Mostrar mensagens com a etiqueta museus. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta museus. Mostrar todas as mensagens

sábado, 30 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24714: Os nossos seres, saberes e lazeres (593): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (122): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (13) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
A galopada cultural culminou no Museu de Félicien Rops, santo do meu culto, merece o apodo do mais escandaloso artista do século XIX, mas a clientela nunca lhe faltou, admirava-lhe o génio mesmo com aquelas provocações pornográficas e satânicas. O museu de Namur possui um admirável acervo de todo o seu percurso, desde desenhador de humor a pintor consagrado. Seguiu-se uma viagem pelo Meuse, isto é, andarilhar pela margem, como se fôssemos em direção em Dinant, uns bons quilómetros a juntar à boa passeata por três museus, não posso dar sinal de desfalecimento, a meu lado vai uma aficionada por passeios pedestres, daqueles que podem absorver 30 quilómetros diários, ainda por cima por montes e vales, aguentei firme, guiado pela fé de que tinha uma grande repasto à minha espera e que dormiria um sono de pedra em Watermael-Boitsfort, como aliás aconteceu. No comboio, quando deitava contas à vida para sairmos cedo, de modo a chegarmos a Zaventem pouco depois das 9h, recebi no telemóvel a notícia de que o voo fora diferido para a noitinha. Ah é? Então levanto-me cedo e ainda vou cirandar um pouco por esta Bruxelas onde não sei quando regressarei, tenho dito.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (122):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (13)


Mário Beja Santos

Toda a moleja me saiu do corpo quando entrei no Museu Félicien Rops, no n.º 12 da rue Fumal, venho de novo encontrar-me com aquele que é alvo de um epíteto pouco lisonjeiro: o mais escandaloso artística do século XIX. O museu dá-nos uma panorâmica desde os seus trabalhos como caricaturista, desenhador em obras de romancistas e poetas consagrados, até aos seus trabalhos mais sulfurosos com destaque para Pornocrates, que os críticos consideram o seu mais genial trabalho. Rops nasceu em Namur, foi viajante insaciável (Hungria, Escandinávia, EUA, África do Norte, Espanha…), como muitos artistas da sua geração iniciou a sua atividade como desenhador de humor cedo mostrou estar em total dissonância com a moral da sua época, enveredou na corrente simbolista, de que se será um dos seus próceres mais desalinhados. Aos 18 anos, em Bruxelas, fundou um jornal onde realiza caricaturas irónicas e mordazes sobre as classes sociais, os artistas do seu tempo, a atmosfera política. Faz desenhos para uma obra de Charles Baudelaire. Instala-se em Paris, o seu tema de predileção passa a ser a mulher, no papel de dominador ou de cortesã. Atento ás ideologias sobre a decadência presentes na arte e na literatura, aborda sem qualquer receio a prostituição, o erotismo ou o satanismo. Numa série dedicada às Satânicas celebra a aliança entre mulher e Satã. Percorro deslumbrado esta série de obras, temas aparentemente mórbidos, por vezes uma pornografia descarada, há também as telas revelando praias ou panorâmicas de cidade onde se sente perfeitamente que Rops jamais desconsiderou o naturalismo, e momentos há que se percebe que o seu olhar vanguardista prepara a transição para o impressionismo. Que me acompanha olha para o relógio, está na hora de pelo Meuse, é só mais uma hora ou duas, depois tens um banquete à espera.

