1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 19 de Novembro de 2010:
Caro Vinhal
Ai vai mais uma das "Memórias boas da minha guerra".
Um grande abraço do Silva
Memórias boas da minha guerra (8)
PROVAS DE PERIQUITOS
Viviam-se dias calmos naquela “estância termal” de Canquelifá, no nordeste da Guiné, no final da comissão. O trabalho limitava-se a serviços de manutenção e a alguns pequenos patrulhamentos, a nível de Pelotão.
A população nativa cuidava pacatamente do seu gado, enquanto alguns deles vigiavam o “inimigo”, em cima de palanques feitos de troncos de árvores, colocados no meio do mancarral. De lá gritavam impropérios em idiomas locais, afugentando o “inimigo” – bandos de periquitos – ao mesmo tempo que lhes atiravam pedras, evitando que comessem os amendoins.
O Silva e a sua periquita
Dado o interesse da tropa por esses pássaros encantadores, para os apanharem e, por vezes, para os venderem, colocavam cola na rama da mancarra (amendoim), que os prendia pelas asas.
Ora, o pessoal da Cart 1689 andava entretido com um novo desporto: competições com periquitos e com um novo divertimento de domesticar periquitos.
As cenas abaixo descritas decorrem na parada, local espaçoso e apropriado para a actividade desportiva, aqui levada ao mais alto nível. A assistência era considerável.
Faziam-se apostas e ouviam-se os mais variados comentários.
- Força
Spartacus! Anda, que vamos ganhar! – gritava o
Mafamude.
- Força
Ben Hur! Ataca, que até os comemos! - gritava o
Matosinhos.
Um e outro em tronco nu e a transpirar ao sol, procuravam, através da imagem verbal, aproximar o seu desempenho ao dos respectivos ídolos bíblicos, promovidos pelo cinema, mas o físico de 1,50 e picos não estava compatível com tais ideias.
A inspiração nas quadrigas romanas, encontrou eco nas latas de conserva, que reluziam mais que os ditos carros das quadrigas, seguramente devido à limpeza prévia das formigas.
Tanto um como outro, os periquitos em competição (quais “aprendizes de equídeo”), de voos cortados e presos ao atrelado, lutavam entre si para alcançarem em primeiro lugar o ramo de mancarra colocado na meta traçada no chão, uns metros à frente.
Nesta final ganhou o periquito do
Matosinhos porque, de repente, lhe mostrou uns amendoins já descascados. O
Mafamude gritava pelo árbitro Nogueira (futuro árbitro da elite do nosso futebol) para reclamar:
- Não vale, não vale, este gajo fez trafulhice!
Ali mesmo, a cerca de 20 metros, decorria, em simultâneo, outra final de competição:
- Corre
Djando, corre e come-lhe a mancarra – gritava o Sousa.
- Sprinta
Jaburu, não sejas
morcon - repetia o
Tripeiro.
A mancarra era colocada no centro da meta e os periquitos, soltos em simultâneo, corriam para lá.
Ganhou claramente o
Jaburu que atravessou a meta em primeiro lugar, seguindo em direcção ao
Tripeiro que, mesmo em frente, lhe acenava com um porta-chaves brilhante, com o emblema do FCP.
Nova reclamação, junto do Nogueira, que foi “injustamente” aceite. O reclamante alegou “que o periquito fora escravizado para seguir cegamente esse emblema e não ligou nada à competição ”.
Ainda na mesma zona, já perto da messe, podia assistir-se aos mais variados treinos, tendo também em vista a superação do esforço e a optimização da técnica, aliás bem patente mais na vontade dos treinadores do que na dos
competidores - periquitos. Numa primeira fase, o treino consistia em mandar o periquito saltar de um dedo indicador para o outro.
- Salta periquito! Salta!
O treinador
Bazaruco aposta tudo no:
- Salta, filho da puta! Salta, se não dou-te cabo do canastro!
Mas o
Varzim, tinha outros modos. Acariciava o seu pupilo e dizia-lhe baixinho:
- Salta
Tarzan, que eu arranjo-te uma
Jane! Salta!
O Dias, açoriano, também andava entusiasmado com essas sessões de treino matinal. Curiosamente, tal como o
Fiscal, não tinha sorte com os seus amestrados, possivelmente devido ao hálito repelente que exalavam. O
Fiscal, que ressacava continuamente nas manhãs do
dia seguinte, nunca estava em forma e não conseguia os seus intentos. Mas isso era, também, porque quase todos os dias mudava de instruendo. Já tinha os dedos cheios de adesivos, devido às trincadelas que lhe davam. Normalmente, vingava-se de forma cruel. Por sua vez, o Dias, além da habitual ressaca, exibia um sorriso tenebroso, devido às deficiências dentárias, capazes de repelir qualquer periquito…
Ali próximo, estirado na rede à sombra das mangueiras, com as mãos atrás da nuca, o Alferes, que acabara de mastigar algum
mata-bicho, ia soltando gargalhadas. E eu, noutra rede, não ria tanto como ele, apesar de estar a ler uma das obras proibidas do José Vilhena.
De repente, o Dias dá um grito enorme:
- Ah seu grande filho da puta! – ao mesmo tempo que sacudiu fortemente a mão direita com o periquito ainda mordendo tenazmente o dedo indicador. Quando o periquito se desprendeu, bateu no chão com tal força que, depois de um palrar meio cacarejado, ficou morto no chão.
O Dias seguiu, uma vez mais, para a Enfermaria e o Alferes levantou-se, agarrou no desgraçado por uma pata e chamou em voz alta na direcção da cozinha:
- Ó Faxina, Faxina! Prepara mais este!
Silva da Cart 1689
"O sorriso do Dias" (ao fundo, vę-se o Condesso compenetrado a escrever, alheio aos festejos apalhaçados dos gajos da 1689 - festejava-se mais um mês de degredo)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 22 de Outubro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7159: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (5): Até beber urina
Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P6951: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): O Miranda e a sua adoração pelo Fê Quê Pê