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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18332: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (31): Abrantes, sede do antigo RI 2 - Regimento de Infantaria 2, mais tarde Escola Prática de Cavalaria (2006) e hoje Regimento de Apoio Militar de Emergência



Abrantes > O antigo RI 2 - Regimento de Infantaria 2 >  Hoje  Regimento de Apoio Militar de Emergência


Abrantes > O antigo RI 2 - Regimento de Infantaria 2 >  Já foi Escola Prática de Cavalaria (2006)

Fotos: © Manuel Traquina (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Abrantes > RI 2 -  Regimento de Infantaria 2 > 1970 > A unidade mobilizadora de muitos batalhões que passaram pelo TO da Guiné como foi o caso  do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70)... Durante a guerra do ultramar, o RI2 incorporou, treina e mobilizou um total de 52.000 homens para os diverso Teatros de Operações. Mais concretamente, foi a unidade mobilizadora de  63 batalhões, 30 companhias independentes e 82 pelotões de apoio.

Na foto, em primeiro plano, o nosso camarada Otacílio Luz Henriques, a caminho da "peluda"...

Foto: © Otacílio Luz Henriques (2013). Todos os direitos reservados.   [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Abrantes > RI 2 -  Regimento de Infantaria 2 > 1969 > Vista aérea.

 Foto: Unidades do Exército Português > Regimento de Infantaria nº 2  (página  de Nuno Chaves, em construção) (com a devida vénia...)


1. Mensagem do nosso camarada Manuel Traquina, deixada ontem na página do Facebok da Tabanca Grande:


Para aqueles que passaram pelo Regimento de Infantaria de Abrantes vão estas fotos.

O RI2, como em tempos o conhecemos, e por onde passaram largos milhares de militares, agora virou RAME - Regimento de Apoio Militar de Emergência. 

Com um número de militares muito reduzido em relação aos tempos de guerra, foi já também Escola Prática de Cavalaria [, em 2006].

2. Comentário do editor LG:

No seu livro, "Os tempos de guerra: de Abrantes à Guiné" [Edições Palha de Abrantes, 2009), o Manuel Traquina tem um pequeno capítulo dedicado ao RI 2. unidade que mobilizou a sua companhia, a CCAÇ 2382...E dai partiram para a Guiné... O Manuel Traquina "jogava em casa", já que era natural do concelho (, Souto, a 20 km da sede)...

Sobre a sua terra diz o seguinte:

"Curioso é que ainda hoje a cidade de Abrantes seja lembrada por muitos que por aqui passaram e, também, por alguns que aqui arranjaram madrinha de guerra, namorada e noiva... casaram e por aqui ficaram" (p. 31).

Meu caro Manuel, a minha companhia, a CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12) foi mobilizada pelo RI 2. Aliás, éramos meia dúzia de gatos pingados (graduados e especialistas, uma meia centena). Formámos companhia, tirámos a Escola Preparatória de Quadros e fizemos a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, também "à pedrada", como vocês,  no Campo Militar de Santa Margarida (CMSM), que ficava no concelho vizinho de Constança... A cerimónia de despedida foi junto à capela do CMSM, E dali fomos diretamente, de comboio (, tenho a ideia que de noite, quase como "clandestinos"...) para o Cais da Rocha Conde de Óbidos. Embarcámos no T/T Niassa em 24 de maio de 1969...

Da tua terra, Abrantes, não tenho memórias, desse tempo. Ou varreram-se-me as memórias, de todo.. Posso dizer que passei por Abrantes como cão por vinha vindimada... com os (des)acordes da fanfarra do RI 2 muito ao longe...


3. Recorde-se que o Manuel Traquina (ex-Fur Mil Mec Auto, da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70) vive em Abrantes [, foto atual, acima]. Aliás,  nasceu no Souto, Abrantes, em 1945. 

Frequentou o Curso de Sargento Milicianos (CSM), nas Caldas da Rainha, no 1º trimestre de 1967. Em 30 de Março, dava início à especialidade de Mecânico Auto, na Escola Prática de Serviço e Material (EPSM), em Sacavém. Fez ainda estágio no Centro de Instrução de Condutores Auto nº 3 (CICA3) em Elvas. Em finais de Agosto, é transferido para o Depósito Geral de Material de Guerra (DGMG), em Beirolas. Quinze dias depois, a 13 de setembro, é mobilizado para a Guiné. A 19 de fevereiro de 1968, apresenta-se no RI 2, em Abrantes, a fim de integrar a CCAÇ 2382. Passados dois meses e meio, a 1 de Maio de 1968, parte no Niassa, com destino a Bissau, aonde desembarca a 6.

Na Guiné, passou pelos seguintes aquartelamentos: Brá, Bula, Aldeia Formosa e Bula. Regressa a Portugal em Abril de 1970, no mesmo T/T Niassa.

Depois da ‘peluda’, trabalhou em Angola, no Serviço de Emprego. Regressa Portugal, em 1975, na sequência do processo de descolonização. Em Abrantes, foi técnico de emprego, do Centro de Emprego local. Está actualmente aposentado do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFO). Tem página no Facebook > Manuel Batista Traquina.

Publicou "Os Tempo de Guerra, De Abrantes à Guiné”,  Edição Palha de Abrantes, 2009. E, mais recentemente,. em 2017, na Chiado Editora, "Angola que eu conheci: de Abrantes a Luanda"

(*) Último poste da série > 27 de abril de 2017 > Guiné 63/74 - P17290: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (30): Tavira, CISMI, onde há 48 anos frequentei o 1.º Ciclo do Curso de Sargentos Milicianos (António Tavares)

Vd. também 28 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12649: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (14): As localidades por onde passei, sofri e amei - Conclusão (Veríssimo Ferreira)

(...) Até que um dia me transmitem:
- Vais para Abrantes.

Bati o pé e disse:
- Não vou... Não vou... Não vou... 

E fui.

Em Abrantes, estava mais perto de casa [, Ponte de Sor], o que me agradou.

Lá se foi passando o tempo e coube-me ajudar o Oficial instrutor, ensinando novos militares. Por que alguns de nós, os recentes cabo-milicianos, estávamos já a ser mobilizados, fui-me preparando. Contudo, tal mobilização só veio a acontecer, quando já houvera prestado 20 meses de tropa.

Entretanto em Abril de 1965 e "por equivalência a seis meses consecutivos em Unidade Operacional, condição a que satisfaz para promoção ao posto imediato (sic)" , fui promovido a Senhor Furriel-Miliciano. Estava então em Tomar a preparar outros jovens, que afinal acabaram por ser os que fazendo parte da Companhia de Caçadores 1422, embarcaram comigo para a Guiné, em 18 de Agosto. (...)

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17218: Notas de leitura (944): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
São quase 500 páginas de uma história bem contada, tudo irá começar no torvelinho dos acontecimentos de 1961, com o massacre de brancos e pretos em fazendas no Norte de Angola. O escritor vai pondo os protagonistas no terreno, descobre um ponto de encontro para eles comunicarem e lança-os, em plena guerra civil, a viajar em colunas como refugiados em que se volatizou a esperança.
Uma estrutura impecável, com as tensões bem doseadas, é um caminhar até 1975 sem mascarar os dramas humanos, sem lamechices, sem bodes expiatórios, cuidando de que há sempre um juízo histórico para aquilatar como se decidiu, como se errou, como se perdeu e achou.

