Mostrar mensagens com a etiqueta morte. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta morte. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24467: Direito à indignação (16): Senhores da RTP, retirem dos arquivos aquelas provocatórias, hipócritas e desajustadas imagens da visita de 'Nino' Vieira ao marechal António de Spínola, no Hospital Militar Principal (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639, Binar, Bula e Capunga, 1969/71)


RTP Arquivos : Vídeo (1' 28'') > 1996-08-13 > Evocação da visita de Nino Vieira a António de Spínola > RTP 1 > Telejornal > 'Nino' Vieira, Presidente da Guiné Bissau, visita o Marechal Spínola, Primeiro Presidente da República pós-25 de Abril, internado no Hospital Militar Prinicipal. 'Nino' Vieira na qualidade de Presidente da Guiné-Bissau estava a fazer uma visita de Estado a Portugal (que decorreu entre 1 a 4 de julho de 1996. Spíbola, já muito debilitado, viria a morrer, em Lisboa, um mês depois, em 13 de agosto de 1996, aos 86 anos.

Resumo analítico do vídeo: "Imagens de arquivo; Spínola, entubado, a conversar com Nino Vieira e a dar-lhe a mão; imagens a preto e branco, militares a consultar um mapa; Spínola a caminhar no mato; Spínola, vestido à civil, a visitar aldeias guineenses na qualidade de Governador da Guiné; 00H19M41, Nino Vieira conta como a sua mãe admirava Spínola; Spínola e Nino Vieira a dar as mãos."

Imagem, legenda e resumo analítico: RTP Arquivos 

Fotograma do vídeo (com a devida vénia...) | Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Mensagem de António Ramalho  [natural da Vila de Fernando, Elvas, a viver em Vila Franca de Xira, foi fur mil at da CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), membro da Tabanca Grande, com o nº 757: tem 36 referências no nosso blogue]

Data - sábado, 8/07/2023, 15:53 

Assunto - Programa - Sociedade Civil, RTP2,  semana de 3 a 7/6/2023

Exmo. Senhor Luís Castro.

Apresento-lhe os meus mais respeitosos cumprimentos.

Atento aos seus programas, elegendo aqueles que me parecem ter interesse para a minha pessoa, por força das circunstâncias elegi os da semana que termina hoje, sobre as figuras em apreço: António de Spínola, Álvaro Cunhal, Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral.

António de Spínola: retirem dos arquivos da RTP aquelas provocatórias, hipócritas e desajustadas imagens da visita de 'Nino' Vieira a Spínola, no HMP (Hospital Militar Principal), destruam-nas ou no mínimo retirem-lhe o áudio!

Respeitem a memória das famílias daqueles que tombaram às suas mãos, onde inclúo e não esqueço os nossos queridos três majores e um alferes, nas célebres tréguas fingidas, em Abril de 1970.

Veja-se o triste final de Nino Vieira, assassinado pelos seus...

Também consta dos vossos arquivos, o célebre Capitão Peralta, um cubano, ferido e capturado numa operação que visava capturar 'Nino' Vieira, em 1969, fazendo a mesma farsa, procedam da mesma maneira!

Faltou um apontamento da Operação Mar Verde, em 1970, onde foram libertados alguns camaradas das prisões, na Guiné Conacri, de Sékou Touré.

Sobre Sá Carneiro e seus acompanhantes, continuo a crer que se tratou de um acidente, pela descrição feita por um investigador, em quem acredito: arranjar à pressa como co-piloto um Controlador Aéreo que estava de folga, num avião que aguardava reparação, não me parece uma solução acertada, muito menos segura. Além do famoso Cozido que todos apreciamos, mais uma solução à Portuguesa, esta com sabor bastante amargo!

Passei por uma situação parecida, na Guiné, mais propriamente em Teixeira Pinto, que se ajusta e me ajuda a acreditar na tese de acidente.

Às outras personalidades não me refiro por só as conhecer pelo seu percurso político e por aquilo que os historiadores nos relatam, tendo simpatia e respeito por todos, pelo seu passado.
Renovo mais uma vez os meus respeitosos cumprimentos.

António Ramalho
__________

terça-feira, 23 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24337: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI: 16 de abril de 1971, um dia trágico, a morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929 - Tite, 1971)


Guiné > s/l > s/ d > O tenente graduado 'comando'  João Bacar Djaló,  rodeado de pessoal da 1ª CCmds Africanos. Entre outros, é possível identificar o furriel “Dico” Andrade, o 1º da esquerda, o furriel Orlando da Silva, ajoelhado, no meio e o 1º da direita, em cima, o soldado Francisco Gomes Nanque, que esteve preso na Libéria após a operação a Conacri. Foto de Amadu Djaló, publicado na pág. 190 do seu livro.



Lisboa > 1970 > O cap graduado 'comando'.  cmdt da 1ª CCmds Africanos João Bacar Jaló como o nosso veteraníssimo João Sacôto (ex-alf mil, CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), hoje comandante da TAP reformado, membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011. 

O João Bacar Jaló veio a Lisboa, nessa altura, no 10 de Junho, receber a Torre e Espada. Nasceu em Cacine, circunscrição de Catió, região de Tombali, no sul da Guiné, em  1929, e morreu em 1971, no HM 241, em Bissau, por ferimentos em combate. Era alferes de 2ª linha em 6 de junho de 1965. (*)

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Quínara > Carta de Tite (1955) > Escala 1/50 mil  > Posição relativa de Tite e, a nordetse, Jufá, a zona onde o João Bacar Jalõ perdeu a vida, em 16 de abril de 1971. Infografia publicada no livro, pág. 193.


Guiné > Região de Quínara > Tite > 1971 > O soldado Abdulai Djaló Cula, da 1ª CCmds, que contou aqui, no livro do Amadu Djalõ, as circunstâncias em que morreu ao seu lado o seu comandante. Foto publicada no livro, pág. 191.


1. C
ontinuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital,  do seu livro 
"Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote,  facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.

[Foto à esquerda > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) ]

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri,  começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii)  depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido,  por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757; 

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló; 

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló  (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,


 

Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI:

A morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929- Jufá, Tite, 1971) 

No dia seguinte, de manhã, apanhei o transporte para Brá. Quando lá cheguei, estava o capitão Miquelina Simões a proceder às identificações dos instruendos, que iam frequentar o curso para a 2ª Companhia de Comandos, vi o Furriel Vasconcelos.

 Vamos a isso depressa, pá!     gritei-lhe,  a brincar.

–  Amadu, ouvi agora uma coisa, não sei se é verdade.

–  O que foi que ouviste?

–  Ouvi dizer que o João Bacar morreu!

Corri para o gabinete do capitão e vi o Sisseco.

–   Sim, é verdade, o capitão morreu!

Sem demora corremos para o hospital. Quando chegámos, estava a entrar o general Spínola. Fomos atrás dele, até ao local onde repousava o corpo do nosso capitão João Bacar Jaló. Foi o próprio general que levantou o lençol que cobria o cadáver. As lágrimas romperam pelos nossos olhos.

Terminou, neste dia, 16 de Abril de 1971, a história do Capitão João Bacar Jaló[1].