Pornocrates
Tratamento da mulher e do satanismo
A Agonia
Autorretrato
Félicien Rops
Estou ciente que em itinerâncias do passado já mostrei este rio, o Meuse é encantador na serenidade da sua correnteza e dá que pensar como o Homem tantas vezes obtém sucesso numa boa aliança entre o património natural e o edificado. Agora presto homenagem a quem me preparou este dia de tanta fruição. Quem aparece na imagem é uma amiga de quatro décadas, fizemos conhecimento em Veneza, eu como participante numa conferência, ela como intérprete. É a musa do romance Rua do Eclipse, foi ela que me inspirou a vida de uma intérprete e organizadora de um dossiê sobre a comissão militar de um tal Paulo Guilherme que andou pela Guiné entre 1968 e 1970. Ela é uma andarilha, telefono-lhe e está a caminho de uma viagem para atravessar os Estados Unidos da América, mesmo de ponta a ponta, ou partiu para a Úmbria, voltou há três dias para se integrar num grupo de passeios pedestres que vão até ao norte da Holanda. Insiste que eu fique uns dias em Namur, faremos passeios pedestres a valer, aí tenho medo, já não tenho coluna vertebral para grandes subidas e descidas, arranjo pretextos, mas não hesito em estar um dia inteiro na companhia desta andarilha que tem assinaturas para tudo quanto é ópera, música sinfónica, música de câmara, festivais. Obrigado por tudo, minha adorada amiga! E enquanto ela prepara o ágape vou perscrutar como está o seu jardim, não tem dúvida quanto aos cuidados, vou agora registar o que dá a primavera em flor, se há o conceito do tempo belga tido por instável, com sol, ventania, chuviscos, céu de chumbo, isto para já não falar das pesadas chuvadas de outono e inverno e dias de gelo, a verdade é que este jardim se engalanou para me receber.
Todos os anos, deve ser puro acaso, aqui venho encontrar estas túlipas cor de rosa, estão viçosas, prometo voltar para o ano para que vocês ostentem flores tão acetinadas.
Quando vivi numa casinha de campo em Pedrógão Grande comprei um pequeno rododendro que, para espanto meu, cresceu sem dificuldade, nunca lhe faltei com água e limpeza da folhagem, era uma alegria ver os botões e depois a explosão de branco, parecia uma árvore pequena. Na posse de outro proprietário, há seis anos, a casa desmantelou-se no grande incêndio de Pedrógão Grande e aquele calor imenso chegou à horta e ao jardim, senti um baque no coração quando vi o meu rododendro enfarruscado, sem vida. Aqui em S. Marc, este rododendro suscita-me recordações da minha perda, sinto-me feliz porque a natureza tem sempre razão e sabe cobrar juros, o que se perde acolá ganha-se aqui.
Que grande surpresa, vi nascer este rododendro aqui ainda a moradia estava em construção e já a proprietária andava azafamada na organização do jardim, também ele se engalanou para receber quem o tem visto crescer ao longo dos anos.
É um bonito tapete de jacinto-uva, temos muito no nosso país, é um lilás muito delicado, creio que toda a Europa é bafejada por imensas variedades de jacintos, uma flor que tem a particularidade de ser o arauto da primavera.
Havia para ali tanta passarada que interpelei a dona da casa quanto aos porquês daquele corrupio no arvoredo do jardim, ela apontou para diversas caixinhas de alimento e fiquei por ali especado a ver a alegria esfusiante das aves a debicar e a bebericar e depois correr para outras paragens.
Entardeceu, chegou a hora de partir, a dona da casa insiste em levar-me a Bruxelas, declino, vou até à gare ferroviária de Namur, é uma viagem de cerca de uma hora, suspiramos por novo encontro, talvez no outono, na pior das hipóteses na primavera. No comboio consulto o telemóvel, sou surpreendido com uma mensagem da companhia aérea, o voo marcado para as 11h45 foi alterado as 21h10. Deito contas à vida: a minha mochila é leve (fora os trastes comprados na Feira da Ladra), e se eu aproveitasse a manhã e o princípio da tarde a cirandar pelo centro de Bruxelas, enfim, uma despedida em grande? Vamos ver o que o destino me reserva.

(continua)

____________

Notas do editor:

Vd. poste anterior de 23 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24691: Os nossos seres, saberes e lazeres (591): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (121): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (12) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24701: Os nossos seres, saberes e lazeres (592): António Carmo, artista plástico de renome, nosso camarada da Guiné (Mário Beja Santos)

sábado, 2 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24611: Os nossos seres, saberes e lazeres (588): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (118): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Não se viaja impunemente até à Antuérpia, a expectativa era enorme, ir conhecer o resultado de 11 anos de obras no interior do Museu Real de Belas-Artes, não vinha aqui desde 1991, saio daqui profundamente agradado, uma inteligente requalificação, espaços amplos, a despeito da manutenção de lugares marcados pelo classicismo do início do século XIX, lindamente restaurados. Despeço-me percorrendo uma área onde coabitam tesouros artísticos do século XV ao nosso tempo. Faço votos para regressar daqui a alguns anos, acontece até que, por falta de transportes públicos, vou agora em marcha forçada percorrer uns quilómetros até à gare rodoviária. Guardei uma imagens que vos vou mostrar. Amanhã o dia será passado em Namur, uma amiga prometeu-me um programa diversificado entre a arte e a natureza, e regresso a Bruxelas feliz e contente, ainda por cima tenho agendada mais uma visita à Feira da Ladra, nesta altura nem posso imaginar que vou comprar, no meio de enorme quinquilharia, um prato na porcelana de Meissen.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (118):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (9)

