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terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25432: 20.º aniversário do nosso blogue (9): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (VI): Na sua já famosa carta aberta a Salazar e Caetano, de 2010, o 'sínico' António Graça de Abreu recomendava-lhes vivamente a leitura do nosso blogue, lá no além...


Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu junto ao obus 14... Antes estivera em Teixeira Pinto. Terminará a sua comissão em Cufar, no sul, nas vésperas do 25 de Abril de 1974.

A 8 de Abril de 1974, em Cufar, escreve no seu "Dário  da Guiné": 

"De Lisboa a minha mulher continua a dizer-me coisas de espantar. Ao fim deste tempo todo, por exemplo: 'Não contas senão o superficial, a tua vivência aí chega a mim só pela rama'. Como é possível?!... Em vinte e um meses e meio fui três vezes a Portugal,  da Guiné escrevi-lhe trezentas e quarenta e sete (347, tenho tudo numerado!) cartas e aerogramas, desdobrei-me na narrativa, na descrição minuciosa do meu quotidiano e desta guerra, desde os muitos pormenores aparentemente insignificantes aos contextos maiores em que vivo. 'Não contas senão o superficial'. Como é possível ?!..." (in Diário da Guiné..., 2007, p. 211).


1. Esta carta aberta já aqui foi publicada há mais de 13 anos... Foi escrita pelo António Graça Abreu, antes de empreender uma grande viagem à China,  com pedido de publicação, em 21 de Maio de 2009... Lamentavelmente, por um monumental lapso nosso, só seria publicada 18 meses depois, em 16 de novembro de 2010... Merece agora voltar à montra principal do nosso blogue, no dia do nosso 20.º aniversário...

Como o dissemos na altura, é uma peça antológica, é um  documento de belo recorte literário e de mordaz ironia, senão mesmo de delicioso sarcasmo, sob a forma de carta aberta aos dois políticos que formataram este país e este povo, durante mais de meio século, legitimando uma guerra, de longa duração, a milhares de quilómetros de casa, e para  a qual ambos foram totalmente incapazes de encontrar uma inteligente e honrosa saída política... 

Não é um documento panfletário, é uma reflexão, didática, serena, bem humorada,  sobre as oportunidades perdidas por e para todos nós (incluindo os povos africanos, que poderiam ter chegado à independência por meios pacíficos, proveitosos e honrosos, para os dois lados, reforçando os nosssos nossos laços históricos comuns).

Mas é também uma carta de confiança no futuro, de confiança em Portugal, e nos portugueses, de confiança e de orgulho  na geração, a nossa,  que soube fazer a guerra e a paz, independemente dos efeitos perversos, contra-intuivos, n
ão-esperados, que teve a descolonização, um processo em grande exógeno, sobre o qual Portugal de 1974/75 não podia ter grande controlo: 

"Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes".
 

BI militar do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu: 

(i) ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74; (ii) membro da nossa Tabanca Grande desde 2007; (iii) tem mais de 340 referências no blogue; (iv) é sinólogo, tradutor e escritor, autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2011). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
Carta aberta aos Profs. António de Oliveira Salazar 
e Marcello Caetano

por António Graça de Abreu


(i) Introdução

António Graça de Abreu, ex-alferes miliciano na Guiné-Portuguesa, humilde cidadão que teve a ventura de nascer no ano de 1947, durante a longa jornada autocrática de V. Exª., Sr. Presidente do Conselho Dr. António de Oliveira Salazar, e depois de viver extremadamente os últimos anos da ditadura mole e pouco iluminada de V. Exª., Sr. Prof. Marcello Alves Caetano, também Presidente do Conselho, confessa, do fundo das circunvoluções do seu desgastado coração, que anda há um ror de anos com vontade de vos escrever.

A primeira dificuldade, para além da minha inabilidade e ausência de qualidades para me dirigir a tão excelsas e ilustres figuras da nossa História Contemporânea, tem a ver com o embaraço de enviar esta carta para o espaço adequado. Qual o lugar onde hoje se encontram, Excelentíssimos Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano? No fofo azul do Céu, nas agruras amarelas de uma passagem prolongada pelo Purgatório, nos calores vermelhos do Inferno?

Como não sei qual foi o destino que para vós Deus escolheu (dependente por certo de tudo quanto executaram ou mandaram fazer na vossa breve/longa vida terrena), envio esta carta para o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, na certeza de que terá um molho bem cheio de leitores, gente de excelente qualidade, e que V. Exªs., onde quer que estejam, a irão ler.

Este blogue do Luís Graça na Internet  – coisa que não existia no tempo de vossas vidas– é um imenso sucesso de comunicação. São testemunhos de ex-combatentes da guerra na antiga Guiné Portuguesa, trocas de opiniões, entendimentos, desentendimentos, desabafos, uma espécie de terapia colectiva, muitos anos após o regresso dessas paragens quentes e amargas que nos marcaram a todos.

A segunda dificuldade, ao escrever esta carta, prende-se com o modo de vos tratar. “Excelências, Senhores Presidentes do Conselho, Prof. Dr. Salazar, Prof. Dr. Marcello Caetano”? Todas estas denominações vos pertencem, associadas à importância e dignidade dos cargos que, em ditadura, ocuparam ao longo de tantos anos.

Ora, há uns três meses atrás, o António Lobo Antunes, ex-oficial miliciano médico em Angola, 1971/1973, na crónica que assina na revista Visão, escreveu um texto algo zangado com Deus que, no início de 2009, lhe levou dois dos seus melhores amigos. E António Lobo Antunes resolveu tratar Deus por tu. Ele é um pouco, ou muito despassarado, mas enfim…

Eu também tenho as minhas guinadas e manias, mas pairo baixo, a razoável distância do autor de Os Cus de Judas. E os Profs. Salazar e Marcello também não são deuses.

Não me levem a mal por, em bicos de pés no alto do meu banquinho de escritor pequeno e medíocre, (mas com quinze livros publicados), desejar tratar-vos igualmente por tu, com todo o respeito. Mas acho que não sou capaz.


(ii) A História

O nosso Portugal é uma das nações mais antigas da Europa. Fechados neste rectângulo, de costas voltadas para Espanha, tínhamos o oceano diante de nós. E, a partir do século XV, antes de quase todos os outros povos, embarcámos na ousadia e na loucura de navegar o mar. 

Áfricas, Américas, Índia, China, Japão, Austrália, nada do que eram então os grandes mares e as imensas terras desconhecidas parece ter escapado às quilhas das naus, ao calcorrear português, ao entendimento, nem sempre esclarecido, das gentes da pequena pátria lusitana. Demos “novos mundos ao mundo”, é verdade. E fixámo-nos em muitos desses lugares. Fomos ficando. Em meados do século XX ainda estávamos em Macau e Timor, na Índia, em Moçambique e Angola, nas ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, na Guiné.

Depois de descobrirmos mais de meio mundo, face à pequenez do Portugal europeu, alimentámos naus e naus carregadas de mitos e sonhos. O bom do padre António Vieira (1608-1697) acreditava ainda num impossível Quinto Império lusitano espalhado pelo mundo e falava de nós como os que “têm a terra portuguesa para nascer e toda a terra para morrer”.