Um abraço do
Mário


O país fantasma, por Vasco Luís Curado (3)

Beja Santos

Continua a escalada da guerra civil, os brancos, em colunas quilométricas, chegam a Nova Lisboa, procuram a família e os amigos. Célia, a namorada de Alexandre, viaja com elementos de um partido da extrema-direita branca, gente que criou um esquadrão da morte encarregado de cometer assassinatos políticos, assaltos a portos policiais e quartéis para obter armas. “Queriam sabotar o programa para a independência. Assaltavam bancos e carrinhas de valor, agentes cambistas, estações de rádio, fábricas. Infiltrados em negócios de tráfico de armas, formaram um arsenal particular com armas ligeiras e pesadas. Suspeitava-se de que tinham sido eles a atacar uma viatura militar portuguesa, disfarçados com fardas da FAPLA, para criar confusão entre os militares portugueses e o MLPA”. Tomé, o elemento do esquadrão da morte explica a Célia como é que pretendem reestabelecer a ordem em Angola:
“Receberemos ajuda da África do Sul. Vamos fazer o que já devíamos ter feito há muito tempo, se os brancos não estivessem tão desunidos e não fossem enganados por Lisboa. Vamos proclamar unilateralmente a independência de Angola e construir um Estado à imagem da Rodésia. Uma aliança entre as forças armadas sul-africanas e a FNLA, com muitos portugueses à mistura, derrotará o MPLA”.
Célia agradece a boleia, sai em Sá da Bandeira. Capelo, antigo oficial português e fazendeiro na Gabela, discursa na primeira pessoa do singular, narra que chegaram a Nova Lisboa, os refugiados procuram um conforto possível naquele pandemónio. Inscrevem-se na lista de espera do voo para Portugal:
“A maior ponte aérea civil do mundo atingiu proporções que ninguém previra. Não havia horários de voo. Assim que aterrava, um avião reabastecia-se de combustível, enchia-se de passageiros até aos limites mínimos de segurança e descolava. Não se sabia quando chegaria o seguinte”.
Tudo serve para fugir, parece um êxodo bíblico: viaja-se em barcos de capotagem e barcaças, no paquete de luxo Infante D. Henrique, colunas motorizadas, algumas com 3 mil camiões, empreenderam a travessia de África em direção a Portugal, arrisca-se tudo para sair do Inferno. Nova Lisboa está num caos, já se comprou todo o ouro possível, a moeda estrangeira era trocada por angolares a um quinto do valor oficial. Comprava-se tudo o que os refugiados ou as empresas vendiam barato por não poderem transportar para fora do país. Todos os fugitivos têm histórias deprimentes para contar. Célia parte para se juntar à família em Nova Lisboa, é impossível chegar a onde está Alexandre. Sobrelotada, Nova Lisboa rebenta pelas costuras: vai desaparecendo a comida, as fábricas fecham, as quintas e vacarias eram assaltadas e os guerrilheiros matavam animais caros, como vacas leiteiras, por serem brancos e ser necessário matar tudo o que era branco. Depois, começou a faltar o carvão, a lenha, o gás e a gasolina. A capital da região agropecuária mais rica de Angola estava a passar fome. Aquela família vai para o aeroporto no dia marcado para o voo, tudo caótico:
“As listas de espera obrigavam pessoas a viver ali há mais de uma semana. Havia tendas oferecidas pelo Exército, havia abrigos improvisados com chapas de zinco como teto, entre caixotes e malas. Cozinhava-se o que se podia”.
Ouve-se perfeitamente o tiroteio, depois de muitas peripécias entram no avião:
“O piloto recusou a descolar enquanto estivesse montada uma metralhadora antiaérea sobre o telhado do aeroporto”.
E assim chegam a Lisboa, é o tormento da adaptação, a via-sacra à procura de familiares ou de um espaço definido pelas autoridades. Voltou-se ao discurso na primeira pessoa do singular, um discurso penitente, uma sentida discriminação, a vida vai-se refazendo, como diz o autor somos também o resultado de catástrofes e mudanças, aquela última descolonização africana era apenas um episódio de perdas e sobrevivência que os seres humanos protagonizavam.

O ponto de encontro destes retornados é a Baixa, mais propriamente o Rossio. Capelo e Mateus reencontram-se. Em Portugal vive-se o período revolucionário. À porta do Banco de Portugal, são longas as filas dos funcionários públicos do Quadro de Adidos, vêm levantar o vencimento, conversam, desabafam, contam histórias mirabolantes dos caixotes que se extraviaram. Os retornados vão acompanhar as notícias da intensa guerra civil, sobretudo do que se vai passar em Luanda, à volta do 11 de Novembro de 1965. Capelo reencontra a irmã, é uma conversa de surdos. Estamos em Novembro, o Rossio está cheio de gente, há para ali uma manifestação, pretendem levar um caixão com terra de Angola para o Palácio de Belém. Do outro lado há uma outra pequena multidão de ex-combatentes das guerras de África, os ânimos aquecem, o confronto é iminente, e o final do romance histórico é metafórico, sublime:
“O caixão que continha terra de Angola foi erguido no ar, acima das cabeças, e só então é que Mateus o viu. Num impulso absurdo, vários braços empurraram o caixão na direção dos ex-combatentes, como para lhes mostrar que tinham alguma culpa pelo morto de que se estava a fazer o funeral simbólico. Pondo-se em bicos de pés, Mateus tornou a ver o caixão, caravela periclitante movida por vagas e vagas de braços, que alcançou o limite daquele mar e oscilou mais ainda, por que já não se sabia que rumo lhe dar, e desapareceu da sua vista, náufrago”.

A trama de um romance histórico como este é um correr da escrita em cima da lâmina, é preciso uma história muito bem contada, plausível, com gente que aparenta ter carne e osso para que a narrativa capture o leitor, é então que o rigor histórico, ou quase, corre fluido entre os parágrafos, e toda aquela multidão que vivera tantos anos longe da guerra apercebe-se que chegou a hora de partir, aquele dragão vomita um fogo que os colonos não poderão apagar. Vasco de Luís Curado ganhou a aposta com este importante romance histórico, em que as próprias descrições da violência se inserem corretamente na tessitura das descrições. Naquele ano de 1975 chegaram náufragos que contribuíram para o fermento novo da democracia portuguesa.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17202: Notas de leitura (943): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17202: Notas de leitura (943): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
É uma boa oportunidade de conhecer os acontecimentos angolanos entre 1961 e 1975. É um romance histórico, Vasco Luís Curado não se atém exclusivamente à narrativa dos factos, forja personagens-tipo, desde o funcionário colonial que descobre, desde jovem, qual a dimensão das relações colonialistas naquela próspera colónia, passando pelo delinquente que percorre os três partidos da luta de libertação, até o alferes que depois de duas comissões descobriu o fascínio angolano e pôs uma fazenda a prosperar.
E assistimos à hecatombe da guerra civil, Vasco Luís Curado usa com mestria as cores de que se veste o horror nas colunas em fuga, as cidades reduzidas a escombros por onde revolteiam saqueadores. É uma outra dimensão do fim do Império, e que deixou mazelas que durante anos dava pelo nome de retornados.

Um abraço do
Mário


O país fantasma, por Vasco Luís Curado (2)

Beja Santos

“O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015, é um soberbo romance histórico que se inicia com os massacres de 1961 e culmina com a ponte aérea de 1975 e a chegada dos retornados a Portugal.

