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domingo, 3 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18039: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 11 e 12: os primeiro dois mortos do batalhão, por acidente com dilagrama


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > "Este aerograma foi enviado de Fulacunda, na Guiné, em 1973, para a minha namorada. Em 2017 reenvio-o para todos os ex-combatentes. Bom Natal"... [Fonte: página do Facebook do autor]

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Foto de ontem (à esquerda) e   de hoje (à direita, em baixo):  o José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74.

Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção).  Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande .


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:

Sinopse (*):

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 11 e 12: os primeiros dois mortos do batalhão

[O autor faz questão de não corrigir as transcrições das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, que o criou. ]


11º Capítulo > ALBANO MENDES DE SOUSA CASTRO E O POLÍCIA DESCONHECIDO.

O mundo é mesmo pequeno. Sempre vivi por acaso, na maioria das vezes,  sem um plano pré-concebido; sobrevivi sempre. Quando nada o fazia crer e mesmo sem saber como, tenho a impressão de que tudo quanto me diz respeito, por muito mau que seja, de repente acontece algo para me livrar de apuros.

Passaram-se 15 dias, saí do Cumeré. Fui para Bissau tirar um curso de especialista em Berliet. Fui parar ao quartel-general.

Foi a Cesaltina Carneiro, de Figueiró (Santa Cristina), Amarante, que me disse ter o namorado na Guiné. Eu nem devia ter conhecido a Cesaltina, foi uma casualidade enorme, tampouco saber do seu namorado de quem nem me interessava, absolutamente nada. Mesmo assim insistiu em dar-me o endereço dele, quando soube que eu ia para a Guiné. Pura e simplesmente não quis.

Pois bem, sentado junto à porta de armas do quartel-general em Bissau, um camarada senta-se a meu lado e pergunta-me se eu não era o cabo que tinha andado aos papéis no Pilão dias antes. Claro que disse que sim! Palavra puxa palavra, descubro o Albano Mendes de Sousa Castro, natural de Telões, Amarante, namorado da Cesaltina Carneiro, com quem haveria de casar. Era 1º cabo cozinheiro na messe de oficiais.

Este pequeno capítulo é a minha modesta homenagem a um homem que conheci em circunstâncias dramáticas, que me deu algumas vezes de comer comida de oficiais superiores, mesmo correndo riscos, por retirar comida da messe, às escondidas. Manteve-se meu amigo enquanto viveu. Não foi longa a sua vida mas foi uma vida cheia de dignidade. Obrigado, Albano, estejas onde estiveres.

Quero aproveitar este capítulo para agradecer a um soldado das forças policiais, do qual não sei o nome, por me ter socorrido quando desfaleci numa rua de Bissau, por desidratação.

Levou-me para a esquadra, deu-me de beber e, após ter recuperado, levou-me de carro ao quartel. Os meus sinceros agradecimentos ao polícia desconhecido.


12º Capítulo > O PRIMEIRO HERÓI

Qualquer um dos ex-camaradas de guerra terá uma história igual, ou muito parecida com a minha, para contar. Antes ainda de sermos colocados nas zonas de guerra, quase todos passávamos pelo mesmo. Os que me estão a ler regressaram e tendo a guerra terminado, há 43 anos, cada vez somos menos para a lembrar.

Quero que saibam que somente agora tive coragem de reler o que escrevi. Não sei se conseguirei levar o meu intento até ao fim. Tentarei dar o meu contributo para as gerações futuras entenderem. Visto por um insignificante soldado sem nome, modesto elemento da “Ala dos Namorados”, o que é a guerra. Ou antes, a guerra vista por aqueles que não deixam o nome na história. Os soldados. Pois, são apenas um número.

Olhando o mundo e as estúpidas guerras, que entretanto se foram travando, não creio que este testemunho modifique alguma coisa. A humanidade foi, é e será,  dominada pela cobiça sem escrúpulos, dos gulosos insatisfeitos que pululam a terra. O dinheiro nunca será o suficiente pois cada um quer, e vai querer sempre, muito mais do que o necessário. É uma miserável consequência de sermos uma espécie desprezível.

No dia 15 de Julho de 1972 fui nadar e comer ostras para Quinhamel. À noite escrevi:

“No meu Batalhão e pertencentes à Companhia C.C.S. quando procediam ao lançamento de um Dilagrama (Dispositivo de lançar granadas de mão com a G 3) a mesma rebentou e morreram um Alferes e um Soldado. Disseram-me que o Alferes quando viu a granada se atirou para cima dela se não teriam morrido muitos mais. Lamento muito dar-te notícias destas”.

Nem há um mês estava em solo guineense. Começavam as tragédias com o meu batalhão.
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segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18017: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 9 e 10: Bissau: da coca-cola (bebida proibida na metrópole) a uma desastrada ida ao Pilão...



Guiné > Bissaau > Av República > Postal ilustrado >: Av da República  (Hoje, Av Amílcar Cabral) > Ao fundo, o Palácio do Governador, e a Praça do Império; do lado direito, a Catedral de Bissau (O postal era uma Edição Comer, Trav do Alecrim, 1 - Telef. 329775, Lisboa).

Fotos e texto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto ( esquerda) e hoje (à direita, em baixo):  o José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74.

Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção).  Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande . [Foto atual, a seguir, à direita].


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:


Sinopse (*):

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia  2 de julho de 1972, domingo,  tem licença para ir visitar Bissau...


9º Capítulo > COCA-COLA


Bissau. Capital da Guiné. Fiquei admirado com a cidade. Até ao escrever sobre ela, disse! “É uma cidade pequena mas engraçada”.

Mencionei vários dos produtos que ali estavam à venda nas lojas: “O que tem aqui mais à venda são tapetes, obras em madeira, porcelanas, colares e pulseiras mais alguns artigos como rádios máquinas de tirar fotografias e outras coisas”.

Recordo-me que uma das primeiras coisas que comprei foi um colar para a minha namorada e um postal com a Avenida da República, o Palácio do Governador (Na altura o General António Sebastião Ribeiro de Spínola) e a Catedral.

Nos bares havia bebidas frescas. Tive muito receio de beber Coca-Cola. Embora já tivesse ouvido falar nela, na metrópole era proibida e eu desconhecia o sabor dessa bebida. Nos primeiros dias, só bebia Fanta.

Podem considerar estúpido, o que vos digo neste capítulo. Não fui só eu a ter receio de beber Coca-Cola. Por certo, reparam numa certa subserviência que eu sentia, perante a ordem vigente. Se algo era proibido por lei, cumpria a lei. Asseguro-lhes, sem vergonha de o dizer, que era um autêntico ignorante do mundo, que ultrapassava os seus limitados horizontes. Lia muitos livros, mas nenhum era proibido e embora, às vezes, as dúvidas me assaltassem, ainda não tinha a noção nem o conceito de democracia ou liberdade. Mais para diante, vão perceber onde altero o paradigma. Entretanto, obedecia ao que me era ordenado e é claro, precisei de ir para a Guiné, para me ser permitido beber Coca-Cola. Não admira que muitos outros partissem para outros países, para lhes ser permitido ter outras coisas. Também foi lá que eu, e muitos outros, aprendemos que sem luta não há liberdade para os povos.