No século XIX construímos a ideia irrealista de um mapa “cor-de-rosa” a unir, sob domínio português, as terras de Angola e Moçambique. Na I Guerra Mundial (1914-1918) enviámos forças expedicionárias para França, para a Flandres, entre outras razões, para mostrar que tínhamos força (não tínhamos!..) e que outras potências europeias seriam mal sucedidas se algo fizessem para se assenhorearem das nossas colónias. 

Tivemos quinze mil mortos, (corrijam-me se estou enganado!),  bons filhos da terra portuguesa, nessa guerra estúpida e inútil. Como quase todas.

Em 1953, escrevia o general Norton de Matos, em choque aberto com V. Exª., Dr. Salazar, e que mais tarde haveria de se candidatar a Presidente da República pela chamada Oposição: 

“Que a vossa principal tarefa seja o engrandecimento da Pátria, dignificando-a (…). Não deixais que ninguém toque no território nacional. Conservar intactos os territórios de Aquém e Além-Mar é o vosso principal dever.” (in Norton de Matos, A Nação Una, Lisboa, Ed. Paulino Ferreira e Filhos, 1953).

Tudo isto V. Exª. conhecia, Dr. Salazar e, na linha do pensamento tradicional português e até do de alguns dos vossos opositores, Portugal afirmava-se “uno e indivisível”, estender-se-ia do Minho a Timor, eram “muitas raças, uma só nação”. Uma utopia, um sonho lindo e perigoso, inevitavelmente condenado pelos ventos e avanços da História.

A partir dos anos sessenta do século XX, quase todas as colónias das nações europeias em África transformaram-se em países independentes. Sabemos hoje que muitas dessas independências foram prematuras e constatamos como muitos dos pobres povos dessas terras, libertos do nada meigo jugo colonial, têm sido tratados pelos seus governantes africanos e chefes associados ao tribalismo, à incompetência, à corrupção, ao esmagamento dos mais elementares direitos humanos.

No que a Portugal diz respeito, naquele fatídico ano de 1961, perdíamos a Índia e logo de seguida iniciava-se a luta armada em Angola, com o massacre pela UPA (União dos Povos de Angola) de milhares de portugueses inocentes. 

O ódio racial era real e antigo, ao contrário do que a propaganda do regime de V. Exª., Dr. Salazar, queria esconder. A tese das “muitas raças, uma só nação” continuava a ser enganosa e iria provocar imensos sofrimentos ao povo português e aos povos de Angola, Guiné e Moçambique.

(iii) A Guerra

“Orgulhosamente sós”,  embarcámos aos milhares, de armas na mão para lutar contra o “terrorismo” em Angola. Em 1963, com o eclodir dos conflitos armados na Guiné e em Moçambique, novos espaços de guerra se abriram para os portugueses. Os chamados Movimentos de Libertação organizavam-se, contavam com poderosos auxílios externos (União Soviética, China, etc.) e Portugal fez um esforço tremendo para combater, com algum êxito, esses guerrilheiros que acreditavam lutar por um futuro melhor para a Pátria deles e queriam pôr fim a quatro séculos de mau colonialismo. O sangue, a dor, a morte passaram a fazer parte do quotidiano de Angola, Guiné e Moçambique.

Sempre na senda de um “passado glorioso”, da exaltação da nossa História, e também por razões económicas  
– Angola era, é, talvez o país mais rico de África – V. Exª, Dr. Salazar, insistia na “defesa da Pátria”, e V. Exa., Dr. Marcello Caetano, excelente professor na Faculdade de Direito de Lisboa, não discordava uma linha da política ultramarina seguida por Salazar.

Em 1968, eu não era nada de especial, tinha vinte gloriosos anos, vivera já durante um ano em Hamburgo, na Alemanha e, na Faculdade de Letras de Lisboa, fazia parte da Direcção da Pró-Associação de Estudantes e do Grupo de Poesia e Canção da Faculdade. Muitas vezes eram da nossa responsabilidade as primeiras partes dos espectáculos semi-clandestinos do Zeca Afonso, do Adriano, do Fanhais, do Zé Jorge Letria. Eu dizia poemas do Pessoa, da Sophia, do António Gedeão. Deste último, ainda sei de cor a Lágrima de Preta. Ignoro se V. Exas, Salazar e Marcello, são muito dados a estas coisas da poesia, mas aí vai:

Encontrei uma preta que estava a chorar
Pedi-lhe uma lágrima para analisar,
Recolhi a lágrima com todo o cuidado
Num tubo de ensaio bem esterilizado.
Mandei vir as bases, os ácidos, os sais,
As drogas usadas em casos que tais.
Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio,
Água, quase tudo, e cloreto de sódio.

Podem pois adivinhar de que lado político eu me situava. A PIDE já me tinha debaixo de olho e o meu processo na PIDE (podem consultar, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, procº. 9175 C7 NT 7555) é muito interessante e equivale às medalhas que, por bem, não ganhei na Guiné Portuguesa.

Os tempos tinham mudado, em finais dos anos sessenta do século passado cada vez mais pessoas e muita juventude, sobretudo a que frequentava as universidades, começava a contestar a vossa autoridade e a justiça das guerras em África.

E o vosso erro foi não terem entendido, para bem de Portugal e dos povos africanos, que a era gloriosa da Pátria portuguesa espalhada pelos quatros cantos do mundo pertencia a uma História de que nos podemos e devemos orgulhar, mas era apenas isso, o passado.

V. Exª., António de Oliveira Salazar e depois, a partir de 1969, V. Exª., Marcello Caetano, descartavam as hipóteses de negociações com os movimentos de libertação. E os conflitos não tinham solução. Não conseguíamos vencer os guerrilheiros em luta, nem éramos vencidos por eles.

O povo português, os povos africanos sofriam barbaridades. Em nome de quê, porquê, para quê? Vocês estavam a adiar o inadiável, o inevitável.

Em 1968, V. Exº., Dr. Salazar nomeia o então brigadeiro António de Spínola para governador e comandante-em-chefe das tropas na Guiné. Spínola, que fora tenente-coronel em Angola, apercebe-se da impossibilidade de se ganhar militarmente a guerra. A questão era política, sempre foi política e ao lançar a estratégia política de Uma Guiné Melhor António de Spínola pretende transformar o “inimigo em nosso amigo”. Consegue alguns resultados e o PAIGC treme. Spínola começa progressivamente a alicerçar a ideia de uma muito maior autonomia para os territórios ultramarinos, uma espécie de federação lusófona, e inicia estranhas negociações com o “inimigo” que, em 1970, se viriam a saldar pelo cruel e cobarde assassínio de três majores portugueses por guerrilheiros do PAIGC.

V. Exª., Dr. Salazar, tinha caído da cadeira de lona no forte de Santo António do Estoril, batido com a cabeça no chão e incapacitado, ainda sem acreditar, terminava o seu longo consulado ditatorial ao leme dos destinos tortos de Portugal.

V. Exª., Dr. Marcello Caetano, era um homem mais aberto e moderno. Mas não acabou com a ditadura, nem com a polícia política, nem com a asfixia da sociedade portuguesa. No que às guerras de África dizia respeito, foi muito mais “continuidade” do que “evolução”. Portugal permanecia num doloroso beco sem saída.

Até que em 1973, de início por razões reivindicativas e corporativistas que tinham a ver com promoções na carreira, um grupo de capitães, oficiais do quadro permanente, todos marcados pela inutilidade, irracionalidade e impossível solução das guerras de África, decide avançar para um golpe militar e depor o regime que governara Portugal a partir de 1926.