Há muitos lugares para esta trama, mas o tempo histórico mais influente passa-se na Gabela, onde dois casais partem com milhares de fugitivos à procura de segurança entre o fogo cruzado dos movimentos de libertação já enfronhados na guerra civil.

Havia muita expectativa com os Acordos de Alvor, formou-se um governo de transição com membros dos três movimentos independentistas, previam-se eleições para uma Assembleia Constituinte e a independência estava marcada para o dia 11 de Novembro. Angola encheu-se de rumores e também de ódios. Falava-se num golpe contra independentista, contava-se com a ajuda sobretudo dos mercenários sul-africanos e rodesianos. Assistimos à degradação das relações entre pretos e brancos na Gabela, os três movimentos abriram aqui delegações e preconizam a paz para todos. Mas as tensões cresceram imediatamente, definiram-se zonas de influência para os três movimentos, agravaram-se as discórdias, ao princípio os brancos não eram hostilizados. Alexandre é oportunista que muda facilmente de partido, cobiça a fazenda gerida pelo cunhado, vai instilando os seus ódios. Os três movimentos continuam a emitir mensagens de um futuro de concórdia para Angola:
“Só os brancos que tivessem cometido crimes contra os africanos teriam problemas. Ninguém perguntou como se iriam apurar essas culpas nem o que iria acontecer aos culpados. Os delegados manifestaram que os soldados estavam bem disciplinados pelos comandantes e acrescentaram que não se vingariam de tantos anos de opressão, que os brancos poderiam estar descansados”.
As reuniões entre brancos são muito acaloradas, um deles desabafa:
“Eu não vou perder a minha indústria para os colonistas. Piro-me daqui antes. A coisa piora para o meu lado se descobrem que estive no Exército e combati a guerrilha”.
Um jovem demente, cunhado de Capelo, julga-se em contacto com Jesus Cristo, será assassinado. Quando Capelo leva o cunhado a Luanda, assiste ao estrondo das batalhas entre os guerrilheiros do MPLA e da FNLA, acabaram-se as promessas de concórdia:
“Havia fogo de armas ligeiras em Luanda. Os movimentos emancipalistas erguiam barreiras em avenidas e ruas importantes para exigirem a identificação dos condutores; assim detetavam os militantes rivais e faziam ajustes de contas. Bandos de delinquentes faziam surtidas nos bairros brancos, roubavam casas, escolas, repartições públicas. Sem obedecer aos seus chefes, grupos de guerrilheiros agiam por conta própria e espalhavam o terror”.

Chegara a guerra civil, primeiro nos musseques, depois avançando para o asfalto. Na Gabela, instalou-se a polvorosa, uma coluna de milhares de brancos põem-se em fuga, numa altura em que Porto Amboim e em Novo Redondo já havia combates entre a FNLA e o MPLA. A guerra chegara à Gabela no dia 31 de Julho, nunca mais houve descanso, a toda a hora se ouviam os tiros da artilharia pesada. Ao fim de uns dias de tiroteio, muitos tentaram uma saída coletiva, tiveram que retroceder. Chegou então uma força militar para escoltar a população e, após conciliábulos com os movimentos de libertação, os brancos puseram-se em fuga. Numa atmosfera dantesca em que há roubos das casas comerciais, em que a dona da farmácia oferecia biberons e fraldas, em que Gabela é pasto do saque, a coluna põe-se em marcha, a população das sanzalas assiste, depois irá participar no saque:
“A cidade ainda ali estava, suja, ferida, aguardando os golpes que derrubariam as paredes e os tetos. Uma parte da cidade branca estava metida nos caixotes deixados nas casas. Outra eram as próprias pessoas que fugiam, os seus carros e bagagens. A última era tudo o que não podia ser encaixotado, enfiado num carro ou num avião: as casas, os prédios, os muros, os postes de iluminação pública, os bancos dos jardins, as pedras da calçada e o asfalto das estradas que, cobrindo a terra, era o próprio símbolo da cidade branca, onde pés sempre calçados não tocavam o pé ou a lama. A cidade fragmentava-se em três grandes parcelas, mas estas iam fragmentar-se mais, quando os carros fossem largados junto dos portos e aeroportos e as bagagens se perdessem ou se fossem confiscadas, ou à medida que os refugiados, confluindo na sua maioria para Lisboa, se dispersassem nas regiões e cidades familiares ou por obra de colocações provisórias. O trabalho de fragmentação era infinito”.

A coluna dirigiu-se para a Quibala, vão na coluna 13 mil pessoas, circulam entre os 5 e os 10 quilómetros por hora. Surgem barreiras, é preciso parlamentar, chegaram a Nova Lisboa. Mas nem tudo correu bem:
“Houve pessoas que não tiveram a mesma sorte na estrada Quibala-Nova Lisboa. Uma família parou para fazer alguma necessidade e surgiram guerrilheiros que mandaram todos sair do carro. Uma miúda de 10 anos assustou-se, desatou a correr e foi abatida. Os pais tiveram de seguir viagem com o cadáver. Contaram-se variantes desta história. Alguns elementos da FNLA que integraram a coluna, disfarçados de mulheres ou escondidos em sacos de batatas, foram apanhados e mortos a tiro de metralhadora por elementos do MPLA”.

Em Malange, também se vive no Inferno. Quando Célia, a namorada e Alexandre, aqui chega, já se improvisam posições de defesa, o aeroporto está fechado:
“De todas as partes da cidade chegavam refugiados. O quartel, que tinha espaço para 300 pessoas, acolhia umas 10 mil. A tropa servia esparguete e salsichas. O ar estava empestado com o fumo dos incêndios e do cheiro a putrefação. Como noutros prontos atingidos pela guerra civil, organizaram caravanas de carros, com escolta militar, para levar a população para Nova Lisboa, cujo aeroporto estava a escoar milhares de refugiados para Portugal”.
Célia aproveitou a escolta até Nova Lisboa, dali seguiriam para Sá da Bandeira. O panorama é desolador: carros incendiados na berma da estrada. Numa dessas barragens em que os fugitivos eram obrigados a parlamentar, muitos perdem a cabeça, depois de assistir à brutalidade que exercem sobre as suas famílias, puxam das armas e atiram a matar. Nova Lisboa é igualmente um pandemónio.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Março de 2017 > Guiné 61/74 - P17190: Notas de leitura (942): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16206; (Ex)citações (310): (i) lendas e narrativas do MFA de Bissau (a propósito do livro do Jorge Sales Golias); e (ii) o significado do vocábulo "Puto" (a Pátria que tínhamos... e que já não temos) (José Manuel Matos Dinis)

1. Comentário de José Manuel Matos Dinis  ao poste P16204 (*)


Eu adquiri o livro [do Jorge Sales Golias] e por ele constatei que o MFA começou numa viagem de avião para Bissau, em 1 de Julho de 1972, que reuniu o autor, Carlos Matos Gomes ("um camarada informado, lúcido e consciente da ditadura e da inutilidade da guerra"), bem como José Manuel Barroso jornalista do República, respectivamente capitães do QP e capitão miliciano. 

"A conversa evoluíu no sentido de mantermos a ligação e a firme intenção de nos reunirmos em Bissau para análise da situação politico-militar e eventual trabalho político com vista a uma tomada de posição do Exército no futuro do país. E assim havia de ser!" - pag.33, a primeira do texto.