Mário Beja Santos

Despeço-me a custo do Museu Real de Belas-Artes de Antuérpia, a idade não perdoa, há horas a fio que ando para aqui a flanar, ainda com ingenuidade de que a memória consegue absorver todas estas amostras do génio humano. Em jeito de despedida, fujo às secções temáticas, ao tardo-gótico, aos primitivos flamengos, à arte espanhola, deixo os séculos XVII e XVIII em paz e atiro-me com a última energia ao que ainda me é possível lavar a alma entre o impressionismo e a contemporaneidade. Bem gostaria de ir pontuando obra de arte por obra de arte, só servia para entediar o leitor, a ver se reservo a grande salva de artilharia para um incontestável santo do meu culto, René Magritte. Vamos ao desfile, acabo por descobrir que entrei numa sala de exposição com tesouros dos vários séculos, assim seja, já não volto atrás.

Autorretrato, por Rik Wouters.
É para mim um mistério como este desafortunado pintor (morreu com 34 anos e deixou um legado impressionante de centenas de obras) é praticamente desconhecido fora do seu país. É excelente em tudo o que lhe saiu das mãos, a escultura, a pintura, o desenho, um fauvista incondicional a cuja arte plástica tão personalizada me sinto rendido desde que ponho os pés na Bélgica. E quando permaneço em Watermael-Boitsfort há sempre uma visita obrigatória, contemplar uma escultura sua no centro da povoação.

Já aqui mostrei algumas imagens das transformações no interior do Museu de Antuérpia, o arquiteto criou espaços amplamente desafogados, conectados, uma atrativa forma de expor, permitindo que se faça uma circunavegação sem molestar quem queira estar a contemplar, confortavelmente sentado.
Tive a sorte de visitar em Bruges, no ano de 1994, a grande retrospetiva de Hans Memling, alusiva aos cinco séculos da sua morte. Até o quadro dele que pertence ao Museu Nacional de Arte Antiga lá foi parar. O génio deste flamengo mede-se pela intensidade dramática (veja-se a cena clássica da morte de Cristo, o desfalecimento da Virgem), os panejamentos, uma muito peculiar ocupação dos espaços, neste caso do tríptico uma disseminação das figuras em que a espiritualidade é também dada pelos anjos que assistem ao momento dramático da morte de Cristo e assegura uma visibilidade não só à arquitetura da época como aos usos da indumentária. Tudo somado, um pintor à parte, daqueles a quem é possível rapidamente identificar a obra pictórica e dizer instantaneamente: é Memling!
Deus Pai com Cantores e Músicos feitos Anjos, Hans Memling. Peças do altar-mor de uma igreja de um mosteiro em Espanha.
Pormenor do retábulo mencionado acima.
Escultura de Panamarenko, Chisto 1
Hans Memling, retrato de Bernardo Bembo, Homem de Estado e Embaixador de Veneza
Retrato de Pieter Gillis, por Quinten Massys
Madame Récamier, por René Magritte
Uma das muitíssimas versões de René Magritte sobre O Império das Luzes

