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terça-feira, 7 de março de 2023

Guiné 61/74 - 24124: Memórias cruzadas: A base (logística) de Sinchã Djassi / Hermancono, na fronteira com o Senegal (contributos de Carlos Silva, Leopoldo Amado e A. Marques Lopes)


Guiné > Região do Oio > Carta de Jumbembem (1953) / Escala 1/50 mil >  Posição relativa de Jumbembem e do "corredor de Lamel" (que partindo da estrada Farim-Jumbembem, acompanhava o curso do rio Lamel, afluente do rio Jumbembem, passando por Fantambã e Farincó até à fronteira)... Já em território senegalês havia a base (logística) de  Sintchã Djassi (assim chamada talvez em homenagem a Abel Djassi, nome de guerra de Amílcar Cabral ?!...) ou Hermancono  (também grafada como Hermacono ou até Hermangono). Na fronteira com o Senegal, estão sinalizados os números dos marcos, de 105 a 112. Era por aqui que se localizava a base.

Infogravuras: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


Excerto de manuscrito do Carlos Silva, ex-fur mil Carlos Silva, ex-Fur Mil Arm Pes Inf, CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71). (Trata-se de um livro, inédito, sobre a sua experiência de vida na Guiné, aonde, de resto, foi por diversas vezes, a seguir à independência, em trabalho e em turismo de saudade). O nosso camarada é advogado de profissão; tem um valioso espólio documental (fotográfico e literário sobre a Guiné); é um histórico da nossa Tabanca Grande, para a qual entrou em 20/7/2007.

O manuscrito do IN, encontrado no corredorde  Lamel, em 3/3/1970, vem reproduzido também na História da Unidade, BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71), Cap II, pág. 20. Escrito em muito mau português, diz o seguinte (revisão / fixação de texto: LG):

Hermancono, 3-3-70

Oficiais, soldados e fantoches do exército colonial, estão a fazer muito ronco na estrada. Devem saber, e preparem-se,   [a base de] Canjambari já recebeu novo dirigente militar para vos 'tirar no abuso'.   Já estão muito atrevidos no caminho tanto de Bricama como de Sulucó. Temos que vos mostrar qual é o vosso lugar.

Ao nosso primeiro encontro todo o vosso comando tem de vir.

Assinado: FARP. Aviso ao Exército Colonial.




Excertos da História da Unidade - BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71), HU-Cap II -Pág. 20: 

(i) No dia 14 de março de 1970, pelas 8h30, forças da CCAÇ 2548 (Jumbembem, 1969/71) detetaram um acampamento IN a Oeste do marco fronteiriço nº 107. Lançado um golpe de mão, foram feridos 2 elementos IN, e capturado 1 LGFog e 2 granadas de RPG 2, entre outro material. O IN reagiu com armas automáticas e morteiro ligeiro, batendo a área do acampamento a partir da Repúbica do Senegal.

(ii) No dia seguinte, 15, forças da milícia de Cuntima, comandadas pelo cmdt da CCAÇ 2549, executaram uma patrulha de reconhecimento ao longo da fronteira até ao marco nº 105. Detetaram dois elementos IN, que perseguiram.

(iii) A 20 do mês, às 13h30, e durante a interdição do corredor de Lamel, forças da CCAÇ 2548 (Jumbembem) detetaram e perseguiram um grupo IN estimado em 80 elementos. que se deslocavam de Sul para Norte, a 400 metros da sudoeste da ponte. O IN não reagiu ao fogo das NT, e retirou para Norte. De Jumbembem form feitos 13 tiros de obus para a zona de retirada do IN. E, a seguir, a FAP, chamada a intervir, fez um ataque ao solo entre o rio Lamel e Fantambã. Feita uma  batida imediata, foram encontradas 10 granadas de RPG 2, entre outro material.

Infografias: Carlos Silva  / Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné (2023) 


1. O Carlos Silva teve a gentileza, no domingo passado, de me mandar cópia dos dois documentos que acima reproduzimos. Afinal, ele lembrava-se desta base (ou barraca), ou pelo menos do seu nome,Hermancono ou Hermacono. Ficaria no limite do subsetor de Jumbembem, mas já em território senegalês. Nos mails que trocámos, ele esclareceu:

(...) Luís, este nome   [Hermancono]  ficou-me na orelha, Consultei o meu livro e  História do Bat Caç 2879 e cá está ele.

Como referi participei na operação que fizemos à zona, mas não encontramos qualquer vestigio. Segue o panfleto que apanhamos em Lamel. (...)

(...) Eu andei por lá em fins de 1969, Mas quando fizemos a operação, não ouvi falar na base de Hermancono. Não está muito longe de Cumbamori. No meu livro dos Roncos de Farim  eu falo na 1° operação a Cumbamori em dezembro de 1967. (...)

(...) Durante toda a comissão nunca ouvi falar em tal base, apesar de ter ido lá. (...)

(...) As fotos do poste P24110 são de 1973, de certo os gajos deambulavam entre Cumbamori e Hermancono, esta designação não é guineense. (...)

Ao telefone, disse-me que já tinha andado  naquela estrada Ziguinchor-Dacar, duas vezes, quando foi à Guiné. Numa delas entrou por Cuntima, se não erro.

2. Pesquisando no nosso blogue, descobri que o toponónimo, Hermancono (*),  já sido citado mais do que uma vez: pelo historiador guineense, e nosso amigo, Leopoldo Amado (1960-2019), e pelo A. Marques Lopes, que reproduz   o Subintrep nº 32, de junho de 1971. Aqui vão alguns excertos:

(i) Leopoldo Amado, poste P 1566 (**)

(...) Com efeito, Cabral procurou a partir de 1971, estabelecer estruturas sociais de partido-Estado em Tigili/Iador/Sara/Zona Oeste (Biambi), Catió e Quintafine, enquanto que, por outro, se preocupava com as ameaças às áreas libertadas, traduzindo-se tal situação na polarização da sua actividade em torno da estrada Mansabá-Farim, na sua reacção ao reordenamento de Bissássema e na intenção de instalar forças no Unal, visando libertar corredores de infiltração que favorecessem os ataques aos centros urbanos. 

Assim, o PAIGC inicia, a partir desta altura, as acções contra Bissau e Bafatá, há muito anunciadas, num momento em que procede à desconcentração das unidades dos CE 199/A e 199/B, que se haviam deslocado para as áreas de Sano e Cumbamori (Senegal), dando por findo o esforço realizado na área de Barro-Bigene-Guidaje.

Nesta desconcentração, o CE 199/A regressou à área de Campada, enquanto o 199/B foi ocupar e reactivar a base de Hermancono, que voltou a constituir área fulcral na fronteira norte, praticamente abandona­da desde Fevereiro de 1971, aquando da sua transferência para Canjeno. 

Como consequência desta nova ocupação de Sinchã-Djassi, aumentou de forma considerável o trânsito pelo “corredor” do Lamel, que passou a ser o mais usado, seguindo-se-lhe, em menor grau de utilização, o de Canja. (...) (**)

(ii) A. Marques Lopes, poste P3258 (Subintrep nº 32, junho de 1971 - Itinerários de abastecimento do PAICG) (***)

(...) 