Categoricamente fica agora desmentida a questão da carreira dos capitães-milicianos, que durante tanto tempo serviu de justificação para o movimento dos "prejudicados" capitães do QP, onde, aliás, já não encaixavam muito bem no argumento os oficiais de patentes superiores.

Ao longo do texto não se constata outra preocupação, que não seja a da concretização do golpe que libertaria os militares do QP, que era a preocupação do conjunto de promotores que, segundo a descrição, foi aumentado com mais adesões de oficiais de mais elevadas patentes, golpe que encaixava nas ambições pessoais de Spínola, que deu apoio, e terá provocado perplexidade determinante no Governo.

Jorge Sales Golias
Nestes termos, ganha realce o meu argumento de que os elementos do MFA apenas queriam recolher
ao conforto dos respectivos lares, onde as famílias os esperavam com desejo, pois os envolvidos não tiveram preocupações sérias com o destino dos povos das colónias onde havia Forças Armadas, mesmo em Angola praticamente pacificada. Longe das mulheres e dos filhos é que residiam as preocupações. Esta e outras razões parecem encaminhar as causas do 25 de Abril para a tese de Manuel Godinho Rebocho, constante da publicação "Elites Militares e a Guerra de África".

Também em nenhum lugar do livro de Golias foi aflorada a questão da sobrevivência da nação, cuja economia pujante era estruturada nas três mais importantes parcelas, a metrópolo, Angola e Moçambique. Naquele tempo Portugal só recorreu a um empréstimo externo para financiar Cahora-Bassa, e a metrópole tinha os mercados africanos portugueses como preferentes para a colocação dos seus produtos incapazes de concorrerem noutros mercados. 

Além disso, havia um importante mercado de invisíveis correntes provenientes de matérias-primas africanas e davam conforto aos cofres do Banco de Portugal. Assim, nem o intelectual []Melo] Antunes [1933-1999] vislumbrou qualquer problema com o desmembramento do conjunto, situação relevante do ponto de vista da metrópole.

Ainda somos afectados por essa decisão, pois aos resultados positivos das execuções orçamentais, Portugal não voltou a conseguir idêntico desiderato durante o regime alegadamente democrático, 42 anos depois.

Como dizia o brasuca, "pimenta no cú do outro, para mim é refresco", pelo que ninguém deve admirar-se do abandono ostensivo e surpreendente para os movimentos, pois o importante era o regresso urgente. Sobre os argumentos de "democracia, desenvolvimento e descolonização" já me referi bastante, e há muitas outras ilações sérias sobre a matéria, que evidenciam que a democracia nem sequer era seguida entre o que os revoltosos decidiam. 

Os irresponsáveis capitães aparecem agora a propor-nos compreensão, esquecendo que não foram vítimas de nada, nem do regime opressivo, nem das escolhas que fizeram, salvo, se essas escolhas não foram sérias, como, aliás, parece e avulta das traições praticadas. 

JD.


2. Resposta ao editor que me pediu o seguinte, em 22 de maio passado:

.
Zé Dinis (c/c Antº Rosinha): Vês se me esclareces o uso do vocábulo "Puto" (diminuitivo de Portugal), usado no teu tempo em Angola e ainda hoje. Diz-me quem usava o termo: os brancos, em geral, os africanos, também ?... Tinha um sentido depreciativo ou não ?

Estranho que os nossos dicionários ainda não tenham grafado o vocábulo, ao fim destes anos todos... Ab. Luis


Data: 25 de maio de 2016 às 20:59
Assunto: O uso do vocábulo Puto


Olá Luís, boa noite!


Colocas uma questão para a qual não tenho ciência. Mas posso arriscar.
"Puto" é uma expressão que me soou sempre com algum carinho, algum sentido de origem, e ouvi-a tanto em Angola, como em Moçambique.

Se tivermos em conta o significado de pequeno, pode traduzir a referência à metrópole feita nas grandes provincias ultramarinas. Uma referência "simplex", de apenas duas sílabas, e dita tanto por brancos, como por pretos ou mulatos.

Era como se fosse a terra mãe de todos nós, os que aqui nascemos, como os que lá eram governados a partir do "jardim". O governo está no Puto; o Sporting é do Puto; vou passar as férias no Puto; este vinho é do Puto; chegou agora do Puto, são expressões que representam as circunstâncias de referências à metrópole.

Seria uma espécie de idiomática, mas o Rosinha pode dar um contributo mais válido. (**)

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15428: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (39): 'Colon' e 'retornado'... É difícil de transmitir o que se passou e se sentiu... Os estudiosos metem os pés pelas mãos quando abrem boca.

Antº Rosinha, no nosso II Encontro
Nacional, Pombal, 2007.
Foto de LG


Dois comentários recentes do Antº Rosinha que merecem figurar em poste, na sua série "Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha)" (*)

[Foto à direita, o Antº Rosinha , ex-fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93, ex-colon e retornado, como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem várias vidas para contar ...]:


(i) Talvez se vá falar de coisas interessantes, mas não acredito que pessoas da minha idade ou mais velhas vão visitar e frequentar aquele lugar e seus discursos. (**)

Ainda há gente da minha idade e mais novos que ainda hoje escondem que são (foram) RETORNADOS.

Eu, como tive oportunidade e uma idade de poder reagir e «sobreviver», considero-me privilegiado, por ter passado por essa experiência riquíssima, sobre qualquer perspectiva que se queira olhar.

Há Retornados que passaram muito pouco tempo, nem se querem considerar como Retornados e têm alguma razão.

Mas os que passámos demorada e intensamente aquele ambiente africano, só entre nós é que nos entendemos e é difícil de transmitir o que se passou e sentiu.

Mesmo os estudiosos metem os pés pelas mãos quando abrem boca.

Parece que se vai falar entre outras coisas de uma coisa,  que poucos acertam e só dão uma no cravo outra na ferradura,  que é aquela velha do lusotropicalismo.

Só mesmo eles que passaram por esse fenómeno, é que poderiam falar, mas também como os Retornados, só entre eles é que se entendem.

Mas é bom que se fale ainda durante mais alguns anos, principalmente agora na «época» dos «refugiados», mas que não se misturem as coisas e que o termo RETORNADO faça parte da nossa História.

(ii) Eu fui para Angola com carta de chamada,  paguei 3500 escudos num porão de um navio,  podia considerar-me  emigrante. (***)

Mas como me integrei na Administração colonial, embora como técnico, andei a fazer mapas iguais a esses do blogue, que faziam parte do programa e dos acordos coloniais europeus, mapear todas as colónias, o que era eu? não passaria de um mero colaborador directo do colonialismo.

Em 1961 meteram-me uma farda e uma arma na mão para defender a política colonial, o que era? era um colonialista.

Outros a quem o Estado forneciam meios e passagens para irem cultivar terras e criar animais eram aqueles a quem os Amílcar Cabrais e os Agostinhos Netos chamavam os colonos.

Este pessoal que se integrava, agricultor, pequeno comerciante retalhista era, para os indigenas o verdadeiro colono.

Estive na Guiné na Tecnil e pelo Banco Mundial, chamavam-me Cooperante a mim e a toda a gente das ONG da ONU, Banco Mundial e CEE etc.

Mas os guineenses mal souberam na Tecnil, sabem tudo sobre quem chega, que tinha feito a vida em Angola, espalharam logo que eu era colon.

Aliás, isso era o melhor certificado para me sentir em casa, por incrível que pareça a muita gente.

