vida. Continuo a adoecer no corpo e na alma. Tenho farfalhada e expectoração, líquen no dorso, sinto tonturas, perdi o apetite, isolo-me. O major de operações continua a exigir-nos emboscadas todos os dias, até de madrugada, nos arredores de Missirá e Finete. Já não consigo inventar efectivos para tanto patrulhamento e emboscada.

E a 4 de Agosto recebo a nota de punição em que os meus 2 dias de prisão simples, após recurso, são mantidos por "tendo-lhe sido chamado à atenção para as deficientes condições de defesa e limpeza existentes no seu aquartelamento, não ter dedicado o máximo do seu interesse à resolução de tais problemas". Acabou-se o sonho de ir a férias, tenho que repensar o que fazer sobre os propósitos do casamento, estou abrasado pelo sofrimento, não sei o que hei-de pensar daquela acusação de "branco assassino".

Vou reagir da nota de punição e peço licença para me dirigir ao Concelho Superior de Justiça e Disciplina do Exército. Sinto-me ofendido por ter dedicado muito interesse ao meu aquartelamento e não aceitar à acusação de que não dediquei o máximo do meu interesse. Pretendo saber o que significa o máximo do interesse, não sei se de uma perspectiva filosófica, religiosa, moral ou militar...


(vi) As minhas leituras, os sinais de futuro


Os mosquitos atenazam, estão mais furiosos nestas noites da época das chuvas, não há Lion Brand que os fulmine. Só verei perseguição idêntica quando formos para aquele buraco infecto que eram as instalações na ponte do rio Udunduma. Ler é um refúgio, depois de escrever nada mais, naquele tempo, me embevece tanto e fortifica a alma. Leio descomprometidamente as histórias do Sherlock Holmes com títulos que nunca mais esquecerei: a Liga dos Cabeças Vermelhas, o Mistério do Vale de Boscombe, a Tiara de Berilos... a dedução, a sagacidade desse senhor de Baker Street 220 empolga-me, revitaliza-me a curiosidada.


Leio de trás para a frente e de frente para trás a vida Charlot. Georges Sadoul escreveu uma biografia brilhante desse génio a quem o cinema deve alguma das suas páginas mais gloriosas: a infância díficil num bairro pobre de Londres; a sua entrada no music-hall e depois na pantomina; depois o teatro e a comédia; os primeiros êxitos nos Estados Unidos e a chegada ao cinema; os grandes filmes a começar por "O garoto de Charlot", "Dia de pagamento", "A quimera do ouro", "O Circo", "Tempos Modernos", "O Ditador", "Monsieur Verdoux", "Luzes da ribalta"; as suas lutas e os seus anseios, a força do desengonçado Charlot e a sua mensagem de paz. Eu lia e relembrava as obras primas que me delíciaram, em vários ciclos que vi dedicados a Chaplin em cineclubes.

Capa do livro de G. Sadoul, A vida de Charlot. Lisboa: Portugália Editora. s/d. (Colecção Livro de Bolso, 26/27).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).


O mistério da laranja chinesa de Ellery Queen é um policial histórico, inesquecível. Data de 1934, marca claramente uma ruptura com o policial de aventuras, introduz o enigma e a sua decifração. Neste caso, alguem um milionário coleccionador, aparece assassinado num gabinete fechado, tudo remexido, virado do avesso. Ellery, no grande final, convoca todos os possíveis suspeitos e desmonta a charada com a sua dedução brilhante. Não menos importante que o conteúdo é a magistral capa do Cândido da Costa Pinto para este nº 32 da Colecção Vampiro.




Cópia da capa do romance policila de Ellery Queen, O Mistério da Laranja Chinbesa. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecxção Vampiro, 32). Capa de Cândido da Costa Pinto


Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).



Este Agosto vai ser um mês duríssimo: o meu esgotamento não se pode resolver, a penúria de meios não pára de aumentar. Como um castigo, à cada vez mais patrulhamentos em Mato de Cão, parece que a guerra se intensifica, de manhã ou à tarde aceno a barcos carregados de jovens fardados de fresco. Lá para o final do mês iremos à primeira versão da "Pato Rufia", que se repetirá em Setembro.

Chega uma boa notícia: Enxalé vai finalmente ser incorporada no nosso sector. Ainda em sigilo, volto lá e almoço com o alferes Taveira. Recebo belas cartas, tento reorganizar a minha vida, como se eu pudesse administrar o meu futuro, Missirá voltará a ser flagelada, a guerra agrava-se para os lados de Mansambo e Xitole. Em Lisboa, tenho afectos inconsoláveis. A minha resposta é de que sou preciso no Cuor. Aqui, a despeito desta guerra, sinto-me útil a quem me quer bem.

________


Nota de L.G.:

(1) Vd. os últimos cinco posts:

6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1927: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (54): Ponta Varela e Mato Cão: Terror no Geba

29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1898: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (53): O ataque a Missirá de 15 de Julho de 1969, visto pelo bravo mas modesto Queta Bald

13 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1948: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (52): Em Bissau, no julgamento do Ieró Djaló

22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1870: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (51): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (5)

15 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1851: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (50): Do tiroteiro em Bambadinca na noite de 14 de Junho de 1969 à emboscada da bruxa

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1037: Não cuspir no rancho, mas RDM... nunca mais ! (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Cacine > 1970 > O Alf Mil Transmissões João Tunes . Legenda do fotógrafo: "Em Cacine, Sul da Guiné-Bissau, Maio de 1970, a meio da comissão na guerra colonial. Faltavam três meses para a Catarina nascer".
Foto: © João Tunes (2006) (com a devida vénia, do blogue do João Tunes, Água Lisa (6) > post de 2 de Agosto de 2006 > Foi no stress, não foi ?) (1)


Resposta do João Tunes, de 28 de Julho de 2006, ao comentário do Joaquim Mexia Alves, inserido no post anterior (P1036, com data de hoje):

Caro camarada Mexia Alves:

Mas porque raio havíamos de estar de acordo seja no que for? O direito de que não abro mão de discordar daquilo que discordo, implica o dever do total respeito para quem discorda de mim. É assim que me tenho sentido na nossa Tertúlia - dizer livremente o que penso e sinto, desde que com respeito pelos outros e pela verdade percebida, dever a que julgo nunca ter faltado, respeitando com absoluto fair-play e bonomia as opiniões divergentes, diferentes, até opostas, de outros camaradas.

Em nada me belisca a diferença, pois só tenho uma cabeça e não sou dono de qualquer uma outra que assente noutros ombros. Assim tenho feito com posições de outros camaradas sobre a forma como sedimentaram a memória da guerra, muitas vezes nas antípodas da forma como eu as sedimentei.

Não sendo para me gabar, julgo que dei um pouquinho do meu canastro para que houvesse liberdade no nosso país. Seria cuspir no rancho, agora não me reconhecer e não reconhecer a todos o pleno e livre direito de concordarem ou discordarem no quer que seja. Desde que se esteja de boa fé, defendo que tudo se deve permitir e que a única coisa que deve ser proibida é proibir. E ... RDM, nunca mais!

Sobre as questões que colocas (descolonização, fuzilamentos dos guineenses que serviram no exército colonial) percebo e respeito os teus pontos de vista. Não os rebato. Por uma simples razão - para estes peditórios já dei em substância noutras abordagens feitas tempos atrás no blogue. Não vou repisar e muito menos polemizar.

Só uma nota: o meu texto que o blogue transcreve e tu comentas foi escrito e publicado na Net em 2004 (antes do blogue-fora-nada e quando eu curtia solitariamente o meu cacimbo). Disse e está no post de introdução à sua republicação no blogue, que hoje não escreveria da mesma forma (a catarse vai fazendo a cura) mas resolvi conservar a sua redacção inicial só porque, assim, o cacimbo se notava mais. Se calhar, fiz mal, admito. Mas a um camarada nem tudo se perdoa?

Sou um admirador dos teus textos que julgo vieram enriquecer e muito o blogue. Obrigado por isso. Grande abraço para ti. Outros iguais para os restantes camaradas. Manda sempre. Mandem sempre.

João Tunes
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1020: Stress pós ou pré-traumático ? (João Tunes)