Não escondo o meu assombro, curvo-me perante a ousadia museográfica, colocar uma escultura de Magritte num espaço de classicismo. A pintura de Magritte baseia-se em jogos conceptuais que nos desconcertam, é uma pintura com uma intensa carga metafórica. Tenho para mim que é o mais original dos génios do surrealismo nas artes plásticas. Já consagrado, e respondendo a encomendas de peso, como a pintura do Teatro Real das Galerias de Bruxelas, alvo de uma retrospetiva em Nova Iorque que culminou numa grande procura dos seus quadros, hoje espalhados por coleções públicas e particulares, nunca deixou o ateliê e as experiências, daí podermos distinguir as diferentes dimensões do seu génio, falando de objetos deslocados, metamorfoseados, em conflitualidade, até mesmo a sua obsessão por variações sobre o mesmo tema, caso do conjunto de pinturas que fez intituladas O Império das Luzes, o que nestas obras se vê é simplesmente uma casa ou um grupo de edifícios entre a folhagem, iluminados pela luz elétrica que irradia das janelas, assim como pela de um ou mais candeeiros. O insólito é que o céu que cobre a cena é de um azul absolutamente diurno, sulcado por nuvens brancas e algodoadas. A coerência da cena é tal que a incompatibilidade do céu com a noite em que se destaca a luz elétrica só se nota após um exame atento do espectador.
Pieter Bruegel, A Dança do Casamento
Obra do artista Christophe Coppens
O jovem imperador Carlos V, por Jan van Beers
Léon Frédéric, Duas Raparigas Camponesas da Valónia
Paisagem com rapariga a saltar à corda, Salvador Dali
Julguei que me ia despedir desta casa que acolhe um acervo de obras plásticas do maior valor andando a cirandar talvez entre o fauvismo e o abstracionismo em moldes atuais; enganei-me na sala, e ainda bem, acabei por rever grandes mestres do século XV, reencontrei Magritte e Dali, saio daqui de papo cheio, agora é só atravessar Antuérpia, ruminar nas coisas belas que vi e sonhar com o dia de amanhã, porventura em Namur, há lá uma amiga que me promete um passei de arromba.

(continua)

____________

Nota do editor

Último post da série de 26 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24590: Os nossos seres, saberes e lazeres (587): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (117): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (8) (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24097: Os nossos seres, saberes e lazeres (557): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (91): A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
É sempre com muito agrado que venho até à rua Alves Redol, n.º 45, em Vila Franca de Xira, não há museu como este, sobe-se e desce-se estas escadarias em estado de deslumbramento, independentemente do recheio sazonal, e com uma imagem que nos acompanha em todas as direções e uma obra belíssima de Júlio Pomar. O que não é sazonal é o que me traz cá hoje, conhecer a nova exposição de longa duração do Museu do Neo-Realismo, o título é fabuloso: "A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto", é um novo olhar interpretativo sobre a coleção de obras em depósito. Não que não permaneça vincada, como escrevem os curadores, a atenção aos mais desfavorecidos, uma forte leitura ao nível da consciência de classe e da sua capacidade reivindicativa ou de ação. Aqui se desmonta aquele mantra de que se pintava, ou desenhava, ou esculpia, ou moldava de forma uniforme, como se todos os artistas plásticos vestissem a mesma fatiota e tocassem a música pela mesma pauta. Por engano, como aqui se pode ver. Muitas destas mulheres e destes homens enveredaram depois por outros caminhos, onde aqui havia um compromisso entre o figurativo e a dinâmica da modernidade, já se pressente em diferentes obras que se caminha para outros projetos, basta pensar a evolução de um dos pontífices do neorrealismo, Júlio Pomar, que se lançou gradualmente na arte não figurativa, e experimentou diferentes correntes. Em termos museológicos, a exposição é altamente atrativa, nunca perde a dimensão didática, como se uma ideia mestra presida a todo este itinerário: pensar, como contemplar, é divergir.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (91):
A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto


Mário Beja Santos

Regresso sempre lesto e contente ao n.º 45 da rua Alves Redol, em Vila Franca de Xira, aqui se pranta o Museu do Neo-Realismo, a minha primeira saudação é sempre para esta obra magna de Alcino Soutinho, o arquiteto desenhou um espaço gerando volatilidade, o sentimento de que se sobe e desce sob o signo da luz graças à solução encontrada da escala destas escadarias correspondentes à ligação dos diferentes pisos, uma geometria de um fôlego quase aéreo, enfim, o prazer de por aqui deambular, sejam quais forem os bens culturais expostos.

O que me traz aqui, hoje? Venho ao encontro da exposição de longa duração que substitui outra que aqui se exibiu de 2007 (ano de inauguração do museu) até 2021, e que se intitulava “Batalha pelo Conteúdo”. E temos a promessa de que no piso abaixo, em 2024, irá continuar a renovação museológica, aqui se exibirá exposição complementar alusiva a um processo de reinterpretação do movimento literário, cívico e cultural do neorrealismo, não faltará uma ampla exposição documental, reza essa a promessa.