Assim como aqueles que foram militares na Guiné e fossem reconhecidos, eram logo "assimilados"

Estive 5 anos no Brasil, era emigrante, ou estrangeiro residente.

Luís, fundamentalmente, para os turras, movimentos anti-coloniais, os africanos em geral, a Administração colonial e os militares em geral é que eram considerados os verdadeiros colonialistas.

Quando Amílcar Cabral lançava aquela boca de que a luta não era contra os portugueses, referia-se exactamente aos brancos "colonos".

Originalmente o termo "tuga" era exclusivo para os militares na Guiné. depois nós mesmos é que fomos universalizando, mais propriamente nós aqui.

Amilcar e o PAIGC e o MPLA de que ele é fundador também, quando diziam que a luta não era contra os portugueses, referiam-se aos portugueses colonos, radicados, brancos naturais, enfim os"progenitores" da maioria daqueles dirigentes.

Agora podemos olhar para dois casos africanos antagónicos, UPA e MPLA, Mandela e Mugabe.

Claro que isto dá pano para mangas, pois que tudo acabou tão mal, mas tão mal, que os conceitos hoje precisam já de outros dicionários diferentes daqueles da guerra fria e do tempo de Norton de Matos.

As empresas tipo CUF e outras como a Diamang, substituídas pela China, América e Brasil na Nigéria, e em Angola...e mesmo a GALP, qual Pintosinho, Luís Graça!

Eu até coro!


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Notas do editor:


(*) Último poste da série > 8 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14985: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (38): é possível barrar a emigração a muitos milhões de jovens africanos sem perspectiva de vida? Nem Luís Cabral conseguiu fechar as entradas na Praça de Bissau...

(**) Vd. poste de 29 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15423: Agenda cultural (439): Exposição comemorativa dos 40 anos do retorno de centenas de milhares de portugueses à antiga metrópole, na sequência da descolonização: "Retornar - Traços da Memória", Lisboa, de 4/11/2015 a 14/2/2016

domingo, 29 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15423: Agenda cultural (439): Exposição comemorativa dos 40 anos do retorno de centenas de milhares de portugueses à antiga metrópole, na sequência da descolonização: "Retornar - Traços da Memória", Lisboa, de 4/11/2015 a 14/2/2016


Página da EGEAC que promove esta  ini­ci­a­tiva, assinalando os 40 anos do movi­mento que ficou conhe­cido por retorno das ex-colónias por­tu­gue­sas e teve o seu auge na ponte aérea de 1975. Espantosa foto, carregada de grande simbolismo,  do grande fotojornalista Alfredo Cunha a quem se deve, entre outros grandes trabalhos, as melhores fotos do 25 de abril.




RETORNAR – TRAÇOS DE MEMÓRIA





Retornar – Traços de Memória pro­põe, ao longo de qua­tro meses e em vários espa­ços, 

uma refle­xão sobre os 40 anos da vinda das ex-colónias por­tu­gue­sas de África, 
atra­vés de deba­tes, tea­tro, per­for­man­ces, visi­tas comen­ta­das 
e inter­ven­ção urbana na zona ribeirinha.



Retornar - Traços de Memória é uma ini­ci­a­tiva da EGEAC, 
desen­vol­vida pelas Galerias Municipais de Lisboa, 
que assi­nala os 40 anos do movi­mento 
que ficou conhe­cido por retorno das ex-colónias por­tu­gue­sas 
e teve o seu auge na ponte aérea de 1975.


Com uma pro­gra­ma­ção trans­dis­ci­pli­nar que decorre ao longo de qua­tro meses, a ini­ci­a­tiva apre­senta olha­res da arte, lite­ra­tura, antro­po­lo­gia, his­tó­ria e polí­tica, para pro­mo­ver o diá­logo e o conhe­ci­mento sobre o fim do impé­rio colo­nial por­tu­guês. Num pro­jeto que pro­move o cru­za­mento entre as artes e as ciên­cias huma­nas, a expo­si­ção inau­gura um novo espaço expo­si­tivo: a Galeria Avenida da Índia, em Belém.

Comissariada pela antro­pó­loga Elsa Peralta, a ini­ci­a­tiva baseia-se em inves­ti­ga­ção aca­dé­mica no diá­logo com o tra­ba­lho de artis­tas como Manuel Santos Maia. Com um enfo­que na expe­ri­ên­cia humana, a expo­si­ção inclui tes­te­mu­nhos pes­so­ais iné­di­tos, docu­men­tos his­tó­ri­cos, foto­gra­fias de época e de autor e memo­ra­bí­lia pessoal.

Na zona ribei­ri­nha, junto ao Padrão dos Descobrimentos, haverá uma inter­ven­ção urbana com con­ten­to­res que intro­duz o tema da expo­si­ção atra­vés da exi­bi­ção de uma foto­gra­fia de Alfredo Cunha, tirada naquele pre­ciso local, em 1975.

Ao longo dos qua­tro meses em que a expo­si­ção estará patente ao público, o Padrão dos Descobrimentos, local sim­bó­lico da cons­tru­ção da memó­ria impe­rial por­tu­guesa, aco­lherá deba­tes que refle­tem dife­ren­tes olha­res sobre este momento his­tó­rico, atra­vés de per­so­na­li­da­des como Eduardo Lourenço, Adriano Moreira, Dulce Maria Cardoso, entre outros.

Na Galeria Avenida da Índia, um pro­grama de visi­tas comen­ta­das, que pro­move a refle­xão sobre a expe­ri­ên­cia do retor­nar, conta com a par­ti­ci­pa­ção de aca­dé­mi­cos e ensaís­tas como Maria Filomena Molder e António Pinto Ribeiro.

Joana Craveiro, atriz e ence­na­dora com um vasto tra­ba­lho artís­tico sobre ques­tões pós-coloniais, apre­sen­tará duas per­for­man­ces no Padrão dos Descobrimentos, inti­tu­la­das Páginas de um Império Perdido #1 — Alguns que retor­na­ram e outros que não qui­se­ram e Páginas de um Império Perdido #2 — Alguns filhos disto tudo ou Bairro das Ex-Colónias.

Em Janeiro, o Teatro São Luiz aco­lherá o espe­tá­culo Portugal Não é Um País Pequeno, de André Amálio, que relata a expe­ri­ên­cia de anti­gos colo­nos por­tu­gue­ses a par­tir de tes­te­mu­nhos reais.

(Fonte: EGEAC, com a devida vénia...)



Foto do AHU - Arquivo Histórico Ultramarino / Agenda Cultural de Lisboa

RETORNAR - TRAÇOS DE MEMÓRIA



ARTES › EXPOSIÇÕES › OUTRAS

De 5 nov 2001 a 14 fev 2016

Terça a sexta, das 10h às 13h e das 14h às 18h | sábado e domingo, das 14h às 18h

Local > Galeria Avenida da Índia | Av. da Índia, 170 | Lisboa



Elsa Peralta, coordenação científica; Bruno Góis, Cláudia Castelo, Joana Gonçalo Oliveira e Maria José Lobo Antunes, equipa cientifica; Alfredo Cunha, André Amálio, Bruno Simões Castanheira, Joana Craveiro e Manuel Santos Maia, artistas.

A memória do retorno e, consequentemente, a memória do império na sociedade portuguesa contemporânea constitui o tema desta exposição que inaugura o novo espaço municipal da Galeria da Avenida da Índia.