Logicamente, quando fiz uma encomenda para mandar o colar à namorada, incluí algumas latas dessa bebida. Creio que ela as bebeu, porque um irmão, que na época tinha regressado da sua comissão em Moçambique, lhe afirmou que não era uma bebida perigosa.

O obscurantismo sempre foi a principal premissa, para que os ditadores se prolongassem à frente dos destinos do povo; mesmo um produto corriqueiro intimidava. Ter um povo culto é o Maior receio de quem manda e a Maior ameaça para o nepotismo.

O interessante é que, após todos estes anos, ainda se diz que a Coca-Cola é prejudicial à saúde. Ironias!

Socorro-me do que escrevi naqueles dias, estupidamente perdidos, em que misturei algum drama com comédia, para que estes meus relatos, perdurem na memória. Não sendo um erudito, tento dar-lhes o meu testemunho com palavras simples, com a certeza de que tudo o que lhes relato aconteceu na realidade. Agora não mostrem isto à minha família. Vamos até ao Pilão.


10º Capítulo > O PILÃO? QUE SUSTO!

Parecia uma autêntica carraça, aquele meu amigo de armas. Por uma mera casualidade, encontrámo-nos sucessivamente. No CICA 1, no Regimento de Cavalaria nº 6, no Regimento de Transmissões, RAL 5 e, por fim, em Cumeré. O engraçado é que não pertencíamos à mesma Companhia, ou Batalhão. Pois bem, fomos os dois. Imberbes soldados com meia dúzia de dias de experiência em África, armados em conquistadores das “Bajudas” (Raparigas) guineenses, para o Pilão.

O Pilão é um instrumento usado para múltiplos usos na culinária africana desde descascar arroz ao moer milho, café, etc. Neste caso, porém, era um bairro onde se procuravam, a troco de alguns pesos, favores sexuais. (A moeda na Guiné, embora fosse o escudo local, era mais conhecida por Peso).

Correu muito mal a nossa incursão por entre as tabancas e, se não fosse termos encontrado dois camaradas da “velhice”, podia ter sido pior.

Logo no primeiro assalto da primeira que apareceu, aconteceu que perdemos todo o entusiasmo. A senhora exalava um cheiro horrível a catinga e exigia 200 pesos, quando nós tínhamos informação de que não era tanto, por isso recusámos. Ao segundo assalto, entrámos na tabanca e só se ouvia bebés a chorar, o que por certo não ia tornar o ato em si, muito entusiasmante. Mais uma vez recusámos, só que um velho negro desdentado, que se encontrava à porta, em tom ameaçador, queria à força que pagássemos na mesma. Saímos dali rapidamente e fomos mais um pouco para o interior do bairro. Perdemo-nos por entre o emaranhado de ruas de terra lamacenta, pois tinha acabado de cair um enorme aguaceiro.

Só escutávamos falar em crioulo e não percebíamos nada do que diziam. Encharcados até aos ossos, já temíamos até pela nossa segurança, e veio-me à memória o que já alguém me dissera antes. Tinham sido mortos alguns soldados, por terroristas do PAIGC que se ocultavam entre a população civil. Arranjavam uma confusão por causa das mulheres, e tinham a desculpa de que nós as provocávamos. Testemunhas não lhes faltavam.

Foi um enorme alívio encontrar outros brancos naquela altura: o 1º Cabo cozinheiro Castro e um amigo, que como ele, estava colocado no quartel-general. Tinham ido buscar as suas roupas à lavadeira que lhas preparava semanalmente. Tiraram-nos de lá sem comentar que estávamos quase borrados de medo.

Do Castro ainda vos falarei novamente. Quanto ao meu amigo carraça, ainda nos encontrámos mais uma ou duas vezes. Marcámos encontrar-nos na Metrópole, se sobrevivêssemos, em agosto de 1974, mas isso não sucedeu; só guardei o número de ordem [, nº mecanográfico,]  dele que acabei por perder. De certeza que agora tem um nome. Esse, não sei.

(Continua)

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Nota do editor

(*) Último poste da série > 22 de novembro de  2017 > Guiné 61/74 - P18002: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 7 e 8: O Cumeré, os mosquitos, o patacão, a correspondência, os preservativos...

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18002: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 7 e 8: O Cumeré, os mosquitos, o patacão, a correspondência, os preservativos...

Ontem (à esquerda) e hoje (à direita, em baixo): o José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74.

Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo hoje autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Senta-se debaixo do poilão da Tabanca Grande no lugar nº 756. (*)

Fotos e texto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Prosseguimos a pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:

Sinopse (*):

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos  TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 7 (A estada no Cumeré) e 8 (Raios dos mosquitos)


[O autor faz questão de não corrigir as transcrições das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, que o criou. ]


7º Capítulo > ESTADA NO CUMERÉ


Posso afirmar perentoriamente que 90% dos soldados que “Em Nome da Pátria” estiveram nas ex-províncias ultramarinas, passaram pelo mesmo ritual que acabei de descrever. Geralmente, com uma instrução básica, éramos despejados nos locais de conflito e, somente aí, adquiríamos os conhecimentos necessários para sobreviver, se tivéssemos a sorte de aguentar os primeiros meses.

Foi estudando a batalha de Aljubarrota, mais precisamente, a famosa “Ala dos Namorados”, que tive a noção do quanto é ridículo o que os senhores da guerra fazem com os jovens. Incutem-lhes um fervor patriótico, ou religioso, que os torna, na naioria das vezes e sem se aperceberem, “carne para canhão”. Na referida batalha de Aljubarrota, os primeiros a avançar e como tal, os primeiros a morrer, foram os mais novos.

Estou agora a lembrar-me que fui sempre um pouco medricas e mesmo que, ao chegar a Bissau, tivesse sido separado dos meus camaradas da 3ª companhia porquanto eles foram para Bolama e eu fui para Cumeré. O que é certo, por aquilo que escrevi, logo no primeiro dia que pisei solo africano, não tive um receio por aí além. Dizia eu!

“Em Cumeré estamos a tirar o I. A. O. (Creio que a sigla significa: Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) Aqui não há guerra mas as pessoas parecem-me todas hostis. Neste quartel estão cerca de 600 homens. O calor é sufocante e não há bebidas frescas, nem grande comida e se eu achava caro uma refeição no Porto custar7$50, já me avisaram que fora do quartel custa 70$00. Vê bem que ladrões. Acho que são brancos que vivem a explorar os “Periquitos” como nós”. (Periquitos, era o nome pejorativo, usado para descrever os soldados recém-chegados da metrópole). (**)

Pelos vistos, a minha preocupação prendia-se com a comida e bebida. Também havia outra preocupação, a que me referia na mesma carta - a correspondência. Pois é! Eu podia escrever, como o fiz todos os dias. A namorada, família e amigos podiam responder-me. Eles saberiam de mim, e eu, só um mês mais tarde, teria notícias deles.

Meus amigos! Isto passou-se há 45 anos. Hoje contactamos, com qualquer parte do mundo, em segundos. A guerra também me deixou sem amor dos meus, mesmo por palavras escritas; por muitos dias, por muitas semanas. É uma das coisas mais difíceis de suportar, após a partida. Não sabermos se alguém sabe da nossa chegada! Imaginem o que aconteceu com todos aqueles que,  para a guerra nas ex-colónias, viajaram de barco.



8º Capítulo > RAIOS PARTAM OS MOSQUITOS


Os mosquitos guineenses rapidamente perceberam que a minha pele branquinha era um convite a picar-me e não tardou que o meu corpo estivesse repleto de pequenas manchas avermelhadas. Sem nada para me proteger, pois o repelente antimosquito estava, há muito, esgotado, a comichão era insuportável; somente debaixo do chuveiro conseguia acalmar essa sensação dolorosa. Mas até isso era difícil, porque a água era escassa e só podíamos tomar duche uma vez por dia. Fiquei a saber que o mosquito se chama “Anófele” e que as fêmeas são o ser vivo mais perigoso para o ser humano, devido às infecções que provoca, ao introduzir o parasita no nosso organismo.

Decerto, compreendem que com tantas picadelas, rapidamente me convenci, quando me começou a doer a cabeça, um pouco de febre e falta de apetite, que já tinha Paludismo. Já me doía tudo. O médico, porém, receitou-me uns comprimidos e o certo é que, dias depois, já me sentia melhor. Juro que até pensei que se adoecesse gravemente me mandavam para casa. Quanto errado estava pois, meses mais tarde, mesmo estando muito doente, continuaram a dar-me os mesmos comprimidos. Que eu tivesse conhecimento, nesse pequeno período, em que estive no Cumeré, só regressou à Metrópole um militar que fora atingido pelo rebentamento de uma granada na instrução e ficara muito ferido.

Felizmente, dia 2 de julho de 1972 foi a um domingo. O comandante do aquartelamento do Cumeré autorizou a nossa ida a Bissau. Já poderia comprar o que me fizesse mais falta, estando no topo das prioridades, mesmo sem saber se iriam ser necessários, preservativos. O comandante alertara com muita ênfase, que se morria mais com paludismo e doenças venéreas do que em batalha. Mais valia prevenir.

(Continua)




Guiné > Mapa geral da província (1961) > Escala 1/ 500 mil > Posição relativa do Cumeré, a nordeste de Bissau, abaixo de Nhacra, na margem direita do estuário do Rio Geba.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)

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Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série:

11 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17961: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 1: Aprovado para todo o serviço militar


16 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17976: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 3 e 4: Promovido a 1º cabo condutor autorrodas e colocado no RAL 5, em Penafiel

18 de novembro de  2017 > Guiné 61/74 - P17983: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 5 e 6: Partida nos TAM, com destino ao inferno:

(**) Usando o conversor da Pordata, verificamos que 7$50 e 70$00 em 1972 valeriam hoje, 1,74 € e  16,27 €, respetivamente. Ao escudo ("peso") da Guiné, temos que abater 10%...Se uma refeição no Porto custava, a preços de hoje, 1,74 €, em 1972, em Bissau, custaria 14,643 € (90% de 16,27 €, o equivalente a 70 escudos da metrópole).

Em 1969, uma refeição (bife com ovo a cavalo + cerveja) em Bafatá, no restaurante "Transmontana", custava 20 "pesos", o equivalente, hoje, a  5,328 € (=5,98 € x 0,90).

Como se vê, de 1969 para 1972, a inflação (ou a especulação, típica da economia de guerra) deu cabo do patacão dos desgraçados dos combatentes que íam parar com os quatro costados à Guiné!

Vd. os nossos postes sobre o patacão.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17976: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 3 e 4: Promovido a 1º cabo condutor autorrodas e colocado no RAL 5, em Penafiel



José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74. Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo hoje autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Senta-se debaixo do poilão da Tabanca Grande no lugar nº 756.

Foto de cima: no Regimento de Cavalaria 6, 1972, depiois de ter feitoa recruta do CICA 1 - Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas, no Porto, junto ao paláciod e Cristal;promovido a 1º cabo condutor autorrodas será colocado em Penafiel, e daqui mobilizado para a Guiné.

Fotos: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Prosseguimos a pré-publicação do próximo livro do nosso camarada José Claudino Silva:



Sinopse (*): 

(i)  foi à inspeção em 27 de junho de 1970,  e começou a fazer a recruta,  no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1;


(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.



2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva,  ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 3 e 4: Promovido a 1º cabo condutor autorrodas e colocado mo RAL 5, em Penafiel


[O autor faz questão de não corrigir as transcrições das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, que o criou. ]


3º Capítulo > UM MILITAR FAMOSO



1972: foi um ano bissexto. Aproveitei o dia 29 de Fevereiro para escrever,  gabando-me tanto que, julgo, passados estes 45 anos, ainda estou todo babado. Nessa semana, soube que passei com distinção no exame de condução. Fui eleito o melhor do pelotão e o segundo da recruta. Senti-me um militar invencível. O Major Alvega que se cuidasse. Recebi uma medalha das mãos dum general qualquer. Cerimónia que foi filmada pela RTP e que foi para o ar, no dia 4 de Março de 1972. Foi o meu primeiro instante de fama.

Tendo o privilégio de poder escolher onde queria continuar a instrução, escolhi o Regimento de Cavalaria Nn 6 que ficava na Constituição, também na cidade do Porto.

Acho agora, a esta distância, que esses acontecimentos fizeram com que o exército me comprasse. Deram-me mais um pouquinho para eu lhes ser fiel, e eu, idiota como sempre fui, fiz exactamente o que esperavam de mim: esforcei-me por ser um militar exemplar, o que na realidade não  era.

Na época, havia três formas de sair da unidade, de forma legal:  (i) dispensa -que servia para algumas horas; (ii) pretensão - para passar a noite fora; e (iii)  passaporte - para passar o fim-de-semana. 

Estes três métodos dependiam sempre de autorização superior. Recordo-me que, devido às dificuldades em se obterem essas autorizações, muitos dos recrutas estavam dispostos a pagar, para poderem sair dos aquartelamentos. Reconheço que fui um oportunista e ganhei algum dinheiro com isso, pois nunca tive grande dificuldade em obtê-las e podiam trocar-se. Eis os preços: 

(i) Dispensa - 50$00 [, equivalente hoje a 11, 62 €, segundo o conversor da Pordata];

(ii) Pretensão - 100$00;[, eqquivalente a 23, 25 €)

(iii) Passaporte - 200$00. [, equivalente a 46,50 €]


Acreditem que era caro. Como quase tudo que é ilegal. A minha medalha e aparecer na TV abrira-me algumas portas e eu passei a lixar alguns camaradas, quando devia ter sido mais solidário com eles. Um dia, precisei de um passaporte, e o Luís vingou os colegas todos, exigindo-me 400$00 [c. de . 93,00 €]. Bem feito! Virou-se o feitiço contra o feiticeiro e acabei com o negócio.

O Exército continuava a premiar-me. No RC 6, recebi mais uma medalha e um diploma de 2º classificado na instrução, sendo promovido a 1º cabo C.A.R. [Condutor Auto.Ridas]. Mais uma vez, pude escolher para onde queria ir, tendo três unidades à disposição. Escolhi o Regimento de Transmissões em Arca de Água, no Porto.

Neste aquartelamento, dormi pela primeira vez na vida numa cama de esponja.


4º Capítulo > 1º CABO CONDUTOR AUTORRODAS



Recebi as divisas de 1º cabo, em 19 de Maio de 1972. Nesse dia, completei 22 anos. O meu primeiro serviço como cabo foi de 30 de Abril para 1 de Maio. O quartel estava de prevenção. Foi a primeira vez em que senti ser o 1º de Maio um dia importante; até essa altura não fazia a mínima ideia.

No dia 30 desse mês, fui transferido para o R.A.L. 5 (Regimento de Artilharia Ligeira Nº 5), em Penafiel. Estava em casa. O quartel distava mil metros da minha residência. Dali partiria para a Guiné. Tinha sido mobilizado para ir defender a minha Pátria.

Carlos Mendes tinha, recentemente, representado Portugal no Festival da Eurovisão, com uma canção com música de José Calvário e letra de José Niza. Chamava-se “Festa da Vida”. Eu iria representar Portugal, na Festa da Morte. O meu amigo Fernando já tinha cumprido esse desiderato. Fora precisamente na província da Guiné que dera a sua vida... “Em Nome da Pátria”.

[Continua]

________________

Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17968: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 2: A recruta no Porto


José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74. Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo hoje autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Senta-se debaixo do poilão da Tabanca Grande no lugar nº 756.


Fotos: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O autor em Amarante, onde vive hoje, reformado como bate-
chapas. 
1. Prosseguimos a pré-publicação do próximo livro do nosso camarada José Claudino Silva, de quem o nosso editor recebeu hoje a seguinte mensagem:

Estás à vontade para o que quiseres publicar em relação ao que te enviei.

Só irei publicar o livro no próximo ano. Consegui um excelente preço por exemplar e tenho um amigo a corrigir-me o texto, o  que ainda demora uns dias.

Logo que o livro esteja pronto vou propor fazer apresentações por todo o país nos eventos organizados pelas várias associações.A  minha real prioridade é, através dessa ideia, viajar e aproximar o quanto possível todos os ex-combatentes. Se vendo ou não algum livro é irrelevante.

Quero conhecer histórias como a minha e só assim o poderei conseguir. Nestes últimos tempos percebi que cada classe hierárquica tem uma visão diferente da guerra colonial e quero ao meu jeito verificar as discrepâncias que noto nos vários relatos.
Será o meu contributo para memória futura.

Um enorme abraço. Claudino


2. Resposta do nosso editor:

Obrigado, José Claudino,  pela tua rápida resposta às minhas dúvidas sobre o que publicar ou não da versão (ainda em revisão) do teu terceiro livro. O que estamos a fazer é um pré-publicação da versão que me mandaste (119 pp., com cerca de 70 pequenos capítulos).

Já foram publicados bastantes livros de autores que são membros da nossa Tabanca Grande. E praticamente todos editados  primeiro no blogue (nalguns casos, depois...), num série.  Esse facto não lhes retirou leitores, antes pelo contrário. O que é importante é fazer a promoção do livro, aqui e através de sessões de lançamento em vários pontos do país, nos nossos encontros. Podes contar connosco para isso e não só: se precisares de alguém para te escrever um prefácio ou fazer a apresentação do livro podes contar comigo e outros camaradas da Tabanca Grande.

Parabéns por já teres um editor, ou um gráfica, que te apresentou um orçamento em conta. Fazes bem em mandar fazer uma boa e completa revisão de texto, aspeto que muitas vezes é descurado por quem publica pela primeira vez, ou em editoras que te obrigam a pagar a parte a revisão de texto.  Nada é mais desagradável, para quem compra um livro, do que ver um texto, em papel (ou em suporte digital...) demasiado "gralhado".. Uma coisa é uma gralha ou outra que escapa ao revisor de texto. Outra coisa, é teres erros de ortografia, sintaxe, pontuação, formatação, impressão, etc.

Obrigado pela tua generosidade. Prometo que vais ter leitores desta tua série, atentos, interessados e críticos, se bem que solidários e generosos.  Um alfabravo do editor LG


4. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 2:  A recruta [no Porto]

[O autor faz questão de não corrigir as transcrições das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. Por outro lado, respeitamos a vontade do autor de, aparentemente, não seguir o Acordo Ortográfico em vigor. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Prátia", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, que o criou. ]


2º Capítulo: A RECRUTA

No dia 4 de Janeiro de 1972 escrevia a primeira carta como soldado.

“Isto aqui é bestial a comida até nem é muito má. Não devo ir a casa pois não me deram a farda”- Para no dia 10 escrever. “Agora já sei marchar, se não, o alferes manda dar-me uma carecada. Ai o meu cabelinho já o tenho curto de mais e ele ainda acha que está grande!” Sem dramas, acrescentava: “O papel que meti para sair por amparo familiar não vale nada. Paciência tenho de gramar 3 anos.”

Interessante, foi a frase da minha avó, quando me viu fardado pela primeira vez;
Ai Dino! O que te fizeram!

Logicamente, 15 dias depois já me apetecia dar um tiro, ou pôr uma bomba naquela merda toda, só que ainda não sabia disparar. Nem fazer bombas. Também a comida, que entretanto mudara de nome para rancho, já não era tão boa. Felizmente, dia 21 ia haver uma festa no quartel e eu ia estar de faxina, na cozinha.

Após um mês de recruta, mais precisamente no dia 8 de Fevereiro [de 1972], um pouco melancólico, escutava, à noite, a canção “Mais dans la lumière” de Mike Brant, um cantor pop de origem israelita que viveu entre o sucesso e a tragédia (suicidou-se em Abril de 1975 com apenas 28 anos,em Paris).. Mesmo não sendo fã dele, naquele tempo era bastante famoso e o título agradava-me. Embora não soubesse francês, consegui saber que significa. “Mas na luz”. Se a música era sobre a luz, a minha vida tinha tudo para nos próximos anos, ser muito escura.(**)

Ser recruta na cidade do Porto foi muito interessante. Mais de metade dos meus camaradas de armas nunca tinham saído das suas aldeias e eu, que já tinha visitado o Porto muitas vezes, acabei por ser o guia de alguns. Escusado será dizer que os locais, aonde mais os levava, eram locais de má fama; mas quem acabou por ter má fama fui eu. Já havia quem me considerasse um autêntico gigolô. Que culpa tinha eu de conhecer o Porto, da Via Norte à Rua Escura? E mais. Pagarem-me um café, ou uma gasosa, por os guiar até lá. Eu nem bebidas alcoólicas bebia. Se queria algum favor, de uma das mulheres, tinha de pagar como os outros. Excepto a Luísa, mas essa gostava mesmo de mim!

(Continua)
________________

Notas do editor:

(*) Vd. primeiro poste da série > 11 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17961: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 1: Aprovado para todo o serviço militar

(**) "Mais dans la lumière", de Mike Brant

Letra (aqui com a devida vénia)

L'ombre étend son manteau
Et ton corps est déjà bien plus chaud
Et je vois dans tes yeux
Une larme, un aveu.

Mais dans la lumière
Tes yeux crient bien plus fort
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime.

Mais dans la lumière
C'est une arène d'or où
Je me bats au corps à corps.

Mais dans la lumière
Tes yeux crient, je t'adore
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime.

Mais dans la lumière
C'est une eau bleue qui dort où
Je me baigne encore

La nuit revient bientôt
Pour éteindre le feu de ma peau
Et mon sang n'est plus fou
Car tes yeux sont trop doux-

Mais dans la lumière
Tes yeux crient bien plus fort
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime-

Mais dans la lumière
C'est une arène d'or où
Je me bats au corps à corps.
Òù je me bats au corps à corps,
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime.

Mais dans la lumière
Tes yeux crient bien plus fort, je t'aime
Je t'aime, je t'aime, je t'aime.

Mais dans la lumière
C'est une arène d'or où
Je me bats au corps à corps.

Mais dans la lumière
Tes yeux crient bien plus fort
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime
Mais dans la lumière-

Autor: Renard Jean
Compositeur: Renard Jean
Editor: Editions Des Alouettes,Amplitude Editions Musicales
Para saber mais:

sábado, 11 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17961: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 1: Aprovado para todo o serviço militar




















Ontem e hoje: o José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74. Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um  "homem que se fez a si próprio", sendo hoje autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Senta-se debaixo do poilão da Tabanca Grande no lugar nº 756. (*)

Fotos: © José Claudino da Silva (2017).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Vamos começar a publicar uma nova série, da autoria do José Claudino da Silva, com excertos das memórias que ele deixou registadas nas cartas que trocou com a futura esposa, ao longo da sua comissão de serviço no CTIG (1972/74). 

Em 18 de outubro último, ele já tinha concorado com "a publicação de alguns episódios do livro 'Em Nome da Pátria', com a seguinte ressalva: "O que estiver a negrito mesmo que contenha erros vou manter inalterado pois quero ser fiel ao que escrevi há 45 anos. No restante agradeço alguma revisão que seja necessária."

Originalmente o livro era para se chamar  "Em Nome da Pátria"... Alguém, do nosso blogue, o nosso crítico literário Mário Beja Santos, alertou-o para o facto de esse título já estar registado (Em nome da Pátria: Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa,  da autoria de João José Brandão Ferreira: Lisboa, Livros d'Hoje, 2009,  608 pp.; prefácio do prof Adrinao Moreira).

Então ele e nós pensámos em outros títulos possíveis...Por exemplo, "O Que Te Aconteceu, Soldado ?!... Acabou por comunicar-nos a sua últimna decisão: " Mudei o nome para: 'AI DINO! O QUE TE FIZERAM! Foi uma frase que me disse a minha avó quando me viu fardado pela 1ª vez."

E assim vai ser... esperando nós que ninguém, outro Dino, lhe roube o título... [O subtítulo, a usar no blogue, é da nossa responsabilidade: Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74)... Naturalmente é demasiado comprido e obstruso para um livro.).

Vamos começar então a publicar as suas memórias, não na íntegra (, porque ele vai querer editar e vender o livro em papel, falta-lhe apenas escolher a editora...), mas através de uma seleção de capítulos, feita pelo próprio... Temos, para já, disponíveis, os seguintes capítulos, num total de 20 páginas:  1, 6, 13, 16, 20, 23, 30, 41, 50, 63.

Entretanto, no mesmo dia (22 de outubro último) ele decidiu "enviar a versão completa já com uma primeira revisão" e a seguinte observação:  "Ando a tentar encontrar um preço menos oneroso que a Chiado Editora para publicar o livro".

Esta "versão definitiva" tem data de 7 de outubro último: são 7 dezenas de capítulos, 119 pp, incluindo imagens. Temos que esclarecer ainda se ele nos autoriza a fazer a pré-publicação, na íntegra, deste seu "manuscrito" (ainda com o título "Em Nome da Pátria")... Se sim, é um privilégio que ele concede aos seus camaradas da Guiné, esperando em contrapartida os seus comentários,  generosos sem deixar de ser críticos. (LG)


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 1: Aprovado para todo o serviço militar


POR AQUILO QUE JÁ LI SOBRE A GUERRA COLONIAL, NAS ANTIGAS PROVÍNCIAS ULTRAMARINAS, PARECE-ME QUE A MINHA GUERRA FOI OUTRA.

A MINHA GUERRA FOI ESCRITA NA ÉPOCA. POR VEZES, HORA A HORA.

TODOS OS CAPÍTULOS SE BASEIAM NO QUE ESCREVI ENTRE O DIA 4 DE JANEIRO DE 1972 E O DIA 9 DE JUNHO DE 1974. NESSE PERÍODO, ENVIEI, POR ESCRITO, E SÓ PARA UMA PESSOA, MAIS DE 400.000 PALAVRAS, UMA MÉDIA DE 450 PALAVRAS DIÁRIAS.

COMEÇOU… ASSIM!
CICA  1 - Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas

Foi ali, junto ao Palácio de Cristal, um local paradisíaco, que comecei a minha luta "Em Nome da Pátria".


1º Capítulo: APROVADO PARA TODO O SERVIÇO MILITAR

Entre o dia 27 de Junho de 1970 e o dia 17 de Outubro de 1974, fui apenas um número, e os números são insensíveis. Afinal, são apenas 1.358 dias, ou 32.592 horas. Em minutos, apenas 1.955.520 e uns míseros 117.331.200 segundos. Pois bem, durante cento e dezassete milhões, trezentos e trinta e um mil e duzentos segundos, eu deixei de ser José Claudino da Silva e passei a ser o 158532/71.

Se acreditam que, de facto, os números são insensíveis, não leiam mais, mas em contrapartida, se já foram apenas um número, e, se por qualquer razão, o vosso possa ter afinidades com o meu, venham comigo.

É pela ordem cronológica das cartas que escrevi, há 45 anos, para a dona Maria Amélia Moreira Mendes que faço o relato do que vivi na guerra colonial. A primeira carta foi escrita no dia 4 de Janeiro de 1972. A última no dia 9 de Junho de 1974. No dia 10 do mesmo mês, recebi um dramático telegrama.

Em momento algum me passou pela cabeça fugir, para evitar a tropa. Fervoroso admirador do Major Alvega e da guerra aos quadradinhos, nos anos 60 do século XX, estava longe de pensar, quando assentei praça nas forças armadas do meu país, que iria mesmo participar numa guerra real.
Filho duma mendiga que tinha mais cinco filhos, a viver com a minha avó e uma prima que dependiam de mim para sobreviver, enviarem-me para a guerra colonial. Qual filme, o regresso do soldado Ryan, foi um crime que deveria ter sido julgado pelo tribunal dos direitos humanos.

Passei a pertencer às forças armadas em 27 de Junho de 1970, mas só tive a real noção de que não era meu dono no dia 3 de Janeiro de 1972.Durante estes meses, já a minha avó e eu vivíamos numa espécie de tortura psicológica e, sempre que o carteiro trazia uma carta, a minha avó, analfabeta, dizia-me:
– Dino, chegou uma carta, deve ser da tropa.

Acreditem! Foi uma libertação a chegada do dia em que assentei praça; a espera tinha acabado, eu ia mesmo para a tropa. Talvez não fosse para a guerra. Afinal, eu não era lá muito corajoso.

(Continua)
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Notas do editor:


18 de outubro de  2017 > Guiné 61/74 - P17875: Tabanca Grande (449): José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART /BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74, escritor, natural de Penafiel, a residir agora em Amarante... Passa a ser o novo grã-tabanqueiro nº 756

17 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17868: O nosso livro de visitas (195): José Claudino da Silva, ex-1º cabo condutor auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74, autor do livro de ficção "Desertor 6520" (Lisboa, Chiado Editora, 2016, 418 pp.)

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17605: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXIII Parte: Cap XIV - Regresso à guerra, depois de um mês no HM 241...Lembranças do "amor de perdição", a Maria do Céu, MiMê, a jovem de Lamego, que esteve quase a transformar o "ranger" em desertor...



Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/67) >  Tânia (*), Maria do Céu (**), Miriam (***)... algumas das mulheres do "Calças de Palanco", aliás, "Vagabundo", aliás  "Ranger", aliás "Mamadu"... Umas cuidavam das feridas do corpo, outras as das feridas da alma...


Foto: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp. (****)



Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]



Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XXIII Parte > Cap XIV  (pp. 81-83)

por Mário Vicente

Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na
Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...

(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965, tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças são depois destruídas com granadas incendiárias.

(xix) Cecília Supico Pinto e outras senhoras do MNF visitam Cufar no início do ano de 1966 e Mamadu é internado no HM 241 (Bissau).

(xx) um mês depois, regresso a Cufar, regresso à guerra. Põe o correio em dia. Lê e relê a carta de Maria de Deus [MiMê],  uma paixão escaldante dos tempos de "ranger" em Lamego e por quem estava quase para desertar, antes da data de embarque para a Guiné; a jovem morrerá prematuarmente, em França, aos 24 anos.




Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXIII Parte: Cap XIV:  Regresso à guerra (1) (pp. 81-83)



XIV Regresso à Guerra [1]


Passado um mês, e aí está Mamadu, embora sem forças e mais magro que um cão, com cinquenta e cinco quilos apenas, na sua bela Cufar para entrar na má vida. Aos poucos, com os caldos de galinha de Miriam, vai recuperando e passados quin­ze dias, é dado como operacional.

Tinha correio para ler para mais de um mês, pois Maria de Deus continuava a escrever todos os dias, mandando poesias e dando sugestões pelas recebidas. Foi tempo de pôr a escrita em dia. Seus pais andavam alarmados pela não recepção de notícias, mas não lhes iria contar o que acontecera. Como o António de Salzedas, com ele tudo estava bem, tinha sido só uma distracção, coincidente com problemas de correios pela época Natalícia.

Mas, no mato há sempre a tentação do retorno a pensa­mentos anteriores. Salta da cama, vai à mala e retira uma carta daquelas que se lêem muitas vezes, e, estendendo-se novamente sobre a cama, relê:


................ 


"2 Fevereiro de 1966

"My love:

Espero encontrar-te completamente restabelecido fisicamente, e que psiquicamente te mantenhas forte.

Meu Bem!

Esperava que a tua fuga em frente se desse em breve mas, de facto, não tão rapidamente. Piamente reconheço, teres absoluta razão.

Seria neste momento ideal a metamorfose da envolvente existência dos nautas desta caravela. Mas é impossível pois, eu não posso metamorfosear-me em Tânia, nem tu em Jorge ou vi­ce-versa.

Somos a peculiar expressão da vontade de alguém supe­rior, que nos exige expiação pecaminosa, na própria existência neste vale de lágrimas. Continuo no Colégio. Há pouco, à saída da missa mati­nal, falei sobre tudo isto com a nossa Comadre. Enquanto não temos a primeira aula, vim para o quarto falar um pouco con­tigo.

Sim, não há dúvida que estás certo. A tua deserção e a concomitante minha menoridade, ir-nos-ia levantar sérios pro­blemas.

Ainda bem que a corrente em que Tânia te envolveu é inexpugnável.
Enquanto orava na missa, ia pensando em nós e cada vez mais confirmo que cometemos e estamos cometendo adultério. Mais grave! Considero incestuosa a nossa ligação. Como tu dizes, é verdade que estamos no fim da picada.

Meu bem, fomos amantes, somos e seremos eternamente amigos, mas mais que tudo isso, é real existir entre nós um rela­cionamento como irmãos.

Eu reconheço que voltaria na minha vulnerável forma de ser, a pecar de novo. Adúltera assumo, novamente adoraria abrir-te a camisa, e repousar a cabeça na almofada do teu pei­to, sentindo o teu coração bater e as tuas mãos em doce "cha­mego" acariciarem a minha cabeça.

É adorável recordar! Fragilizada, choraria de novo no teu peito. Está retida como se neste momento fosse a tua calma e suave voz, depois de me enxugares os olhos com os teus melí­fluos lábios: "MiMê! Como é? Tens o mar nos olhos? São cris­tais de sal as tuas lágrimas!?"

Como foste doce e meigo, meu irmão! Não consigo compreen­der! Como consegues homem para a guerra, transformares-te em doação total?

Meu bem, estás com o pensamento noutro local?

Não! ... Não ... tenho ciúmes de Tânia, assim como sei que não tens ciúmes de Jorge.

Só que ... Pronto! Esqueçamos, meu bem!

A vida pregou-nos esta partida, mas a culpa é totalmente minha, fui eu, reconheço-o perfeitamente, e reafirmo eu!