V. Exª., Dr. Salazar, desde 1970, dormia o definitivo sono dos injustos na sua campa térrea de Santa Comba Dão. E V. Exª., Dr. Marcello, foi exilado para o Brasil. As guerras de África iam acabar porque o problema tinha solução, era, sempre foi político.

O que veio a seguir já não é da vossa responsabilidade, sois apenas culpados por ter protelado, adiado até ao impossível, uma necessária solução política para os conflitos em África.

A descolonização, como sabem, foi um inenarrável desastre, as tragédias da guerra civil em Angola, os conflitos em Moçambique, os massacres em Timor, o fuzilamento de centenas de militares e civis africanos na Guiné, homens que tinham combatido ao nosso lado ou apoiado as tropas portuguesas, enfim todo um rosário de mágoas, dor e morte que não terminou com a independência desses territórios. Como foi possível, pós independência, que quase todos os mais destacados e heróicos comandantes da guerrilha do PAIGC também tenham sido mortos em lutas intestinas entre eles? Como é possível que hoje, ano de 2009, quase metade das mulheres da Guiné-Bissau estejam ainda sujeitas à excisão do clitóris, uma prática bárbara, atentatória dos mais elementares direitos da mulher, direitos humanos? Como é possível que hoje, 2009, em Bissau não exista uma única livraria?

Mas não foi para me debruçar sobre estes temas que vos escrevi. Vamos falar de nós.

(iv) Combatentes

A minha mulher é chinesa [foto à esquerda], criada na Xangai comunista, República Popular da China, onde nasceu em 1961. Há dois anos atrás, quando resolvi ir buscar o meu diário de guerra na Guiné, mais uns aerogramas da época [foto abaizo], e comecei a passá-los ao computador prevendo uma possível publicação em livro, a minha mulher zangou-se comigo. Via-me sofrer ao reescrever os textos, constatava como aquele diário ainda bulia comigo, houve dias em que, na escrita, algumas lágrimas me rolavam pela face, e ela não gostava. Fala bem português, está em Portugal há 24 anos e disse-me mais ou menos o seguinte:

“Então que prazer estúpido tens em mexer nesses papéis, tu afinal pertenceste a um exército colonial que andou a matar os pobres dos pretos. Não é melhor tentar esquecer tudo isso e dedicar o teu labor a trabalhos mais saudáveis”?!..




Cópia de aerograma, original, escrito em linhas concêntricas, reproduzido no livro "Diário da Guiné".


Em Julho de 2008 tentei e consegui convencê-la a ir comigo a Fátima, ao segundo encontro dos camaradas da CCaç 4740, com quem estive em Cufar, sul da Guiné, durante dez meses. Fomos à missa (o que raramente acontece!) com muitos dos homens da companhia 4740 e ao almoço com eles e famílias. E a minha mulher entendeu por fim o que une estes antigos militares da Guiné. Compreendeu, em palavras simples, como somos amigos, entendeu a alegria que temos em nos reencontrar, em recordar, em nos sentirmos irmãos.

[ À esquerda, capa do livro do nosso camarada António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura.  Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.... 


É isto, senhores Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano, que vos quero dizer, dar-vos a conhecer a evolução das nossas vidas. 

A guerra marcou-nos a todos, mas somos hoje companheiros fraternos, camaradas de armas recordando um duro passado comum, em terras que não eram as nossas, mas que continuam a exercer sobre nós todos os fascínios. Fomos obrigados a fazer uma guerra, é verdade, mas a grande maioria de nós também sabia fazer a paz, quase todos tiveram a humanidade e a dignidade de sair de cabeça levantada dessa guerra.

Centenas de milhares de homens passaram pelas guerras de África. Quase nove mil combatentes, no melhor dos seus vinte anos, lá perderam a vida. “Malhas que o império tece”, ou melhor, malhas cerzidas por uma política cega, de que vocês os dois foram os principais fautores.

Os meus heróis são os soldados portugueses que tombaram para sempre numa guerra injusta tendo por horizonte as bolanhas, o tarrafo e o verde e vermelho da bandeira portuguesa, os meus heróis são esses guerrilheiros anónimos do PAIGC que caíram no seu campo de luta.

(v) A Guiné

O velho Confúcio, nascido na China antiga no ano de 551 a.C., disse mais ou menos o seguinte: “Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer”.

Como, apesar dos meus 62 anos, conheço ainda tão pouco, devo confessar-vos, Drs. Salazar e Marcello, que neste blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné tenho aprendido muito sobre o que aconteceu nos onze anos de guerra na Guiné e sobre esta essência tão obtusa de sermos portugueses.

Os testemunhos dos homens que viveram o conflito é sempre e naturalmente plural. Os nossos dois anos de Guiné tiveram cenários e tempos diferentes, as terras fulas de Bafatá e Nova Lamego (Gabú), o chão manjaco, com o Cacheu e Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa e o Morés, no sul, as terras do Tombali e do Cantanhez. Diversos espaços de luta, de excelente, extraordinária camaradagem e também de sofrimento. Ora, a Guiné dos anos 1964, 1967, 1970, 1972 ou 1974 não corresponde exactamente a um mesmo enquadramento logístico e estratégico. A guerra prolongou-se por onze anos. Depois, hoje escrevemos de memória, trinta e tal, quarenta e tal anos transcorridos. E a memória esquece, distorce, obscurece, exalta o entendimento.

Mesmo assim, muitos dos testemunhos dos ex-combatentes neste blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné assumem-se como marcos fundamentais das nossas vidas, imprescindíveis para entender quem fomos e somos.

Recomendo-vos vivamente a leitura do blogue, Profs. Salazar e Marcello.

Transparece, no entanto, em alguns dos textos publicados no blogue, reflexo também de falsas ideias feitas em estratos da sociedade portuguesa, uma constante ideológica de assumir culpas, de lançar culpas para o parceiro do lado, de subestimar as forças militares portuguesas e, lógico, de sobrevalorizar o poder dos guerrilheiros do PAIGC. Política, má política.

Fomos obrigados a combater contra povos pobres que acreditavam lutar por um futuro mais risonho para as suas pátrias. Não fomos militarmente derrotados. Porque, quase sempre fomos bravos, “forte gente” com “fracos reis”, como diria o nosso Camões.

Mas, V. Exª., Dr. Marcello Caetano, com algum fundamento, estava assustado com o que acontecia na Guiné, a partir de Abril de 1973, com os mísseis Strela e com a debandada de Guileje. Em Lisboa, com censura nos jornais, sem liberdade de imprensa, corriam extravagantes boatos. Dizia-se de boca bem aberta, mas à boca calada, que os aquartelamentos portugueses no sul da terra guineense caíam uns após outros. Contava-se que um quartel, a 30 quilómetros de Bissau, havia sido tomado pelo PAIGC, com centenas de mortos. Em Junho de 1973, à noite, às escondidas, em muros da cidade de Coimbra, alguém escrevia : “se tem o seu filho na Guiné, considere-o morto.”

Em V. Exª., Dr. Marcello Caetano, a preocupação crescia. Em Junho de 1973, mandava chamar o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Costa Gomes, recentemente regressado da Guiné e perguntava-lhe:

 
– A Guiné é defensável e deve ser defendida?
(…) A resposta do General Costa Gomes foi categórica:

 
– No estado actual, a Guiné é defensável e deve ser defendida.”