A mostra pretende assinalar os 40 anos do retorno de nacionais à antiga metrópole, na sequência dos processos de descolonização levados a cabo nas colónias portuguesas. Linhas cruzadas de pensamento permitem olhar e refletir sobre este fenómeno, através de diferentes perspetivas disciplinares e olhares críticos.

Retornar - Traços de Memória é constituída por cinco secções:

(i)  Colonizar / Descolonizar;
(ii) Linhas do Tempo;
(iii) No Interior da Memória;
(iv) Depósito; e
(v) Atmosferas,

que, juntas, compõem uma memória fundamentada em fontes históricas, testemunhos pessoais, registos imagéticos e conceitos artísticos. 

Colonizar / Descolonizar

Aqui se contextualiza o fenómeno do retorno, situando-o no seu tempo histórico e acompanhando-o até ao presente. Identifica-se quem volta a partir de quem foi, através de uma caracterização dos fluxos migratórios para as colónias. Faz-se, também, um retrato da população portuguesa retornada.

Linhas do Tempo

Através de fotografias de álbuns pessoais e de fotografias de arquivo, esta secção expõe o tempo das vivências em África durante o período da colonização e da descolonização, cruzando-as com a receção dessas vivências em Portugal.

No Interior da Memória

Através da apresentação de relatos, diretos ou ficcionados, este núcleo pretende ser um movimento imersivo na memória pessoal.

Depósito

Elaborada a partir da obra do artista plástico Manuel Santos Maia, Depósitos ublinha as dimensões materiais da memória e da recordação.

Atmosferas

A quinta e última secção expõe, a partir de algumas correntes que atravessam a sua atmosfera discursiva, o pensamento sobre o evento do retorno e sobre o fim do império colonial português.

[texto de Ana Rita Vaz]

Fonte: Agenda Cultural de Lisboa (com a devida vénia...)

INFORMAÇÕES ÚTEIS

Entrada livre.

Programação paralela:

Visitas comentadas à exposição – Galeria Av. da Índia
Instalação/intervenção urbana – zona ribeirinha contígua ao Padrão dos Descobrimentos
Debates/conversas – Padrão dos Descobrimentos
Performance de Joana Craveiro – Padrão dos Descobrimentos
Espetáculo de André Amálio – São Luiz Teatro Municipal

+ info: T.218 820 090

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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15292: Notas de leitura (770): “As Naus", por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
António Lobo Antunes é um escritor recebido com aclamação ou pronto repúdio, não dá margem à indiferença. Lá para o termo dos anos 1980, dispunha de nome feito, era conhecido internacionalmente, publicou um romance um tanto à revelia da sequência de obras anteriores, “As Naus”, um achado experimental entre o passado e o presente, uma atmosfera das grandezas pretéritas e do caos que foi a chegada dos retornados, uma virulenta história trágico-marítima, em que se regressava de avião ou por nau.
É neste embrechado de histórias e historietas que um casal regressa de Bissau, na hora da independência e é metido temporariamente no Hotel Ritz.
Para ler e meditar, ou, quem sabe, querer ler o romance por inteiro. Sou suspeito, pois sou incondicional deste turbilhão da literatura.

Um abraço do
Mário


A Guiné num livro de António Lobo Antunes

Beja Santos

Médico em Angola, António Lobo Antunes estreou-se na literatura com duas obras associadas à sua experiência militar, Memória de Elefante e Os Cus de Judas, em 1979. No fim dos anos 1980, o escritor, já então consagrado pelas singularidades da arquitetura da sua escrita, publica “As Naus” cujo tema eram os retornados.

O livro foi prontamente incensado e escarnecido, uns consideravam que o escritor obtivera um achado misturando o passado e o presente, gente na torna-viagem com nomes como Camões, Gil Eanes, Francisco Xavier, Diogo Cão, entre outros. Caravelas e aviões, os Jerónimos do passado entendido como glorioso e pensões mal-afamadas entre o Paço da Rainha e o Intendente. É um périplo pelo Império, e aquele regresso caótico que se seguiu à descolonização, tudo se passa em Lixboa, a capital do reyno, no termo desse regresso reabilitam-se os mitos litúrgicos de sempre como o sebastianismo, é esse o final belíssimo do romance:
“Amparados uns aos outros para partilharem em conjunto do aparecimento do rei a cavalo, com cicatrizes de cutiladas nos ombros e no ventre, sentaram-se nos barcos de casco ao léu, no convés de varanda das traineiras, nos flutuadores de cortiça e nos caixotes esquecidos, de que se desprendiam esquecidos odores de suicida dado às dunas pela chibata das correntes. Esperámos, a tiritar no ventinho da manhã, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro cor de sarja do equinócio, os frisos de espuma que haveriam de trazer-nos, de mistura com os restos de feira acabada das vagas e os guinchos de borrego da água no sifão das rochas, um adolescente loiro, de coroa na cabeça e beiços amuados, vindo de Alcácer Quibir com pulseiras de cobre trabalhado dos ciganos de Carcavelos e colares baratos de Tânger ao pescoço, e tudo o que pudemos observar, enquanto apertávamos os termómetros nos sovacos e cuspíamos obedientemente o nosso sangue nos tubos do hospital, foi o oceano vazio até à linha do horizonte coberta a espaços de uma crosta de vinagreiras, famílias de veraneantes tardios acampados na praia, e os mestres de pesca, de calças enroladas que olhavam sem entender o nosso bando de gaivotas em roupão, empoleiradas a tossir nos lemes e nas hélices, aguardando, ao som de uma flauta que as vísceras do mar emudeciam, os relinchos de um cavalo impossível”.