Recomenda-se ao visitante que adquira o catálogo, é uma obra de referência, não o fazendo tem mesmo assim ao seu dispor um folheto que ajuda a entender esta nova abordagem museológica. Para os não iniciados, recorda-se que este movimento estético, encetado na década de 1930, tinha berçário no realismo, estes artistas e escritores valorizavam a representação do humilde e do comum, buscavam inspiração no operário ou no camponês, mostravam cenas de família ou exibiam a miséria em que viviam os desabonados. O neorrealismo introduziu uma forte leitura da consciência de classe e da sua capacidade reivindicativa ou de ação, concentrando no observador da obra de arte uma amplitude social até aí dominada pela expressão artística naturalista, todas as manifestações de arte em pintura, escultura, desenho, fotografia, gravura, ilustração e cerâmica foram base para o trabalho destes artistas. Um dos pontos altos a exposição é o de desmontar o estereótipo de que o neorrealismo era meramente apologético de uma arte ao serviço da luta de classes, uma espécie de Bíblia para fermento revolucionário, no percurso desta exposição de longa duração, o visitante vai ser confrontado com a versatilidade, tanto no conteúdo como na forma.

Aqui estou embasbacado no interior do museu, é sempre novo para mim, ainda por cima a tarde está ensolarada, releva-se este branco de cal como nas casas alentejanas, a luz é esplendente, vou subir, hoje há visita guiada pelos dois curadores da exposição, David Santos e Paula Loura Batista, e bem ilustrativa será nos seus comentários, posso assegurar.
A exposição desdobra-se em secções temáticas, os curadores advertem-nos no início do seu catálogo o que há por detrás deste título escolhido para a exposição: “Inspirados pelo provérbio chinês, podemos dizer que a arte é como uma gota de água que cai no deserto, pois nunca opera revoluções, nem uma ação imediata ou direta sobre a realidade, interpelando-nos, porém, o suficiente para nos fazer refletir, a partir de uma magia que nos espanta e influencia ao longo da vida.” E dizemos que é desejável aqui chegar ou daqui partir com este catálogo possuidor de textos primorosos que nos falam do compromisso dos neorrealistas, do que há de singular neste movimento estético, como ele é substantivo para o conhecimento histórico da oposição ao Estado Novo, como ele igualmente se confrontou, entre modernistas e surrealistas, conciliando o figurativismo e o abstracionismo.

É impossível aqui mostrar o conteúdo das diferentes secções temáticas, mas não resisto a entusiasmar o potencial visitante dizendo-lhe o que vai encontrar. Vai encontrar varinas, ferroviários, marinheiros e pescadores, camponeses, peixeiros, pastores, mulheres de empreita, mondadeiras, rendilheiras, e algo mais, é trabalho, de canastra à cabeça, a tocar o realejo, pescadores arranjando o cordame. E aqui o visitante seguramente terá surpresas neste caleidoscópio laboral, pontificam Júlio Pomar, Lima de Freitas, Alice Jorge, Victor Palla, Nuno San-Payo, é deste que se mostra um dos seus quadros.
Varinas no Cais, por Nuno San-Payo, 1950
Júlio Pomar, Estudos para o Ciclo do Arroz, 1953
A Mulher do Mar, Júlio Pomar, 1956.

Aqui detenho-me um pouco mais, é obra premiada em exposição da Gulbenkian, na temática de gravura, consta um exemplar cá em casa, o meu padrinho era sócio da Gravura, num meu qualquer aniversário mandou-me abrir uma pasta e escolher uma obra à vontade, esta Mulher do Mar tenho-a por companheira, espero por muitos anos e bons, Pomar é um dos meus ícones e o neorrealismo deve-lhe muito, e ele seguramente que ficou devedor a esses tempos de denúncia do Estado Novo.
Isto é o Haiti: escolhendo café, anos de 1940, por Byron Coroneos (?)

A segunda secção é dedicada à paisagem, o visitante será surpreendido por obras inebriantes de um Victor Palla, uma atmosfera de subúrbio de Nuno San-Payo, o porto de Portimão de Querubim Lapa ou uma paisagem descarnada de João Hogan. Daqui se prossegue para outra secção, a família, com obras, entre outros, de José Dias Coelho, Júlio Pomar ou Mário Dionísio. A nova temática é política, como escreve um dos curadores, David Santos: “Inspirada pelas vanguardas político-revolucionárias de meados do século XIX, a arte converter-se-ia num instrumento crítico de incidência direta sob a realidade social, com a intenção deliberada de a transformar.” Esta é a génese do que irá acontecer pelos anos de 1930 e 1940, o profundo compromisso entre a arte e a sociedade, o artista não irá abdicar de falar da guerra, da prisão, da censura, de mostrar de que lado está a operação, etc.
Desenhos originais para o livro Serranos de Mário Braga, por Cipriano Dourado, 1955

Tinha eu 16 anos quando acompanhei a minha mãe numa visita a Coimbra, aqui residia uma das suas maiores amigas, trabalhava igualmente na maternidade, junto à Sé Velha. O chefe dos serviços era o escritor Mário Braga, deve ter percebido que aquele adolescente se maravilhava com a matéria dos livros, e então ofereceu-lhe dois livros, um deles o livro de Contos Serranos onde estão estas ilustrações e outras mais de Cipriano Dourado, foi o princípio de uma grande estima, só morreu quando o grande contista se finou.
Prisioneiros políticos, por José Dias Coelho (1955-1961)
Ilustração para o livro Fanga de Alves Redol, 1948

Muito impressiva é a secção sobre o retrato, aí o visitante encontrará obras revelando Soeiro Pereira Gomes, Orlando da Costa ou Alves Redol, entre outros. E chegamos ao lazer, com os seus saltimbancos, danças da roda, até um carrossel prodigioso, talvez um remate felicíssimo para esta exposição, aparece uma ilustração para o livro Fanga de Alves Redol, de Manuel Ribeiro de Pavia.

Que belíssima exposição! Espero ter seduzido o leitor, pode muito bem acontecer que nos encontremos nos tempos mais próximos neste magnífico edifício concedido por Alcino Soutinho.
Saltimbancos, por Nuno San-Payo, 1951
Carrossel, por Rui Filipe, 1960-61
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24077: Os nossos seres, saberes e lazeres (556): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24077: Os nossos seres, saberes e lazeres (556): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
O avô sentiu-se feliz em passear-se por tal museu, tão cheio de olhares sobre a História de Portugal no plano artístico. Um trabalho que se impunha que a neta elaborasse, impressões de uma viagem e o significado deste ou daquele museu, deu livre curso a um dia bem passado olhando obras-primas de barristas, diferentes telas com motivos religiosos, até se falou um pouco sobre as doações de Calouste Gulbenkian e a conversa com duas restauradoras que ali prestam serviço em torno dos chamados Painéis do Infante deixaram a menina um tanto dececionada, como explicar em relatório que não se sabe ao certo quem pintou aquela obra-prima ímpar, quem a encomendou, quem são aquelas figuras, o significado das relíquias, sente-se que há ali por detrás uma influência flamenga, mas o mistério perpetua-se, é bem provável que não haja cabal chave explicativa, mas por ali ficamos estarrecidos, e muito feliz me senti com aquela curiosidade da jovem andando à volta da Custódia de Belém, mirando-a de todos os ângulos, não escondendo a plena admiração. Foi um dia em cheio, só espero que o trabalho da neta, porventura ajustadamente ilustrado, mereça o aplauso da turma.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90):
Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2)


Mário Beja Santos

Feita a pausa, e com o estômago reconfortado, lançamo-nos nesse prato de substância da grande pintura internacional, o quadro de Bosch anda em exposição, mas advirto a neta que preparei uma seleção de telas que vale a pena ela pôr em relatório. Vamos começar.
S. Jerónimo, por Albrecht Dürer, século XVI

É um Dürer muito especial, ficas a saber que este alemão é o autor daquela gravura do rinoceronte que tu tanto aprecias. Quanto ao tema, versa uma questão central da Doutrina cristã, advertência sobre a vaidade, tudo vai acabar em ossadas, o melhor é fazer bem aos outros e amá-los como nós gostaríamos que os outros assim nos tratassem.
Retrato de Lucas Vosterman, o Velho, por Anton van Dyck, c. 1630

Este flamengo, habilíssimo retratista, enxameia vários museus europeus, gente poderosa, pela certa, de religião severa, também pela certa, o leitor que compare este van Dyck com outro retrato mais abaixo de Jacome Ratton, de Thomas Lawrence, veja-se a perícia no domínio total do espaço, o contraste entre o fundo e a figura, aquela barba fulva e aquele bigode retorcido, o rosto dominante e o chispar do olhar, de quem nada teme. Que grande retrato!
Natureza-morta com frutos, Antonio Pereda y Salgado, século XVII

Gosto muito de comparar Pereda com a nossa Josefa de Óbidos, ponho sempre esta a ganhar, mas tenho que admitir que Pereda tinha uma capacidade na reprodução dos elementos da natureza-morta como poucos outros dos seus contemporâneos, veja-se a linha da mesa, a faca e o fruto cortado, os utensílios cuja forma em nada obstruem a visão dos produtos da Natureza. Dá gosto estar aqui diante de Pereda e gabar-lhe o seu talento.
Depósito de Armas, David Teniers, século XVIII

Tenho sorte de conhecer uma boa parte da obra de David Teniers, em museus belgas. O que mais me cativa neste “Depósito de Armas” é a solução que o mestre encontrou no jato de luz à esquerda que nos permite ver com absoluta nitidez quem figura em primeiro plano e numa extraordinária escala, é preciso ter mão de soberbo artista para pôr tanta figura em curto espaço e com o domínio absoluto do claro-escuro.
Obras de Misericórdia, pintura de Peter Brueghel, o Jovem, século XVII

Há uns bons anos, tive o privilégio de ver em Bruxelas uma exposição sobre a Firma Brueghel, foi uma autêntica fábrica que durou gerações, clientela abastada cria cópias de telas passadas, trocavam-se ou afeitavam-se alguns pormenores e o cliente ficava regalado. Brueghel pinta exemplarmente o mundo do seu tempo, velhos e novos, gente com saúde e aleijados, cenas brejeiras, bêbedos delirantes, folias em festas de casamento, aqui o cliente encomendou algo de bastante comedido e vemos em primeiro plano agasalhar quem vinha nu e dar pão a quem precisa. Não escondo que prefiro Brueghel, o Velho, mas rendo-me a esta capacidade da fábrica e ao génio de pôr tanto movimento e colorido em tão curto espaço.
Homem Cozinhando, Jan Steen, século XVII

Há uma razão especial para ter completado demoradamente este homem em preparos de cozinha. Fui amigo de um notável artista, de nome Rolando Sá Nogueira, alguém que foi um porta-estandarte da contemporaneidade pelos temas a que aludiu, desde o consumo à questão racial. Ouviu frequentemente clamar que Jan Steen era um dos santos do seu culto, e neste preciso momento aqui o recordei, sabendo amargamente que não há amigos que possam substituir os amigos que perdemos.
Doação de Leão do período ptolemaico (Egito) feita por Calouste Gulbenkian ao Museu de Arte Antiga
“General William Keppel, Storming the Morro Castle”, Pintura de Joshua Reynolds, século XVIII, doação de Calouste Gulbenkian.

O Sr. 5 por cento do petróleo quis manifestar o seu reconhecimento a Portugal doando algumas das suas obras de arte, abrangendo pintura, escultura, artes decorativas e algo mais. Ele adquirira, nomeadamente no período londrino, um conjunto de obras de arte de que se ufanava, caso do Turner exposto no museu com o seu nome, quadro a óleo de irreprimível beleza. E ofereceu ao Museu Nacional de Arte Antiga um pequeno conjunto de telas britânicas de incontestável valor, é o caso deste quadro de Joshua Reynolds de que nos atrevemos abaixo a dar um pormenor que revela a altíssima perícia do mestre.
Quadro de Jacome Ratton, pintado por Sir Thomas Lawrence, faz parte da doação Gulbenkian.

Jacome Ratton viveu na Rua do Século, numa casa apalaçada que é hoje o Tribunal Constitucional. Grande empreendedor, vamos vê-lo envolvido em negócios de aviação em Tomar. A minha conversa com a neta tinha a ver com o contraste de cores e luminosidade, um fundo um tanto neutro que assegura a revelação da indumentária austera, Ratton olha-nos um tanto enviesadamente, todo ele é imponência, um semblante de triunfador.
Este quadro de Andrea Mantegna, um dos nomes mais sonantes do primeiro Renascimento italiano, está aqui exposto por empréstimo, vem de Verona, é uma tela pintada a têmpera de ovo, a Virgem e o Menino rodeados por figuras magnas da Igreja, parece levitar, a Virgem e as figuras insígnias trajam roupa recamada que acabam por dar a ilusão de que vão ascendendo acompanhando na ascensão a Virgem e o Deus Menino. É de ficar estupefacto com o controlo do comprimento, altura e profundidade e a subtileza que nos permite questionar que o conjunto se encaminha para os céus.
É um momento crucial da visita, estamos diante dos chamados Painéis do Infante, a neta quer saber os porquês de tanto mistério. Conto-lhe como dois homens de letras encontraram casualmente esta ímpar obra-prima da pintura europeia do século XV abandonadas em S. Vicente de Fora, a série infindável de teses e teorias desenvolvidas à volta dos painéis, houve até gente profundamente desavinda, alguém se suicidou, e estava nesta lengalenga que ia aguçando a curiosidade da neta, quando saíram duas senhoras lá dos fundos do restauro, não tive pudor em interpelá-las, vejam as senhoras que estou aqui a procurar dizer à minha neta que não se sabe ao certo se os painéis são de Nuno Gonçalves, onde foram pintados, em que templo foram expostos, se estão completos e até o significado das figuras, as próprias relíquias são altamente contestadas, não se sabe se a figura central é S. Vicente, andou-se a dizer que a figura do Infante D. Henrique é indiscutivelmente aquela com o seu chapéu peculiar, as senhoras sorriram e simpaticamente disseram à menina que está tudo em discussão mesmo com a espectrografia não se consegue apurar nada em concreto. O que para o caso importa é que não há na pintura europeia do século XV esta mole humana representada com tanta determinação, parece mesmo que Portugal entrara numa viragem, e o seu vigor aqui ficou plasmado para todo o sempre. É claro que a neta não ficou satisfeita, que resposta para tudo, e a História muitas vezes troca-nos as voltas.
A visita caminha para o fim e vejo a neta interessada numa escultura, toca de ver a legenda, é do evangelista São Marcos, o seu autor é Cornelis de Holanda, nem falta o leão a seus pés, é a defesa da Doutrina, o respeito pela Palavra.
Nunca resisto a contemplar este Cristo, muito mais do que a dor e a transfiguração é a proporção e o equilíbrio das formas, e quem aqui o fixou, em lugar de honra, sabia as regras de ouro da museografia, na ausência da cruz escolhe-se um ângulo que admite que o Cristo Homem já partiu para o Pai.
Antes de partir, no andar inferior, levo a neta a contemplar a Custódia de Belém, ela que é cética ou no mínimo circunspecta quando lhe mostro os meus objetos classificados como artes decorativas, aproximamo-nos deste resguardo em acrílico e peço-lhe a atenção para os pormenores, onde é que tu alguma vez viste esta renda, esta adoração de figuras ascendentes, a elegância das proporções, até ao pináculo e o somatório de todas as razões e crenças, que é a Cruz de Cristo.
Perto da saída, no alto da escadaria, está esta fonte barroca como não conheço outra igual, fizeram bem pô-la sobre uma peanha, olha, neta, para o tornear dos pés, a delicadeza de todo o corpo da fonte e a solução encontrada para fazer subir o corpo alteado que termina sob forma de voluta. Posso confessar que a neta estava verdadeiramente impressionada.
Esta sim, é a última imagem da nossa itinerância, três restauradoras limpavam este imponente quadro escultórico, a deposição de Cristo. Meti conversa, explicaram que estava tudo numa sujidade inimaginável, veja estas cores, há quantos anos ninguém as vira como quando foram pintadas, este conjunto não é uma grande beleza? E com a saudação e admiração por tão belo trabalho aqui nos despedimos até à próxima viagem.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24059: Os nossos seres, saberes e lazeres (555): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (89): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (1) (Mário Beja Santos)