- Para a Frente de Morés/Nhacra

Para o Sector do Morés são utilizados os “corredores” de Lamel e Sitató, podendo também com menos frequência utilizar o de Sambuiá, segundo os itinerárioa que se referem:

“Corredor” de Lamel

Morés – estrada Mansabá/Farim sensivelmente em direcção a Biribão – Biribão – cambança do rio Canjambari nas proximidades da tabanca de Béssia – Bricama – cambança do rio Jumbembem – cambança do rio Lamel – estrada Jumbembem/Farim – Fambantã, seguindo depois um carreiro até um local nas proximidades da fronteira onde a coluna aguarda a chegada do material. 

Este vem da arrecadação existente na base de Sinchã Djassi e é transportado até ao referido local em viaturas, sendo ali entregue às colunas que o esperam. 

O regresso é feito pelo itinerário inverso, tendo o percurso (ida e volta) uma duração de cerca de seis dias. Os locais de pernoita pensa-se que serão em Biribão  [a sudeste do Olossato] e Fambantã.

O IN utiliza para movimentar as suas viaturas de reabastecimento às bases desta Frente a chamada “Estrada Grande”, isto é, a estrada que, a partir de Koundara, segue por Linnkiring – Velingará – Dabo – Kolda – Bantankoutou – Sonco – Sare Tening – Tanaf – Ierã – Samine – Ziguinchor. É pois a partir deste itinerário principal que saem ramificações que conduzem às diferentes bases. Assim,

- Para Faquina: Kolda – Bantankoutou – Sonco – Lenquerim – Faquina

As viaturas vão apenas até Bantankoutou. Os reabastecimentos a partir daqui são transportados por carregadores que em Lenquerim cambam a bolanha de canoa para passarem à base de Faquina.

- Para Sinchã Djassi (Hermancono): Kolda – Sare Tening – Hermacono

- Para a base de Cumbamori: 
Kolda – Tanaf – Ierã – Mankolecunda – Cumbamori

- Para Dungal: 
Kolda – Tanaf – Dungal

- Para Sano: Kolda – Samine – Sano

- Para Sikoum Bafatá: Kolda – Tanaf – Samine – Goudomp – Sekoum

O material e víveres vindos da República da. Guiné (Koundara) passa, como vimos,  em Dinnkiring e Kolda, locais onde é feito pelas autoridades da República do Senegal controle das viaturas e material transportado; a partir de Kolda o material é usualmente acompanhado por pessoal do Exército Senegalês, embora em escolta à distância.

No terminal da “Estrada Grande” encontra-se Zinguinchor, sede do comando da Inter-Região Norte, mas que no quadro da logística do PAIGC não parece desempanhar papel relevante dado que, segundo os elementos disponiveis, apenas apoiará os grupos sediados em M’Pack e Kassou.

O reabastecimento das Frentes do interior da Inter-Região Norte é feito por colunas de carregadores através dos “corredores” tradicionais de infiltração e suas variantes, sendo sempre feitos em movimentos vindos do interior, razão pela qual se descrevem estes “corredores” no sentido inverso àquele em que, até aqui, se tem descrito p fluxo dos reabastecimentos.

Estão detectados os seguintes:
  • “Corredor” de Sitató, com início em Faquina
  • “Corredor” de Sambuiá, com início em Cumbamori
  • “Corredor” de Lamel, com início em Sinchã Djassi [ / Hermancono]
  • “Corredor” de Sano, com início em Sano [pelo lado Este, entre Barro e Bigene - A.Marques Lopes]
  • “Corredor” de Canja, com início em Pirgui [pelo lado Oeste, entre Barro e Sedengal - A. Marques Lopes]
_______________

Notas do editor:

(*) Vd.  poste de 1 de março de  2023 > Guiné 61/74 - P24110: Memórias cruzadas: onde ficava a base (logística e operacional), do PAIGC, de Hermacono? Segundo informação recolhida por Cherno Baldé, junto de um antigo guerrilheiro, ficava na linha de fronteira com o Senegal, no vértice de um triângulo que tinha como base as tabancas (abandonadas) de Farincó e Fambantã, a oeste da estrada Farim-Jumbembem

(...) Comentários de Carlos Silva:

Conheci bem o nosso Sector de Farim e principalmente o nosso subsector de Jumbembem onde estivemos de 2/01/1970 a 16/6/1971.

Quando estivemos em Farim chegámos a fazer uma operação ao Dungal que fica na fronteira na qual eu não participei.

Fomos a Lambã duas  vezes, onde se dizia haver por lá uma base, andamos para diabo e nada.

Estivemos destacados no K3 / Saliqunhedim, e fizemos operações para esse lado para a bem conhecida Fátima onde tivemos contacto com IN e todas as Companhias por lá andaram.

Picagens para Lamel ponto de encontro de Farim/Jumbembem. Patrulhas e operações nessa área até ao rio Jumbembem/Farim/Cacheu.

Em Novembro de 1969, estava o meu 4º Pelotão destacado no K3 e a minha CCaç 2548 foi fazer nomadização para a fronteira norte Sitató/Cuntima onde tivemos o 1º morto a 28 de Novembro.

Palmilhamos todo o subsector de Farim enquanto ali permanecemos. A partir de Janeiro/69 até ao nosso regresso palmilhamos todo o nosso subsctor de Jumbembem que ia da picada Farim - Jumbembem - Cuntima até ao Senegal.

Fui diversas vezes emboscar para Farincó Mandiga, Fanbamtã,  Sare Soriã que fica a oeste de Jumbembem.

Muitas vezes para Sare Mancamã, Saman que fica a norte e fomos fazer operações para a fronteira para os Marcos 109 e 110,  Sare Sofi,  onde tivemos contactos com IN, bem como
fomos lá 2 ou 3 vezes buscar população.

Palmilhamos em picagens, patrulhas Jumbembem/Lamel; Jumbembem/Sare Tenem / Canjambari; Jumbembem/Norobanta, e em todos estes percursos levantámos muitas minas e tivémos azar com 2 camaradas, um ficou sem o pé no percurso Jumbembem/Sare Tenem / Canjambari e outro já a chegar ao termo da picagem Jumbembem/Norobanta.

Das operações à fronteira aos marcos, saímos de Jumbembem via Sare Mancamã, Samã e regressávamos via Galgega e apanhávamos as viaturas em Norabanta de regreeso a Jumbembem.

Tivémos contactos Fanbamtâ e Sare Soriâ bem como ao longo das picadas, principalmente Jumbembem/Lamel.

Nunca ouvi falar em Hermacono / Hermangono, mas perguntei aos meus amigos de Jumbembem que me disseram que existe no Senegal próximo da fronteira uma tabanca com esse nome, que não aparece nos mapas.

Como disse fomos a Lambã duas  vezes e não ouvi falar dessa tabanca. Para mim, Lambã ficou-me na memória porque da 2ª vez que lá fomos o meu camarada Furriel Enfermeiro já falecido, quando da retirada perdeu a pistola na bolanha e andamos a pisar o terreno até encontrá-la. (...)

(...) Cumbamori fica a uma dúzia de quilómetros a noroeste de Guidaje. Sambuiá (corredor de Sambuiá) fica a oeste de Bigene e a sul de Talicó, na picada de Farim - Bigene - Barro - Ingoré. Já fiz esta picada 2 vezes em férias, a primeira em 1997 ainda não havia a ponte de S Vicente,  e a 2ª vez já atravessei a ponte. (...)

(...) No nosso Sector de Farim enfrentávamos os Corredores de Lamel e Sitató. Em Lamel no meu tempo ficava lá emboscado e patrulhava a zona diariamente e alternadamente um pelotão de Farim; Nema ou Jumbembem.

Colunas e picagens desde 1970 até regressarmos, fazia-se colunas diárias para abastecimentos alimentares, transporte de cibes e materiais para a construção das tabancas.

De Jumbembem saíam 3 pelotões para picagens para sul, Lamel/Farim; para norte Norobanta/Cuntima e para este Sare Tenem / Canjambari.

Para além desta actividade das picagens, patrulhas, operações etc, ainda tivemos a tarefa de construir um aldeamento completo, demolição das tabancas velhas e construção de tabancas novas. (...)

quinta-feira, 2 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24112: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte IV: a visita da delegação militar da OUA, em 1965, às bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari, na região Norte do PAIGC




Três fotogramas do documentário de Piero Nelli (1926-2104),

"Labanta, Negro! " (Itália, 1966, 38' 43'').

Edição (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de n
otas avulsas de leitura do livro  "Crónica de Libertação", de Luís Cabral (*):

Visita da missão militar da OUA em 1965 (pp. 287 –297)


Que fique claro: desde sempre falámos aqui, neste blogue, do PAIGC, da sua história, dos seus dirigentes e combatentes, da sua organizaçãoo, do seu armamento, das suas bases ("barracas") e linhas de infiltração, das suas operações, das sus baixas, dos países que o apoaivam (incluindo a Suécia), da sua propaganda, dos  livros e dos filmes que falam deles, etc... 

Sempre falámos sem quaisquer complexos. O nosso tom é  necessariamente  crítico: afinal somos um blogue de antigos combatentes e não combatemos contra fantasmas... ou extraterrestres... Esses fantasmas ou extraterrestres tinham um rosto e nome: Amílcar Cabral, Luis  Cabral, 'Nino' Vieira, Domingos Ramos, etc. , figuras que já nem sequer estão vivas.... 

Nunca os exaltámos mas também nunca escondemos  que não os podíamos ignorar.  A guerra (que foi um sangrento jogo de xadrez)  já acabou há meio século e é natural que haja memórias que se cruzam, quer gostemos ou não...  Mário Dias, por exemplo, fez a tropa, o 1ºCSM,com o Domingos Ramos... Já escreveu aqui, em tempos, um poste memorável sobre os seus encontros e desencontros... E, de um modo geral, todos temos alguma curiosidade em saber como era o inimigo de ontem, por onde andava, o que se escrevia sobre ele, etc. 

Feita esta prevenção pedagógica, a título meramente introdutório,  voltamos a dizer que um dos problemas com que se depara o leitor, desapaixonado. atento e crítico, da "Crónica da Libertação", de Luís Cabral (Lisboa, O Jornal, 1984) (*), é a oum ralidade da narrativa: o autor segue um fio condutor temporal, desde o início da criação do PAI (e depois PAIGC), passando pelo desenvolvolvimento da luta e acabando no assassinato do Amílcar Cabral em janeiro de 1972. Mas nem sempre (ou raramente) há datas precisas.

Sabe-se,por outras fontes, que a primeira visita da missão militar da OUA - Organização da Unidade Africana, criada em 1963, em Adis Adeba, ocorreu em 1965, com início em 23 de julho: em 20 de agosto a comissão militar da OUA dá por findos os seus trabalhos, tendo consegudo visitar instalações do PAIGC mas não as da FLING. Temos de reconhecer, em todo o caso, essa não era a melhor altura do ano , pro se estar em plena época das chuvas, para visitar um território como a Guiné.  

É possível que a delegação se tenha desdobrado, com uns observadores a visitar o Norte e outros o Sul. Por outro lado, sabe-se que Amílcar Cabral escreveu   em julho de 1965,   um "projecto do programa de trabalho da Comissão Militar da OUA incluindo a visita ao Secretariado Geral e às instalações civis do PAIGC em Conakry, bem como às bases militares em Boké e Koundara", visita essa que seria feita, obviamente,  de carrro...

Em 1965 o PAIGC ainda se procurava legitimar, aos olhos de África e do Mundo, que era o único representante dos povos de Guiné e Cabo Verde. Nomeadamente no Senegal, havia (e era tolerada) a presença de representantes de outros movimentos nacionalistas, nomeadamente da FLING. Amílcar Cabral tinha já preocupações hegemónicas (para não dizer totalitárias), não admitindo que houvesse rivais, para mais "oportunistas" (sic) na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde. 

Por outro lado, a intenção do PAIGC (ou do seu estratega, Amílcar Cabral) era também a de convencer os membros da OUA, de que precisava de mais e melhor armamento para poder combater, com eficácia, a tropa portuguesa (incluindo a marinha e a aviação).  

Daí a visita da missão militar da OUA, há muito pedida, com uma delegação  que, no Norte, e segundo o Luís Cabarl (LC), era composta por representantes (todos oficiais subalternos) de 4 países: Guiné Conacri (tenente Djarra), Senegal (capitão Tavares), Marrocos (um tenente) e Mauritânia (um outro tenente) (pág. 288).  Naturalmente, uma missão militar, com postos de baixa patente, como está,  vale o que vale...

Curiosamente, a visita realizou-se, segundo o autor, numa altura de crise política entre estes países, entre Marrocos e a Mauritânia, por um lado, e entre o Senegal e Guiné-Conacri, por outro.  Mas o Amílcar Cabral pôs todo o empenho em que a visita decorresse da melhor maneira e com toda a segurança. 

Há instruções escritas  por ele para o 'Nino' Vieira que estava no Sul. Mas, no Norte delegou no seu meio-irmão, o LC, o acompanhamento da missão. Fala-se na chegada da missão militar (de 3 elementos) da OUA  a Conacri a 15 de junho, mas a carta, manuscrita, de 5 páginas não tem indicação do ano: "É muito possível que o Luís os acompanhe. Depois de visitarem o Sul, irão ao Norte, onde temos de acabar para sempre com as mentiras dos oportunistas" (sic) (referência à FLING):

A delegação da OUA, no Norte,  terá percorrido, durante quase uma semana, cerca de 250 quilómetros, o que nos parece exagero (no caso de o trajeto ter sido feito sempre a pé). Partindo do Senegal, começaram pela base de São Domingos, no noroeste do território, sendo armados (sic) pelo ‘comandante’ Lúcio Soares. O LC e o o seu protegido Xico Mendes acompanharam toda a missão que visitou também a bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari.

Esclarece-nos o LC, que a entrada principal para a Frente Norte, passando pela fronteira com o Senegal, durante muito tempo, situava-se no sector de Sambuiá (pág. 288).

A força do PAIGC ali estacionada tinha como missão assegurar a passagem de homens e material, da fronteira ao rio Farim.

A base situava-se “a pouco mais ou menos três horas de marcha da fronteira” (sic). A vegetação era exuberante, devido à elevada humidade da região. A base era, por isso, das mais frias da Frente Norte, sobretudo no final e princípio do ano . (A referência de LG ao frio que se fazia sentir logo de manhã, leva-nos a pensar que a visita tenha ocorrido em finais de 1965.)

O comandante da base de Sambuiá era então o Bobo Queita, antigo jogador de futebol.  A base tinha abrigos, estando ao alcance da artilharia de Farim. Daqui a missão seguiu em direção da cambança da margem direita do rio Farim, onde uma canoa devia transportá-los a Jagali (lê-se: Djagali) (pág. 289).

Entre a mata de Sambuiá e o rio Farim há uma “larga e descampada planície”, uma enorme lala em que se fica a descoberto.

“Nô pintcha!”, dizia-se então. A expressão tinha vários significados, segundo o autor: 

”Era a chamada para a guerra para a marcha, para a comida, talvez até para o amor” (…) Ou seja: “chamava à realização de algo que exigia a participação de mais de uma pessoa” (pág. 289). 

A expressão não se sabe onde nasceu, durante a guerrilha, se no Norte, no Sul ou no Leste, di o LC.

“A imensa lala de Sambuiá, que se atravessava sem um suspiro de descanso, devido ao perigo que representava ser-se ali surpreendido pela aviação inimiga, ia-se tornando cada vez mais pesada à medida que se aproximava do rio” (pág. 289).

O rio Farim era navegável. Os barcos das companhias comerciais (Gouveia, Ultramarina, etc.) iam a Bigene, a Binta e mesmo até Farim para trazer a mancarra, o coconote ou a “maalira” (que eu não sei o que é, mas presumo que seja uma corruptela de “madeira” ).

O LC aproveita para descrever a paisagem:

“A paisagem que se desfrutava da cambança era de uma beleza impressionante. O rio estenda-se em curvas sinuosas ao longo da sua bacia, bordada nas duas margens pelo verde exuberante das matas de tarrafes, com os seus ramos e raízes emaranhados, donde se destacavam troncos esguios de altura surpreendente (pág. 290).

As populações da margem direita “cedo aderiram à luta de libertação” (sic) (pág. 291), e por isso aquela era uma zona de guerra. Para a guerrilha era um risco permanente atravessar o rio. Sabemos que as NT (sobretudo os fuzileiros) montavam emboscadas em pontos de cambança já conhecidos. Será aqui que morreram em 1972 a Titina Silá.

Feita a cambança, em canoa, a missão dirigiu-se para Djagali, reconstruída pela população (pág. 292). Aquando da receção da comissão da OUA , um navio da marinha flagela Djagali (pág.293).

Mas eram “raras as pessoas” (sic) que se apresentaram para saudar os visitantes. Explicação do LC:

“Havia algum tempo que as populações abandonavam as suas habitações, depois do bombardeamento da tabanca, antes do romper do dia, para só regressarem depois do sol posto, quando a aviação já não podia trazer à tabanca a morte ou a dor com as suas bombas criminosas” (pág. 292).

Os combatentes das FARP eram jovens cuja idade média não ultrapassava os 20 anos” (sic). Trajavam uniformes “muito variados”, com “calças e camisas muito diferentes umas das outras” (pág. 292).

Uma hora depois LC e os seus convidados estavam em Maqué. O comandante era o Quemo Mané (pág. 294). À noite ouviu-se uma explosão, ali perto. Um jovem auxilitar de enfermagem tinha accionado uma mina A/P, que lhe provocou a morte.

“Elementos das milícias coloniais africanas de Bissorã tinham-se infiltrado na área, certamemte no começo da noite, para colocar a mina antipessoal (…) no caminho que ligava a antiga base à fonte de Maqué” (pág. 294).

Os militares da OUA ainda visitaram as bases de Morés e Canjambari. Sabemos, pelo que conta LC, que produziram um relatório. Eu gostaria de o ler e confrontar com o relatondo do LC. Mas onde encontrar, na Net, esse relatório da OUA de 1965?

Parece que as relações do PAIGC com o Senegal de Senghor melhoraram um bom bocado, a partir daí, autorizando o governo senegalês o trânsito de homens e mercadorias pelo seu território. Mas não autorizava ainda que o PAIGC dispusesse de depósitos de armas e munições. Foi um passo: a partir daqui começaram a aparecer, cremos  que em 1967,  os primeiros “armazéns do povo”  (nome algo pomposo...para abastecimento de víveres e outros artigos não só à guerrilha como às populações da linha fronteiriça sob controlo do PAIGC (pp. 296/297).

Sabe-se que em outubro de 1965 , o Amílcar Cabral tinha marcado mais uns pontos: o seu partido fora reconhecido pela OUA como "o único movimento de libertação" da Guiné. No mesmo mês em que Portugal conseguia obter o fornecimento de 40 Fiat-G 91 R/4 por parte da Alemanha, fora dos acordos da NATO.

(Continua)


Guiné > Região do Oio >  Localização aproximada de algumas das "barracas" (ou bases...) do PAIGC  por onde terá passado, em visita, em 1965, a primeira missão militar da OUA:  Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari... Não consta que tenham os homens da OUA tenham ido com o lC do a Sará, que era mais longe e arriscado...

Infografia: Jorge Araújo (2018)
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Nota do editor:

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24107: "Una rivoluzione...fotogenica" (8): Roel Coutinho, médico neerlandês, de origem portuguesa sefardita, cooperante, que esteve ao lado do PAIGC, em 1973/74 - Parte VII: A vida em Ziguinchor, Senegal

Senegal > Ziguinchor > PAIGC > 1973 >  Organizando um coluna logística que vai kevar armas até à base de Hermacono, na fronteira / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - G 23 - Life in Ziguinchor, Senegal - Carrying weapons to Hermangono, Guinea-Bissau - 1973


Senegal > Ziguinchor > PAIGC > 1973 >  Kalashnikovs AK-47 para Hermacono / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - G 24 - Life in Ziguinchor, Senegal - Carrying weapons to Hermangono, Guinea-Bissau - 1973



Senegal > Ziguinchor > PAIGC > 1973 >   Vacinação contra o cólera. O dr. Roel Coutinh segurador um injetor de jato  / Foto: 
ASC Leiden - Coutinho Collection - G 02 - Ziguinchor, Senegal - Vaccinations - 1973


Senegal > Ziguinchor > Hospital > PAIGC > Primavera de 1973 >  Uma enfermeira / Foto:  ASC Leiden - Coutinho Collection - 2 25 - Ziguinchor hospital - Senegal - Nurse - 1973



Senegal > Ziguinchor > Hospital > PAIGC > 1973 > Enfermeira > ASC Leiden - Coutinho Collection - 8 05 - Nurse in Ziguinchor hospital - 1973


Senegal > Ziguinchor > Hospital > PAIGC > 1973 > A enfermeira francesa Nicole Dicop,   administradora do hospital do PAIGC  em Ziguinchor, desde 1971 até a primavera 1973; aqui com  o enfermeiro da Guiné-Conacri, Sekou Touré  / Foto: ASC  Leiden - Coutinho Collection - G 19 - Life in Ziguinchor, Senegal - French nurse Nicole with PAIGC male nurse Sekou Touré (in Ziguinchor) - 1973


Senegal > Ziguinchor > Hospital > PAIGC > 1973 > Anneke Coutinho-Wiggelendam no Hospital do PAIGC de Ziguinchor / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - 11 04 - Ziguinchor hospital, Senegal - 1973




Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)

1. Da coleção fotográfica de Roel Coutinho, relativa à sua estadia junto do  PAIGC na Guiné e no Senegal, entre março de 1973 e abril de 1974, apresentamos hoje mais uma seleção de imagens, editadas por nós, relativas  à base logística de Ziguinchor, Senegal. 

Aqui funcionava um hospital (onde durate muito tempo o único médico residente era o português, nascido em Angola, o dr. Mário Moutinho de Pádua) e daqui seguiam também, no final da guerra, colunas logísticas com armamento que era descarregado e levado para a base de Hermangono (ou Hermacono, segundo as autoridades militares portuguesas da época), na linha de fronteira.

Ainda não conseguimos localizar onde ficava Hermacono, talvez no corredor de Sambuiá (?). Segundo a instituição a quem foi doada a coleção de mais de um milhar de fotos e "slides", o African Studies Centre (ASC), Leiden, Hermangono (ou Hermacono)  seria "uma pequena aldeia na Guiné-Bissau, a um dia de distância da fronteira senegalesa", mas não se indica a sua exata localização...(Temos dúvidas se era dentro do território português, se era já no Senegal.)

Também não encontrámos este topónimo, nem na "Crónica da Libertação", do Luís Cabral (Lisboa, O Jornal, 1984) (que, cronologicamente, termina na data do assassinato de Amílcar Cabral, ou seja, em janeiro de 1972), nem no Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum, nem muito menos nas nossas antigas cartas militares.

Como fotógrafo (amador), Coutinho não se deixou deslumbrar pelas armas nem pela guerra... Não são muitas as fotos dos combatentes e do seu armamento, privilegiou antes outros aspectos da vida no "mato" (para usar um termo caro às NT): a prestação de cuidados de saúde, a educação, a população, as crianças, o quotidiano,  etc.

Com a esposa, Anneke Coutinho, escreveu um artigo, Report from Guinea-Bissau, publicado nº 2 da revista Kroniek van Africa, 1974, pp. 210-219.

Resumo do artigo (originalmente em inglês): 

"Os autores em 1973/74 integraram as actividades do Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde na Guiné-Bissau (ex-Guiné Portuguesa). Nestas impressões de observadores participantes,  descrevem, a partir de um esboço da criação do PAIGC (em 1956 sob a direção de Amílcar Cabral) e da sua luta armada pela libertação do país do regime colonial português, vários aspectos da política do PAIGC nas áreas liberadas, por ex. assistência médica (postos médicos, hospitais, instalações, fornecimento de medicamentos), solução democrática de conflitos, organização da educação escolar, provisão de necessidades essenciais através de lojas populares, mobilização da consciência política e motivação da população, da elite política e seu futuro. A conclusão dos autores é que as perspectivas futuras da Guiné-Bissau são mais promissoras do que naqueles outros países do Terceiro Mundo que não conheceram nenhuma luta armada".


2. São fotos de um  jovem  médico,   Roel Coutinho,  hoje um prestigiado médico, epidemiologista e professor,jubilado, de epidemiologia e prevenção de doenças transmissíveis: esteve no Senegal e na Guiné-Bissau, em missão sanitária que não exluia a simpatia política (não sabemos se durante um ou mais períodos, entre março de 1973 e abril de 1974).

Tinha acabado de se licenciar  em medicina (em 1972). Especializar-se-ia depois em microbiologia médica. Doutorou-se em 1984, em doenças sexualmente transmissíveis. É um especialista mundial em HIV/Sida, com mais de 600 artigos publicados em revistas científicas.

Recorde-se que Roel Coutinhyo nasceu  em 1946, nos Países Baixos, em Laren, perto de Amesterdão, província da Holanda do Norte.  

Tem ascendência luso-judaica, sefardita: os antepassados, marranos ou cristãos-novos, devem ter saído de Portugal para a Holanda no séc. XVII. Os portugueses, cristãos novos, e de novo reconvertidos ao judaísmo, constituíam uma comunidade prestigiada e influente, pela cultura, o dinheiro e o poder. Sempre usaram os seus apelidos portugueses até à II Guerra Mundial. 

Prova da importância da comunidade luso-judaica de Amesterdão (onde nasceu o grande filósofo Espinosa, 1632-1677),   é a "Esnoga", a monumental Sinagoga Portuguesa,   inaugurada em 1675, e chegou a ter 3 a 4 mil fiéis.

Hoje  a comunidade está reduzida a umas escassas centenas de pessoas: espantosamente o edifício da "Esnoga Portuguesa",  minumento nacional, escapou à destruição da II Guerra Mundial e à ocupação nazi; é visita obrigatória para os portugueses que forem a Amesterdão.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24091: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XX: Bigene, a última saída do Gr Comandos "Os Centuriões" (Op Virgínia, fronteira com o Senegal, 24-25 de abril de 1966) (Op Vamp)


Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 20 de junho de 1966 > Encerramento das actividades da Companhia de Comandos do CTIG.


Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 20 de junho de 1966 > Comandos com a comissão terminada. Eu sou o penúltimo da direita, ao lado de Adriano Sisseco.  Imagens publicadas no livro, pág. 145. Créditos fotográficos: Virgínio Briote (2010).


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (1940-2015), a partir do manuscrito do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  (O seu editor literário, ou "copydesk", Virgínio Briote, facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.)


Recorde-se aqui o seu passado militar:

(i) começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor auto-rodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) descreve-se a seguir   a última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal; o Amadu será depois transferido, a seu pedido,  para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757.


 

Capa do livro


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um    luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XX:   

Bigene, a última saída do Gr Comandos "Os Centuriões"  (Op Virgínia, fronteira com o Senegal, 24-25 de abril de 1966)  
(pp. 143-146)

Na saída que se seguiu, apanhámos um barco até Bigene. Partimos à tarde e chegámos à noite. No dia seguinte, preparámo-nos para efectuar uma missão na fronteira com o Senegal. O objectivo era montar uma emboscada em Samoge. 
[1]

Saímos de Bigene muito cedo, em direcção à zona da fronteira, que atingimos por volta das 11h00. O sol queimava, a água do cantil parecia que tinha água a ferver. Quando nos estávamos a aproximar da estrada para montar a emboscada, pareceu-me ver qualquer coisa ao longe. Tirei os binóculos e passei-os ao Alferes Rainha. O que parecia ter visto, se estava lá, agora não estava. O alferes disse que não era nada, que devia ter visto um tronco de árvore e voltou a passar-me os binóculos. Voltei a pôlos nos olhos e pus-me a observar. Confirmei, aquilo que eu devia ter visto já lá não estava. 

O guia, em dialecto mandinga, apontou em frente e disse: 

– Amadu, ali naquela mata pequena tem fonte com boa água, água fresca. 

O alferes perguntou-me o que é que ele tinha dito. 

– Que naquele grupo de palmeiras ali em baixo tem uma fonte com água fresca. 

Era uma zona que parecia fresca e o calor era muito. Começámos a andar em direcção às palmeiras e na encosta de uma pequena elevação vimos uma picada  que vinha do Senegal. Do outro lado da picada vi uma árvore bem grande, com ramos deitados no chão com erva e debaixo da árvore, uma boa sombra estava mesmo à nossa espera. Era uma árvore tão grande que podia esconder uma companhia. Na Guiné chamamos a estas árvores “Tamba Cumba” e dá frutos que se podem comer. 

Quando nos estávamos a aproximar dela, fomos atacados. Apanharam-nos num terreno que não nos era favorável. A primeira coisa em que pensámos foi abandonar rapidamente o local. Estávamos na pequena encosta e os guerrilheiros estavam na parte de baixo. Era fácil bater-nos. Só que a experiência e o treino que tínhamos levava-nos a acreditar que se os primeiros tiros não nos acertassem enquanto estávamos de pé, depois já era mais difícil. 

Quando ficámos colados ao chão, começámos a fazer uma manobra de envolvimento com o objectivo de retirar do local. Sabíamos que havia um acampamento de barracas atrás de nós, na zona de Samoge e não podíamos dar lhes tempo para impedir a nossa passagem. O sol ainda queimava mas nós acelerámos a marcha até à tabanca abandonada de Samoge. Para nosso contentamento, à entrada da tabanca corria um pequeno curso de água e todo o grupo se refrescou e encheu os cantis. Dirigimo-nos a seguir para uma horta e vimos mangos maduros. Outra sorte para nós. Todo o grupo se meteu dentro da horta a comer mangos, até passar a fome. 

Então o alferes deu ordem para abandonarmos o local e retirámos para Bigene. Eram mais ou menos 19h00, quando entrámos na povoação. Dirigimo-nos para o refeitório e no fim de jantar um prato de sopa tivemos uma surpresa, o alferes disse-nos que íamos passar a noite na mata. Estava um céu muito escuro, mas fomos andando com as precauções habituais até que começou a cair uma chuva forte. Eram as primeiras chuvas de Maio de 1966. Estivemos parados naquele local cerca de uma hora. Depois escolhemos um outro local para passarmos a noite emboscados, junto a um caminho que ligava Bigene à fronteira. Quando regressámos, na manhã seguinte a Bigene, ainda a nossa roupa estava molhada. 

Agora, eu pergunto: por que voltámos para a mata? Se fomos detectados e atacados, se o silêncio tinha sido quebrado, para quê voltar a sair e passar uma noite à chuva, que nem o PAIGC queria apanhar? Continuo na minha, acho que certas missões, como as emboscadas e os golpes de mão quando se quebra a surpresa, ficam desfeitas e não adianta muito passar a noite na mata e ainda por cima com chuva grossa a cair. 

Esta foi a última saída do grupo “Centuriões”, que terminou com mangos e muita chuva. O nosso grupo estava cada vez mais reduzido, com uma parte do pessoal com as comissões terminadas ou quase no fim. E o que acontecia nos “Centuriões”,  acontecia também nos outros grupos. Tínhamos sido informados que a Companhia de Comandos do CTIG ia acabar. E que os elementos que ainda tinham algum tempo de comissão a cumprir iam ficar num grupo só. 

Terminado o grupo, meti um pedido de transferência para Bafatá, para tomar conta da minha mãe e dos meus irmãos mais novos, porque entretanto o meu pai tinha falecido. Enquanto permaneci em Bissau, aproveitei para tirar a carta militar conhecida por “lista branca”.

Num dia tive um feliz encontro, vi o tenente-coronel Moura Cardoso, comandante do Batalhão de Cavalaria 757, conhecido pelo “sete de espadas”, porque traziam um emblema no ombro com uma carta de jogar. Fiz-lhe a continência e disse-lhe que tinha pedido transferência para o batalhão dele, mas que a resposta nunca mais chegava. Pegou-me no braço e levou-me à 4ª Rep. Aqui, depois de conversar com um major, descobriram que havia uma vaga de cabo condutor para a companhia de Contuboel. E ficou decidido que eu iria ficar adido no batalhão.

(Continuação)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Subtítulo: LG]
________

Nota do editor literário VB:

[1] - Nota do editor: operação “Virgínia”, Canja-Sinchã Mamadu, 24/25 Abril 1966, com o reforço de alguns elementos do Grupo Comandos “Vampiros”.
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Nota do editor LG:

Último poste da série > 9 de fevereiro de  2023 > Guiné 61/74 - P24049: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XIX: Mais uma operação helitransportada no corredor de Sitató, junto à fronteira com o Senegal, em março de 1966 (Op Vamp)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24088: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte III: A fuga para Dacar, nos princípios de 1960, com a ajuda do madeireiro e antigo deportado político Fausto da Silva Teixeira


Guiné > Bissau > s/d > Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 144". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal). A Associação (também comhecida por Câmara do   Comércio de Bissau) ficava junto ao palácio do governador... O projeto é de um jovem arquitecto de Lisboa, Jorge Chaves (1920-1981), e a remonta  à segunda  metade da década de 50. Depois da saída dos portugueses em setembro de 1974, a sede da Associação Comercial  passará a ser, muito naturalmente, a sede do PAIGC, ou seja dos novos senhores da guerra, com Luís Cabral, irmão de Amílcar Cabral (1923-1973), como primeiro presidente da jovem república da Guiné-Bissau.

Na opinião de outros arquitectos de renome que trabalharam para África, o edifício desenhado por Jorge Chaves (com murais de José Escada), pelo arrojo das suas linhas, conforto, mordernidade e até riqueza, não ficava atrás da arquitectura de Brasília, por exemplo, e era unanimemente considerado como o melhor edifício que Portugal  deixou  em Bissau, do ponto de vista arquitectónico.

Nascido em Santo Antão, Cabo Verde, J
orge Chaves não pertencia ao Gabinete de Urbanização Colonial (ou do Ultramar, como passou a ser chamado, a partir de 1951), e daí talvez a razão do projeto ter uma modernidade que não seria possível dentro do paradigma da arquitectura colonial de então, marcado pelos constrangimentos da funcionalidade, adaptação ao clima, resistência e uso de materiais de baixo custo de manutenção.

Foto: © Agostinho Gaspar (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]


Anúncio comercal, publicado em Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2.  Digitalização: © Mário Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné LG. O Mário Vasconcelos faleceu, infelizmente, em 2017.]

1. O madeireiro Fausto da Silva Teixeira podia ser considerado "simpatisante" da causa nacionalista (leia-se: do PAIGC). Mas nunca foi "militante"... Tinha serrações modernas, mecânicas, em Bafatá, Fá Mandinga e Banjara, antes da guerra.   A sua firma foi fundada logo em 1928. Sabemos que em 1947 já estava plenamente integrado na sociedade guineense, sendo um empresário respeitável... Como o próprio Amílcar  Cabral (AC), conceituado engenheiro agrónomo até 1960...

No nosso blogue temos uma dúzia de referências ao Fausto Teixeira. Num dos postes que já publicámos (*), reproduzimos um documento, de setembro de 1966, dactilografado, de 16 páginas (capa incluída), que tem a chancela do PAIGC, e  que se destinava a dar a conhecer (e a combater) "os interesses capitalistas estrangeiros (portugueses e não portugueses) na Guiné e Cabo Verde" (sic) (*). Estranhamente (ou nem por isso),  não vem o nome da firma Fausto da Silva Teixeira.

De facto, no ponto XII, há referências aos "madeireiros", mas as empresas citadas são apenas três, e nenhuma delas nossa conhecida... A omissão do nome do Fausto da Silva Teixeira, é capaz de fazer sentido.

Na altura dissemos que, em relação à fonte da informação documental, no essencial, e tendo em conta o detalhe dos dados, parecia-nos ser de origem portuguesa, fornecida pelos meios oposicionistas que então combatiam o regime de Salazar. (talvez a partir de Argel).

O nome de Fausto Teixeira  também  não aparece na lista das 600 personalidades que constam, como tal, no respetivo blogue e na respetiva página do Facebook ("notas biográficas de cidadãs e cidadãos que lutaram contra o fascismo e o colonialismo"). 

Mas o mesmo acontece com outros dos seus companheiros de desventura: de facto, também não contam dessa lista os nomes de Gabriel Pedro (1898-1972) (igualmente desterrado para a Guiné e depois para o Tarrafal, tal como o seu filho Edmundo Pedro) e de Manuel Viegas Carrascalão (1901-1977) (operário gráfico, anarcossindicalista, preso sob a acusação de bombismo e de pertencer, tal como Fausto Teixeira e Gabriel Pedro, à "Legião Vermelha", acabando por ser desterrado para Timor em abril de 1927, no navio "Pêro de Alenquer", numa viagem que vai demorar 5 meses, com passagem por Cabo Verde, Guiné, onde desembarcam alguns deles e entram outros, e Moçambique onde é rendido o comandante do navio.).

No caso do Fausto Teixeira, a omissão do seu nome,  talvez possa ser devida ao facto de lhe terem perdido o rasto, desde que, com vinte e poucos anos, foi desterrado para a Guiné, em 1925, não pelo "fascismo" da Ditadura Militar / Estado Novo,  mas ainda pela I República em fim de vida.

De qualquer modo, Guiné e Timor eram dois dos piores sítios do nosso glorioso Império para onde o Estado mandava os desgraçados dos "desterrados políticos", sendo ali entregues à sua sorte. Para este inferno, que eram estas duas colónias, iam em geral os indivíduos de profissões manuais ou, no caso de militares, os soldados e os marinheiros. Enfim, até no exílio e deportação, todos eram iguais mas uns eram mais iguais do que outros.

Em todo o caso sabe-se, desde pelo menos a publicação, em Portugal, em 1984, das memórias do Luís Cabral ("Crónica da Libertação", Lisboa, O Jornal, 464 pp., uma edição miserável, o livro, brochado, em que as folhas nems equer são cosidas, apenas coladas, desconjuntando-se todo...), que a fuga deste para Dacar, capital do  Senegal, em princípios de 1960, só terá sido possível com a cumplicidade  e ajuda de dois portugueses, deportados políticos, e oposicionistas ao Estado Novo:

(i)  Maria Sofia Carrajola Pomba [Amaral da Guerra, por casamento], farmacêutica, dona da Farmácia Lisboa, em Bissau (alguns dos seus ajudantes ou empregados destacar-se-iam depois como militantes  do PAIGC, o Epifânio  Souto Amado e o Osvaldo Vieira); apesar de ter ficha na PIDE, vai para a Guiné, nos princípios dos anos 50, com o marido:

(...) "o seu apoio, ao embrionário nacionalismo independentista, é reconhecido pelos históricos dirigentes do PAIGC  que não poupam elogios ao seu papel na luta anticolonialista, nomeadamente no auxílio à organização clandestina de reuniões, na prestação de informações relevantes sobre prisões iminentes, como a de Carlos Correia, e na preparação de fugas, como a de Luís Cabral (auxiliado também por Fausto Teixeira)" (**)

(ii)  Fausto Teixeira (há dúvidas sobre a sua idade: um seu neto diz que nasceu em 1900 e morreu em 1981, mas sabe-se que desembarcou na Guiné em 1925).

2. Vamos ver, na "Crónica da Libertação",  algumas passagens sobre a fuga do Luís Cabral (LC)

O LC era "guarda-livros" (noutras passagens intitula-se contabilista...)  na Casa Gouveia, que pertencia ao Grupo CUF. Mas o seu trabalho político clandestino, no seio do PAI (ainda não se usava a sigla PAIGC) começou a levantar suspeitas da polícia política, mais organizada e ativa depois dos "acontecimentos" de 3 de agosto de 1959 (greve dos marinheiros e trabalhadores das docas do Pijiguiti). 

Na altura o PAI ainda estava confinado a Bissau e era formado por pouca gente,  sobretudo de origem cabo-verdiana, pequeno funcionalismo de 3 ou 4 empresas: além da Casa Gouveia, a NOSOCO, o BNU, os CTT... E a versão sobre o Pijiguiti, onde a Casa Gouveia e o seu subgerente, António Carreira, tiveram muitas culpas no desfecho trágico da greve (pp. 65-70) está muito mal contada por  LC: o PAI quis chamar a si, indevidamente, os louros...

Em contrapartida, "na Casa Gouveia, o meu trabalho profissionalmente sério continuava dando os seus frutos, num momento em que os homens do grupo CUF (Companhia União Fabrl) começavam a aceitar a necessidade de alguma africanização dos quadros superiores da empresa" (pág. 81).

Com uma boa opinião dos patrões, gabinete novo, casa própria, um bom salário, a mulher também tinha um bom emprego, um casal com respeitabilidade e  prestígio na comunidade, etc., o LC tinha tudo para fazer uma boa carreira na empresa. Mas a sua opção foi outra: seguir o irmão, AC, na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde. 

Estamos na véspera na inauguraçao da Associação Comercial, Agrícola e Industrial da Guiné, um edifício moderno, de arquitetura arrojada para a época, pago pelo Governo central.

Aristisdes Pereira,  que era chefe da Estação Telegráfica dos CTT (e o Fernando Fortes era  o chefe da Estação Postal, na prática os "donos" dos CTT) , em Bissau, consegue interceptar um telegrama em que o administrador da Gouveia (que tinha vindo  de propósito de Lisboa para assistiir às "festividades" em Bissau)  telefonou para a sede a pedir um novo guarda-livros para a empresa, já que o LC ia ser preso... Mas só "depois de encerradas as contas  do ano comercial findo",  a pedido da própria empresa...  (pág. 83), o que dá uma ideia da promiscuidade entre a PIDE e alguns meios empresariais...

A notícia, confirmada pela dra. Sofia Pomba Guerra (que tinha bons contactos com, pelo menos,  um oficial do exército), pôs em marcha o dispositivo para a fuga: "um antifascista português estava pronto a encarregar-se de me fazer sair, a todo o momento, do país" (pág. 83).

Fausto Teixeira é descrito como um "deportado político e muito conhecido pelas suas opiniões contra o governo fascista".

Pormenores da fuga, relativamente segura e discreta,  podem ser lidos nas páginas 83-87.

(i)  na véspera de partir o LC não escapou aos rituais da superstição que os seus "camaradas de Partido" lhe impuseram: ao sair de casa tinha que deixar cair um ovo no chão; se ele não se partisse,  devia desistir da viagem (!) (pág.  84);

(ii) o automóvel do Fausto era um Peugeot 203, pintado de cor azul forte ("se a memória não me falha") (pág .85);

(iii) o LC entrou no carro do Fausto, ja era noite, frente ao cinema UDIB, um dos sítios mais iluminados da Av. da República,  deitou-se no chão,  enquanto o carro  seguia lentamente pela Av. da República acima:

(iv) O condutor, por sua vez, "ia tranquilamente saudando as pessoas pelo caminho e  até parou  escassos segundos para dizer  algumas palavras ao inspector da PIDE que estava sentado na esplanada na Pastelaria Império " (pág. 85);

(v) a PIDE nunca suspeitou do plano: esperava que o LC caísse na armadilha de levar o seu próprio carro, daí ter posto guardas na ponte de Ensalma e à entrada de Mansoa: Fausto usou um dos seus camiões para ludibriar a vigilância dos guardas...

(vi) conhecido dos guardas, o Fausto não teve necessidade de parar: o LC atravessou a ponte escondido no  camião: já na estrada de Nhacra,  saiu do camião e voltou a entrar no automóvel e tudo correu bem até ao fim da viagem, perto da fronteira com o Senegal:

(vii) (...) "foi uma viagem agradável. O meu companheiro falou muito da sua vida política em Portugal, da sua prisão e do seu envio para a Guiné. Aqui o Governador deportou-o para a ilha de Bubaque, donde não podia sair.  Pouco a pouco a pressão  foi no entanto diminuindo, até ele poder viver como toda a gente" (pág. 85).

(viii) o LC acrescenta mais, para justificar o gesto altruísta do madeireiro:

 "Queria ajudar a luta de libertação da Guiné. (...) Considerava-se devedor dessa contribuição. Para já, estava em condições de tirar do pais qualquer militante que tivesse que sair. (...) Tinha pintado uma tira branca numa grande árvore, mesmo à entrada do entroncamento  que conduzia à serração, partindo da estrada de Mansabá a Bafatá" (pp. 86/87).

(viii) E conclui:

(...) "Entrámos na serração e logo a seguir continuámos em direção à fronteira, perto da localidade de Fajonquito. A  estrada tinha sido aberta pela Missão Geo-Hidrográfica e nunca era utilizada. A mata era tão cerrada que muitas vezes o caminho parece de longe não poder dar passagem a um carro. (....) Pouco depois, passávamos ao lado da tabanca de Fajonquito e  em seguida o meu companheiro parava o carro e mostrava-me  a tabanca senegalesa de Salekenié. (...) Devia ser por volta das três horas da madrugada quando nos separámos. (pág. 87).

Admitindo que o Fausto e o LC tenham partido às 20h00 de Bissau e chegado às 3h00 da manhã, à fronteira, logo a seguir a Canhanima (com Fajonquito à esquerda) e Cambaju (o "chão" do nosso Cherno Baldé) terão percorrido pouco mais de 200 km em 6/7 horas... Na época, e em plena estação seca (estávamos em janeiro), e ainda não havendo guerra (minas, emboscados, abatises...) até foi uma boa média... (No tempo das chuvas, e em plena guerra, eu cheguei a fazer um quilómetro por hora, na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho...)

Como não conhecemos outras versões deste episódio, não podemos confirmar ou infirmar a veracidade dos factos. Mas tudo indica que se terá passado mais ou menos assim como o LC descreve. (****)

PS - A grafia correta da aldeia fronteiriça senegalesa, em frente  a Cambaju,  deve ser Selikenié, segundo o mapa da Google,  e não Salekenié, como escreve o LC. (Mas aqui o Cherno Baldé deu-nos uma ajuda: a grafia portuguesa é Saliquinhé; não confundir com  Saliquinhedim, a sul de Farim, que os militares portugueses conheciam melhor por K3; os topónimos guineenses são tramados.)




Guiné > Carta da província (1961) > Escala 1/500 mil  > Provável percurso do Luís Cabral e do Fausto Teixeira, numa noite de janeiro de 1960, de Bissau até à fronteira do Senegal (Selikinié / Saliquinhé), passando por Mansoa. Mansabá, Banjara, Camamudo, Contuboel e Cambaju... Segundo o Cherno Baldé, os nossos homens teriam evitado Bafatá e seguido de Banjara para Camamudo, e depois apanhando a estrada Bafatá-Contuboel-Senegal... Fajonquito fica ao lado de Canhámina(estamos em pleno coração do "chão" do nosso amigo Cherno Baldé).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)

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(***) Vd.postes de:


18 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17482: (De) Caras (84): Fausto Teixeira, deportado político em 1925, empresário em Bafatá, de quem o 2º tenente Teixeira da Mota, ajudante de campo do governador Sarmento Rodrigues dizia, em 1947, ser um "incansável pioneiro da exploração de madeiras da Guiné"... Mais três contributos para o conhecimento desta figura singular (José Manuel Cancela / Jorge Cabral / Armando Tavares da Silva)

16 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17477: (De) Caras (83): Ainda o madeireiro Fausto da Silva Teixeira, com residência familiar em Palmela, amigo do "tarrafalista" Edmundo Pedro... Apesar da "amizade" com Amílcar Cabral e Luís Cabral, teve um barco, carregado de madeiras, atacado e incendiado no Geba, a caminho de Bissau...

8 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17447: (De) Caras (75): Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira, um dos primeiros militantes comunistas a ser deportado para a Guiné, em 1925, dono de modernas serrações mecânicas (Fá Mandinga, Banjara...) a partir de 1928, exportador de madeiras tropicais, colono próspero e respeitável em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960..."Quem foi, afinal, o meu avô?", pergunta o neto Fausto Luís Teixeira (nascido em Ponte Nova, Bafatá, onde viveu até aos três anos)..

(****)  Vd. postes anteriores da série:

2 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24031: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos- Parte I: Ainda não foi desta que o autor nos contou toda a verdade...