Pois bem, entre Índias e Angolas, há gente que regressa da Guiné, de onde vieram os primeiros escravos, a Guiné, diz o autor que se limitava então a um amontoado de casa no estuário do rio, muitas delas de madeira e de capim. Há para ali guerra, que se ouve em Bissau, e vamos então a algumas dessas referências guineenses avançadas por Lobo Antunes:
“A violência das explosões dos morteiros, das bazucas e dos canhões sem recuo estremecia as lagunas de Bissau, sobrepondo-se aos relâmpagos de Março (…) Uma noite escutaram por acaso na telefonia, num vendaval de assobios, a revolução de Lixboa, notícias, comunicados, marchas militares, a prisão do governo, canções desconhecidas, e no dia imediato, a tropa parecia menos crispada, os bombardeamentos rarearam, pretos de óculos flamejantes e camisas de feriado instalaram-se nas esplanadas e nos largos no lugar dos brancos. Convocaram-nos para uma reunião no Cine-Theatro das zarzuelas estafadas e das récitas dos bombeiros, onde um coronel de artilharia, com uma tripla fita de condecorações na clavícula, subiu ao palco em cujo fosso a orquestra desafinou entusiasticamente o hino, e lhes ofereceu de mão beijada, numa generosidade inexplicável, a possibilidade gratuita de tornar a Portugal (…) Batalhões completos, convulsos de amibas e lombrigas, com os furriéis a cabecearem de doença do sono logo após a charanga e a bandeira, alçavam-se para navios ferrugentos carregando as suas armas e os seus mortos (…) As naus aportavam vazias e partiam cheias, convexas de gente e de caixotes. Bissau despovoava-se de brancos e o início da estação das chuvas encontro-os sem saber o que fazer numa terra de selvagens triunfais que estilhaçavam à metralhadora os postigos das fachadas (…) 
Um amigo da fábrica de sonetos gongóricos, chamado Jerónimo Baía, descreveu-lhes os acontecimentos medonhos, sodomias, envenenamentos, rimas cruzadas, récuas de prisioneiros de algemas enxotados à coronhada para o mato. E quando o chá acabou e mergulhavam diariamente na água fervida o mesmo saquito sem sabor dependurado na extremidade de uma guita, a esposa, de costas para ele, anunciou-lhe na serena voz habitual com que enterrara, trinta e oito anos antes, a filha criança, já não pertenço aqui (…) Nessa mesma tarde subiu aos damascos rotos e óleos de defensores do reyno do palácio do governo, esperou numa enorme cadeira de dignatário, no meio de dezenas de brancos e mulatos, que lhe pronunciassem o nome e um funcionário de jaqueta o recebesse na cave do edifício e pediu dois lugares de porão para Lixboa (…) Se os brancos diminuíam, os pretos, em compensação, aumentavam nas casas atoladas nos caniços dos rios. Ocupavam as casernas que a tropa deixara, aliviada do peso da guerra, e enfeitadas de frases bélicas; acomodavam-se nos bancos de jardim, indiferentes à chuva, com as automáticas checoslovacas nos joelhos (…) Um grande paquete claro aproximava-se do cais a ameaçar destruir Bissau com o gume da proa. Não somos de parte alguma agora, respondeu o marido a designar o barco coroado de flâmulas, de emblemas reais, do estandarte do almirante Afonso de Albuquerque no topo do mastro principal (…) Depois de três meses de viagem um solzinho cor de pêssego despontou no meio da granito das nuvens e daí a nada avistaram o contínuo fervedoiro de mercado sírio de Lixboa a pular na distância, muralhas de castelo, fogueiras de judeus, procissões de flagelados, um trânsito simultâneo de carroças de escravos, cruzadores e bicicletas (…) 
Após cinquenta e três anos num cubículo de Bissau sofrendo mosquitos e cacimbo era-lhes difícil imaginar o ilimitado tabuleiro de damas do chão de mármore, as tapeçarias de hibiscos nas paredes, grooms disfarçados de hussardos, portas que se descerravam sozinhas. A cabine espacial do elevador, acostumado a assobiar de leve por órbitas de cometas, depositou-os numa espécie de corredor de basílica com os vãos dos altares laterais numerados (…) palpou-se longamente para se convencer da sua própria idade, tomando consciência dos molares que faltavam, dos músculos que obedeciam em guinadas dolorosas, do rosto devastado pelo clima da Guiné desde que aos quinze anos o pai o enviara para os trópicos aos cuidados de um primo sargento (…) 
Colocaram-nos na mesma mesa que três fazendeiros de Carmona que carpiam o café perdido e a lembrança das prostitutas da Muxima, um caçador de hipopótamos e um faquir guês de perinha ascética que mastigava parafusos e roscas (…) Um tenente de cabelos ralos, penteados desde a nuca numa minucia de ourives atravessou as tapeçarias, adaptou o microfone à sua altura, disse um dois três experiência, informou com ferocidade, damas e cavalheiros que se encontravam no Hotel Ritz por pura benevolência paternal das autoridades revolucionárias preocupadas em zelar pelo conforto e tranquilidade dos seus filhos até o Estado democrático conseguir casas ou pré-fabricados ou apartamentos nos bairros económicos para as vítimas da ditadura felizmente extinta, e que em nome, camaradas, da luta de classes e da construção do socialismo dirigida pela vanguarda política do exército, passariam a ser punidos com a forca os intoleráveis abusos de assar sardinhas nos lavatórios, cozinhas refogados e fritos nas cerâmicas dos chuveiros, vender as torneiras, assim como servir-se das cortinas estampadas do hotel opara blusas e adornos”.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15283: Notas de leitura (769): “Diário de Ébano", por Sofia Yala Rodrigues (Mário Beja Santos)

sábado, 24 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15285: Manuscrito(s) (Luís Graça) (67): As intermitências do amor no país sem pátria... Pensando na minha amiga de Alex, M..., nascida em Angola, "retornada", que hoje faz anos... Mas também no poeta e músico luso-angolano, Luaty Beirão que vai morrer de fome e sobretudo de sede de justiça e de liberdade!

As intermitências do amor no país sem pátria


por Luís Graça

[in: Amor(es), guerra(s), lugar(es): vol. I: amor(es). Lisboa: edição de autor, 2015, pp. 46-54. Edição limitada a 6 exemplares e já esgotada]



Para a minha amiga M... , nascida em Angola, e que hoje celebra a vida, ao fazer mais uma aninho!... A sua história de vida inspirou-me  este poema, há 10 anos atrás...  Como muitos outros portugueses e outras portuguesas, é sociologicamente uma "retornada"... É uma "amiga de Alex" a quem desejo muita saúde e longa vida, agora no país que não era a sua pátria... Não posso deixar de pensar também, neste dia,  no luso-angolano Luaty Beirão, poeta e músico,  que vai morrer, de fome e sobretudo de sede de justiça e de liberdade... (LG)



Na bicha das cinco da tarde,
no para arranca do trabalho casa trabalho,
para não para,
arranca não arranca, empanca,
a vida,
a vida tão cara,
tão avara,
tão complicada às vezes,
à tarde,
uma mulher só na cidade,
formiguinha no meio do grande formigueiro humano,
ouves o sax do velho Luís Morais,
evocando as cores das impossíveis ilhas tropicais,
às cinco da tarde, 
na RDP África,
Lura, essa voz magnífica,
amor ca tem
o amor que não há,
o amor que não chega, 
nem por e-mail,
toupeira,
nas autoestradas das linhas de montagem
onde para arranca empanca a vida,
em viagem,
ah! que pena, 
já não se escrevem mais cartas de amor,
diz o locutor de serviço,
com selo e lacre,
envelope fechado 
e carimbo do correio,
entregue pelo moleque lá no musseque,
para certificar a data-hora dos nossos desencontros,
aqui e agora, 
ou lá no Puto
(ah!, Portugal, Portugal!),
a propósito de alguém que se foi embora
e de quem não fizeste o luto,
o namorado que irá morrer na guerra colonial.