Pratiquei incesto em espírito! Que Deus me perdoe, por­que tu, meu querido irmão, sempre me tens perdoado. Não for­çaste nada, apenas eu me doei!

Querias ser missionário, não era? Estou portanto em confissão! Segredo!

Brincadeira... não ligues, como poderia um missionário transformar-se em guerreiro? Não é? Mas é dúvida onde ainda não cheguei.

Tenho de terminar por agora. O sino tocou para as aulas. Logo continuo ...

Cá estou de novo. Agora, já noite, posso estar contigo o tempo que quiser.

Levei todo o dia a pensar nas tuas últimas cartas e vou rebatê-las com uma certa dureza. Não penses que são ciúmes, é a pura verdade. Palavra de MiMê!

Meu querido, se Tânia gostasse de ti, meu tonto, já te tinha dado um sinal! Não sejas ingénuo, meu bem. Perdes a inteligência com Tânia? Agora que temos as coisas bem defini­das e que para mim és mais que tudo um irmão, ouve o que em momento puro de loucura tenho para te dizer:

A única forma de saíres da quadratura em que estamos envolvidos, é fazeres a guerra, meu amigo! A guerra, meu irmão!

Já viste?! ...

Se morreres aí, ainda que no caixão venha um preto em substituição, por tu teres ficado feito em picado, ninguém dá por isso. E será maravilhoso! Ficas um herói. A dor do teu pobre pai será exposta ao mundo Português no Terreiro do Paço rece­bendo a Cruz de Guerra a título póstumo. Terás o nome inscri­to numa rua da tua terra na tua planície. Os teus amigos e con­terrâneos acompanhar-te-ão até à última morada, onde terás honras militares com descargas e tudo. E porque não a própria banda dos excluídos que dizes existir na Escola de Reeducação onde trabalhaste, não te acompanhará, tocando marchas fúne­bres!?

E quem sabe? A própria Tânia se vestirá de preto e esta­rá presente, depositando uma rosa branca sobre a bandeira na­cional que cobrirá o teu féretro?! ... Já viste coisa tão linda, poé­tica e sentimental?

Para ti é que seria o pior, partirias. Se morreres ... apagou-se! Meu irmão e amigo.

Desculpa a morbidez! Mas também hoje não sou eu!

Estou completamente fragilizada, extenuada! Como deves repa­rar pelos borrões na carta, estou a chorar.

Quereria fazê-lo no teu peito. Amei-te, doei-me total e incondicionalmente a ti, ho­mem transformado em ídolo.

ln this moment, I need you, my friend, my brother. Forever yours,

MiMê! 
Finalmente Maria de Deus terá compreendido!

Embora preocupado com a forma louca como escreveu tudo isto, Mamadu não teve dúvidas em que continuariam bons amigos. MiMê, quem seria Mamadu para não te perdoar, ou para te jogar a primeira pedra? São reconhecidas as tentativas de fuga às encruzilhadas tecidas, na teia da vida. Mas um ser superior traçou estes percursos. Mesmo descalços, coração sangrando, percorram-se esses destinados caminhos. O odor do corpo de Mimê, voltou como loucura às narinas do furriel. 

Regredindo, voltou aos momentos de volúpia e de total entrega entre dois seres na alvorada da vida, fez um esforço de negação, e o homem guerra, sentiu a rala barba orvalhada, por pérolas saindo dos olhos e o coração doeu. Mamadu reflectiu e teve reconhecimento perante a dádiva de tantas outras, mulheres grandes quase crianças, da obra que fizeram levando o seu alento junto daqueles jovens, homens fabricados à força e perdendo os melhores anos da sua juventude, vivendo nas mais miseráveis e terríveis situações. 

Não!... Não haverá palavras para agradecer a todas elas aquilo que levaram junto do soldado Português.

(Continua)
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(...) Tânia, comigo irão sempre a tua franzina figura e teus negros olhos cintilantes. A tua negação ficará eternamente cica­triz aberta, dentro do peito do cigano errático em que me trans­formei. O resto será aventura. Olhou para os amigos e lembrou-se das palavras de Niotetos: nunca mais seria a mesma pessoa. Um abraço a todos e até ao meu regresso. Esperem pelo Vagabundo, gritou, sem nenhum som lhe sair da garganta. (...)

(**) Vd. poste de 8 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16063: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - IX Parte: VI - Por Terras de Portugal: (iii) Lamego, Oeiras...

(...) Os esgotos da cidade [de Lamego] tomam-se caminhos conhecidos pela matula, em noites de percursos fantasmas, com petardos de trotil pelo meio. Aqui existe outra mulher especial na vida do ranger que consegue incutir força para a resistência. Apesar dos seus dezoito anos, Maria de Deus explica ao jovem militar a razão das coisas, mas não consegue influenciá-lo a fugir das terras para Norte. No entanto aqui começou uma louca doação. Ao aquartelamento de Cufar na Guiné chegarão, mais tarde, montes de cartas e aerogra­mas, trocar-se-ão poemas, falar-se-á da vida, da guerra e da mor­te. Haveria que fazer qualquer coisa!... A jovem incute no militar a aventura da fuga para França durante as férias. O militar prepara-se para a loucura, mas… há os velhotes e, nas terras para os lados do Norte, Tânia essa estranha força mais forte que o vento, não deixa voar o pensamento acorrentado de Vagabundo. Tão forte na guerra e tão frágil pela imagem de uma mulher que nunca será sua!... Uma mulher, que possivelmente até a sua existência já desconhece.  (...) 


(...) – Furiel!... tu é Mamadu, home balente, bó na bai na mato e cá tem medo, Miriam gosta de furiel. Eu sabo tu é branco, a mim preto! Miriam quer fazer cumbersa giro com furiel Mamadu! (...)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17061: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVI Parte: Cap VIII: Brincadeiras no mato... ou a praxe em tempo de guerra


Mário Fitas, de alcunha "Vagabundo", alentejano de Vila Fernando, Elvas,  o fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas" (Cufar, 1965/67), que gostava de praxar os periquitos...


Foto: © Mário Fitas (2016). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto abaixo à esquerda, março de 2016, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais.]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVI Parte > Cap VIII - Guerra 2 (pp. 51-52)

por Mário Vicente 


Sinopse:

(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandandante  militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o periquito fur mil Reis, que é devidamente praxado.



Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVI Parte: Cap VIII: Brincadeiras no mato (pp. 51-52)


Dia de correio, hoje a Dornier deve poder aterrar. O céu está aberto e as chuvas, embora já começassem, ainda são leves e a pista está boa. Segundo notícias do comando, deve chegar mais um reforço, o furriel periquito Reis, que vem substituir o evacuado Zé Luís.

Paolo, embora um pouco fleumático, gosta por vezes de entrar na brincadeira com a malta, e, desta vez é ele que tem a ideia e trama a safadeza. Entra na messe de sargentos onde a malta de folga conversa ou vai jogando uma partida de loto. Desafia:
– Eh,  malta, não se faz a recepção ao periquito?
– Boa!
Clamam todos em uníssono!...
– Como vamos fazer?
– É pá, eu posso fazer de capelão. Não fui padre mas acho que tenho jeito para isso – diz Vagabundo.
– Óptimo! Espera!... Boa ideia!...
– Tu fazes de padre, eu de colega furriel e o Chico Zé faz de capitão, comandante da com­panhia. Vamo-nos preparar que a avioneta está a partir de Catió, a outra malta que não se desmanche.

E aí temos Vagabundo de calças e camisa de caqui, com o dólmen da mesma fazenda todo engelhado porque retirado à pressa da mala, a boina preta enterrada na cabeça para dar um efeito pouco militar e a correr à procura do médico, tenente obstetra para lhe emprestar os galões. Paolo enfiou as divisas de Carlos Manuel, correu para o comando e pediu a Carlos os galões para o Chico Zé, dando-lhe a conhecer a brincadeira. Tambinha, Humberto e António Pedro informariam e controlariam a maralha para o bicho não desconfiar. Tudo a postos. Paolo, Chico Zé e Vaga­bundo no comando esperam pela chegada do periquito.

O Serra, furriel das transmissões, recebe a informação de que a Dornier levantou de Catió, e a secção do Carlos Costa, de piquete, avança no Unimog atrás da auto metralhadora Daimler para o fundo da pista, para a segurança. O Gasolinas conduz ele próprio o jeep, para trazer o correio e o seu colega arrivante.

Tudo normalíssimo. O periquito é um rapaz alto, simpático, dentinhos de coelho, bem-falante, mas não calcula a recepção que o aguarda. O Gasolinas pára o jeep e informa o Reis que é ali a messe, pelo que pode descer, ele voltará já. O Reis desce e é recebido com pompa pelo Jata, Madeira, Antó­nio Pedro, Tambinha e restantes. Estavam nestas apresentações e primeiras conversas de malta que está no mato, querendo saber notícias do outro continente, quando Paolo aparece, apre­sentando-se como o colega furriel Chico Zé, e dispara:
– Eh, pá! Então tu chegas com um mês de atraso, vens logo para aqui e nem te apresentas ao comandante da companhia? Anda lá apresentar-te e com cuidado que o gajo hoje está com mau humor e ainda é capaz de te dar uma porrada.

Reis, abando­nando bagagem e tudo, acompanha Paolo e dirigem-se para o comando onde Chico Zé ocupa a secretária de Carlos, ostentan­do nos ombros os galões do mesmo. Reis, um pouco tímido, pede licença ao improvisado capitão e vai entrando. Chico Zé levanta a cabeça e, com cara de mauzão, olha para o furriel metralhando:
–  Mas que merda é esta? Isto são maneiras de um militar se apresentar?

Paolo segreda a Reis:
– Eh, pá, tens de pedir licença como deve ser, fazer a continência e as praxes habituais.

Reis volta a trás e faz como Paolo diz. Da porta faz continência e pede licença. Chico Zé secamente manda entrar, Reis bate o pé e dá três passos em frente. De imediato, o improvisado capitão, sem levantar a cabeça grita:
- Porra para isto! Já viu padre!? Só me mandam mer­da desta para aqui! Faz favor de voltar a trás, arranje-me essas meias como deve ser e apresente-se como um verdadeiro mili­tar. Reis já um pouco nervoso volta a trás, dá um toque nas meias e na boina repetindo o pedido de licença. Chico Zé manda entrar novamente. Vagabundo, o improvisado capelão presente na sala, e Paolo estão prestes a rebentar e a desmancha­rem-se a rir, mas aguentam a teatralização. O falso capitão levanta a cabeça e pede autoritário:
–  A guia de marcha e a documentação?
Aí o Reis mais nervoso ficou e já tremia todo. Tinha a papelada na bagagem, gaguejando informou o comandante disso. Este, com ar de enjoo, virou-se para Vagabundo e disse:
– Padre, faça-me um favor, leve-me este gajo daqui quando não eu perco a paciência e dou-lhe uma porrada.

Vagabundo entrou em cena. Meteu suavemente o braço sobre o ombro do Reis e disse:
–  Pronto meu filho, acalme-se, vamos lá, vamos lá buscar a papelada. Oh,  meu capitão, desculpe o rapaz, está um pouco nervoso! Nós já vimos, sim?!...

Dirigiram-se para a rua mas o Reis já não ouvia, já não via nada, estava no fundo do poço. Tremendo, foi de braço dado com Vagabundo,  capelão, para a messe buscar a papelada que tinha na bagagem. O simulado capelão, com palavras meladas, ia-lhe dan­do mais cabo da cabeça. Fazia-lhe perguntas que o irritavam. Perguntava-lhe se era muito pecador, se o seu estado era ainda virgem ou se caso contrário, tinha pecado muito em Bissau, se visitara muitas vezes o Pilão. Reis queria era uma G3 para dar cabo daquela merda toda e dele próprio.

Entretanto, no comando, Carlos o verdadeiro capitão, ocupava a sua secretária.

Quando Reis regressou acompanhado de Vagabundo, chegando à sala do comando e vendo outra pessoa sentada à secretária, perguntou:
–  Onde está o nosso capitão?
Carlos olhou para ele calmamente e respondeu-lhe:
–  Oh, nosso furriel, que eu saiba aqui em Cufar sou eu o único.
Completamente desorientado, o furriel estava prestes a rebentar e a chorar mas, gaguejante ainda soletrou:
–  Mas... o outro tinha barbas?! ...
–  Barbas, eu? Oh, homem você deve ter apanhado sol. Vá à messe de sargentos, beba qualquer coisa fresca e depois falare­mos.

Entretanto Vagabundo já se havia escapulido e, passando pelo abrigo da sua secção, pediu ao cabo Cigarra para fazer entrega dos galões ao tenente médico, dando o dólmen ao impe­dido Amadu. Pela porta de trás entrou na messe onde Chico Zé e Paolo, já nas suas verdadeiras personagens de furriel e alferes, aguardavam com a restante malta o desenrolar dos aconteci­mentos.

Reis voltou desorientado à messe de sargentos. Ao reentrar olhou para a malta e reconheceu o trio que estava senta­do na mesa do canto. Respirou fundo e pensou: foram aqueles cabrões que armadilharam isto tudo, gozaram comigo. E saiu­-lhe da garganta com uma voz já aliviada:
–  Olha os sacanas do padre e do capitão!

Toda a gente riu. Assim, na sã camaradagem, lema daqueles jovens transformados em homens guerra, se deu a integração da vítima Reis na vivência dos Lassas.

Era assim?... Não!... Tinha que o ser! Era a forma de passar o tempo esquecendo o vagaroso relógio, no seu tic... tac... arrastante dos segundos e minutos, das horas e dos dias, eterni­dade do amanhã que nunca se sabia como iria ser.

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