(in Marcello Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1974, pag.180.)


A menos de um ano do 25 de Abril, Costa Gomes considerava a Guiné “defensável”, o que era verdade em termos militares. Sim, mas à custa de tantos sacrifícios!… Quanto ao “deve ser defendida” era a perpetuação da tese política da defesa cega das terras africanas do império.

A Guiné-Bissau tornou-se um país independente a 23 de Setembro de 1974 e logo depois Costa Gomes chegou a Presidente da República portuguesa. As malhas rotas que o império tece.

(vi) Conclusão

António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano, Excelências

Espero que tenham lido com atenção esta minha despretensiosa carta. É apenas um desabafo do coração, mas espero que, graças ao fantástico e extra-terreno blogue do Luís Graça & Camaradas d Guiné, tenha chegado ao vosso mundo.

Nós hoje, somos ainda uns duzentos mil ex-combatentes da Guiné. Sexagenários e septuagenários, jamais esquecemos esses cada vez mais distantes dois anos das nossas vidas. Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes.

Com vinte e poucos anos, quase todos nós demos o melhor de nós próprios (às vezes a própria vida) numa guerra que não desejámos. Mas temos orgulho na nossa bandeira e nesse estranhíssimo sortilégio de se nascer português.

Homens, ex-militares da Guiné, somos hoje duzentos mil irmãos.

Saúda-vos, com pouca amizade, o António Graça de Abreu

(Revisão / fxação de texto, negritos,  numeração dos subtítuos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)
____________

Nota do editor  L.G.:

(*) Último poste da série > 23 de abril de  2024 > Guiné 61/74 - P25428: 20.º aniversário do nosso blogue (8): Bem hajam!, a minha palavra de gratidão para os nossos editores e colaboradores (João Crisóstomo, Nova Iorque)

Vd. também poste de 21 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25418: 20º aniversário do nosso blogue (6): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (V): Canjadude, pânico no abrigo Norte: Ei!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!... (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", 1969/71)

domingo, 14 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25070: Facebook...ando (49): O Fernando Moreira (1950-2021), ex-fur mil trms, CCS/BCAÇ 3883 (Piche, 1972/74) terá sido o último militar do exército a falar pela rádio com o ten pilav Castro Gil (1950-1979) antes do abate do seu Fiat G-91 R/4, "5437", por um Strela, em 31/1/1974, sob os céus de Canquelifá


Parelha de Fiat G-91 R/4


Vitor Manuel Fernandes Castro Gil, cap pilav
 (1951-1979). 
Fotos : Cortesia de Fernando Moreira / Quidnovi (2011)


1. Página do Facebook do Fernando Moreira (c. 1950- 2021) > 31 de janeiro de 2013 | 01;45

Há uma outra versão do abate do Fiat G-91 R/4, do ten pilav Castro Gil (*):  foi escrita pelo Fernando Moreira, ex-fur mil trms inf, CCS/BCAÇ 3883 (Piche, 1972/74); está ainda disponível na sua página do Facenook e foi também produzida, com a devida autorização do autor,  no Blogue Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74 > domingo, 3 de fevereiro de 2013 > VOO 2688 – 31 Jan. 1974 - Míssil abate avião; eu "estava" lá.



Fernando Moreira, Fur mil trms 
CCS/BCAÇ 3883 (Piche, 1972//4)


Fernando Moreira (c. 1950-2021)


Fotos (e legendas): © Fernando Moreira  (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Fernando Moreira, que era nosso amigo do Facebook da Tabanca Grande, morreu há dois anos, em 12 de dezembro de 2021.  De acordocom a sua página, era  natural de Mirandela, andou nos Liceus de Bragança e Vila Real, bem como na Escola Agrícola de Coimbra; viva em Vila Real.  

O depoimento do Fernando Moreira, na primeira pessoa do singular, é também valioso para a história da guerra na Guiné e da FAP, porque foi ele, na qualidade de furriel de transmissões da CCS/BCAÇ 3883, em Piche,  o último militar do exército a falar com o ten pilav Castro Gil. 

Reproduzindo o seu texto (**), com a devida vénia, estamos a homenagear dois camaradas, já falecidos, que não queremos que fiquem inumados na "vala comum do esquecimento".

Ficámos também a saber que o nosso camarada da FAP, então já com o posto de cap pilav,  Vitor Manuel Fernandes Castro Gil (1951-1979), viria  a falecer, cinco anos depois, em 5 de janeiro de 1979, aos 28 anos na BA 5, Monte Real, num acidente com um T-33. Teria nascido, pois, em 1951. 

Mas, atenção, há outras versões deste episódio, anteriores à do Fernando Moreira.  No Blogue dos Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74, pode ler-se:

Ver também no nosso blogue, Luís Graça & Camaradasda Guiné:

31 Jan 1974 - Míssil abate avião: eu "estava" lá

por Fernando Moreira


No início de 1974, a zona Leste da Guiné  [, rehião de Gabu], e particularmente a área sob o controlo do Batalhão com sede em Piche  [BCAÇ 3883, 1972/74], começou a sentir o forte assédio do PAIGC que se havia iniciado a Norte (em Guidage) e a Sul (em Guilege). 

Para poder cortar as rotas de comunicação e pressionar diretamente o aquartelamento de Piche, a estratégia do PAIGC passava pela tomada da nossa guarnição de Canquelifá  [CCAÇ 3545]mais a norte.

No dia 31 de janeiro 
 [de 1974], após aquele destacamento ter sido flagelado com mais de 50 foguetões de 122 mm em apenas duas horas (houve abrigos que não resistiram e ficaram destruídos), foi decidida uma acção de apoio aéreo. Da Base de Bissalanca [BA 12], , em Bissau, levantou uma parelha de aviões Fiat G-91 R/4 pilotados pelos tenente-coronel Vasquez e tenente  [CastroGil (na foto).

A missão, designada de "apoio de fogo", tinha como objectivo aliviar a pressão sobre a guarnição e, como tal, impunha-se auxílio logístico às aeronaves. Essa tarefa foi atribuída ao Comando do Batalhão, em Piche. 

Por volta das quatro da tarde, numa frequência rádio previamente determinada, estabeleceu-se o contacto. O alferes de transmissões encarregava-se das comunicações com o avião n.º 1 da parelha, enquanto a mim me cabia o n.º 2 , pilotado pelo tenente Castro Gil.

Fomos fornecendo coordenadas para ataque ao solo e outras informações solicitadas pelos pilotos. Entre elas destacava-se o "feedback" dos nossos colegas em Canquelifá que, por outra via rádio, nos davam conta daquilo que observavam da ofensiva aérea. 

Tudo indicava que a operação estava a decorrer com sucesso. Subitamente, quando fornecia ao "meu" piloto uma coordenada a norte de Canquelifá, ele deixou de falar e, acto contínuo, ouvi um barulho parecido a uma pequena explosão. E perdi o contacto. 

A seguir entra no meu rádio o comandante da esquadrilha e diz: "…o n.º 2 está em perda, foi atingido… está a cair… ejectou-se…". Depois ouvi-o comunicar com a base solicitando a mudança de frequência pelo que cessou aí a nossa ligação rádio.

Já de noite, soubemos que o avião tinha sido atingido por um míssil terra-ar SAM-7 (conhecido por Strela), durante a recuperação de um "passe de bombas", eventualmente feito sem a necessária aceleração, entrando assim no "envelope do míssil". 

O piloto ejectou-se (a explosão que ouvi pela rádio terá ficado a dever-se a essa ação de evasão), conseguindo dirigir-se para Norte e passando a noite para lá da fronteira com o Senegal. 

Ao amanhecer iniciou uma caminhada para sul, a fim de tentar encontrar a estrada Canquelifá – Piche, contornando as linhas inimigas. Esta decisão, inteligente, ter-lhe-á valido não ser capturado pelo PAIGC.

Entretanto, estavam já na zona os meios de busca e salvamento: várias aeronaves (nunca vi tantas!), os paraquedistas e o famoso grupo do Marcelino da Mata transportados em helicópteros. 

O ten Gil avistou os aviões que o procuravam e, sem hipóteses de os contactar, continuou a caminhar. Cansado e cheio de sede, resolveu entrar numa tabanca onde pediu água. Felizmente para ele foi recebido de um modo amistoso e deram-lhe água e laranjas, o que o levou a oferecer 1000 pesos a quem o levasse a um quartel da zona. 

À vista de tal quantia, foi o próprio Homem Grande da tabanca que, pegando na sua bicicleta, o transportou ao posto da tropa mais próximo, Dunane, situado na estrada para Piche. Como em Dunane os militares eram todos africanos, o piloto pediu que o levassem até um quartel com militares brancos. o que fez o homem grande pedalar rijo até Piche.

Em Piche, cerca das 18 horas, uma multidão aguardava o tenente Castro Gil. Toda a gente o queria ver e cumprimentar. Eu ainda consegui dar-lhe um aperto de mão e identificar-me como o seu ajuda rádio durante a operação e no momento do impacto do míssil. Ele retorquiu: "Eh pá… não houve hipóteses” (de escapar)!"

Depois de descansar, se alimentar e pagar a dívida ao Homem Grande, partiu num Dakota que o esperava na nossa pista de aviação. Consta que em Bissalanca outra recepção grandiosa aconteceu.

O avião (Fiat G-91, nº identificação "5437" (na foto) do tenente Gil foi o último a ser abatido por um míssil terra-ar Strela antes da independência. Durante a guerra colonial, na Guiné, foram abatidos 7 aviões Fiat G-91 de que resultou 1 piloto morto e 6 ejecções com êxito e posterior resgate.

Por ironia do destino, o tenente Victor Manuel Castro Gil que em 31/1/1974 resistiu, como vimos, a um míssil e a uma ejecção em zona de guerra, veio a falecer em Monte Real, a 5 de janeiro de 1979, com 28 anos, aos comandos de um T-33 durante a fase de aterragem.

(Referências: José Manuel Pinto Ferreira, em “Luís Graça & Camaradas da Guiné”; Arnaldo Sousa, em “Especialistas da Base Aérea 12, Guiné”)

Autoria: Fernando Moreira, Ex-Furriel Miliciano de Transmissões de Infantaria – Guiné-Bissau (Piche: Maio de 1973 a Junho de 1974; Bissau, CHERET, Jul. a Set. 74). 

Publicado em "Guerra Colonial - A História na Primeira Pessoa" da QUIDNOVI. (Trata-se de um conjunto de 16 volumes, de 111 pp. cada. da autoria de Paulo F. Silva e Orlando castro, Edição: Quidnovi, Vila do Conde 2011.)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, notas entre parênteses retos: LG)

Referência bibliográfica:

Guerra colonial : a história na primeira pessoa / texto Paulo F. Silva, Orlando Castro ; rev. Mariana Guimarães. - Vila do Conde : QuidNovi, cop. 2011-. - v. : il. ; 23 cm. - Contém bibliografia. - 

1º v.: Antecedentes e Baixa de Cassange. - 111 p. 

2º v.: 4 de Fevereiro e massacres de Março. - 111 p. 

3º v.: Formação da Frelimo e PAI passa a PAIGC. - 111 p. 

4º v.: Nova frente militar ; Criação dos comandos (1962) e primeiras operações. - 111 p. 

5º v.: Operação Tridente ; Bases militares na Tanzânia e o inicío da luta armada. - 111 p. 

6º v.: Operação Águia, em Mueda ; Bloqueio do porto da Beira. - 111 p. 

7º v.: Fundação da UNITA ; MPLA abre a frente leste da guerra. - 111 p. 

8º v.: Acções militares do ELNA-FNLA ; UNITA expande-se para Leste ; Cunene e Cahora Bassa. 

9º v.: A pior situação militar ; A guerra expande-se ; Operações do MPLA no Leste. - 111 p. 

10º v.: A chegada de Spínola ; Crise política na FRELIMO ; Operação Zeta ; Kaúlza nomeado comandante da Região Militar de Moçambique. - 111 p. 

11º v.: Samora Machel assume a liderança da FRELIMO ; Operação Nó Górdio ; Operação Mar Verde. 

12ºv.: Acção psicológica ; A terceira via de Marcelo. - 111 p. 

13º v.: O papel de Costa Gomes ; O papel de Kaúlza de Arriaga. - 111 p. 

14º v.: O papel de Spínola ; Morte de Amílcar Cabral ; Movimento dos capitães. - 111 p. 

15º v.: A revolta dos capitães ; Operação Madeira ; Acontecimentos na Beira. - 111 p. 

16º v.: O fim da guerra colonial. - 111 p.  (...)


Comentários (selecionados)
 
José Ferreira

Mais uma bonita história dos nossos Combatentes na Guiné. Eu, que estive "de férias" ali naquela zona, incluindo Dunane, fico abismado com as diferenças em relação aos fins de 1968.

Arlindo Marques

Canquelifá, foi para a companhia 122 de Páras, da qual eu fazia parte, um lugar de má memória, porque perdemos um camarada, por rebentamento de mina, quando faziamos proteção ( guarda de flanco) a uma companhia do exército.

Antonio Rodrigues

Neste dia em que o FIAT G91 foi abatido, encontrava-me em Copá a embrulhar fortemente para não fugir à regra do dia a dia, como acontecia por ali e em Canquelifã naquela altura. O avião foi abatido na área entre Copá e Canquelifã, que distavam cerca de 12 Kms, portanto assistimos a toda aquela cena de muito perto. 

Depois de o Piloto se ter ejectado após ser atingido e ter ganho bastante altura, o avião guinou para o lado esquerdo do sentido em que voava, fez quase uma inversão de marcha, ficou completamente descontrolado e veio a despenhar-se paralelamente a Copá, junto à fronteira com o Senegal. 

Em Copá vimos toda esta cena a olho nu. Passam hoje 39 anos sobre este acontecimento, mas estas imagens ficaram-me gravadas para sempre na memória. 

Mais uma vez os meus sinceros Parabéns por este belíssimo trabalho do Fernando Moreira.

Rui Bruno

O ten Gil morreu mais tarde na BA5, já no posto de capitão (em 1979) a bordo do T-33A Tail Number 1925, quando o seu avião embateu na pista durante a recuperação de um Touneaux.... Morreu também o cap Santos Costa.

Carlos Pinto

Tive três irmãos na Guiné. Já ouvi tantas histórias deles, que nomes como Guidage, Guilege e outros locais até já me são familiares.

Antonio Victor Pegas

Aterrei num Boeing 707 à luz de archotes, com um carregamento vindo de Luanda, depois foi cerveja e ostras no Espada e para adormecer tivemos morteirada ao longe.....e o meducho dos mísseis terra ar....

Rui Costa Branco

Era um miúdo com 5 anos mas lembro-me bem da chegada do ten Gil à base de Bissalanca.

Pedro Costa Branco

Pois é Rui Costa Branco, eu ainda não era nascido, mas já ouvi esta história contada algumas vezes pelo nosso pai.

Armando Pereira Gonçalves

O Gil um grande amigo meu, eu também lá estava, ele andou perdido no mato, sei a história toda, contada pessoalmente por ele, éramos grandes amigos, um tipo pequeno mas com uma enorme nobreza, depois estive com ele na BA5 quando lá fui jogar futebol de Onze, pela equipa da BA4, tive imensa pena com a morte do Gil, foram um bocado estúpidas estas mortes. Que continue em Pal a sua Ala. GVS

Maurício Gomes

Nos primeiros mêses de 1974 estava eu em Binta a fazer proteção à construção da estrada Binta - Guidage e naquela zona (o Cufeu) tinha no ano anterior sido palco de terríveis emboscadas às colunas que reabasteciam Guidage, na nossas deslocações para o local,onde estavam as frentes de trabalho que íamos proteger, encontrávmos com muita frequência minas anti-carro e anti-pessoais e tivemos até uma com elevada carga de explosivos que destruiu completamente a Berliet - rebenta minas... Também uma anti-pessoal vitimou um camarada que foi evacuado de helicóptero para Bissau, destas imagem nunca mais me esqueço e muito surpreendido fiquei com a rapidez da chegada do helicóptero ao local.

 Voltando ao atrás referido Cufeu, também é uma das imagens que me ficou gravada, aquele verdadeiro campo de batalha onde encontrávamos viaturas todas destruídas pela nossa aviação no ano anterior, Berliets, Unimogues, Mercedes, sei lá que mais, ao lado de buracos enormes no chão, resultantes das bombas dos Fiats que foram em auxilio das nossas tropas que já tinham debandado e o inimigo apoderou-se das viaturas da coluna,  daí o facto do bombardeamento ter destruído as viaturas que eles alegremente já condiziam em comemoração.

Antonio Rodrigues

Caro Maurício Gomes, quando cheguei à Guiné em Setembro de 73, não se falava de outra coisa , o assunto principal era Guidage e Guilege. A mim coube-me em sorte Copá, onde vivi e assisti a esta história do abate deste Fiat.

António Maia

Estive em Catió de 72 a 74. Como conheci esta história. Guilege, Cacine, Gadamael, Cufar, pertenciam ao meu Batalhão, e ainda tinhamos a celebre Ilha de Como, bem próxima.

Jose Maria de Noronha

Geração heroica.

Carlos Santos

Estava na BA 12 nessa altura,
 
Alvaro Seabra

Um facto histórico!

Carlos Barbosa

Estava em Buruntuma, CCAÇ 3544. Um grande abraço a todos os ex-combatentes.
 
Carlos Manuel Prazeres Cerqueira

Pois nesse altura em Dunane já só estava a milicia,  embora estivesse lá um Pelotão da CCAÇ 3545 ou seja o 3º Pelotão,  comandado pelo nosso Alferes Francisco Presa .

Carlos Ferreira

Em Guileje foi o primeiro a ser abatido, em 25 de março de 1973... Aconteceu quase tudo igual só que era o tenente Pessoa, ainda vivo, graças a Deus.
 
Luis Gonzaga Rocha

Em 31 de janeiro de 1974 eu estava em Guidage na CCaç 4150.

_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25059: Casos: a verdade sobre... (39): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - Parte II: o abate do último Fiat G-91 R/4, em 31/1/1974, a recuperação do piloto, ten pilav Victor Manuel Castro Gil

(**) Último poste da série > 29 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P25013: Facebook...ando (48): No tempo em que passva na televisão o "Natal do Soldado" (A. Marques Lopes, autor de "Cabra Cega", livro de memórias, 2015, 582 pp.)

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25053: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLI: Canquelifá, a ferro e fogo, no 1º trimestre de 1974


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné > Zona leste > Região de Piche > Setor de Piche > Canquelifá >  Março de 1974 > A desolação da guerra: a tabanca, depois das violentas e prolongadas flagelações, diárias  por parte do PAIGC, à luz do dia, com morteiros 120, foguetões 122 e canhões s/r, entre 18 e 22 de março de 1974, e partir de várias direções (e sobretudo Norte e Leste).

Houve mortos e feridos e graves danos materiais: pelo menos, 1 morto e 5 feridos graves entre as NT; 3 mortos, 2 feridos graves e 4 feridos ligeiros entre a população. Essas acções, que devem ter sido dirigidas pelo comandante do PAIGC Manuel dos Santos (Manecas),  revelam um certo "sentimento de impunidade", com o IN escudado nos mísseis terra-ar Strela,  russos, tentando "engodar" a nossa aviação... Nesta altura, no 1.º trimestre de 1974, Canquelifá corria o risco de tornar-se a Guileje da zona leste, o que é confirmado pelo testemunho do Amadu Djaló. 

Nuno Rubim escreveu a propósito: "Sempre presumi que a base de fogos tivesse instalada do outro lado da fronteira. O Perintrep é omisso sobre este ponto. Mas não, ao que parece era na antiga tabanca de Chauara, a escassos 10 km de Canquelifá, com o PAIGC entrincheirado, e sua artilharia defendida por sapadores e infantaria... A escassos 4 km a norte, havia outra posição, Sinchã Jidé. No caso de Chauara, o reabastecimento era feito por estrada próxima que vinha do Senegal e atravessava a Guiné-Conacri." (*) 

Pelo testemunho do ex-ten pilav António Martins de Matos, nosso grão-tabanqueiro, sabemos que da parte da FAP houve bombardeamentos nocturnos com o Dakota, chegando-se a utilizar bombas de 750 libras para aliviar a pressão sobre as NT.

Estas fotos são do álbum do nosso camarada (e amigo)  Jacinto Cristina, o famoso padeiro do destacamento da ponte de Caium (CCAÇ 3546, Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974), e que vive em Figueira dos Cavaleiros, Ferreira do Alentejo,  estando ainda vivo, rijo e valente.

Observ. - O José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, da CCAÇ 3545, que vive emVila Nova de Famalicão, e é membro da nossa Tabanca Grande, diz que estas fotos terão sido tiradas pelo "saudoso alferes (Fernando de Sousa) Henriques" (falecido em 2011),  e que se reportam aos primeiros grandes ataques de 3, 4 e 5 (sic) de janeiro de 1974 (e não de 18-24 de março), altura em que a população abandonou a tabanca e o houve um princípio de pânico e amonitação do pessoal da companhia (bem como  do Pel Art) (que queria abandonar Canquelifá), situação que o cap mil inf Fernando Peixinho de Cristo (1947-2016)  conseguiu resolver com grande calma e coragem (feito que lhe terá valido a Cruz de Guerra de 3ª classe, a par da defesa heróica de Canquelifá nos últimos meses  do final da guerra).

Fotos: © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Mapa de Canquelifá (1957) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Canquelifá (NT) e das bases de fogos do PAIGC, em março de 1974: Sinchã Jidé, a 4 km a norte, junto à fronteira com o Senegal, e Chauara, a menos de 10 km, a leste, junto à fronteira com a Guiné-Conacri.


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Mapa de Canquelifá (1957) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Canquelifá, Copá, Nhunanca e Chauará, bem como  da fronteira do Senegal, a norte.

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem mais de nove dezenas de referências no nosso blogue. Tinha um 2º volume em preparação, que a doença e a morte não  lhe permitaram ultimar.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné-Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra)M

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor;

(xxiii) vamos vê-lo a dar instrução a futuros 'comandos' no CIM de Mansabá, na região do Oio, no primeiros meses do ano de 1973, e a fazer algumas "saídas" extras (e bem pagas) com o grupo do Marcelino, ao serviço do COE (Comando de Operações Especiais), que era então comandado pelo major Bruno de Almeida; mas não nos diz uma única sobre essas secretas missões; ao fim de 12 anos de tropa, é 2º sargento e confessa que está cansado;

(xxiv) antes de ir para CCAÇ 21, como sede em Bambadinca, como alferes 'graduado" (e sob o comando do tenente graduado Abdulai Jamanca, ainda irá participar na dramática Op Ametista Real, contra a base do PAIGC, Cumbamori, no Senegal, em 19 de maio de 1973;  esta parte do seu  livro de memórias  (pp. 248-260) já aqui foi transcrita no poste P23625;

(xxv) no leste, começa por atuar no subsetor do Xime, em meados de 1973;

(xxvi) em setembro de 1973, quando estava em Piche, já na CCAÇ 21, recebe a terrível notícia da morte do seu querido irmão mais novo, Braima Djaló, da 3ª CCmds;

(xxvii)  embora amargurado com a morte do seu irmão mais novo, e cansado, ao fim de 12 anos de tropa e de  guerra, o Amadu Djaló mantem-se na CCAÇ 21, como alferes graduado; vemo-lo agora no início de 1974 em Canquelifá, em reforço da CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74).


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLI:

Canquelifá a ferro e fogo, no 1.º trimeste de 1974 (pp. n 266-272)


A CCaç 21, comandada pelo tenente Jamanca, foi destacada para apoiar a companhia estacionada em Canquelifá 
[CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883] . Partimos de Piche com os milícias das tabancas da zona a picarem a estrada.

Quando chegámos reunimo-nos com o capitão[1] da companhia de europeus. A primeira coisa que nos disse foi que não tinha instalações para nos alojarmos. Jamanca respondeu que não havia problemas, que nós nos havíamos de desenrascar. Falámos com o filho de régulo, Mamadu Sané, mais conhecido por Mama Sané, que nos arranjou uma casa com cinco quartos e respectivas camas e um sala grande com mesas e cadeiras. Tínhamos mais do que esperávamos.

Depois de descansarmos um bocado, fomos chamados para o almoço, que dois soldados europeus tinham colocado nas mesas da casa onde ficámos. Enquanto me estava a lavar,  ouvi Demba Chamo dizer qualquer coisa que não percebi mas ouvi a resposta do Jamanca, que comíamos e depois reclamávamos. 

Quando entrei na sala vi duas travessas de alumínio, muito velhas, uma rota e sem pega, os talheres muito velhos também. Estávamos todos muito calados até à chegada do Sada Candé, que mal se sentou perguntou se era naquelas sucatas que íamos comer. Jamanca, muito calmo, voltou a dizer:

- Vamos comer primeiro, depois falámos com o capitão. 

Mas Sada disse que não comia e todos nós ficámos a olhar para ele.

Sada interpelou dois soldados da CCaç 21, que estavam a passar, mandou-os pegar na travessa e na terrina e passou para a frente deles dizendo-lhes para irem atrás. Não o podia deixar ir sozinho, levantei-me e segui-o até ao gabinete do capitão. 

Quando chegámos, Sada perguntou ao capitão se era nessas travessas que nos davam a comida. Quando o capitão ia começar a falar, Sada pegou na terrina da sopa e atirou-a para o chão, enchendo de sopa as calças do capitão. Fiquei muito envergonhado e ouvi o capitão dizer que o assunto não era com ele, era com o alferes tal, não me lembro do nome. Sada, muito excitado, foi à procura do alferes e quando reparámos estavam os dois aos socos, um ao outro, e depois continuaram a lutar no chão.

Soldados africanos e europeus levantaram-se, a ver o espectáculo. Um alferes europeu que estava à minha beira disse-me para o ajudar a separá-los. 

Isto é uma vergonha, dois oficiais a brigar, com os soldados todos a ver, vamos separá-los já disse-me.

O capitão mandou recolher a comida que estava em cima das mesas deles e mandou levá-las para as nossas. Mas nós já tínhamos perdido a vontade de comer.

À noite, mais calmos, reunimo-nos para discutir o assunto. Resolvemos levantar os géneros, entregá-los ao filho do régulo e pedir-lhe que fosse a mulher dele a cozinhar para nós. Jamanca, sempre muito calmo, disse-nos para não contarmos a ninguém o que se tinha passado. Que, como tínhamos visto, o capitão e os oficiais da companhia eram boas pessoas e que devíamos esquecer essa história das terrinas.

Eu tinha conhecido Canquelifá muitos anos atrás, em 1961, quando andei por lá com o meu primo Ussumane Injai a comprar gado para o vendermos depois em Bissau. Nessa altura, Canquelifá era uma terra pequena, tinha só duas ou três lojas.

Agora estava aqui outra vez, no início de 1974[2], e Canquelifá estava muito diferente. As tabancas que havia à volta, junto às fronteiras com o Senegal e com a Guiné-Conacri,  estavam todas arrasadas, a população tinha desaparecido

A zona estava nas mãos do PAIGC e Canquelifá agora era um local muito perigoso, sempre à espera de ataques, do lado do Senegal ou da Guiné-Conacri. As estradas estavam semeadas de minas, se Canquelifá precisasse de apoio à noite, não podia ser socorrida por estrada, de noite não se podiam picar estradas. Foi nesta situação que encontrámos Canquelifá.

Estavam ali duas companhias[3], uma de europeus e a nossa, oito pelotões ao todo. Fizemos um programa de saídas, todos os dias de manhã saía um bigrupo nosso até a uma distância de cinco a sete kms e regressava por volta das duas da madrugada. Julgávamos que,  a partir dessa hora, era mais difícil haver ataque do PAIGC. Num dia saía um bigrupo de africanos, no dia seguinte um de europeus. Desta forma, cada bigrupo descansava três dias.

Em algumas dessas saídas, deixávamos o quartel, de manhã muito cedo, na direcção de Nhunanca. Depois de andarmos um bom bocado, entrávamos numa lala[4], quase sem árvores, com o capim muito alto, que as populações geralmente queimavam na primavera.

Depois de atravessarmos para o outro lado da lala, permanecíamos aí algum tempo, até cerca das 15h00, quando decidíamos abandonar o local. Caminhávamos mais dois a três kms e emboscávamo-nos. Ocupávamos dois caminhos, o que ia para Nhunanca e o que levava a Chauara. Ficávamos naquele local durante cerca de uma hora e regressávamos, contornando o quartel e entrando pela entrada contrária à saída para Copá. Fizemos este trabalho várias vezes, com uma ou outra alteração no percurso.

Numa dessas saídas[5], um dos nossos bigrupos, comandado pelos alferes Ali Sada Candé e Braima Baldé, quando estava emboscado, a cerca de dois kms do aquartelamento, avistou, por volta das 16 horas, um grupo do PAIGC a atravessar uma lala. Estavam a deslocar-se na direcção do quartel.