Tiram-te a pele, 
o tutano, 
e, de permeio, o amor, 
o doce engano,
e não há coração que aguente
o para arranca da bicha do trabalho casa trabalho,
a gigantesca centopeia de homens e mulheres sós na cidade,
na segunda circular, 
no IC 19,
na mesa a toalha barata, 
aos quadrados,
a sopa fria, 
os fugazes amores de verão,
os suores da meia estação,
veste, despe o robe,
e no outono a depressão,
e se há inferno é no inverno,
a massa fria polar
da solidão,
a caixa do correio cheia
por causa dessa coisa do spam,
desesperando por esperar
um toque de telemóvel, 
um msn, 
um sinal,
a campainha,
a cama, 
as insónias,
os lençóis desfeitos,
à tarde, demasiado tarde para amar
no Monte Abraão,
uma mulher no para arranca empanca da vida,
nos anéis circulares da cidade sitiada,
a cidade anaconda,
a paixão de quarentena
aos cinquentas e tais,
o corpo exangue,
o desejo, surfando na onda,
a doença do amor, letal,
proibido amar,
diz o semáforo, vermelho,
e não é amor, é dor,
é saudade, diz a morna,
que o B.Leza é morabeza,
faria cem anos
se ele ainda hoje fosse vivo,
lá no Mindelo piquinino,
às cinco da tarde a casa vazia,
os filhos que partiram
mas deixaram cá as fotos, emolduradas,
de quando eram bebés,
e eram louros,
lindos de morrer,
ternurentos,
e eram filhos de sua mãe,
ah! as intermitências da liberdade vigiada,
o guarda-mor da saúde, totalitário,
mantendo tenso o cordão sanitário
que estrangula a vida,
a pele esticada, 
o tutano chupado,
a merda da vida, fodida,
que o aumento da esperança média de vida te traz,
sobre os carris dos quilómetros
do teu têgêvê sem futuro,
as contas por pagar,
a casa hipotecada à banca,
os anos que faltam para a reforma,
o risco de cancro da mama,
a carreira amorosa congelada como a feijoada,
o multibanco do coração cor de rosa fora de serviço,
os cheques que vencem 
antes de a paixão esfriar e morrer,
ao virar da esquina da última rua do quarteirão,
no para arranca empanca da casa trabalho casa,
e o Ribeiro Sanches, 
físico-mor do reino no exílio,
a dizer-te que não há cura para os males de amor
e o passado é um país estranho,
e, se a paixão é doença, 
não sei o que fazes aqui,
parada na maldita picada,
minada,
que te leva do trabalho para casa
e da casa para o trabalho,
e um dia para a casa mortuária
e o forno crematório,
o ninho da cegonha abandonado,
a casa vazia,
a sopa fria no prato,
o trabalho sem pica,
a vida sem sal,
sem o teu chabéu da Guiné de comer e chorar por mais,
stress, the kiss of death 
or spice of life,
cada meco a falar sozinho
para o boneco,
no bar do fast food,
emparedado,
no comboio do Cacém,
no autocarro da Carris,
na CRIL, na CREL,
no carro comprado a prestações,
o último amante, romântico ma non troppo,
morto em Israel,
os amigos de Alex cada um para seu canto,
e o baile, combinado, dos anos sessenta
que ficou para as calendas gregas,
quando a crise acabar,
se algum dia acabar e o FMI deixar,
as flores no cabelo, 
Make Love Not War,
All You Need is Love,
Vietname nunca mais
black power, blá-blá…
em plena guerra fria a quente,
o terror do nuclear ao sol poente.

E a tua velha senhora no fim da estação
da linha de Sintra da vida,
em casa à tua espera,
o Alzheimer devastador,
o avião  que não mais faz escala na tua África perdida,
na tua infância em Nova Lisboa, hoje Huambo,
a morena de Angola que leva o chocalho na canela,
a tua adolescência de Luanda e as suas ilhas,
a restinga do Mussulo,
o meu tarrafe do Geba,
as balas tracejantes,
o teu Huambo sem meninos à volta da fogueira,
o comboio para Benguela metralhado,
os erros meus,
as doces ilusões,
terríveis as deceções,
as tuas negras emoções,
os amanhãs que não cantam mais,
o mundo que a gente queria mudar de repente,
assim com um toque de varinha mágica,
a crise de valores,
a profusão de cores,
o pilão dos teus cheiros e sabores,
e a muamba que já não é mesma muamba,
nem muito menos o óleo de palma, o fungi,
a cachupa do nosso contentamento,
as mornas, as coladeras
aos fins de semana,
nos anos oitenta,
a rebeca do Travadinha, bem gemidinha,
a mãe preta,
o muzonguê frio no fim da rebita,
de manhã ao acordar, 
para mais um dia, sem pica,
para afivelar a máscara 
e desempenhar os papéis
que os outros esperam de nós,
l’enfer, c’est les autres,
o inferno são os outros
mas começa em nós...

Não te adianta, amiga,  chorar 
sobre o leite de coco derramado,
ou dizer que fizeste tudo errado,
o amor da tua vida,
o curso, 
o emprego,
os filhos, 
o império por um fio,
o país de retorno que não era o teu,
o divórcio,
o século ao dobrar do milénio,
a liberdade avençada, ameaçada,
porque esta é a tua história, 
mesmo indevida,
este é o teu tempo e o teu lugar,
e até pode ter um final feliz,
a tua telenovela das cinco
no para arranca empanca da vida,
só depende da autora do guião
e do tempo de reflexão que antecede a ação,
deixa o carro na garagem, 
compra um passe social,
vai a pé ou de metro,
mas não trepes pelas paredes,
atira a matar,
não de kalash mas de ternura,
direitinho ao coração
que diz que não aguenta mais uma paixão 
aos cinquenta…
e tal,
querida amiga, afinal,
fomos feitos para amar 
e desamar
(que não é o mesmo que odiar),
esperar e desesperar,
viver e morrer,
e não há volta a dar,
se há uma antídoto para a morte,
é o amor, 
escrevia o Saramago, o mal amado,
e eu acho que ele tinha razão,
mas o meu livro de culinária existencial
diz para lhe acrescentares
uma pitada de humor quê bê,
ao amor
que segue dentro de momentos...
Se conseguires rir-te do amor, 
como o teu negão do Martinho da Vila,
estás salva.
Eu quero dar
eu quero dar
e receber
e receber
fazer, fazer
me refazer fazendo amor
sem machucar seu coração
sem me envolver.


Carpe diem, amiga,
compra um bom vinho tinto, 
encorpado, 
do Douro ou do Alto Alentejo,
e põe um cêdê,
ouve a tua Mariza Monte
ou grita à janela do Monte Abraão
Amor I Love You,
porque gritar faz bem,
gritar à janela a plenos pulmões
liberta a tua energia negativa,
esses miasmas,
esses iões,
manda à merda esses cabrões.
e depois senta-te,
no sofá,
desliga a droga da televisão
e põe a máscara da tua serenidade,
respira fundo,
dá tempo de antena a ti própria,
lambe as tuas próprias feridas,
que a vida não se delega, 
nem se congela,
nem se põe entre parênteses.
Ou então pinta um grafito 
nas muralhas alexandrinas da tua cidade.
Vi um há dias:
– Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só podia ser de uma adolescente,
apaixonada, doente, 
como tu,
no teu caso, eu sugeria 
uma pequena emenda, subtil:
– Amor ? Amor ?... Amor sou eu!

E ninguém morre, louco, 
de amores intermitentes,
no píncaro do verão da nossa raiva, 
aos quarenta graus centígrados,
com as febres palúdicas,
com as velhas e malditas sezões da ex-África nossa,
nossa, da humanidade,
mal amada, perdida, reencontrada,
no para arranca empanca do trabalho para casa
e da casa para o trabalho:
dizem que a vida é bela
e que, afinal,
somos nós... 
que damos cabo dela.

PS – Querida amiga de Alex, 
minha querida amiga,
sem pátria,
no país sem retorno,
e agora sem império,
não sabia o que te dizer 
com princípio, meio e fim,
mas se isto fosse um poema, 
era recado,
uma canção ligeiramente desesperada,
a deixar no voice mail,
e seria uma coisa assim,
sem palavras a mais:
vais ver que a dor passa,
que, com esse  coração, ainda aguentas,
e que já não é pecado,
o amor aos cinquentas...
e tais
.

Alfragide, 15/12/2005. Última, enésima, revisão, 24/10/2015


In: GRAÇA. L. -   Amor(es), guerra(s), lugar(es): vol. I: amor(es). Lisboa: edição de autor, 2015., pp. 46-54. 

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Nota do editor: