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terça-feira, 20 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17491: Blogoterapia (286): Uma memória daquele espaço em Casal dos Matos, Pedrógão Grande (Mário Beja Santos)

Casal dos Matos, Pedrógão Grande, tinta da china de João Viola (2007).



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) chegada há minutos ao nosso Blogue:

Queridos amigos,
Reconstruí uma casa no lugar de Casal dos Matos, freguesia da Graça, concelho de Pedrógão Grande. Era uma casa arruinada num ponto ermo, dentro de uma extensa floresta. Foi um empreendimento maravilhoso, por sorte encontrei artesãos que recuperam a traça original. Fui ali muito feliz e tive gente muito feliz à minha volta, por largos anos.
Desde o primeiro segundo em que ocorreu a tragédia que houve um tremor de que a hecatombe anunciada ali tivesse chegado. Quando se falou em Nodeirinho, ponto de passagem obrigatório até Casal dos Matos, ficaram poucas ilusões. A todos que me telefonavam e escreviam, caso do Luís Graça, punha sempre esperança de que a tempestade de fogo não tivesse derrubado aquele meu sonho de amor. Ao fim da tarde, falando com o proprietário seguinte, o desengano teve a sua hora, Casal dos Matos ficara reduzida a cinzas.
Aqui deixo esta memória, dedicada a todos os que morreram naquele absurdo vendaval da natureza.

Um abraço do
Mário


Uma memória daquele espaço em Casal dos Matos, Pedrógão Grande

Beja Santos

Tudo aconteceu em ritmo vertiginoso quando achamos em estrada de terra batida as ruínas de uma casa cheia de caráter, teria sido morada de agricultores, dava para perceber pela configuração dos espaços, o que restava da cozinha, os sobrados em escombros, pedaços ferrugentos das alfaias agrícolas. Negociou-se com as quatro irmãs e respetivos maridos, elas eram as herdeiras de Manuel Simões, conhecido na terra pelo nome de “Arrependido”, casado com D. Arlinda, que aguentou as lides agrícolas e domésticas enquanto o marido andava por Franças e Araganças a juntar dinheiro para aumento de património. Naquela casa morreu o Arrependido, 20 anos ali ficou em derrocada.

Comprada a ruína, houve que encontrar mestre para refazer muros, reforçar as paredes, pôr novas divisões na casa, substituir na íntegra o telhado, reconstruir o telheiro, respeitar as artes de carpintaria nos seus usos e costumes, fazer cozinha, casa de banho, combater humidades, afastar salitre, o mais que se sabe. Houve sorte em encontrar Manuel Carlos, de Castanheira de Figueiró, foi um bom artífice para a arrancada dos melhoramentos e mais sorte se teve com o carpinteiro, senhor Carlos Paulino, da Ribeira de S. Pedro, em Figueiró, com quem se fez amizade, tão forte fora a cumplicidade no conserto das padieiras, no rasgar das janelas, na reconstrução das cantoneiras, no admirável telheiro, na varanda, no aproveitamento das velhas serras, bancos, no arranjo das pipas e dornas. Meses e meses e aquela alegria em ver erguer-se a casa, no estreitamento de cumplicidades com o eletricista, o senhor. José Carlos, o senhor Henrique que murou o pátio a rigor, refez-lhe o caráter, quando sobrou dinheiro reforçou-se a solidez das paredes, tudo em bela pedra, removeu-se a lama e cimentou-se a preceito, ficou uma casa sólida, com um esplêndido forno à entrada, com belo lajedo, mais tarde fez-se a biblioteca que se encheu com milhares de livros, aproveitavam-se as suas sombras frescas para leituras e ouvir bem alto as óperas de Wagner. E até se comprou uma carroça ao senhor Eduardo, marido de uma das quatro irmãs, a Amélia, lá veio o senhor Carlos Paulino dar-lhe vida, olear as rodas, com auxílio de um correeiro a máquina ficou em funcionamento, só faltava uma égua para haver passeios e ir até Figueiró ou a Pedrógão Grande. Famílias e amigos de diferentes proveniências aqui chegaram. Aqui arribou um historiador britânico com mulher e três filhos, despedida mais comovente e agradecida não há lembrança; aqui uma senhora luso-grega acabou um livro, organizaram-se almoços, foi uma casa onde reinou a felicidade.

Depois aumentou-se o sonho, dois compradores com espírito de aventura meteram-se numa andança mais séria e refizeram uma casa na barragem do Cabril, tem pela frente um panorama de dezenas de quilómetros, belo jardim. Havia que tomar uma decisão, era um sem razão possuir duas casas distanciadas por escassos quilómetros.

Aconteceu um milagre ou acaso muito feliz. Bateu à porta de Casal dos Matos um senhor que disse que amava perdidamente aquela casa, já lá tinha ido vezes em conta com um mediador imobiliário, desesperava se lhe recusávamos a venda. No acerto do negócio aconteceu uma troca, os proprietários receberam um andar em Tomar, com vista para o Convento de Cristo. Sempre a rezingar, saiu-se daquela casa com lágrimas nos olhos, tão intensas eram as memórias, os familiares e amigos recebidos, o deixar e retirar trastes, aquele amontoado de recordações espúrias desde a rega do jardim e a satisfação de ver crescer um rododendro que dá flores brancas, mas enfim deixava-se proprietário a estimar aquela empreitada, ficava a doce lembrança de ali chegar em noites quentes e sentir os fortes odores dos pinheirais e até o canto do rouxinol, com os seus concertos da madrugada, dulcificando os nossos espíritos.

Qualquer pretexto era bom para passar por ali e admirar aquelas telhados irregulares que se espraiavam pela casa, pelo pátio, pelo lugar do forno, algo ia mudando ao longo dos anos, na região, da terra batida passou-se para o alcatrão, sempre com um aperto de coração em cada visita havia mais mortos e os vivos não queriam regressar, é uma região onde faltam crianças, fecham escolas, terrenos aráveis enchem-se de silvado.

Quando vem a notícia do vendaval de fogo em Pedrógão Grande, tudo fiz para desviar a atenção, só que os telefonemas e os contactos chegaram em catadupa, alguém que vivia na Austrália, um outro que se estabeleceu em Singapura, imagine-se até camaradas da Guiné, da CCAÇ 2402, que por ali tinha andado, quando organizei a confraternização em Figueiró dos Vinhos, e o presidente da autarquia possibilitou dois autocarros que andaram a percorrer todo o concelho; eram telefonemas de manhã à noite, como é que está a casa, e eu sempre a dar respostas tranquilizadoras, e súbito aquela notícia catastrófica do Nodeirinho, a imagem dos carros calcinados na estrada que liga a Castanheira ou a Figueiró. Havia que ganhar coragem, e então telefonei ao proprietário seguinte, sempre com rodeios, até que veio a machadada da verdade: Casal dos Matos estava reduzida a cinzas, imagine-se a única coisa que resistira àquele fogo devorador fora a salamandra, estava no canto cozinha, era um verdadeiro bálsamo para as noites frias de Inverno. Desatei a choramingar, já tinha perdido uma casa na guerra, em 19 de Março de 1969, noite quentíssima, parecia ferver, os guerrilheiros do PAIGC vieram com balas incendiárias, o colmo das moranças ardeu como tochas, num instante, fiquei com os ferros da cama que pertencera ao professor Eduardo Cortesão, quando ele se aboletava em Missirá devido a um projeto de palmeiras de Samatra, no rio Gambiel. Já choraminguei os mortos do Nodeirinho, povoação familiar, era ponto de passagem obrigatório quando se vinha pelo IC 8, aqui se infletia no Outeiro do Nodeirinho, depois Figueira, depois Casal dos Matos. É um mistério como todas estas recordações nos avassalam a mente, os mortos ganham vida, oiço gritos na taberna do senhor Eduardo, converso com o António Manuel, que vive da profissão de bate-chapa e que acabará naquela cruel agonia que é a esclerose lateral amiotrófica, oiço as vozes das irmãs Amélia e Maria que estão a apanhar tomate e daqui a um bocado entram portas adentro com a oferta de um grande saco, é tomatada para a semana inteira. É uma dor imensa, sei que se irá diluindo, só a memória triunfará, no sonho que se pôs de pé, do enlace das estimas, nos doces acolhimentos, sei que irá vincar-se essa memória de Casal dos Matos como aquele preço que representa a construção de uma casa, de um local amorável, onde se recebia sempre de braços abertos.

Em 2007, o meu amigo João Viola ofereceu-me uma belíssima tinta-da-china com a entrada de Casal dos Matos. Se o momento é de amargura porque tudo está em cinzas, e Pedrógão Grande sofre como nunca sofreu com tal vendaval, aqui se deixa o desenho de João Viola a mostrar como se sonhou e se realizou uma casa como outros sofreram para a pôr de pé.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17098: Blogoterapia (285): Quando o sol escurece (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto)

quinta-feira, 2 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17098: Blogoterapia (285): Quando o sol escurece (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto)



1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 25 de Fevereiro de 2017:


Quando o sol escurece

O tempo passa depressa, e o que ontem era lindo hoje pode não ser…

A vida, por vezes, leva-nos para sítios onde nunca imaginamos que tal pudesse acontecer, mas acontece. Não raramente torna-se necessário fazer mudanças radicais no nosso comportamento para procurar um novo equilíbrio. Para tal, é preciso: primeiro, arrumar bem o passado e não lamentar nada do que fez.

Aquilo que poderia ter feito e não fez esqueça!
Procure para companhia alguém com pensamento positivo, tente não se deixar subjugar por vícios, pois, não raramente, são a causa maior de uma derrota que tantas vezes sem eles seria possível evitar ou minimizar.
Procure escutar pessoas que sabem daquilo que falam.
Evite pessoas que sabem tudo… e quando algo corre mal a culpa é sempre dos outros.
Escolha coisas que o ajudem, e essas por estranho que pareça, muitas vezes podem ser encontradas nas grandes dificuldades porque passou.
Se as ultrapassou também as que possa estar a viver agora podem ser ultrapassadas… não se dê nunca por vencido.
Lembre-se que depois de cair no fundo de um poço não se pode descer mais… mas voltar ao cimo pode ser possível!
Se assim não fizer, fica preso a um tempo, que no seu tempo, jamais voltará.

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16796: Blogoterapia (284): De Lisboa a Gaia para levar um abraço ao Zé Ferreira da Silva, autor das "Memórias Boas da Minha Guerra" (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CCS/BCAÇ 3772, Galomaro, 1971/74)

sábado, 3 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16796: Blogoterapia (284): De Lisboa a Gaia para levar um abraço ao Zé Ferreira da Silva, autor das "Memórias Boas da Minha Guerra" (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CCS/BCAÇ 3772, Galomaro, 1971/74)



1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 25 de Novembro de 2016, falando da sua vinda a Vila Nova de Gaia para assistir ao lançamento do livro, da autoria do outro nosso camarada José Ferreira, "Memórias Boas da Minha Guerra".

Juvenal Amado
Levantei-me e tomei um comprimido para a tensão arterial (coisas da idade) enquanto preparava o pequeno almoço. Estava excitado e algo preocupado pela jornada que se aproximava. Sou um provinciano e tomar os transportes públicos em Lisboa ou arredores, ainda é confuso para mim.

Tinha resolvido ir ao lançamento do livro do José Ferreira de comboio e, para isso, começava por apanhar o metropolitano na Reboleira, que me levará a Santa Apolónia, para seguidamente no Alfa Pendular rumar até às Devesa, em Gaia.

Pelas 8 e 10 depois de carregar o cartão (uma modernice) que me dá o direito a viajar no Metro, tomo lugar no mesmo. Não tem ainda muita gente, facto que vem a acontecer duas paragens após, onde a composição ficou a abarrotar, a ponto de ficarem dezenas de utentes no cais sem terem lugar. Tinham assim que esperar por outro ou outros comboios. A Jornada de trabalho começa cedo e acaba bem para lá da hora de expediente, se contarmos o tempo despendido em transportes.

Aproveitei para apreciar o ambiente, onde se comprimia gente de todas idades cores. Haverá sempre quem usa os inconvenientes para se divertir, às tantas, uma jovem com cabelo à Angela Davis (activista negra pelos direitos cívicos dos negros americanos dos anos 60) dando largas a um humor muito urbano, diz alto e bom som: “dispam-se já todos para arranjarmos lugar para mais um”. Íamos todos tão comprimidos que, só facto de tirarmos a roupa se arranjaria mais um lugar. Alguns riram-se, outros mantiveram o rosto fechado, pois entenderam que a situação não tinha graça nenhuma, ou que era hora imprópria para boa disposição.

Após os Restauradores, foi notória a diminuição do fluxo de utentes e, depois da Praça do Comércio, já só ia uma dúzia, se tanto, de pessoas que saíram comigo na estação. Subi o mais rapidamente as escadas e dirigi-me às bilheteiras. Fui recebido por uma jovem e simpática funcionária, com um sorriso a lembrar outros tempos, que para além de vender o dito bilhete, me explicou como devia proceder para fazer a ligação para a estação do Oriente, pois só lá é que tomaria o bendito Alfa.

Correu tudo como previsto. Duas horas e meia depois desembarcava em Gaia. Estava um dia maravilhoso com uma leve aragem fresca, que não incomodava, e rapidamente cheguei à rampa do Mosteiro da Virgem do Pilar, do lado do miradouro, que não conhecia embora tenha estado no RI6 aquando do meu serviço militar.

Fiquei maravilhado com o Douro e as duas margens, os barcos de turismo, o trânsito na ponte Luís I e o jardim circundante onde “rapazes da minha idade” jogavam às cartas em vários grupos. Razão tem a canção onde o Rui Veloso canta as palavras de Carlos Tê, pois depara-se com um cenário grandioso e majestoso.

Porto Sentido

Quem vem e atravessa o rio 
 junto à serra do Pilar,  
vê um velho casario 
que se estende até ao mar.

Quem te vê ao vir da ponte,
és cascata, são-joanina,
dirigida sobre um monte 
no meio da neblina.

Mas eu não estava ali só para apreciar as vistas. O tempo voou.

Acabei por dar de caras com os irmão Carvalho (o António o Manuel) e o Francisco Baptista, que depois dos abraços do costume, fizemo-nos ao caminho para no quartel assistir à cerimónia, dar um abraço ao José Ferreira e felicitá-lo pelas suas estórias de que sou incondicional admirador.

A sessão foi o que se esperava com a devida pompa e circunstância, o Zé no uso da palavra, acabou por nos fazer rir com pequenas estórias ao falar dos intervenientes a que ele deu vida nas páginas do seu livro e que passam por isso a co-autores.

Foi um dia bem passado e, de regresso à Reboleira,  já passava da meia-noite, estava cansado, mas valeu a pena ir de Lisboa a Gaia, só para levar um abraço ao Zé.

Quanto ao livro é para saborear.

No dia 17 de Dezembro vai haver festa novamente, pois os livros são sempre uma festa, e o do Zé é de arromba.

Um abraço para todos
JA






Fotos: © Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16773: Blogoterapia (283): Memórias que me acompanham (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493)

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16753: Blogoterapia (282): o tema, recorrente, dos "cansados da guerra" (... e do blogue) (José Manuel Cancela / Hélder Sousa)


Foto nº 1 > Guiné 1969/70 > Postal de boas festas, do Zé Manel Cancela


Foto nº 2 > Bissau > 1969 >  O Zé Manel Cancela, à esquerda, junto ao Hotel Portugal,   acompanhado de um conterrâneo,  de Penafiel, o Ernesto.


Foto nº 3  > Bula > 1968 > Com uma semana de comissão, o Zé Manel  Cancela, "posa" para a fotografia, aquela  que se mandava para casa, para tranquilizar a família: "nós por cá todos bem"...


Matosinhos >  Tabanca Pequena >  s/d > "Unidos" em  Mampatá,  amigos para sempre!... Da esquerda para  a direita,  o Zé Manel Lopes (Josema) e  o António Carvalho (ou Carvalho  de Mampatá) (ambos da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) e o Zé Manel Cancela (CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Nhala, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70]1968/70)... 

Fotos da página do Facebook do Zé Manel [Moreira] Cancela, natural de Rio de Moínhos, Penafiel.

Fotos (e legendas): © José Manuel Cancela (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. O tema, recorrente,  dos "cansados da guerra " (... e do blogue) volta  a aparecer nas caixas de comentários... Cite-se três comentários (*):

(i) Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Pichee Bissau, 1970/72),

Caros camaradas: não tenho tido tempo para participar mais activamente no nosso Blogue mas isso não significa que não o acompanhe diariamente (quase, quase,,,) mas falta-me a disponibilidade para a intervenção.

E bem sei que o Blogue precisa disso (há que alimentá-lo, pois é muito voraz) mas vou fazendo o que posso, dando 'sinal de vida' através dos parabéns aos aniversariantes e sempre, sempre, com a esperança de que 'para a semana vou conseguir'... vê-se!

Mas era impossível não reagir a este texto de antologia do Francisco (*), de reflexão sobre um tema sempre presente ao longo das nossas vidas e que, teimosamente, sempre procurámos evitar aprofundar. O pretexto foi a partida do Vasco Pires. O que o Baptista escreve sobre ele é totalmente subscrito por mim. Não, não é preguiça ou simples economia de palavras e tempo, é porque realmente mais seria escusado. (...)

Obrigado, Francisco, por este incontornável texto, que na prática também é uma justa e merecida homenagem ao Vasco Pires.

(ii) José Manuel Cancela [ ex-soldado apontador de metralhadora, CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Nhala, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70]

Adorei o texto do Francisco Baptista. Há uns anos atrás conheci outros camaradas que também escreviam assim, no nosso Blogue, não sei porquê, cansaram-se.

Não te canses tu, amigo Baptista.É um privilégio ter-te de vez em quando ao meu lado e convivermos, e não esqueças o que sabes fazer de melhor... que é escrever.


(iii) Tabanca Grande

Meu caro Zé Manel Cancela: o que queres que eu te diga sobre os camaradas que se "cansaram" do blogue ?
São 13 anos a blogar, mais de 16700 postes, 731 camaradas e amigos inscritos no blogue (50 dos quais já morreram), formalmente inscritos (mas muitos mais, 2313, na página do Facebook da Tabanca Grande)... São 66 mil comentários, quase outras tantas imagens e vídeos... São cerca de 9,3 milhões de visualizações!...

Muitos de nós já "raparam" o baú da(s) memória(s), já fizeram as pazes com o passado, e não tem mais histórias para contar... Por outro lado, a Guiné-Bissau de hoje...  é uma deceção, não era o país que todos desejávamos que fosse, nós, os amigos da Guiné e sobretudo os guineenses...

Mas quem está 100% satisfeito com o país que lhe caiu na rifa ? O mundo é hoje uma trampa (em inglês, "trump"...] , está cada vez mais feio e perigoso... E podemos especular sobre (... antes de temer) o que ainda nos espera... Com a nossa idade e experiência, só nos resta sermos, não direi otimistas (só os idiotas é que são hoje otimistas...) mas positivos e proativos...

Zé Manel Cancela, 13 anos é muito tempo... Estamos todos cansados... Cansados da vida e da guerra... Bolas, são "seis  comissões"!.... A p... da guerra não durou tanto... A malta vai "desertando", "ficando pelo caminho", "envelhecendo", "entristecendo", "definhando", "arrumando as botas e as cartucheiras"... e "morrendo", uns física, outros socialmente.

Esperemos que entre "sangue novo" na Tabanca Grande... Está a entrar,  mas a um ritmo muito mais lento do que uns tempos atrás... Eu estou cansado, o Carlos Vinhal está cansado, os nossos colaboradores permanentes estão cansados... É humano, é normal, era expectável, quando arrancámos em 2004... O que eu não esperava (e seguramente a maior parte dos camaradas da Guiné) é que o raio do blogue se aguentasse tanto nas canetas... Bolas, 13 anos é um 1/5, em média,  das nossas vidas!... Já deram conta disso, camaradas e amigos da Guiné ?!...

E depois temos a concorrência do Facebook, que é "fast food", é "pudim instantâneo"!... Todos (ou quase todos...) reconhecemos que o blogue é mais exigente, dá mais trabalho, tanto para quem escreve como para quem lê.... O blogue e o facebook têm missões diferentes, estilos diferentes, gramáticas diferentes e até  públicos diferentes...
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 21 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16745: Blogoterapia (282): Reflexões sobre a morte no adeus ao Vasco Pires (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16745: Blogoterapia (282): Reflexões sobre a morte no adeus ao Vasco Pires (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

Super Lua
Foto: © Luís Graça


1. Em mensagem do dia 16 de Novembro de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos esta reflexão à volta da vida e da morte, a propósito do recente falecimento do saudoso camarada Vasco Pires:


REFLEXÕES SOBRE A MORTE NO ADEUS AO VASCO PIRES

Nós somos os homens, os seres eleitos, para quem Prometeu roubou aos deuses o fogo da imortalidade, tendo sofrido um castigo terrível pelo seu crime. Todos, enquanto seres pensantes vivemos essa promessa de imortalidade, que não passa de uma ilusão, pois acaba sempre num acidente mortal que pode ter várias causas: Acidentes de carro, de barco, de avião de motociclo, por armas de fogo, explosivos, doenças prolongadas ou fulminantes, falhas orgânicas várias e outras.

A morte leva os sábios, aqueles que parecem ter atingido na Terra a sabedoria dos deuses, como leva os ignorantes, os mais simples, os que vivem mais de acordo com a natureza sem procurar decifrar os seus segredos.

A morte do homem é um mistério que vem interromper o curso de uma vida, que sendo um paradoxo, pois parece que nascemos para morrer, só se compreende quando aceitamos a ordem natural do universo e nos integramos nela, nesse eterno retorno do Inverno e da Primavera, que a uns mata e a outros faz nascer.

Por essa ordem seremos seres finitos, em que se misturam a sabedoria, a ciência, a arte e a técnica, a estupidez, a imperfeição, o mau-gosto, a lucidez e a loucura. Quisemos subir tão alto para no final termos o mesmo destino de todos os outros animais ditos irracionais. Será que ao morrermos, nos segundos finais da nossa vida, teremos a percepção de que vamos deixar de existir, voltar ao nada donde viemos? Voltar a ser o pó donde viemos, de que falam as Sagradas Escrituras: “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar” (Gen. 3, 19).

A morte traz-nos o fim de todas as ambições e de todos os maus defeitos associados, a vaidade, o orgulho, a inveja, mas não nos torna melhores, nem mais santos mesmo quando purificados pelo fogo e transformados em cinzas no silêncio dos cemitérios. Seremos julgados pelos nossos actos pelos que nos sobreviverem mas não seremos punidos ou louvados por eles. Os mais virtuosos e puros, os que mais se privaram, os que menos pecaram terão o mesmo fim dos malvados, dos desumanos, dos desalmados, dos sanguinários e da canalha que pulula pela terra inteira.

No final, para todos, será o não-ser que não se atinge na contemplação nem se define por combinações ou jogos de palavras. Todas as tentativas de o compreender ou explicar falham por excesso ou por defeito. Poderei vir a mudar e até tornar-me num adepto fervoroso de alguma religião adepta da salvação, mas a minha verdade actual, pela ausência de qualquer fé, leva-me a estes pensamentos um pouco desgarrados, ainda que respeite as crenças de todos os meus semelhantes.

A morte do nosso grande camarada Vasco Pires, mais novo um ano do que eu, pelo choque causado, volta a trazer-me ao pensamento este tema recorrente que me tem acompanhado, por períodos com maior ou menor insistência, desde a adolescência, quando comecei a tomar consciência de que estava condenado a morrer um dia.

Gostava muito das opiniões que o Vasco escrevia sobre alguns textos meus e sobre muitos textos de outros camaradas e identificava-me muito com elas. Admirava a forma clara, leal, sóbria, delicada e humana com que se exprimia mesmo quando por vezes discordava dos outros. Tinha um conjunto de qualidades e virtudes que nem todos temos, pelo menos a mim não me sobram e o mais provável é que me faltem.

O Vasco deixou-nos, todos o sabem, no dia 31 de Outubro, era Outono em Vilarinho do Bairro, terra onde nasceu. Subitamente, suavemente, como uma folha que cai, soltou-se da árvore da vida, sem fazer ruído, presumo eu. Pelas nossas raízes rurais, com todas as vantagens e inconvenientes de crescermos em comunidades pequenas bastante repressivas e vigiadas, onde. a par de tabus e restrições antigas. se cultivavam também virtudes ancestrais, que os nossos pais e avós nos procuraram inculcar, senti-me muito próximo dele. Fomos tantos que saímos dessas aldeias do interior, e o interior começava logo a 10 quilómetros das grandes cidades, os mais intelectualizados divididos entre o fascismo, a democracia, o comunismo e o anarquismo, pois a pressão totalitária, a ignorância política, o amor pela liberdade, essa jovem sedutora e sem preconceitos, e a curiosidade, podiam-nos arrastar para qualquer desses caminhos do idealismo ou por outros caminhos de obediência a inclinações mais físicas e sensoriais.

Pela impressão que me ficou do que conheci dele através do que escreveu, e eu li, pareceu-me que terá havido afinidades que nos aproximavam, sem nunca ter um conhecimento definitivo sobre o assunto, já que nunca, para pena minha, tive uma conversa pessoal com ele.

Gostaria de ter ido, no dia 5 de Novembro, à missa de 7.º Dia em sua memória por dois motivos:
Para sentir no ambiente natural e paisagístico onde ele nasceu se conseguia intuir um pouco mais do seu espírito, para o conhecer melhor e procurar ter com ele uma comunhão espiritual mais próxima;
Para falar com alguém, camaradas, familiares ou conterrâneos dele que me ajudassem a construir melhor a boa imagem, mas incompleta que guardo dele. Infelizmente não pude ir a essa missa por motivos familiares que não me deram qualquer saída.

Acredito que há homens que são bons, puros, justos, grandes, solidários, antes de morrerem, ao Vasco Pires, recordá-lo-ei sempre como pertencendo a essa galeria de notáveis.

Preciso de boas referências para continuar esta caminhada incerta, e tu camarada és uma boa referência, como esta lua cheia, que hoje brilha no céu, com mais intensidade.

Quando morrer não quero encontrar-te porque tu estarás em lado nenhum, o mesmo lugar para onde eu irei, mas enquanto for vivo não te esquecerei, continuarás a ser esse meu amigo tão distante e tão próximo pelas vivências portuguesas e africanas, por sonhos e ideais realizados ou não.

Até sempre camarada!

Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16571: Blogoterapia (281): o nosso blogue, um excecional serviço público ao dispor de todas as gerações, nacionais ou além fronteiras, onde se escreve e faz ciência histórica (Jorge Araújo)

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16571: Blogoterapia (281): o nosso blogue, um excecional serviço público ao dispor de todas as gerações, nacionais ou além fronteiras, onde se escreve e faz ciência histórica (Jorge Araújo)



Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873  (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009),  em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes),
Portimão, Grupo Lusófona.



1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo, com data de 5 de outubro de 2016 às 22:37

Caro Luís,

Boa noite.

Depois da comemoração de uma efeméride com cento e seis anos [, o 5 de outubro de 1910], eis a minha resposta ao teu contacto do final da tarde.

Não tens que agradecer a minha participação [no blogue], pois ela inscreve-se no quadro de partilha e de aprofundamento de conhecimentos, enquanto for possível, neste caso os relacionados com as nossas vivências no conflito da Guiné que, quis o destino, nele estivessemos envolvidos como actores principais... com cenários impregnados de emoções e outras tantas tensões que ainda hoje guardamos no baú das nossas memórias.

A minha persistência, que valorizas no comentário, é um gesto menor quando comparada com a tua, a de manter vivo o espaço plural que dá sentido à existência do nosso blogue, que considero um excepcional serviço público ao dispor de todas as gerações, nacionais ou além fronteiras. onde se escreve e faz ciência histórica.

No entanto, ambas as persistências são um elemento fundante da natureza humana, enquanto processo e projecto de vida, pois são a parte visivel da intencionalidade operante de cada um de nós, ou seja,, parte da intenção à acção., onde acontece superação e transcendência, de que é exemplo paradigmático a actividade física e o desporto (motricidade humana).

Porque um conflito, seja qual for o fundamento da divergência que o justificou, tem, no mínimo, dois poderes com interesses antagónicos, como é o caso em apreço. Assim, o meu propósito foi e continuará a ser o de continuar a dar conta dos factos históricos de cada um dos lados do conflito, transformando-os em factos comuns... pois a verdade é o todo...

Desculpar-me-ás, mas apetece-me citar Karl Popper (1902-1994) para enquadrar/sintetizar o que acima redigi:

 "Penso que só há um caminho para a ciência ou para a filosofia: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte vos separe - a não ser que encontrem um outro problema ainda mais fascinante, ou, evidentemente, a não ser que obtenham solução" (...)

É isso que iremos continuar a fazer.

Um abraço,, e até breve.

Jorge Araújo
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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16388: Blogoterapia (280): Amizades e Memórias que o tempo vai esfumando (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

domingo, 14 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16388: Blogoterapia (280): Amizades e Memórias que o tempo vai esfumando (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Foto: Com a devida vénia à Câmara Municipal do Porto


1. Em mensagem do dia 11 de Agosto de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos das Amizades e Memórias que o tempo vai apagando.

 
AMIZADES E MEMÓRIAS QUE O TEMPO VAI ESFUMANDO

Já quase no final da minha caminhada, no Parque da Cidade do Porto, fui abordado por um cavalheiro, que vinha em sentido contrário, que me perguntou educadamente pela minha naturalidade. Eu disse-lhe qual era e ele disse-me que se lembrava de mim depois muitos anos já passados, talvez cinquenta e cinco, e que eu o tinha iniciado na aprendizagem da língua francesa, e para minha surpresa começou a contar em francês: un, deux, trois, quatre, cinque...

Era um homem afável, de estatura média, que denotava além de uma boa dieta alimentar, cuidados físicos para manter a forma. Quis corresponder à simpatia demonstrada por ele e ao apelo que fazia à minha memória, mas para meu desgosto e dele possivelmente, não me fazia lembrar ninguém do meu passado.

Para avivar a minha memória ele disse-me que me tinha conhecido na Vila, na casa de uma tia dele, irmã da mãe, casada com um alfaiate onde eu estava “ aboletado”, foi o termo que ele usou, quando eu estudava no colégio. Eu teria catorze ou quinze anos e ele, pela diferença de idades de que falamos depois, teria sensivelmente metade da minha idade.

Ele, numa tentativa de acordar a minha memória adormecida, ainda me disse que era o Emílio e que a mãe dele se chamava Luísa.
Tinha seguido a carreira militar, tendo entrado na Academia Militar onde ainda estava quando aconteceu o 25 de Abril e a independência das colónias. Atingiiu o posto de coronel, actualmente já está reformado.

Eu que por um preconceito comum na nossa sociedade, justificado ou não pelo comportamento dos oficiais superiores, distantes e autoritários por formação, ou deformação, profissional mesmo quando abandonam a vida militar, fiquei muito sensibilizado por ver um coronel despir a farda militar, calçar as sapatilhas e vestir os calções de garoto, para me cumprimentar, a mim que sou um civil desalinhado e sem condecorações, e fui oficial miliciano por um acidente da história. Falámos doutras circunstâncias das nossas vidas e despedimo-nos com um até breve, numa próxima caminhada no Parque da Cidade, que ele também frequenta com assiduidade.

Abandonei o Parque da Cidade pesaroso e consternado por não ter correspondido às expectativas dessa amizade prolongada, que eu esqueci e que esse menino, hoje coronel reformado, conservou para sempre. Pus-me a contar em francês, nessa língua que eu sempre amei, como quem reza, a pedir perdão pelas falhas da minha memória traiçoeira.

Nas horas e nos dias seguintes procurei forçar a minha memória relapsa, para me abrir caminho através do nevoeiro dos dias cinzentos, dos dias tristes e dos dias escuros do meu passado. A revelação aconteceu e voltei a rever esse rapazinho, simpático e curioso, que me adoptou como o irmão mais velho, com mais conhecimentos do que ele, pois já estudava francês, uma outra forma de falar com palavras diferentes. Palavras tão diferentes que ele iria inscrever na memória para a vida inteira, associadas a esse adolescente de catorze anos que lhe tinha dedicado alguma atenção e era tão alto como o pai dele.

As crianças gravam para uma vida inteira nas folhas brancas da sua alma os conhecimentos que elas misturam com os afectos que recebem dos pais, dos avós, dos irmãos e dos amigos .

Tudo é real menos os nomes do coronel reformado e da mãe dele. Para ele e para a mãe, que recordo como uma senhora simples, simpática e delicada e que ainda é viva, conforme ele me contou, desejo uma longa vida com muita saúde.

Este episódio, na falha de memória que assinala, é semelhante a outros que me têm acontecido nos últimos anos quando comecei a despertar com nostalgia na procura dos meus velhos camaradas e amigos da Guiné. Alguns que eu tinha esquecido e não consigo lembrar, lembram-se de mim com pormenores que eu já tinha esquecido.
Um deles com quem convivi diariamente pelo menos dois meses e que encontrei num almoço da companhia 44 anos depois, cumprimentou-me com muita familiaridade e eu disse-lhe que nunca o tinha conhecido. Ele disse-me que se lembrava bem de mim e que eu nesse tempo usava bigode. Não me lembrava de alguma vez ter usado bigode. No ano seguinte, noutro almoço ofereceu-me uma fotografia onde estávamos os dois entre outros oito ou dez a jantar e eu com um bigode, que não era de cavalaria mas de infantaria para não renegar a minha Arma.
Noutro caso sou eu que me lembro muito bem de um alferes de outra companhia que reforçou a minha durante dois meses, que dormiu no meu quarto durante esse tempo, com quem tive uma boa relação de amizade. Para meu desgosto, ele apagou-me completamente da memória sem se dar conta pois ele era um bom camarada e acredito que pela vida fora conservou as boas qualidades que lhe reconheci, quando jovem.

Ao camarada do destacamento de fuzileiros com quem falei por telefone este ano, e que me disse que se lembrava bem de mim, das muitas refeições que fizemos na messe, não tive coragem de lhe dizer que não me lembrava nada dele e menti-lhe.

Enfim quando estivemos em África, ao tempo na chamada província portuguesa da Guiné, não trouxemos a imagem de elefantes vivos, que já não havia, nem a sua memória prodigiosa. Viemos com o cérebro esturricado e zonzo pelo sol ardente dos trópicos, pelo calor do álcool que o adormecia, pelo estrondo das granadas e das bombas e pelo matraquear das metralhadoras.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de agosto de 2016 Guiné 63/74 - P16384: Blogoterapia (279): A odisseia da minha prótese (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728)

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16384: Blogoterapia (279): A odisseia da minha prótese (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), com data de 11 de Agosto de 2016, relatando a sua experiência de ser submetido a uma artroscopia da anca, que lhe vai proporcionar dias mais confortáveis, temos a certeza.


A odisseia da minha prótese

Fugi dela como o diabo foge da cruz, durante uns dez anos. Meu medo era poder ir parar a uma cadeira de rodas. Estou a vê-lo: "você tem esta anca destroçada"... me disse o médico ao ver a radiografia, com aquela frontalidade estranha que caracteriza a classe, ao dar a má notícia aos seus doentes...

As dores já eram muitas. - alternativa à operação? - perguntei. - ir aguentando com comprimidos. Basta um de 50mg por dia. Mas o fígado...

E assim fiquei todo este tempo, em queda lenta. Voltaren foi a minha prótese. Até que, um dia, o testemunho duma pessoa amiga me abriu o caminho e empurrou para a frente. Fora um bom médico que o libertou e repôs normal.

Fui consultá-lo. E voltei lá com uma radiografia. - oh! como isto está!... Quando quer ser operado? Uns exames e vamos pôr uma prótese. - pois sim. Só que tenho de voltar para a Alemanha e permanecer lá uns três meses. Estávamos em Março. - bom. Vamos esperar por Agosto. Quando eu vier de férias.

Assim foi. Nova consulta de preparação. Novos exames. - quando quer ser operado? - perguntou. - já!- respondi. Olhou-me fixo. Quer ser amanhã? Surgiu uma vaga. - Eh pa!... E quando voltará a ser possível? - só em Outubro. - então é já.

Minha mulher que me esperava, muito programática nos seus planos, cá fora no carro, com a canita ao sol, ar condicionado ligado, ficou desorientada. Mas rendeu-se. - então, vamos fazer por o operar amanhã, pelas 19 horas. Venha às 16 horas.

E assim foi. Pouco depois estava a entrar no meu quarto, voltado para o Tejo. Muito agradável. Vesti uma opa branca sobre o corpo nu. Pelas 18h e 30m chegou a equipa para me levar para a "forca".

Corredores e mais corredores, para a esquerda e para a direita. Por aquele cenário de camas e cadeiras espalhados, muito animadores. Sentia-me calmo e seguro.

Finalmente, aquela sala cheia de luzes no tecto. Transferiram-me para a mesa da operação. Um a um se me apresentaram os artífices da patifaria que me iam fazer... - eu sou o anestesista. um rapazote, com barba rala, olhos azulados e cabelos quase rapados, já com abertas. Depois as enfermeiras. Joviais. Muito descontraídas irradiando simpatia. - que tempo irá durar?- perguntei - umas duas horas. Passam depressa. Nem vai dar fé. Uma epidural. Só sente da cintura para cima. E um comprimido para adormecer.

Daí a pouco, ouvi a voz grave do médico operador. - Bem disposto? perguntou. - Estou tranquilo. Faça como se fosse ao seu pai. Ele sorriu. Ajeitaram-me o corpo para a melhor posição e passei-me, calmamente, para o outro lado.

Quando acordei, senti marteladas fortes, no meu osso da perna, como um pedreiro a abrir um furo numa laje de pedra. - que é isto? Dor não sentia... Só tinha de contrariar as pancadas. - pronto, já está!... me disse o médico, sorridente, levantando o lençol que me cobria a cabeça. Nem precisou de sangue alheio!... - agora vai para os cuidados intensivos, por precaução e depois, para o seu quarto. - Sim, senhor.

Artroscopia da Anca
Foto: The Porto Hip Unit - Unidade da Anca, com a devida vénia

De novo a cama de rodas e aí vou. Um salão amplo. Várias camas com recém-operados, separadas, lado a lado, por cortinas. À frente a legião de pessoal, enfermeiro e não, atendendo, registando e controlando quem chegava e saía, conforme as instruções médicas. Curvo-me perante a abnegação heróica e dedicação, com que estes iguais atendem os indefesos. Horas e horas sem fim, dia e noite. Só gente nova. Só com um clima de boa disposição a dominar aquele ambiente se pode aguentar. Tudo ouvi. Porque dormir não havia meio.

Só pelas 18 horas do dia seguinte entrei no quarto. Não o mesmo. Tinha ido à vida para outro. Receei perder as vistas. Mas não. Foi-me atribuído um semelhante.

Lentamente as pernas foram acordando da forçada hibernação. Tudo me era impossível de alcançar por mim. Fiquei reduzido ao zero. Que maravilha ver como aquelas enfermeiras nos cuidavam! Minha alma rejubilava por constatar que, afinal, neste mundo cruel há muito bem em acção...

No 5.º dia, o médico, sem qualquer dúvida, deu-me alta. Os resultados estavam todos muito positivos.

E aqui estou em casa. Canadianas. Subindo e descendo escadas, já com vontade de carregar no pedal do meu carro que ali me espera saudoso.

Mafra, 11 de Agosto de 2016
14h11m
Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16263: Blogoterapia (278): A minha casa (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381)

domingo, 3 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16263: Blogoterapia (278): A minha casa (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 26 de Junho de 2016 o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos este texto.


Por mais que viaje pelo mundo, embalado no sonho que promete elevar-me à felicidade, ou buscando apenas aquilo que mais anseio para minha realização, volto sempre a casa despido e ansioso. É na sua paz e aconchego que consigo encontrar-me de novo. Janela de oportunidades sempre aberta, pela qual se projetam, de mãos dadas, as realidades e as utopias, que são a razão da minha forma de viver. O meu mundo.

Nada melhor que sair de casa por uns tempos. Vaguear pelos vales e montanhas da vida, para apreciar quanto vale o ninho construído com as penas encontradas no caminho, e encasteladas uma a uma, como quem edifica uma fortaleza. Não há chuva nem vento, tão pouco tempestades, que o derrubem.

Instalado na minha casa, dou alimento às folhas verdes que cobrem em abundância o tapete das recordações e nelas me alimento, caminhando sobre elas ao encontro do futuro. Sigo, expectante, os símbolos dos tempos que apontam para percursos de paz e de concórdia entre os homens. Local por excelência para acolher o mundo que me abraça e me seduz, nela celebro as vitórias que a vida me proporciona, e procuro o unguento para aliviar as dores provocadas com os desaires sofridos.

Como que se confunde comigo, cantando alegremente quando sente que estou a trilhar caminhos de felicidade. Acolhe-me de braços abertos nos momentos menos felizes. Sinto o seu silêncio, quando se deixa invadir pelos acontecimentos que me desinstalam da vida, por não conduzirem ao mundo com que sonhei: as guerras e as fomes que avassalam a orbe terrestre; as intempéries e as catástrofes naturais; as ações dos homens ambiciosos e sem escrúpulos que maltratam, das mais variadas formas, esta hospedaria global, que a todos pertence, mas de que alguns se assenhoraram. Minha casa, meu mundo…

José Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15921: Blogoterapia (277): Velhos são os trapos (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659)

quinta-feira, 31 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15921: Blogoterapia (277): Velhos são os trapos (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 27 de Março de 2016, a propósito do aniversário deste vosso escriba:

Camarada Carlos
Tive conhecimento ser hoje o teu Aniversário.
Os anos passam e fogem-nos sem darmos por isso. Mas mal damos conta vamos nos “enta”. E a guerra nos “inte”.
Para o camarada Carlos dos “Enta”, espero que o passes com os teus, que somes a estes muitos mais, com saúde.
Tentei fazer um Poema dedicado a todos aqueles como nós que atingimos aquilo que já tratam de Terceira Idade.
Se quiserem podes publicar no Blogue.

Um grande dia para ti
Um abraço
Mário Vitorino Gaspar


Velhos são os Trapos

Mário Vitorino Gaspar

Pequeno corria ventos e com as nuvens falava:
– Por que não constróis castelos mirabolantes?
Gentes de todas as idades rindo como dantes?
Jovem dos vinte a sorrir? Por favor não minta
Andas a sonhar e casado, pai e homem aos trinta
Rebentas pela vida! Quem a suporta e aguenta?
És a vida que espera sem esperar pelos quarenta
Sem saber… atingiu cinquenta os que sonhava.

O que interessa é viver a vida e não só a contar:
– Quantos palmos… palmo a palmo e a medir
Cantar. Cantar. Segundos, minutos horas a sorrir!
Cantar. Cantar. Longe de tormentos e ais a sofrer
Cantar canções de vida de amores a vida que viver.
A música cresce nos tons nostálgicos de uma flauta
A orquestra e seu maestro, batuta baque na pauta.
Vamos sorrir nos anos poucos ou muitos a amar

Quero gritar… E grito, apetece-me gritar:
– Ser humano que sente não é velho farrapo
Velho e remendado… é aquele solitário trapo
Um reformado… sente bem o tempo ocupado
Outro sozinho triste, vazio oco… desconsolado
Um o tempo medido e pesado é curto e escasso
Outro a vida que era vivida virou fracasso
Grita. Grita Por que não? Danças a cantar?

Ser-se de entre os anos o óbvio um sexagenário
Atingidos com alegria a verdade dos setenta
Correm os ponteiros às voltas somam oitenta
Anos seguidos e a vida a decrescer vem a soma
Noventa? Mas por que razão pedi a reforma?
Centenário? Cem anos? Poderá isto ser verdade?
Vivi, gozei e vi. Filhos e netos é mesmo a idade!
Galguei os anos sem sequer olhar o calendário.

Aprendermos que a vida é também feita de zeros
Nados, ventre da mãe, mulher criada do mundo
Fêmea que amou o homem somente um segundo
E repete-se. Repete. A luz que acende e aquece
Repete. Anos repetem-se e há alma que esquece
Música que toca nos rádios todo a hora e dia
Dancemos ao toque do tambor e da melodia
Matematicamente o mundo é feito de números.

Mas velho… velho, sem voz, mudo e calado?
– Velho, caco de barro esburacado e partido?
Cala-te! Não sabes que esse termo foi abolido?
Nem consta e nem lês nas palavras do abecedário!
Nem no mundo, no melhor catalogado dicionário…
Velho! A palavra foi extinta, não existe nem se fia
Nem em todos os acordos do mundo de ortografia…
Velho era alguém com idade, e um caso acabado.

Vivemos neste mundo e anos seguidos de felicidade
Amamos as flores do campo e as borboletas voando
Escutamos a voz do mar, ondas leves se enrolando
Há muito que aprender e melhor conhecer este ninho
Palacete com palhas e paus cruzados, em remoinho.
Se cometermos nesta longa caminhada na natureza
A vida é amor. O homem tem de cumprir esta certeza
No mundo, suas gentes, são estrelas do céu sem idade.

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2. Comentário do editor CV

Caro Mário
Muito obrigado pelo teu poema, que se me permites dedico a toda a tertúlia, pois há muito que estamos todos nos enta, donde, desde que se entre, nunca mais se sai... Só aos CEM, mas esta meta é para meia-dúzia de privilegiados.

Já agora, aproveito para agradecer as palavras de carinho, enviadas, não só a mim, mas também aos meus companheiros de aniversário, a Ni, o Armando Pires e o Eduardo Magalhães, através do Blogue, facebook, mensagens pessoais, telefonemas, pombos-correios, etc.

Bem hajam.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15866: Blogoterapia (276): Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné? (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15792: O meu coma: o corredor da morte (Mário Gaspar) - II (e última) Parte

1. Segunda e última parte do texto do Mário Gaspar sobre a sua experiência de internamento hospitalar  em março de 2002, quando foi operado ao coração... Tem hoje 4 bypasses. Esteve em coma, estve mais para lá do que para cá, É um herói, um duplo sobrevivente do "corredor da morte", na Guiné e na UTIC, no Hopsital de Santa Maria (*)

[Foto à esquerda: Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; lapidor de diamantes, reformado; cofundador e antigo dirigente da APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra]


(Continuação)

Guerra. Descia e montava minas que rebentavam e matavam. Guerra. As cores de todo o ambiente, eram carregadas, visíveis, sendo de destacar, o verde e o vermelho. Parece que o verde de floresta e o vermelho de san­gue.

Fomos então à propriedade do “senhor x”. Tinha vários chapéus-de-sol espalhados pela relva bem verde. O senhor estava sentado numa cadeira de praia, junto a uma piscina. Falei com ele mas tive que me lançar para a relva. Tinha bastantes dificuldades em me mexer. Ele parecia ser boa pessoa, queria­ ajudar-me. Não sabia quem era, alguém importante. Tinha muitos empregados. Era um espaço luxuoso. Um paraíso.

Perto dele, um outro indivíduo. Emigrante, percebi e de visita à terra, mas mais pobre. Vivia também com algum desafogo. Pronto também para ajudar. Não entendia que tipo de apoios, nem tão pouco quem apoiava e quem era apoiado. Eu não estava bem. Tinha de me lançar para a relva. Até que veio um outro indivíduo, percebi ser muito pobre, que só queria que ajudassem uma mulher. Foi encaminhado.

Saí dali e voei até Vila Franca de Xira. Depois Alhandra e passei pela passagem de nível desta estação. Um pouco à frente está Campo Grande, e logo à curva a Praia de Santa Maria de Sintra (a praia não existe, mas existe a Freguesia de Santa Maria de Sintra que foi onde nasci). Vem Sintra. Toda a viagem foi voando como se fosse um anjo. Vejo o meu pai revoltado dizer:
– Eles não deviam mandar o meu filho para a guerra. Ainda, por cima mataram­‑no. Está escrito na caderneta militar:
– “Morto a 12 de Outubro de 1967” e também: – “Baixa de Serviço: por Falecimento”. Eles não podem matar o meu filho. – Continuava ele, enquanto chorava.

Vi a minha mãe a olhar­‑me. Chorava.

A sala onde me encontro é grande, e localiza­‑se na entrada de neu­rologia, no Hospital de Santa Maria, aliás local onde nunca estive. Tem muitas camas. No fundo, ao meio, está uma porta estreita. Para lá chegar é necessário subir uns degraus. Entrada de um corredor diferente, o “corredor da morte”?

Eu estou em pé à espera da minha vez. Alguém com um aspecto sinistro se põe à minha frente. A sala possui muitas camas com doentes. Dou um empurrão a um tipo por entender que ele não deve ultrapassar­‑me. Sou tratado à sua frente, e para além de me lavarem colocam­‑me uma matéria florescente no nariz, lábios e orelhas, que em contacto com a pele me dá uma outra força anímica. Fico numa cama limpa.

Depois vou para Entre Campos, dando uma volta por Alhandra, Vila Franca de Xira, Praia de Santa Maria de Sintra. Sempre a voar. Fiquei preso no elevador, no cruzamento da Avenida da República com a Avenida das Forças Armadas, com bastantes dificuldades em me mexer. Pedi a um indivíduo se me ajudava, ou a carregar no botão para o piso que eu queria, ou que me emprestasse o telemóvel dele para falar com a minha família. Nem resposta me deu. Olhou­‑me, com o cigarro entre os dedos.

Não consegui sair dali. Após verem­‑me levam-me para umas barra­cas (correspondentes às Barracas dos Tiros da Feira Popular – do lado da Avenida da República e do Teatro Vasco Santana).  Quem aparece, é o tal rapaz, um bom técnico de computador, fazendo peças de cerâmica e bolos. Coloca­‑me a tal matéria florescente no nariz, lábios e orelhas, que em contacto com a pele dá­‑me uma outra força, faz­‑me ter vida. Viver. Mas estou preso. Estou amarrado. Estou morto. Vejo mais uma vez a Sede da APOIAR na Avenida de Roma, 135 3.º, em corte, vista por cima.

Surge um médico preto a afirmar que afinal em relação à minha doença, a fibrose pulmonar (ao pó de diamante) e ao stress pós­‑traumático de guerra, estava pior, pelo que pensei em falar com o rapaz, o tal rapaz que faz bolos e peças de cerâmica. Poderia ajudar nalguma coisa. O meu pai gritava:
– Mataram o meu filho, quero o meu filho.

Volto à Guiné, e movimento­‑me pelo ar rapidamente, com a G3 em punho, matando mais guerrilheiros. O verde. Bem vermelho.  Depois vejo uma corneta. São os Correios localizados na Rua de São José, em Lisboa. Já havia lá trabalhado, ao serviço da DIALAP – Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes. Sou acompanhado também aí:
– Eu preciso de acompanhamento!

O porteiro que me dava a chave para eu trabalhar já lá não estava. Ali existia uma equipa grande e discutiam inclusive os vencimentos, considerando ganharem pouco. O psiquiatra preto que é guineense mandou vir a mulher da Guiné, e também a filha. No primeiro dia zangaram­‑se.  Pensava: – Como me podem ajudar, se eles não se entendem.

Ficou então estabelecido que a Rede Nacional de Apoio, esta apro­vada por Decreto Lei na Assembleia da República, por unanimidade, era eu Presidente da APOIAR. A Rede Nacional de Apoio funcionaria com 9 Psiquiatras de Angola, 9 da Guiné e 9 de Moçambique.

Volto novamente a Entre Campos, e ao entrar no prédio de gaveto da Avenida das Forças Armadas com a Avenida da República, vejo a Antonieta, Josefina, e outras personalidades históricas. Os rostos estão furados. As carnes carcomidas. Estão mortas.

Andavam a fazer publicidade a produtos alimentares num grande hipermercado. O local é o mesmo das barracas dos tiros:
– Ó freguês, vai um tirinho?

Nos locais onde sou acompanhado, principalmente pelo rapaz que uti­liza tal matéria florescente no nariz, lábios e orelhas. Aquela matéria aliviava as dores. Começam por me colocar mais pedaços, era matéria maleável e incandescente. Parece que andam a controlar a utilização daquela matéria que devia ter um valor incalculável. Fico mais aliviado das dores.

Fumo um cigarro, que apago logo, sendo visitado por um indivíduo que vem controlar aquele produto milagroso. Nada me diz. O rapaz, a partir de um determinado dia, começa a empurrar todo aquele produto para cima de mim. Com o fim de me comprometer? Ele continua a desconfiar. Fico com medo e grito:
– Ó da casa!

Alguém me tira daquela prisão que me atormenta e me corrói.  Faço outra visita ao “senhor x” que está debaixo do chapéu-de-sol. Num voo chego junto dele. Saboreia uma bebida. Falo­‑lhe. Não sei bem de quê, depois de eu próprio me lançar sobre a relva. Doía­‑me a barriga.

Vejo­‑me de repente perante o emigrante, tirando um cigarro do bolso, metendo­‑o de seguida na boca. Enchi o ambiente de fumo, até que chegam os meus irmãos José e o Ramiro. Via o meu pai, que chorava, enquanto a minha mãe me mirava com um olhar melancólico. À minha frente, está o meu filho, o Carlos, tem dois ou três anos. Vejo também o meu filho Alexandre, mas este com 27 anos.

Estou deitado na cama. Alguém se aproxima de mim. Quase cara na cara. Muito bonita a senhora. Afasta­‑se. Afasta­‑se. Afasta­‑se. Até desapa­recer por completo. A grande velocidade, velocidade da luz passa o Herman José, que para de seguida.
– Ando a pensar em clonar o Michael Jackson.
–  Muitos? Eu estou contra! – Respondo.

Herman José passa novamente a grande velocidade, dizendo estar tudo controlado, principalmente junto da fronteira. Mas o Michael Jackson não pode ser. Não é branco. Não é preto. Enfermeiros e Médicos olharam­‑me como se me acusassem. Será da utilização daquele produto que faz milagres?

Saí dali e fui a Vila Franca de Xira, depois até Alhandra, passando pela passagem de nível da estação, um pouco à frente está o Campo Grande, e logo à curva a Praia de Santa Maria de Sintra. Tudo em voo rasante. Vem Sintra. Passa o Herman.
– Há que clonar!

O meu pai reclama. A minha mãe olha­‑me com amor. O rapaz diz que me vai ajudar, porque entende de computadores, e vai juntar a História da minha Companhia, com uns bonecos parecidos com aqueles que a minha neta Raquel faz, e provar que eu estou vivo. Surgem uns indivíduos todos iguais. Carecas. Aquela careca típica, com cabeças parecendo cubos. Eram muitos, e militares. Clonagens?
Outros clonados, mais outros. O Herman passa a uma velocidade do Speed Gonzalez.

Não podem clonar o Michael Jackson. Somos brancos ou somos pretos. Vila Franca de Xira, Alhandra, Campo Grande, Praia de Santa Maria de Sintra. Voo fantástico.

Vejo algo como o paraíso encerrado em vidro. Entrei. Os soldados carecas de cabeça cúbica. Era tropa de elite e conheciam­‑me.

Ao fundo da sala uma porta estranha. Pequena. Quando chega a minha vez, e depois de uns indivíduos me analisarem, eu, que era dos primeiros, entro naquela porta carregada de uma luz bonita que não encandeava nem feria a vista. Uma luz mais pura e forte bate­‑me na vista. Atravessei um túnel, antes um corredor. Não estava a sonhar e vi um cenário que nunca imaginava existir: uma floresta multicolor; arco­‑íris; jardins que percorriam todo o espaço; plantas exóticas; relva e musgo; florestas; flores de uma beleza nunca vista; um rio de água límpida; cascatas; mares calmos bem azuis; um mar de areia cor de ouro.

Beleza celestial. Era um paraíso. Um paraíso difícil de identificar. Entro num corredor. Pode­‑se dizer ser um corredor de luz. Possui uma luz muito bela. Incandescente. Uma luz que para além de iluminar, corrompe o espírito e a alma.

Que beleza! Mundo que só poderia ser feito por um Deus maior, um ser superior. Num ápice afasto­‑me daquele mundo maior e regresso.  Estou livre. Vivo em liberdade. Afinal estou na enfermaria da UTIC, no Piso 6. Apalpo­‑me… Estou numa cama, do Hospital de Santa Maria. Um penso tapando o peito. As pernas estão igualmente ligadas.

Venho a saber mais tarde que é 27 de Março, e que fui operado ao coração (cardiopatia isquémica – quatro bypass), ficando em coma de seguida. Só me recordo de fazer o cateterismo. Estou repleto de tubos. Tenho hematomas nas costas da mão direita e a esquerda está cheia de tubos, devido ao soro.

Não votei. O acto eleitoral tinha sido a 17 de Março. Vou todos os dias ao Piso 8 fazer o penso. Todos me falam quando se cruzam comigo. Não os conheço. Um dia peço para visitar a sala onde estive em coma. O médico que diariamente me faz o penso é sósia daquele militar de cabeça cúbica.

Um dia ao transportarem­‑me na cadeira de rodas para fazer o penso no piso 8 colocaram­‑me o Processo Clínico nas mãos. Tentei ler para veri­ficar se estava lá algo sobre o tal produto, ou algo que me incriminasse. Não tinha óculos e fiquei sem saber aquilo que me intrigava: Tudo aquilo por que passara teria alguma verdade?

Pensava que tinha andado a tomar droga. Se não me prenderam é por­que não cometi qualquer crime. Vim a saber terem avisado a minha família que eu não escapava porque estava muito mal. Ia morrer.
Meu filho mais velho, o Carlos Pedro,  contou­‑me que no dia 19 de Março, dia do pai havia­‑me dito ao ouvido, quando eu estava todo entu­bado:
– Pai, o pai é forte e é capaz… É um combatente!

Acordei deste coma induzido, o meu filho Carlos Pedro perguntou:
– Pretende saber de algo para si importante, passado nestes dias? – Respondi com a pergunta:
– Quem ganhou as eleições, e pela vez não votei, e o Benfica tem algumas possibilidades de ser campeão?

Respondeu que tinha sido o PSD e coligado com o CDS-PP e que o Benfica ainda tinha hipóteses.
Tentei dizer, primeiro ao meu amigo Diogo, aquele mundo por onde viajara:
– Esquece!

Outros responderam do mesmo modo. Estou confuso, os Médicos falam em 10 dias, e para mim existe o espaço entre o 12 e o 27 de Março de 2002. Quanto aos Correios, existem na Rua de São José, tendo verificado há pouco, descendo do Marquês Pombal. Estão localizados do lado esquerdo. Curiosamente nunca lá passara. E os mortos vivos, figuras históricas?

O último nº da revista APOIAR,
96, nov/dez 2015, disponível aqui
em formato pdf
Não vi a minha neta neste período, mas ela que fez 3 anitos a 28 de Março, curiosamente disse a
primeira vez que me viu:
– É o avô. Tem dói­‑dói no coração por causa da porcaria do tabaco.

Dias depois da baixa o meu filho Alexandre foi comigo ver o filme de Pedro Almodôvar, “Fala com ela”. Foi ele que escolheu o filme.

O “senhor x”, o “rapaz, o mágico dos computadores”, o meu “voo sobre as terras”, a “raiva do meu pai”, a “acalmia da minha mãe”, “minha neta”, a “matéria florescente”, o “tipo que não ajuda quando fico preso no elevador”, “a razão dos médicos pretos”, a “clonagem”, o “regresso do meu filho mais velho à infância”, a “aproximação de uma figura feminina bonita”, “os vivos mortos”, “os três locais de tratamento”, a visão do “Paraíso”, o “corredor da morte”, e o “regresso à vida”.

Principalmente o regresso à guerra, são questões que necessitam de explicação. A verdade é que estive no “lado de lá”, à entrada do famoso túnel, o tal “corredor da morte”, ou “corredor da luz”.

Ou terei entrado mesmo no “corredor da morte”? A verdade é que depois saí daquele paraíso, para a vida … Voltei à guerra, que me corrompeu as entranhas, no “corredor da morte” e estive novamente no “corredor da morte”.

Recordei, com uma certa ansiedade, os anos passados. Logo na primeira oportunidade – com a mente vazia – escrevi este episódio.

Estivera reunido no dia 11 de Março reunido com o Major Mário Tomé, representando o Bloco de Esquerda. Pedira-lhe um copo de água.

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Nota do editor:

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15763: Blogoterapia (275): Paisagens que dão tanta beleza à vida, abulia e esquecimento (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 13 de Fevereiro de 2016:


PAISAGENS QUE DÃO TANTA BELEZA À VIDA, ABULIA E ESQUECIMENTO

Para combater o excesso de peso, e a ferrugem dos músculos e articulações, males provocados pela idade e  pelos excessos alimentares, muitas vezes na companhia de amigos e camaradas, faço muitos passeios sozinho, em marcha forçada, no Parque da Cidade que fica perto da minha casa. Habituado desde muito jovem na minha aldeia, às longas caminhadas que me levavam a todos os sítios da sua área agrícola e florestal, ultimamente  comecei a sentir saudades desses espaços mais  amplos e diversificados, com outra lonjura dos caminhos do Parque, que consigo percorrer numa hora.

Pelo prazer das caminhadas, dos espaços amplos e das paisagens que entram pelo olhar e dão tanta beleza à nossa vida, recordo-me também dos anos da Guiné e das caminhadas que fiz por lá, com melhores pernas do que actualmente.

Porto - Vista do Parque da Cidade

Nos primeiros meses em Buba, fiz grandes caminhadas com o pelotão, que já mostrava alguns sinais de cansaço para acompanhar o periquito, que eu era, pois eles já tinham sete meses de mato.
Sem nunca sair para fora da área que estava atribuída à companhia eu achava que devia ter conhecimento do terreno, para maior segurança psicológica, pela utilidade que poderia ter nalguma emergência, por outro lado era também levado pela curiosidade em explorar as paisagens de floresta e bolanha que me rodeavam. Nesses  longos "passeios" tivemos a sorte de nunca nos cruzarmos com o inimigo, e confesso que como amante da vida ao ar livre e da natureza, foi das melhores experiências que tive na Guiné.

Problemas e azares, de que já falei, houve depois, nos últimos meses da comissão, para lá dos ataques mensais ao aquartelamento, que o Nino Vieira parecia fazer para cumprir calendário, que nos assustavam mas  nunca magoavam ninguém. A norte da bolanha dos Passarinhos, que tínhamos que cruzar na estrada de terra batida, que nos ligava a Nhala, para fazer protecção às frequentes colunas de reabastecimento, havia  uma enorme bolanha, que já não recordo se seria a sua continuação ou outra. Nesta grande área de bolanha só estive uma vez, com toda a companhia e terá sido das poucas vezes que o capitão saiu. Gostei muito de conhecer esse enorme descampado pouco arborizado e rodeado de floresta, talvez por alguma nostalgia da parte planáltica da minha aldeia, onde se cultivava o trigo e o centeio.
A nossa imaginação transporta para toda a parte as cópias das gentes e das paisagens onde nascemos e fomos criados e gostamos de as encontrar projectadas noutros ambientes. Fui algumas vezes na direcção de Fulacunda, que sendo bastante distante de Buba, parecia-me que havia entre as duas tabancas, muita terra de ninguém que poderia ser controlada pelo PAIGC. Fulacunda que talvez por ter um nome sonante e quase mágico e pela vizinhança confinante com Buba ainda que um pouco distante, sempre foi para mim um mistério a  despertar a minha curiosidade.

O José Teixeira, que fez tropa em Buba, antes de mim, e é um grande andarilho, que já voltou algumas vezes à Guiné, falou-me duma povoação nessa direcção, não muito longe de Buba, controlada pelo inimigo, segundo testemunho que recolheu junto de habitantes dela. Nunca soube ou não me apercebi da existência dessa tabanca. Saindo de Buba, próximo da pista de aviação, havia um troço de estrada abandonado, onde já crescia algum mato, que segundo parece não levava a parte nenhuma, que eu nunca percorri em toda a sua extensão até por ser um caminho muito exposto. Terá sido uma tentativa frustrada de abrir uma estrada, no tempo de companhias anteriores, na direcção de Aldeia Formosa.
Na direcção de Empada, a sudoeste, só me recordo de ter ido duas vezes com dois pelotões, numa espécie de patrulhamento sem outro objectivo definido, que não fosse observar se haveria vestígios da passagem ou actividade do inimigo, que por vezes nos atacava dessa zona, ainda perto do quartel, do outro lado do Rio Grande Buba.

Paisagem da Guiné - Pôr-do-sol no Pelundo

Depois de Buba, rumei para Mansabá, recomendado, por erro de casting, como bom combatente, como me chegou a dar a entender o Capitão Abreu, Comandante do COP, e para aborrecimento do capitão miliciano da companhia, que chegou uns dias depois de mim, Economista na vida civil e que tinha tanto jeito como eu para a vida militar.  Bom homem esse capitão, pois se ele fosse rigoroso na aplicação do RDM, eu provavelmente teria cumprido mais alguns meses de Guiné.
Mal recordo a actividade operacional. Lembro-me de fazermos uma operação, no sentido contrário à mata do Morés, não recordo qual o objectivo. Sei que andei muito tempo a pé por uma mata bastante densa e não me recordo porque motivo cheguei a andar de helicóptero, talvez para ver a paisagem.
Foi nessa ou noutra operação, que de manhã cedo a companhia estava toda formada na parada à minha espera, e o capitão danado pela minha demora, e eu a chegar  impassível e abstracto a olhar para ele.
Já escrevi algures no blogue que por muita pena minha nunca pude entrar na mata do Morés, por proibição conjunta do PAIGC e das autoridades militares, já que nessas operações somente eram utilizadas tropas especiais. Mas eu gostaria tanto de conhecer essa grande extensão de floresta, de preferência sem tiros nem bombas.

Pelo prazer que sempre tive em conhecer os campos e florestas da Guiné, se revelam as minhas origens camponesas. Se pudesse tinha dado a volta a toda a Guiné a pé.

Por causas várias que talvez não consiga analisar objectivamente, ou porque isso não me agrade agora, reconheço que nos meses passados em Mansabà, já estava um pouco "apanhado pelo clima" e o meu comportamento reflectiu bastante isso, confirmado recentemente pela minha irmã, mais próxima da minha idade, que há dias me falou do meu regresso a casa.

As nossas irmãs, essas jovens que desde cedo desenvolviam em relação a nós, uma mistura de sentimentos fraternais e maternais e alguma admiração e curiosidade pelas  nossas diferenças físicas e psicológicas.
As nossas irmãs, que nesses anos de aflição das famílias, acrescentavam tanto carinho e afectividade à que nos era dedicada pelos pais e que, segundo ela, eu tratei com tanta indiferença quando regressei. Nunca demos muito realce ao amor e sofrimento dessas jovens como se elas fossem obrigadas a isso por dever familiar. Tantos anos passaram e só agora esta irmã me fez esta "queixa", que surgiu somente, por acaso, no decorrer de uma conversa sobre o passado comum.

Outros factos que não sabia e outros que esqueci, por exemplo que a minha mãe chorava muito porque eu não dava notícias, e ela culpava as filhas por me escreverem pouco quando isso até não seria verdade. Note-se que a nossa mãe tinha a quarta classe mas bastante ocupada nas múltiplas tarefas que tinha que fazer no lar, cozinhar, costurar, chulear, tecer e outras, entre as quais ir na burra à horta, uma grande paixão para além dos filhos, encher as alforjes com as diferentes qualidades de hortaliça, atribuía a responsabilidade da escrita dos aerogramas às filhas.

Talvez esse estado de espírito, de que falei, em que se misturava abulia e esquecimento tenha varrido da minha memória muito do que se passou e vivi em Mansabá. Algumas recordações conservo e já aqui falei delas, sobretudo a cordialidade e camaradagem que senti da parte de todos.

Durante muitos anos, como muitos camaradas, voltei as costas à Guiné, quis esquecê-la e riscar da minha vida os dois anos que por lá passei. Há três anos, com a descoberta do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e com a premência causada pelos dias intermináveis dos primeiros meses da reforma e o avançar da idade, comecei a sentir mais a necessidade de fazer um balanço da minha vida pelo que tentei explicar e integrar esses dois anos na corrente e sucessão dos outros de forma a reconciliar-me com a memória dos tempos de brasa da juventude.

Um abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15737: Blogoterapia (274): Portas estreitas da vida onde nem sempre se consegue passar (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CART 3493, Mansambo, Fá Mandinga, Bissau, 1972/74)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15737: Blogoterapia (274): Portas estreitas da vida onde nem sempre se consegue passar (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CART 3493, Mansambo, Fá Mandinga, Bissau, 1972/74)

Foto tirada durante a quinta sessão de quimioterapia no IPO de Coimbra



1. Em mensagem de ontem, dia 10 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) enviou-nos este texto, a que deu o título de:


Portas estreitas da vida onde nem sempre se consegue passar

Ao decidir escrever este poste, reconheço que nada tem a ver com a guerra que, uns mais de que outros, todos nós vivemos na então província da Guiné.

O que me levou a escrever sobre esta doença que algumas pessoas não gostam sequer de ouvir falar, a esses peço desculpa, foi saber que muitos daqueles que por lá passaram já viveram e outros estarão nesta altura a viver uma situação como aquela que eu tenho vivido há já mais de uma dezena de anos.
Conheço pessoas que fazem tudo que estiver ao seu alcance para que ninguém saiba que são doentes oncológicos, tal comportamento, em meu entender, é um autêntico disparate e revelador de uma ignorância lamentável. Pois não só os priva do apoio que alguém que já viveu a mesma situação lhes possa dar, como,á com o seu silêncio, negam ajuda a quem dela possa necessitar.

Então como encarar a vida quando confrontados com tal situação?

Primeiro “descer à terra” e pensar que apesar de não parecer, estamos a ser confrontados com algo cada vez mais normal. Por vezes somos levados a perguntar, mas porquê a mim? Pergunta que só tem razão de ser pelo desnorte que naquele momento estamos a viver. Quantos, antes de nós não passaram pelo mesmo? Uns mais velhos, outros mais novos, algumas ainda crianças.

A minha doença foi diagnosticada nos últimos meses do ano de dois mil e quatro, seguiram-se cinco meses de espera e a cirurgia em fevereiro do ano seguinte, hoje talvez esperasse menos tempo, passados cerca de dois meses, fui sujeito a trinta e cinco tratamentos de radioterapia, reagi sempre bem, os efeitos secundários foram quase inexistentes. Ao longo destes anos continuei sempre a ser seguido no IPO de Coimbra.

No início do ano passado os valores tumorais estavam demasiado altos, foi então que foi decidido que tinha de fazer quimioterapia o que aconteceu a partir do início do mês de abril, seguiram-se dez tratamentos com intervalos de três semanas. No início fiquei um pouco assustado atendendo ao que ouvia falar acerca dos possíveis efeitos secundários, no primeiro dia fui acompanhado por uma pessoa de família ao tratamento, a viagem é de aproximadamente cem quilómetros de minha casa até ao hospital, nas restantes nove sessões a que fui sujeito entendi que não era necessário ir alguém comigo.

Tudo foi menos complicado que eu imaginava, o mais aborrecido era a deslocação, mas também se tornou fácil a partir do momento em que decidi utilizar o transporte facultado pelo hospital em viaturas dos bombeiros, permitiu-me assim ultrapassar mais uma serie de preocupações: se chegava a horas, se estaria em condições para conduzir, onde arrumar o carro o que não é nada fácil naquele local e, saber que mesmo aqueles que terminam o tratamento mais tarde há sempre alguém que os espera para regressar a casa.

Terminadas as dez sessões, fim do tratamento, senti um alívio enorme próprio de quem passou por mais uma porta estreita da vida, daquelas que nunca se sabe se conseguimos passar, os efeitos secundários comparando com o que acontece a algumas pessoas foram poucos o que me permitiu continuar a fazer uma vida quase normal, com exceção do dia do tratamento, todos os outros continuei a fazer a caminhada como antes fazia, de aproximadamente uma hora.

Para que tudo decorresse tão bem há que realçar o trabalho desenvolvido por um grupo de pessoas que tudo faz para que os doentes se sintam o melhor possível, desde o pessoal médico, as enfermeiras/os, os técnicos, pessoal administrativo, e outros, não esquecendo os voluntários sempre prontos a ajudar sem receber nada em troca.

Sem esse conjunto de pessoas, nada podia ser feito, mas o doente também pode e deve ajudar, e a forma de o poder fazer é pensar que já que ali está, apenas terá a ganhar com isso, seguir rigorosamente os conselhos que lhe são dados, muito importante também numa fase tão confusa da vida é saber distinguir as pessoas que merece a pena escutar. As outras o melhor será afastar-se delas.

Normalmente ouve-se falar sobre esta doença, se alguns sabem de que falam e o que dizem, outros há que prestariam uma grande ajuda aos doentes se estivessem calados. Cada caso é um caso, o meu tratamento tinha uma duração de aproximadamente duas horas, outros demorava o dobro e alguns ainda mais, os efeitos secundários podem ser muito diferentes de pessoa para pessoa, pois o tratamento administrado não é igual para todos e a reação de cada um também pode ser diferente.

Havia muito a contar sobre o tempo que tenho vivido depois de me ter sido diagnosticada a doença e como tenho procurado minimizar as situações menos agradáveis que sempre acontecem, mas ficará para uma próxima… por hoje termino dizendo aos camaradas que possam estar a viver uma situação igual ou parecida com a que eu tenho vivido ao longo destes anos, que devemos pensar um dia de cada vez, amanhã logo se verá, a coragem, a esperança e, já agora a fé, devem de estar sempre connosco pois são uma preciosa ajuda.

A todos um abraço

Hoje assino com o nome completo,
António Eduardo Jerónimo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15501: Blogoterapia (273): Notícias do nosso camarada António Paiva, ex-Soldado Condutor Auto do HM 241 (Carlos Vinhal)