Dirigi-me para a casa do capitão João Bacar e fiquei à espera do irmão dele, porque, entre nós, as famílias não podem ficar sem um homem em casa. E quando um dos nossos morre, é costume cada um de nós dar qualquer coisa, mesmo que a pessoa morta seja rica e ainda mais se o falecido tiver sido em vida boa pessoa. Então, cada um estava a dar dentro das suas possibilidades e foi nessa altura que entrou o tal velhote, de que já falei antes, o Mamadu Candé 
[o adivinho] . Vi-o pôr uma nota de 100 escudos no cesto. Ficámos, uns momentos, a olhar um para o outro.

Mais tarde, perguntei-lhe por que razão tinha dado 100 escudos.

–   Eu não queria o dinheiro, quando o capitão mo deu. Não aceitou o meu conselho e não é legítimo eu ficar com o dinheiro. Tive que o devolver.

Fiquei assim a compreender por que é o velhote não a queria, quando o João Bacar lhe deu a nota.

O Soldado Abdulai Djaló Cula[2], filho do Padre[3] Central de Bissau, conta que,  ao amanhecer daquele dia[4], o Capitão João Bacar Jaló lhe disse que ia morrer nesse dia. Abdulai chamou o Alferes Justo[5] e contou-lhe a conversa do capitão.

–    Como?  
  perguntou o alferes.

–  Sonhei com a minha morte      respondeu o capitão.

Estávamos juntos, eu, o Abdulai Djaló Cula, o Alferes Justo e o Furriel Braima Bá (Baldé). Não tinha ainda acabado de contar o sonho, vimos duas mulheres acompanhadas por uma criança. Traziam cestos com arroz à cabeça, que iam vender em Tite. Parámo-las e o capitão perguntou-lhes:

–  
Onde está o PAIGC?

–  
Eles dormiram aqui perto, devem estar ali em frente.

Tínhamos passado a noite, nós e eles, PAIGC, bem perto uns dos outros, talvez a pouco mais de duzentos metros. Nós estávamos muito desconfiados que eles andavam por ali e eles tinham a certeza onde nós estávamos. Por isso, durante a noite, tanto nós como eles evitámos fazer ruídos.

João Bacar deixou as mulheres irem à sua vida e decidiu preparar o ataque à zona onde desconfiávamos que eles estivessem. Aproximámo-nos com muito cuidado, chegámos ao local e vimos folhas estendidas no chão, que devem ter servido de camas. Vimos um resto de cigarro no chã, ainda a deitar fumo.

–  
Justo, procura nessa zona      ordenou o capitão.

O grupo do alferes, de cerca de vinte homens, começou a movimentar-se até desaparecerem da nossa vista. Soube, mais tarde, que, depois de percorrerem a zona, o Justo decidiu emboscar-se relativamente perto de nós.

João Bacar disse a um dos furriéis que lançasse sete granadas de morteiro 60 em cima da área, onde julgava estar o grupo do PAIGC. Mas o furriel só lançou uma. Vendo que era muito lento, o capitão preparou ele próprio sete granadas de morteiro e começou rapidamente a lançá-las.

Depois, montada a segurança, João Bacar deslocou-se à tabanca com a intenção de avisar a população que devia sair das casas e fugir para a mata.

Entretanto o grupo do PAIGC foi-se aproximando de nós, sem nós nos percebermos. O capitão pediu granadas de mão defensivas a Bailo Jau, este não tinha, foi o Fassene Sama que lhas passou para a mão. 

João Bacar tinha acabado de tirar a cavilha de uma quando o PAIGC abriu fogo sobre as nossas posições. Ouviu-se um grito do Furriel Bacar Sissé, tinha sido atingido por estilhaços de uma granada de RPG, que desfizeram um baga-baga. O capitão e eu corremos para o ferido. Vi o capitão baixar-se e, com a mão esquerda, apanhar a arma do Bacar, enquanto mantinha a granada descavilhada apertada na mão direita.

O capitão muito raramente andava com G-3, quase sempre levava a pistola e duas granadas de mão defensivas. Passou por mim, tinha dado talvez dois ou três passos e avistámos o disparo do RPG. Eu estava bem abrigado, protegido por uma raiz de uma árvore. João Bacar ajoelhou-se instantaneamente, o rebentamento deu-se atrás de nós e depois mais rebentamentos, tudo muito rápido.

 O capitão, que estava ajoelhado, a mão esquerda ocupada com a G-3, foi atingido no braço direito cuja mão segurava a granada sem cavilha. Perdeu força, não deve ter conseguido lançá-la e ela rebentou.

Saí da grande raiz que me servia de abrigo, a cerca de cinco metros, e comecei a puxar pelo capitão. Ainda estava vivo. Arrastei-o para uma zona mais segura e ajoelhei-me. A troca de tiros e de granadas prosseguia. Pus a cabeça do capitão em cima das minhas pernas.

- Uai, Nene[6]!

A granada tinha-lhe arrancado a perna direita, a mão direita e esfacelou-lhe a parte direita do tronco. Estava a morrer,  o meu Capitão João Bacar Djaló.

O Furriel Lalo Bailo gritou em mandinga:

- Uai ‘nte Báma, capitom fata[7]!

O Inimigo sabia o que estava a acontecer e intensificou ainda mais o fogo, enquanto o sentíamos mais perto. Era um grupo numeroso e chegámos a pensar que nos queriam apanhar à mão. Aos gritos chamei o Furriel Vicente Pedro da Silva[8]:

–  
Meu furriel, querem apanhar-nos à mão!

A morte do nosso comandante estava a tocar-nos muito, o nosso moral estava em baixo e o grupo do PAIGC cheirava isso.

–  
Calma!    ouviu-se a voz do Furriel Vicente.

Agarrou-me e ao Vicente Malefo e a mais dois ou três, lançou uma granada de mão defensiva e gritou bem alto:

–  
Comandos ao ataque! Cada um dispara dois tiros seguidos de cada vez, tum-tum! Vamos apanhá-los à mão, agora não façam mais tiros!

Com os gritos do nosso furriel começámos a avançar e eles recuaram. Depois, na acalmia que se seguiu, pedimos as evacuações, enquanto nos movimentávamos com o corpo do nosso comandante e carregando os feridos mais graves, o Alferes Justo, que se tinha ferido no joelho ao servir-se dele para apoiar o morteiro, e os Furriéis Bacar Sissé e Dabho.

Quando atravessávamos a bolanha ouvimos o silvo de um Fiat, picou sobre nós, largou uma bomba que só estremeceu tudo à volta e levantou outra vez. O Alferes Justo pegou no banana, o AVP-1[9], e conseguiu entrar em contacto com a esquadrilha. Que éramos nós e que precisávamos de um heli para evacuar os nossos feridos.

Momentos depois, talvez antes ainda das nove horas, fomos sobrevoados por dois 
[helis] , um armado[10] e outro que pousou com uma enfermeira que os transportou para Bissau, para o Hospital Militar.

Quando regressávamos a Tite,  vinha ao nosso encontro uma unidade e, em coluna auto,  fomos transportados para o Inchudé e daqui seguimos numa lancha para Bissau.

Eu vinha com o camuflado empastelado do sangue do meu capitão. No cais, num ambiente de grande tristeza, aguardavam-nos as nossas famílias e muitos amigos nossos.

Três ou quatro dias depois, já não me lembro bem, foi o funeral do João Bacar, que foi uma manifestação que Bissau nunca tinha visto.