O nosso bigrupo foi no encalço deles, a observarem o que iam fazer. Cerca de um quilómetro andado o pessoal do PAIGC parou, debaixo de uma grande árvore. Um deles estava a preparar-se para subir a árvore, quando o nosso bigrupo os atacou, de surpresa. 

O pessoal do PAIGC fugiu como pôde, deixando no local três guerrilheiros mortos[6], as armas e um rádio Racal[7], que viemos a descobrir, mais tarde, tinha sido perdido por nós em Morés, em 23 de dezembro de 1971.

Era a vez do meu grupo ficar no aquartelamento, mas quando começámos a ouvir o tiroteio saímos imediatamente. Quando os encontrámos o caso já estava arrumado, ajudámo-los a trazer os corpos dos guerrilheiros que depositámos junto à parada.

Nesse mesmo dia[8], por volta das 17h30, o PAIGC desencadeou um ataque a Canquelifá. Ou de represália, ou porque também tinham ouvido os tiros. Um dos primeiros mísseis acertou na central eléctrica e uma grande bola de fumo negro começou a subir. De vez em quando paravam os bombardeamentos, depois recomeçavam. Durou quase a noite toda este ataque. Não me lembro de ter visto algum míssil cair fora do arame farpado.

A tabanca ardeu e ficou completamente destruída. Morreram durante o ataque três pessoas: um furriel europeu, salvo erro chamado Silva, um soldado negro, o Mica Djaló, que eu tinha eliminado no 4º curso de comandos em Mansabá,  e um rapaz de cerca de 13 ou 14 anos que trabalhava para o furriel europeu que tinha morrido[9].

Durante a flagelação, que nunca mais acabava, a certa altura, chegou-se ao pé de mim um soldado da minha companhia, chamado Ansumane, que me disse que, no local onde se encontrava, tinham morrido todos, que ele tinha sido o único que tinha escapado. Perguntei-lhe pelo comandante do grupo, respondeu que não sabia. Chamei o Mamadu Mané, que era o comandante da milícia local, e disse-lhe para ir comigo, acompanhados de alguns voluntários do meu grupo.

Nessa altura, estávamos debaixo de fogo, continuavam a cair mísseis na zona do quartel, mas não impediram a nossa ida. Quando lá chegámos vimos três corpos enterrados numa vala e alguns feridos. Conseguimos retirá-los, com muita dificuldade, e transportar os feridos para a enfermaria, onde lhes prestaram os primeiros socorros, ainda durante a madrugada, até que, de manhã, foram evacuados.

Foram muitas as operações e emboscadas que fizemos na zona de Canquelifá e Piche. É difícil, para mim, recordar os pormenores de todas. De algumas eu fui tomando pequenas notas. Noutras, eu estava cansado e também aconteceu ter que sair outra vez. E depois esqueci-me.

Recordo-me de duas emboscadas[10], entre Piche e Canquelifá, em que numa, mesmo ao nosso lado, os milícias tiveram um morto e alguns feridos e na outra só tivemos alguns feridos ligeiros.

A minha companhia saiu uma vez com a companhia de europeus, para a zona do Gabu. Saímos de Piche, em viaturas, e cerca de cinco minutos depois caímos numa emboscada[11]. Tivemos seis mortos[12], entre as quais o Bailo, soldado do meu grupo. Nesta emboscada perdemos um carro blindado[13].

De outra vez, deixámos Piche para irmos ao rio Corubal[14]. Quando nos estávamos a aproximar do rio,  vimos pegadas frescas, caixas de fósforos e maços de cigarros vazios. Era uma zona muito utilizada pelo inimigo. 

Na conversa com o guia, este disse-me que todos os acampamentos do PAIGC ficavam na outra margem e que para este lado só vinham quando faziam patrulhas ou para atacarem o quartel, a maior parte durante a noite.
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Notas do autor ou do editor literário (VB):

[1] Nota do editor: cap mil inf inf  Fernando Peixinho de Cristo (1947-2004).

[2] Nota do editor: é início de 1974 (e não em  1973, como por lapso vem no original)

[3] Nota do editor: CCaç 3545 e CCaç 21.

[4] Clareira.

[5] Nota do editor: Acção “Minotauro”, em 7/01/1974. (***)

[6] Um cubano e dois fulas (na realidade, um deles era cabo-verdiano, o Jaime Mota, e o cubano seria o tenente
 Ramón Maestre Infante), que foram transportados para Canquelifá, onde ficaram expostos durante os bombardeamentos. Depois, durante uma acalmia, foram enterrados num local junto à pista de aviação, em dois buracos abertos pelos bombardeamentos. (***)

[7] Quando foi emitida para o QG, a mensagem da operação, com a indicação do material apreendido, alguém confirmou, através do nº do aparelho, que o rádio Racal era o que tínhamos perdido, cerca de dois anos antes, em Morés.

[8] Nota do editor: 7 Janeiro 1974.

[9] Nota do editor: em consequência desta flagelação sobre Canquelifá, executada ao final do dia 7 janeiro 1974, morreram no local o fur mil OE Luís Filipe Pinto Soares e os soldados Donsa Boaró, da CCaç 21,  e Mica Baldé, do 6º PelArt /GAC 7.

[10] Nota do editor: uma no itinerário entre Piche e Canquelifá ocorreu em 26mar74, que causou a morte a Adulai Buaró e Iaia Sissé, ambos soldados milicias do Pel Mil 268, adstrito à CCaç 3545,  e Ibraima Candé, soldado da CCaç 21.

[11] Nota do editor: em Bentém, no itinerário Piche-Canquelifá.

[12] Nota do editor: nesta emboscada, em 22 março 1974, menos de 24 horas depois da operação “Neve Gelada” (às 15h00 de 21mar74, o BCmds capturou ao IN 3 morteiros 120), morreram o soldado-condutor da chaimite, João Costa Araújo, Victor Manuel de Jesus Paiva, soldado-condutor, os furriéis José António da Costa Teixeira e Manuel Joaquim Sá Soares, do ERec 8840, sedeado em Bafatá,  e os soldados Bailó Baldé, da CCaç 21, e Bambo Nanqui, do 12ºPel Art / GAC7.

[13] Nota do editor: viatura chaimite.

[14] Corubal foi o nome que os Fulas lhe deram. Os Futa-Fulas chamam-lhe Coli.

(Seleção, fixação / revisão de texto, negritos, links, fotos, notas adicionais, título, subtítulo: síntese das partes anteriores: LG)
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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 17 de maio de  2016 > Guiné 63/74 - P16098: O que dizem os Perintreps (Nuno Rubim) (4): A um mês do 25 de abril de 1974, o IN ataca Canquelifá durante 4 dias, com um grande potencial de fogo, e faz violenta emboscada no itinerário Piche-Nova Lamego a coluna auto (Perintrep 12/74, relativo ao período de 17 a 24/3/1974)


(***) Vd. poste de  15 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23001: Memórias cruzadas da região de Gabu: as origens do desassossego em Copá e as sequelas da metralha entre o Natal de 73 e 7Jan74 (Jorge Araújo)

Vd. também poste de 30 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16656: Tabanca Grande (497): José Peixoto, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CCAÇ 3545/BCAÇ 3883 (Canquelifá, 1972/74), nosso 731.º Grã-Tabanqueiro