Acaba aqui a história dessa grande figura humana, do grande fundador das milícias no sul, na sua terra de Catió. Quando lá estive com os “Fantasmas”, em 1965, com o Alferes Saraiva para operações no Como e em Cufar, o João Bacar escolheu milícias da sua confiança, para aprenderem a ser operacionais. 

O capitão entrou em dezenas de batalhas até acabar a sua vida numa simples patrulha de combate em Jufá, em circunstâncias um pouco estranhas, no dia negro de 16 de Abril de 1971.



Lisboa > Terreiro do Paço > 10 de junho de 1970 > "Dia da Raça" > Ao centro, o Capitão Graduado 'Comando' João Bacar Djaló, comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, condecorado com a "Torre e Espada", e que tive oportunidade de cumprimentar em Fá Mandinga, onde, na altura, estava sediada aquela unidade de elite (participou na Op Mar Verde, a invasão anfíbia de Conacri e numerosíssimas outras operações do mais elevado risco; seria morto em combate, meio ano depois,  de ser condecorado com a “Torre e Espada”). 

A segunda figura, da esquerda para a direita é o capitão-tenente Alpoim Calvão, cérebro da Op Mar Verde, que cheguei a ver, mas não conheci, nem de perto nem de longe, nos “paços” do “Comando-Chefe”, na Amura. 

Os restantes elementos da primeira fila, todos eles igualmente condecorados com a “Torre e Espada”, são o furriel Cherno Sissé (Guiné), e, salvo erro, o coronel Hélio Felgas e o ten mil inf José Augusto Ribeiro, cuja província/colónia onde prestavam serviço desconheço.

Fonte: Revista "Guerrilha", junho de 1970 (Publicação editada pelo MNF - Movimento Nacional Feminino. Edição e legendagem:  Mário Migueis da Silva (ex-fur mil rec inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72) (***)


Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério português > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o guineense Capitão Comando João Bacar Jaló, natural da Guiné, morto em combate em 16 de Abril de 1971.

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
_______________________

Notas do autor ou editor literário:

[1] Nota do editor: João Bacar Jaló nasceu em 2 de outubro de 1929, em Cacine. Foi incorporado no Exército, para o qual se voluntariou, no dia 1 de março de 1949. Em junho de 1951 encontrava-se ao serviço da 2ª CCaç, em Bolama, quando terminou o seu primeiro período militar. Nesse mesmo ano começou a trabalhar na Administração Civil, em Bissau. Em 1952 no Palácio do Governo e até 1958, sempre como funcionário da Administração Civil, em Bissalanca, Antula, Prábis e Safim.

 Entre 1958 e 1961 foi fiscal de fronteira no sul e em seguida desempenhou o cargo de comandante de ronda em Catió, que acumulou com as funções de oficial de diligências do Julgado Municipal. 

Com o início da actividade militar do PAIGG, João Bacar, já com 33 anos, alistou-se novamente, como comandante de Caçadores Naturais da Guiné. Foi graduado em alferes de 2ª linha em 8 de junho de 1965.

Depois foi nomeado comandante da Companhia de Milícias nº. 13 e um ano depois foi promovido a tenente. Depois de ter frequentado um curso de oficiais, João Bacar foi graduado em capitão e passou a comandar a 1ª CCmds Africanos.

 Ao longo da sua vida militar recebeu numerosos louvores. Foram-lhe atribuídas duas Cruzes de Guerra em 1964 e 1965 e era, desde 30Jun1970, Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.

[2] O Soldado Abdulai Djaló Cula é natural de Bissau. Pertencia à equipa do Furriel Bacar Sissé que fazia parte do grupo de cerca de 40 homens que foram a Jufa, comandado pelo Capitão João Bacar Jaló.

[3] Dignitário Muçulmano.

[4] Havia a informação que um grupo do PAIGC ia passar a noite de 15 para 16 de abril de 1971 a uma tabanca de balantas, em Jufá, na zona de Tite. O João Bacar estava com um grupo emboscado junto à tabanca. Durante a noite, os cães da tabanca não pararam de ladrar. Quando amanheceu, João Bacar disse: 

“Nós vamos ali à tabanca, conversamos com a população, mas não passámos dali. Porque num sono muito rápido que tive, sonhei que o PAIGC me prendera. Amarraram-me, meteram-me num jipe, e eu consegui saltar do jipe em andamento. No chão, com as mãos e os pés atados não podia correr. O jipe fez marcha atrás, voltaram a apanhar-me e meteram-me outra vez no carro. Quando o carro voltou a andar, seguraram-me, para não me deixarem mexer. O jipe arrancou e acordei. "

Este sonho foi contado pelo João Bacar ao Furriel Braima Bá e ao Soldado Abdulai Djaló Cula, na manhã do dia em que morreu.

[5] Nota do editor: Justo Nascimento.

[6] - Ai, minha Mãe!

[7] - Ai, minha mãe, o meu capitão morreu!

[8] O Vicente Pedro da Silva foi mais tarde promovido a alferes. Talvez devido ás precárias condições em que vivia e cansado da incompreensão que sentia por não ver reconhecida a sua condição de português nascido na Guiné e antigo combatente das Forças Armadas Portuguesas suicidou-se em Lisboa, por volta de 2004.

[9] Nota do editor: Transmissor-receptor.

[10] Nota do editor: Sud Aviation SA-3160 “Alouette III”, c/helicanhão de 20mm, conhecido por “Lobo Mau”.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses rectos com notas /  Subtítulo / Negritos: LG]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


Vd. ainda poste de 2 de maio de 2009 > Guiné 63/74 – P4275: Tugas - Quem é quem (4): João Bacar Jaló (1929-1971) (Magalhães Ribeiro)

(***) Vd. poste de 30 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20021: Recortes de imprensa (103): O 10 de Junho de 1970 na Revista Guerrilha, edição do Movimento Nacional Feminino, dirigida por Cecília Supico Pinto (1) (Mário Migueis da Silva)

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24214: Manuscrito(s) (Luís Graça) (222): Circadiana, a vida




















Quinta de Candoz >  9 de Abril  de 2023 > Páscoa: a vida que sucede à morte.

Fotos (e texto): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 

Circadiana, a vida

por Luís Graça

Circadiana,  a vida!...
Depois do solstício do inverno, virá o solstício do verão
e aos dias suceder-se-ão as semanas, os meses, os anos.

Circadiana, a vida!...
Pior que o suplício do inferno
é o pavor do eterno retorno.
É a eternidade, dizem-te,
que nos move ou demove ou comove, 
a eternidade ou a sua cruel ilusão,
os seus sucedâneos terrenos, efémeros, 
a fama, a honra, a glória,
 a vaidade, o ouro, os diamantes,
o elixir da juventude, a beleza,
o amor até que a morte nos separe,
o poder, orgástico, de mandar matar e morrer
talvez a paternidade e o egoísmo genético.

Circadiana,  a vida!...
Afinal todos os anos é Natal
e todos os anos por aqui  passa(va) o compasso pascal.
Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou,
a vida triunfa sobre a morte.

Circadiana,  a vida!...
Todos os anos, com sorte…
Exceto quando deixaste a tua terra e foste para a guerra:
perdeste a noção do dia e da noite,
dos dias, das semanas, dos meses, e das estações,
que eram duas, a do tempo seco e a das chuvas.

Circadiana, a vida!...
Disseram-te que o velho general
esteve à beira da tua cama no hospital:
- É uma subida honra, para qualquer mortal,
a sua visita, meu general ! –
terás tu dito mas, por favor, e por pudor, não ponhas isso
no teu “curriculum vitae”.
Esquece a Guiné, camarada, meu herói,
e os pauzinhos que gravaste na parede da caserna,
na contagem decrescente para o fim da tua (co)missão.

Circadiana,  a vida!...
Quando eras jovem, tinhas um calendário perpétuo, 
na tua mesinha de cabeceira,
na secreta esperança de que os dias não tivessem 24 horas,
não tivessem noite, não tivessem fim.
Depois, deixaste de te fiar nas leis imutáveis da natureza
e, todos as manhãs, tomavas o lugar de Sísifo
e pegavas na tua pedra de granito,
montanha acima, montanha abaixo!

Circadiana, a vida!...
E, se Deus quiser, a primavera há de chegar, 
e c0m ela as cerejeiras em flor,
e os melros que vão pôr os seus ovos 
nos arbustos de alecrim no caminho para a leira cimeira,
e as andorinhas que irão reconstruir o seu ninho 
na varanda da casa de cima.

E trazem histórias de coragem,
as tuas andorinhas de torna-viagem,
vêm do norte de África, quiçá da Guiné,
e não precisam de passaporte,
nem de GPS, nem de código postal, nem de carimbo das alfândegas.
São heroínas, sobreviveram a mais um ano,
fogem da guerra, e das alterações climáticas,
sem o aval nem a ajuda do alto comissário para os refugiados,
ou a benção dos imãs 
e dos demais representantes de Deus na terra.

Circadiana,  a vida!...
E todos os anos fazes anos
e haverá sempre um bolo de aniversário
e uma vela para soprares.
E oxalá nunca te falte à mesa
quem te cante os parabéns a você.
Mas o que é que tu sopras, afinal,
meu pobre feliz aniversariante ?
Sopras a vida, sopras a vela da vida, de fio a pavio!

Circadiana,  a vida!...
Até as almas têm estados, dizem-te, circadianos,
estados de alma, bipolares,
ora de euforia ora de depressão,
socalco acima, socalco abaixo...
Afinal, tão certo como dois e dois serem quatro,
à noite sucede o dia, 
e não há lua sem sol, nem maré alta sem maré baixa!

... Nem a morte sem  a vida.
Mas chorarás sempre  os teus mortos, 
até que as tuas lágrimas te sequem.

Circadiana, a vida, meu amor!...
A vida é pura repetição,
é o teu coração que bate forte, até à exaustão,
até a gente queimar a vela, de fio a pavio.

Circadiana,  a vida!
Carpe diem, meu amigo:
ora sabe a muito, ora sabe a pouco,
... a vida, sempre, armadilhada,
presa por um fio de tropeçar.

Última versão, Candoz, 9 de abril de 2023
___________

sexta-feira, 17 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"


Ilustração: © Joana Graça (2008)


Sintra > Azenhas do Mar > 31 de dezembro de 2018 > O último pôr do sol do ano...


(...) Um gajo não é um herói, muito menos um deus.
Afinal, és melhor, camarada: 
és um homem, 
que tens de saber dar corda  aos sapatos e ao coração, 
e que és capaz de parar um segundo frente ao pôr do sol,
e tirar um autorretrato instantâneo
e, como um bom franciscano, 
dizer ao deus-sol:
-Até amanhã, camarada, amigo, irmão! (...) (*)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição : Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]


Graça, L.  - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa

Parte I : 'Muita Saúde, Pouca Vida, porque Deus não Dá Tudo' (**)

Às vezes quando a doença e a morte me batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública...

Desde ontem no Norte, eu e a Alice, aguardamos o desfecho fatal de uma doença crónica degenerativa e irreversível de que é vítima, desde há 4 anos, alguém que muito amamos.    A nossa Nitas não merecia isto, dizemos com raiva e impotência, mesmo sabendo que ela tem recebido "os melhores cuidados do mundo", no Hospital de São João. 

Para mais tratando-se de uma doença que poderia ter sido evitada, ou prevenida, sendo muito provavelmente de origem profissional ou relacionada com o trabalho (exposição continuada ao benzeno, conhecida substância cancerígena,  no laboratório de química orgânica onde começou a trabalhar no início dos anos 70), se nessa altura, mas também antes e depois,  os portugueses tivessem feito, individual e coletivamente, um maior esforço na proteção da saúde e segurança no trabalho, nas empresas, nos laboratórios, nas universidades, nos campos e nos outros locais de trabalho.  

É uma brutal realidade, mas não é só a guerra que mata: o trabalho mata, muitas vezes lentamente, insidiosamente... E pior ainda: quando saímos de cena, e dizemos, com alguma euforia e muita ingenuidade, no último dia de trabalho: "Amanhã é o primeiro dia do resto da minha vida"... Há quem, infelizmente, não ultrapasse os primeiros anos da reforma...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19 (***), estamos agora a lidar com outra situação-limite, devastadora em termos pessoais e familiares. É uma boa ocasião para pensarmos e reflectirmos sobre  o que é importante, afinal,  na vida. E sobretudo para se ser solidário e emprestar o "ombro amigo" a quem dele precisa ainda mais do que nós...

Pessoalmemente, confesso que não tenho agora, por estes dias,  grande cabeça para escrever sobre  a guerra que nos roubou, a todos, alguns anos de vida e de saúde, ou deixou marcas para o resto da vida. Mas o nosso blogue existe, continua teimosamente a querer viver e sobreviver (vai fazer 19 anos em 23 de abril próximo). E tem que ser "alimentado". Todos os dias, como o nosso corpo...  É um compromisso que temos com os "amigos e camaradas da Guiné", o de publicar todos os dias um ou mais postes.

Daí a portunidade (ou não) deste  e doutros textos que vou buscar ao meu "baú"... Espero, ao menos, que a sua leitura tenha algum proveito para os nossos leitores.  Para mim, é também é uma forma de lidar com o meu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que me estão próximas. Não sei até quando vou ficar por cá, pelo Porto.  No mínimo, até à Páscoa. Vamos falando. H0je, através da "crueldade" dos nossos provérbios a que chamamos populares (****)... LG


1. Provérbios: Arqueologia da Língua e do Saber

Os provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa deveriam decididamente merecer um outro estudo como objetos de investigação científica (sociolinguística, semiológica, histórica, antropológica, sociológica, etc.), para além da sua simples recolha sistemática (por ex., Machado, 1996) ou do seu embrionário tratamento em termos de categorização temática (por ex., Gomes, 1974; Joaquim, 1983; Costa, 1999).

Pondo de lado questões como a sua origem, a sua historicidade, a sua função ideológica, o seu modo de produção e reprodução, etc., vamos limitarmo-nos aqui a analisá-los enquanto representações sociais tanto da saúde e da doença como dos praticantes da arte médica (Herzlich e Pierret, 1984; Graça, 1996).

Gomes (1974. 5) define o conceito de lugar comum como "estrutura frásica, decorada, fossilizada e envelhecida". 

Machado (1996), em O Grande Livros dos Provérbios, não perde tempo a fazer a distinção entre os muitos sinónimos que é habitual a associar-se ao termo provérbio (por ex., adágio, aforismo, anexim, apotegma, axioma, ditado, dito, dito sentencioso, dizer, exemplo, máxima, parémia, preceito, prolóquio, refrão, rifrão, sentença). Para nós, essa distinção também é algo bizantina, devendo ser remetida aos eruditos da língua portuguesa.

O Dicionário Houaiss da Língua Portugesa (Lisboa, 2003) define provérbio como:

(i) uma frase curta;

(ii) geralmente de origem popular;

(iii) frequentemente com ritmo e rima;

(iv) rica em imagens ou metáforas;

(v) sintetizando um ideia a respeito da realidade, uma regra social ou uma normal moral.

Um dos nossos pressupostos, seguindo Gomes (1974), é o de que muitos deles teriam uma matriz ideológica cristã-feudal, indissoluvelmente ligada à ruralidade e à oralidade, por um lado, mas também à cristandade, como um todo. Aliás, muitos deles são comuns às principais línguas europeias, em particular às de origem latina.

Uma das suas particularidades ou originalidades é a forma de expressão

(i) em poucas palavras, resume-se uma ideia-força, por vezes em termos antinómicos ("Deus dá o mal e a mezinha"); além disso,

(ii) são fáceis de decorar ("Espírito são em corpo são"); 

(ii) têm, por vezes, um claro objetivo de crítica social ("Os erros do médico, a terra os come"); 

(iv)  
ou um simplesmente um um propósito didático ("O mal do olho coça-se com o cotovelo");

(v) moralizante ("À custa do doente come toda a gente");

(vi) ou filosófico ("Queres conhecer o teu corpo ? Mata o teu porco").

Enquanto parte de uma arqueologia da língua e do saber e, portanto da nossa própria cultura (Braga, 1986), os provérbios parecem-nos constituir um material no mínimo interessante para o estudo não só da 

(i) história das mentalidades,  como até da 

(ii) emergência dos modernos sistemas, políticas, profissões e práticas de saúde (Mira, 1947; Barbosa, 1984; Goff e Sournia, 1985; Ferreira, 1990; Lemos, 1991; Barbaut, 1991; Cosmascini, 1995; Geremeck, 1995; Sournia, 1995; Graça, 1994, 1996, 1997 e 1999).

Além do mais, há um grande défice da contribuição antropossociológica para a formação pré e pós-graduada dos nossos profissionais de saúde, não só dos nossos médicos e enfermeiros e outros prestadores como dos gestores de serviços de saúde.

Por exemplo, de há muito que é reconhecida a necessidade de se desenvolver a "sensibilidade sociocultural" dos médicos de medicina geral e familiar (Barbosa, 1984). Por outro lado, só muito lenta e tardiamente as nossas faculdades de medicina e as nossas escolas de enfermagem (e de tecnologias da saúde) se têm aberto para o contributo das ciências sociais, em particular da  história, da sociolinguística, da psicologia social, da sociologia e da antropologia.

Daí que o presente texto possa ser visto, também, como uma proposta (modesta) para repensarmos a história da saúde, da doença e da medicina em Portugal , ainda largamente dominada até ao final do séc. XX  dominada pelo iatrocentrismo e pelo etnocentrismo (Mira, 1947; Ferreira, 1990; Lemos, 1991).

É hoje relativamente pacífica a ideia de que:

(i) não há só uma medicina;

 (ii) nem um só modelo etiológico ou explicativo de saúde/doença. 

J. Ch. Sournia, conhecido médico francês e historiador da medicina, relativiza a pretensa universalidade da medicina (ocidental), pondo o acento tónico naquilo que é, por essência, o ato médico, desde a Grécia Antiga até às nossas atuais sociedades da informação:

"O ato médico coloca uma pessoa que se considera doente na presença de outra à qual atribui poder e conhecimentos. Nenhuma destas circunstâncias pode escapar à história: o desejo de ser tratado é justificado por uma dor ou uma anomalia na aparência ou no funcionamento do corpo, cuja apreciação varia de acordo com as épocas, as culturas, as sociedades e as religiões", escreve J. Ch. Sournia, na sua História da Medicina (Sournia, 1995. 7).

Muitos destes provérbios e expressões idiomáticas da língua portuguesa devem ser tratados como verdadeiros "fósseis" da filosofia de senso comum. Todos eles fazem parte do nosso património cultural mas alguns deles ainda são verdadeiros "fósseis vivos".

No mínimo, veiculam representações sociais (Vala, 2002) da saúde, da doença, da dor, da morte e da medicina e dos seus praticantes, que ainda hoje sobrevivem sob a forma de estereótipos, preconceitos e teorias espontâneas, e que às vezes emergem, aqui e acolá, no discurso e na prática dos atores sociais.

Alguns, inclusive, são verdadeiras joias do pensamento sincrético (tal como alguns dos grafitos que, teimosamente, provocatoriamente, cobrem muros e paredes das nossas cidades). Pensamos que uma parte deste património cultural pode e deve ser recuperadas por aqueles de nós que lutam pelo triunfo de uma nova saúde pública.

Alguns destes provérbios podem inclusive ser usados no âmbito da educação e da promoção da saúde, nomeadamente aqueles que estão relacionados com fatores de risco e fatores protetores da saúde (físicos, químicos, biológicos e psicossocais).

Vou exemplificar alguns destes pontos de vista, através da análise, meramente exploratória, de um primeiro corpus de provérbios portugueses que está longe de ser exaustivo e sistemático: no essencial, baseia-se nas recolhas feitas por Gomes (19974) e Machado (1996); há outras fontes avulsas (incluindo inúmeros sítios na Internet) que, por economia de espaço e de tempo, não vou aqui referir.

Machado (1996) reuniu mais de 26 mil entradas, organizadas por ordem alfabética. Nalguns casos, é referida a mais antiga documentação da sua origem que o autor conseguiu obter, anterior ao Séc. XIX. Por outro lado, Costa (1999) compilou e classificou em termos temáticos mais de 40 mil provérbios, num paciente trabalho digno de monge, ao longo de toda uma vida.

Diga-se, por fim, que é discutível o estatuto de provérbio, português e de origem popular, que é atribuído a um ou outro dos objetos seleccionados. Alguns são de origem bíblica, latina e erudita. Não vamos, porém, perder tempo com essa discussão.

Outros confundem-se com o calão usado pelas classes populares. Por muito que isso possa ferir algumas sensibilidades, entendemos que não tínhamos o direito, enquanto estudiosos destes materiais significantes, de os amputar, censurar, branquear ou suavizar... O que importa é a sua apropriação pelos falantes da língua portuguesa, o seu uso mais ou menos socialmente alargado e historicamente documentado.


2. A Representação da Doença e do Doente

Na ideologia cristã-feudal, a doença é representada socialmente da seguinte forma esquemática (Quadro I):

(i) está quase sempre associada à morte ("Mal viver, mal acabar"; "Tosse seca, trombeta da morte"; "Doença comprida em morte acaba"; "Não há morte sem achaque");

(ii) e, muitas vezes, à morte em massa de que a peste negra de 1348-1351 e o infernal ciclo de epidemias que se lhe seguiu durante mais de quatro séculos é o termo de comparação ("Não matou mais a Peste Grande de Lisboa", ou seja, a de 1569) (Quadro III);

(iii) é vista como algo de inelutável, que transcende a vontade humana e contra a qual o homem é totalmente impotente ("Boda e mortalha no céu se talha"; "Deus faz o que quer e o homem o que pode") (Quadro II);

(iv) e quase sempre um castigo ou uma provação de um Deus que é estranha e misteriosamente um pai maniqueísta, justiceiro e misericordioso ("A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"; "De Deus vem o mal e o bem"; " Deus o dá Deus o leva"; "Deus castiga sem pau nem pedra"; "É tão bom Deus como o Diabo");

(v) e que só Deus, e não os médicos, pode curar ("De hora a hora Deus melhora"; "Deus dá o mal e a mezinha"; "Deus fere porém Suas mãos curam").

Até à criação do Estado Moderno (grosso modo, até ao fim do Ancién Régime ou Antigo Regime, no nosso caso até à revolução
o de 1820) não faz qualquer sentido falar-se em sistemas e políticas de saúde ou de protecção social ou até de assistência pública.

Estes conceitos irão surgir, lentamente, como resposta aos efeitos perversos da revolução industrial e urbana, operada pelo desenvolvimento do capitalismo liberal, bem como às profundas transformações demográficas, sociais, económicas, científicas, culturais e políticas que marcam o Século XIX . Nomeadamente o conceito de assistência pública é um conceito burguês que irá emergir da Revolução Francesa (Graça, 1996).


Quadro I — Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a doença e o doente

Objeto

Provérbio

Doença /  Enfermi- dade

  • "A bouba (1) dói é no cu de quem tem"

  • "A doença e a dor conhecem-se na cor"

  • "A doença vem a cavalo e vai a pé"

  • "A doença vem às braçadas e sai às polegadas"

  • "As sezões vêm a cavalo e voltam a pé"

  • "Doença comprida em morte acaba"

  • "Febre hermititeus não cura senão Deus" (2)

  • "Febre outonal ou longa ou mortal"

  • "Fora de horas urinar é sinal de enfermar"

  • "Melhor é curar gafeira (3) que casa inteira"

  • "O mal vem às braçadas e sai às polegadas"

  • "Sarampo, sarampelho, sete vezes vem ao pêlo"

Doente

 

 

 

 

  • "À custa do doente come toda a gente"

  • "Doente mudou de cabeceira, morte certa"

  • "Doente que espirra, não morre no dia"

  • "Em casa de doente o lugar não se aquente"

  • "Feliz o doente que se conhece"

  • "Não fujas que eu não tenho lepra"

  • "Não há doenças, só há doentes!"

  • "Não há nada pior para a saúde do que a gente estar doente"

  • "O são ao doente em regra mente"

  • "Terra ruim e mulher doente é que quebra a gente"

  • "Um doente come pouco e gasta muito"


(1) Termo que em meados do Séc. XVI passou a designar as doenças do foro dermatológico, com especial destaque para as doenças venéreas, como a sífilis; (2) Intermitente, segundo Machado (1996. 232); referência provável ao sezonismo ou sezões; (3) Lepra

Até à Renascença (grosso modo, até ao Séc.XVI)   não há sequer um clara noção do que seja a saúde, em termos individuais ou colectivos. De resto, "não há doenças, só há doentes" (Quadro I).

A única excepção são a lepra e as epidemias que devastam a Europa medieval e a que Herzlich e Pierret (1984) chamam l'Ancién Régime du Mal, o Antigo Regime do Mal...

Enquanto hoje a doença crónica é (ou pode ser) vista como uma forma de vida, a epidemia será então uma forma de morte. A doença era marcada por três características 
(Herzlich e Pierret, 1984. 23):

(i) o número;

(ii) a impotência e a morte;

(iii) a exclusão social.

De facto, com a epidemia, não há doentes individualizados: não se morre só, em casa ou no hospital, morre-se em massa, por toda a parte, das formas mais cruéis e macabras (por ex., emparedado vivo com toda a família).

A morte é algo de inelutável, indizível e fatal, sendo a exclusão a única saída. A resposta colectiva, através da "socialização do mal", será a do internamento forçado e da brutal segregação dos doentes (Foucault, 1972; Geremek, 1995).


Quadro II— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre Deus enquanto ‘fatum’

Objeto

Provérbio

Deus / 

Fatum

 

 

  • "A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"

  • "Ao menino e ao borracho põe-lhes Deus a mão por baixo"

  • "Boda e mortalha no céu se talha"

  • "Cada qual é como Deus o fez"

  • "De Deus lhe venha o remédio"

  • "De Deus vem o mal e o bem"

  • "De hora a hora Deus melhora"

  • "De tudo Deus se serve"

  • "Deixai fazer a Deus que é santo velho" (Séc. XVI)

  • "Deus castiga sem pau nem pedra"

  • "Deus dá o mal e a mezinha"

  • "Deus escreve direito por linhas tortas"

  • "Deus faz o que quer e o homem o que pode"

  • "Deus fere, porém Suas mãos curam"

  • "Deus mora na igreja, não sai de casa e ainda por cima se tranca dentro do sacrário"

  • "Deus o dá Deus o leva" ou "Deus o dei Deus o levou"

  • "Diz o são ao doente: 'Deus te dê saúde' "

  • "Em tempo de inverno, ninguém se fie em Deus"

  • "Enquanto há saúde quedos estão os santos"

  • "Febre hermititeus (1) não cura senão Deus"

  • "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

  • "O diabo não é tão feio como o pintam"

  • "O futuro a Deus pertence"

  • "Quando Deus não quer, os santos não podem"

  • "Quando Deus não quer, santos não rogam" (Séc. XVI)

  • "Quando Deus o assinalou,  alguma coisa má lhe achou"

  • "Quando Deus se atrasa, vem um anjo no caminho"

  • "Saúde e geração não se apura"

  • "Tão bom é Deus como o Diabo"


(1) Intermitente, segundo Machado (1996. 23); referência provável ao sezonismo.

No caso da lepra, os doentes eram apartados da comunidade e da família, despojados dos seus bens, submetidos a um macabro simulacro de funeral em vida, além de serem obrigados a viver da caridade, a usar um vestuário distintivo e a fazer-se anunciar através do toque de matracas, junto às povoações e nas vias públicas.

A lepra era, na Alta Idade Média, a Doença, por antonomásia. Conhecida desde a antiguidade, é amplamente citada na Bíblia como a doença do pecado da carne, logo um terrível castigo divino, susceptível de se propagar às gerações seguintes.

Com as Cruzadas (Séc. XI), aumentou consideravelmente o número de leprosos e, em consequência, multiplicaram-se as leprosarias (ou gafarias, em Portugal) ao ponto de terem existido em França mais de duas mil, por volta de meados do Século XIII (Imbert, 1958).

A partir de finais do Século XIV, esta terrível doença que marcou o imaginário do homem medieval ("Não fujas que eu não tenho lepra" é uma expressão que ainda hoje se usa em Portugal), tenderá a regredir no Ocidente. O regresso dos cruzados terá igualmente contribuído para a introdução de muitas doenças transmissíveis, até então desconhecidas na Europa, e que se transformaram em temíveis epidemias e doenças endémicas (peste, tifo, varíola, etc.).

A mais mortífera de todas foi, contudo, a peste negra (do latim pestis, derivado de peius, "a pior doença") , designada sob a forma de múltiplas expressões como febris pestilentilis, infirmitas pestifera, morbus pestiferus, morbus pestilentialis, mortatitas pestis ou muito simplesmente pestilentia. Estima-se que, em meados do Séc. XIV, terá vitimado cerca de 25 a 30 milhões de pessoas (entre um terço a um quarto da população do Ocidente), a maior catástrofe demográfica de que os europeus têm memória.

Quanto à sífilis (também conhecida como morbo serpentino, mal das boubas, morbo gálico, etc.), é já, claramente, um pandemia pós-feudal, resultante do florescimento das cidades, da economia mercantil, da mobilidade espacial e sobretudo das viagens marítimas intercontinentais: trazida, ao que parece,  do Novo Mundo pelos marinheiros de Cristovão Colombo, era conhecida como o mal francês (morbo gálico) na Itália, como o mal italiano em França, como o mal português na Índia, como o mal espanhol nas Américas, como o mal cristão entre os otomanos, e assim sucessivamente (Mira, 1947. 103-104).

Embora não haja dados que permitam calcular as taxas de natalidade e mortalidade da população portuguesa nos Séculos XIV e XV, aceita-se como pacífico que fossem muito elevadas. Segundo os historiadores, a média de vida ou a esperança de vida após a puberdade situar-se-ia entre os 35 e os 40 anos. O que aliás está implícito nalguns dos provérbios seleccionados (Quadro III e Quadro IV):
  • "A morte não escolhe idades";
  • "Até aos 40 bem eu passo, dos 40 em diante 'ai a minha perna, ai o meu braço' ";
  • "De quarenta arriba não molhes a barriga";
  • "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba";
  • "Na era de 31, poucos moços, velhos nenhum".
A começar pela capital do Reino, sempre foi alta a taxa de morbilidade e de mortalidade da população portuguesa. Mesmo no auge dos Descobrimentos, a deslumbrante e magnífica Lisboa, celebrada por viajantes estrangeiros que aportavam ao estuário do Tejo, não passava de uma montureira em que a peste era endémica (do grego en+demos, no meio do povo):

A Lisboa que o médico, de origem hebraica, Amato Lusitano (1511-1568) evoca nas suas Centuriae curationum medicinalium, não é apenas a do conhecido 'postal ilustrado', publicado na obra de J. Braunius, Civitates orbis terrarum (1572);

Para além da sua ímpar topografia e da benignidade do seu clima, a par da grandiosidade do seu porto, muralhas, palácios, igrejas e conventos, Lisboa continua a ser uma cidade medieval no que respeita à sua malha urbana e sobretudo às suas condições sanitárias (Graça, 1996).

Como diz Ricardo Jorge (s/d. 170), "as ruas afogavam-se em estrumeiras; quem podia, só as transitava a cavalo. Canos, apenas mencionados no regimento de municipal de 1502, só ao findar do século XVI é que tinham traçado figurável - tudo parcelar e desconexo, contando-se tão somente dois canos reais". A par isso, "na praia vazavam-se todos os despejos e despojos; e a barbárie era tal que os próprios cadáveres dos escravos eram deitados ao monturo, entregues ao dente do cão, do rato e à podridão livre".

Ricardo Jorge referia-se nomeadamente ao execrável hábito de lançar os cadáveres dos escravos negros e mouros ao Estuário do Tejo (por ex., na praia de Santos ou a partir da escarpa de Santa Catarina). Esta prática, muito pouco misericordiosa, atentatória da saúde pública, terá levado D. Manuel I a mandar construir dois poços funerários (o dos Negros e o dos Mouros), onde os cadáveres eram lançados e, periodicamente, cobertos de cal viva!

E acrescenta o autor da biografia de Amato Lusitano:

"Daí a mortandade, a curteza de vida. Amato viu superiormente, e é o primeiro a dizê-lo, quanto Lisboa reduzia a vida dos seus habitantes, assinalando o seu regime de baixa longevidade; e, antecipando-se à observação mais moderna, afirma de ciência certa que a maior parte dos lisboetas sucumbem às primeiras idades - maiori ex parte juvenes e vita decedunt " (Jorge, s/d. 170-171).

A doença, a infelicidade e a morte também estão intimamente associadas à pobreza (Quadro IV):
  • "De gente pobre até o rasto é triste";
  • "Desgraça do pobre é ter nascido";
  • "Quando pobre come frango, um dos dois está doente".
Quadro III - Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a morte e a peste

Objeto

Provérbio

Morte/ Vida

  • "A morte não escolhe idades"

  • "A tris matou quem quis" (1)

  • "A vida é um sono de que a morte nos desperta"

  • "A vida tem uma porta só, a morte tem cem"

  • "Ano de muito peixe ano de mortes"

  • "Antes a morte que tal sorte"

  • "Esta vida são dois dias e o Carnaval são três"

  • "De má vida se engendra a morte"

  • "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"

  • "Mais vale andar neste mundo em muletas do que no outro em carretas"

  • "Mais vale morte que má sorte"

  • "Mal desconhecido com seu dono morre"

  • "Mal viver, mal acabar"

  • "Morreu, acabou-se"

  • "Na hora da morte não vale a pena tomar remédio"

  • "Nada mais certo do que a morte; nada mais incerto do que a hora da morte"

  • "Não há cousa tão junta a outra como a morte à vida" (Séc. XVI)

  • "Não há morte sem achaque"

  • "Nem rei nem papa à morte escapa"

  • "O que no leite se mama,  na mortalha se derrama"

  • "O sono é a imagem da morte"

  • "O temor da morte é a sentinela da vida"

  • "Onde entra a morte entra a má sorte"

  • "Para a morte o remédio é abrir-lhe a boca"

  • "Para tudo há remédio senão para a morte" (Séc. XVI)

  • "Quem de novo não morre de velho não escapa"

  • "Quem mal vive mal acaba"

  • "Quem nasceu para a forca não morre afogado"

  • "Quem se mata morto fica e, se não morre, entesica"

  • "Só uma porta a vida tem, enquanto a morte tem cem"

  • "Tal vida tal morte"

  • "Temer a morte é morrer duas vezes"

  • "Tosse seca – trombeta da morte"

Epidemia/ Peste

  • "Fuge cito vade longe rede tarde" (4)

  • "Da fome, da peste e da guerra e do bispo da nossa terra - libera nos, Domine"

  • "Dia de São Silvestre (5), não comas bacalhau que é peste"

  • "Em tempo de guerra e peste é mentira como terra"

  • "Livre-te de fruta mal sazonada que é peste disfarçada"

  • "Mal de muitos é peste"

  • "Não matou mais a Peste Grande de Lisboa" (2)

  • "Se durante a epidemia temeres a morte, serás presa dela" (3)



(1) Icterícia, segundo Machado (1996: 55); (2) A de 1569; (3) Adágio oriental (Mira, 1947: 405); (4) Provérbio latino usado na Idade Média ("Foge depressa, vai para longe e não voltes não cedo"); (5) 31 de Dezembro

De qualquer modo, o facto de não haver uma consciência colectiva da saúde/doença terá a ver, antes de mais, com o nível de conhecimento sobre a etiologia (ou a causalidade) das doença humanas:

  • Até à revolução bacteriológica de meados do Séc. XIX (protagonizda por Pasteur, Koch e outros), as doenças infecciosas eram atribuídas a misteriosos miasmas; daí (i) o sentido do provérbio português "Livra-te dos ares, que eu livrar-te-ei dos males" e (ii) a vulgarização de práticas mais ou menos ritualizadas como as fogueiras nas ruas em caso de epidemia, as fumigações de pessoas, animais, objectos e casas, a travessia das ruas por manadas de gado bovino, etc.;
  • Quanto às doenças não transmissíveis, essas, continuavam a ser, ainda até há relativamente pouco tempo, um outro "mistério";
  • De facto, só a partir dos anos 60 foi possível tentar "uma interpretação global das relações existentes entre as condições de vida, a saúde e o crescimento da população" (McKeown, 1990. 13).

Quadro IV —Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a pobreza e a velhice

Objeto

Provérbio

Pobre / Pobreza

  • "De gente pobre até o rasto é triste"

  • "Desgraça de pobre é ter nascido"

  • "Entre ricos e pobres alguém há-de escapar"

  • "Frango na panela do pobre é desgraça certa, doença do pobre, 'bouba' do franguinho ou raiva do vizinho"

  • "Os pobres têm tempo"

  • "Por pouca saúde, vale mais nenhuma"

  • "Pobre com pouco se alegra"

  • "Quando pobre come frango, um dos dois está doente"

Idade / Tempo / Velhice

  • "A morte não escolhe idades"

  • "A saúde nos velhos é mui remendada"

  • "Até aos 40 bem eu passo, dos 40 em diante 'ai a minha perna, ai o meu braço' "

  • "A velhice não tem cura"

  • "Cabelos brancos, flores de cemitério"

  • "De quarenta arriba não molhes a barriga"

  • "Em uma hora se paga quanto se erra em toda a vida (Séc. XVI)

  • "Engorda o menino para crescer e o velho para morrer"

  • "Esta vida são dois dias"

  • "Hoje com saúde, amanhã no ataúde"

  • "Hoje na figura, amanhã na sepultura"

  • "Hora de morrer não tem retardo"

  • "Mal vai à corte em que o  boi velho tosse"

  • "Na era de 31, poucos moços,  velhos nenhum"

  • "Não há moço doente nem velho são"

  • "O menino engorda para crescer e o velho para morrer"

  • "O tempo dá o remédio onde me falta o conselho"

  • "O tempo tudo cura "

  • "O tempo tudo cura menos velhice e loucura"

  • "Perde-se o velho por não poder e o novo por não saber"

  • "Por um dia de prazer um ano de sofrer"

  • "Porco de um ano, cabrito de um mês, mulher dos dezoito aos vinte e três"

  • "Prisca idade, priscos tempos" (1)

  • "Quem a trinta não tem siso a quarenta não é rico"

  • "Quem faz em novo paga em velho"

  • "Teme a velhice porque nunca vem só"

  • "Um dia pior, outro melhor"

  • "Velho não se senta sem 'ui', nem se levanta sem 'ai' "

  • "Velho que de si cura cem anos dura"


(1) Prisco=antigo (em linguagem poética)


Em suma, foi preciso esperar pelo século XIX para que se fizesse luz sobre a natureza das doenças transmissíveis. Em escassas dezenas de anos, os progressos da bacteriologia e virologia tornam-se espectaculares (Quadro V).

Em contrapartida, só na segunda metade do século XX é que foi posta em evidência a etiologia multifactorial de doenças crónicas como o cancro, a diabetes ou a cardiopatia isquémica, e o peso que nesse tipo de doenças tinham (e têm) os factores ambientais e comportamentais, e não apenas os biológicos ou genéticos.

No complexo puzzle das teorias explicativas da saúde/doença, há hoje quatro evidências empíricas que McKeown (1990:14) considera como fundamentais:
  • O reconhecimento de que o genoma humano é sensivelmente o mesmo do primitivo Homo Sapiens Sapiens, ou seja, dos nossos antepassados caçadores-recolectores de há cem mil anos;
  • A descoberta de que, nos países desenvolvidos, o salto qualitativo em termos de melhoria do estado de saúde e de crescimento populacional começou um século antes da medicina ter meios eficazes de intervenção no combate às doenças, sendo esse salto atribuído, em grande medida, à melhoria da envolvente socioeconómica (alimentação, habitação, saneamento básico, higiene ambiental e pessoal, nível de instrução e de informação, serviços de saúde pública, etc.);
  • A descoberta, pelas ciências biomédicas, da natureza das doenças infecciosas e da possibilidade da sua prevenção pela dupla via do aumento da resistência do organismo humano e da redução da exposição aos agentes transmissores;
  • E, finalmente, o reconhecimento (este muito mais recente, de há quarenta anos para cá, desde os anos 60 do séc. XX ) de que a maior parte das doenças não transmissíveis não podem ser apenas imputáveis àbiologia humana e à constituição genética, mas também ao sistema socioecológico em que vive o homem moderno; nessa medida, podem ser objecto de prevenção, através da eliminação, redução ou controlo dos factores de risco quer ambientais quer comportamentais.

Quadro V - Alguns dos principais genes patogénicos identificados na época de ouro da bacteriologia

Ano

Germes patogénicos

Autor

País

1875

Lepra

Hansen

Noruega

 

Amebíase

Loesch

Alemanha

1878

Furúnculo

Pasteur

França

1879

Febre puerperal

Roux

França

 

Blenorragia

Neisser

Alemanha

1880

Malária/ Paludismo

Laveran

França

 

Febre tifóide

Eberth

Alemanha

1882

Tuberculose

Koch

Alemanha

1883

Cólera

Koch

Alemanha

1884

Tétano

Nicolaïer

Rússia

1887

Febre de malta

Bruce

Grã-Bretanha

1889

Cancro mole

Ducrey

Itália

1894

Peste

Yersin

França

1901

Doença do sono

Dutton

Grã-Bretanha

1905

Sífilis

Schaudinn

Alemanha

1906

Coqueluche

Bordet

França

1909

Tifo

Nicolle

França



Fonte: Adapt. de Sournia (1995: 260)

Referências bibliográficas (a publicar no final da série)

(Continua)
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19370: Manuscrito(s) (Luís Graça) (149): O último pôr do sol... nas Azenhas do Mar

(**)  Adpat. de um texto do autor, de 2000, publicado na sua página pessoal, Saúde e Trabalho - Luís Graça; u
ma outra versão, mais abreviada, foi publicada no Médico de Família, III Série, 6 (Junho 2000)

(***) Vd. postes de:

2 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20800: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado ? (Luís Graça) - Parte I: A lepra, a doença por antonomásia na Idade Média

4 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"

7 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20827: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte III: Entrevista dada ao jornalista José Pedro Frazão, programa "Da Capa à Contracapa", emitido aos sábados, às 9h30, na Rádio Renascença
14 de abril de 2020 Guiné 61/74 - P20855: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte IV: Saúde e terror até ao fim do Antigo Regim

(****) Último poste da série > 12 de dezembro de  2022> Guiné 61/74 - P23870: Manuscrito(s) (Luís Graça) (215): Verão de 68