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quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24726 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (10): I want you, dead or alive!



O célebre Tio Sam, desenho por J.M. Flagg... Cartaz norte-americano, de 1917, inspirado no original britânico, de 1914. Foi usado pelo exército norte-americano para recrutar soldados tanto para a Primeira como para a Segunda Guerra Mundial. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikipedia.


À memória:

do Umaru Baldé,, menino de sua mãe,  que morreu de sida e tuberculose, no terminal da morte que dava pelo nome de Hospital do Barro, em Torres Vedras; membro da nossa Tabanca Grande a título póstumo);

do Abibo Jau (o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12, fuzilado em Madina Colhido, logo a seguir à independència da Guiné.Bissau);

do Joaquim de Araújo Cunha (1948-1970), que o Abibo Jau trouxe às costas, da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, até Madina Colhido, o primeiro de seis mortos e nove feridos graves da Op Abencerragem Candente, em 26/11/1970, trágica lista onde se incluem os nomes do Ribeiro, do Soares, do Monteiro, do Oliveira, todos da CART 2715, e ainda o nosso guia e picador Seco Camará;

do cap art Victor Manuel Amaro dos Santos (1944- 2014),  primeiro cmdt da CART 2715, que começou a morrer nesse fatídico dia de 26/11/1970;

do Abdulai Jamanca (cmdt da CCAÇ 21, fuzilado também em Madina Colhido que eu conheci em Fá Mandonga, por ocasião da formação da 1ª CCmds Africanos);

do Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015). membro da nossa Tabanca Grande, e o único comando africano, ao que se saiba, que escreveu e publicou em vida as suas memórias;

do Iero Jaló (o 1º morto em combate, da CCAÇ 12, em 8/9/1969);

do Manuel da Costa Soares (sold cond auto, da CCAÇ 12, morto em Nhabijões, em 13/1/1971, por uma mina A/C, sem nunca ter chegado a conhecer a sua filha);

do Luciano Severo de Almeida (furriel mil, da CCAÇ 12,  que "morreu de morte matada", já como paisano, após o regresso da guerra, em data que ninguém sabe precisar);

do José Carlos Suleimane Baldé (c. 1951-2022), que chegou a estar encostado ao poilão de Bambadinca para ser fuzilado. tendo sido salvo 'in extremis' pelos homens grandes de regulado Badora; membro da Tabanca Grande;

do António da Silva Baptista (1950-2016), o "morto-vivo" do Quirafo, membro da nossa Tabanca Grande;

 de todos os demais camaradas  de armas, brancos e pretos, mortos em combate no TO da Guiné, ou feitos prisioneiros, ou abandonados à sua sorte, depois do regresso a casa ou da independência da Guiné-Bissau;

de todos os soldados desconhecidos de todas as guerras;

enfim, dos mortos da minha terra que lutaram pela pátria na batalha do Vimeiro,  em 21 de agosto de 1808.
 

I want you, dead or alive!


F_d_r_m-te, meu irmão! Enganaram-te, meu irmãozinho! Traíram-te, amigo! Deixaram-te para trás, camarada!

Não, não era este país milenário que vinha no cartaz de promoção turística, com montes, vales,  montados, e charnecas, com rios, praias e enseadas, com fama de gente patriótica, clima ameno e aprazivel, riqueza gastronómica, brandos costumes e forte sentido identitário. 

Não, não era esta a terra prometida onde corria o leite e mel... 

“I want you”, disseram-te eles, e tu respondeste sem hesitar: “Pronto!”. 

Meu tonto, disseste "presente!", mesmo sem poderes avaliar todas as consequências presentes e futuras da tua decisão, em termos de custo/benefício.

Decidiste com o coração, não com a razão, deste um passo em frente, abnegado e generoso, mesmo sem saberes onde era o distrito de recrutamento, e sem sequer conheceres o teatro de operações, o estandarte, o fardamento, a ciência e a arte da guerra, o comandante-chefe ou até mesmo a cara do inimigo. Nem sequer o RDM, o regulamento de disciplina militar nas principais línguas do mundo.

Um homem não vai para a guerra sem fixar a cara do inimigo, sem reconhecer a voz do inimigo, pode ser que seja teu pai, mãe, irmão, irmã, vizinho, amigo, ou até mesmo um estrangeiro, um pobre e inofensivo estrangeiro, apanhado à hora errada no sítio errado, num dos setes caminhos de Santiago ou na peregrinação a Meca. 

Camarada, um homem não mata outro homem só porque é estrangeiro, ou é branco, ou é preto, ou tem os olhos em bico. Ou só porque não pensa ou não sente como tu. Ou não come carne de porco como tu. Um homem não puxa o gatilho ou saca da espada, sem perguntar quem vem lá!

Enfim, não se mata um homem, de ânimo leve, gratuitamente, só porque alguém o elegeu como teu inimigo. Malhado ou corcunda, tuga ou turra, rojo ou blanco, cristão ou mouro, comunista ou fascista, bárbaro ou romano.

Não, meu irmãozinho, não eram estes outdoors e muros grafitados, ao longo da picada, não, não era este trilho, que era pressuposto levar-te do cais do inferno do Xime às portas do paraíso em Bagdá..

Sim, porque no final, meu irmão, há sempre alguém a prometer-te o paraíso, o olimpo, o panteão nacional ou a cruz de guerra com palma, um coro de anjos e querubins, ou a prenda nupcial das 72 virgens  para os mártires.... em troca da dádiva suprema da tua vida, do teu corpo, da tua alma ou da tua liberdade (no caso de teres o azar de ser apanhado à unha pelo inimigo que te espreita por detrás do bagabaga).

Todos te querem, todos te queremos. "I want you”, sim, quero-te, mas por inteiro, quanto mais não seja para tirar uma fotografia contigo, beber um copo contigo, não vales nada cortado às postas, decepado, decapitado, dinamitado, ou, pior ainda, perdido, errático, com stress pós-traumático,  sem bússola nem mapa, levado para o campo de prisioneiros do Boé ou fuzilado no poilão de Bambadinca ou de Madina Colhido. Ou para forca de Ariz dos anos sombrios das nossas guerras fratricidas de 1828-1834.

Fuzilado, és um cadáver incómodo, apanhado, és um embaraço diplomático, pior do que tudo isso, doente psiquiátrico, apátrida, refugiado... Deixas de ter valor de troca, muito menos valor de uso, diz o comissário político da base central do Morés, de Kalashnikov em punho. 

Não, não foi este destino que compraste, com o patacão do teu sangue, suor e lágrimas, enganaram-te, os safados, os profetas, os iluminados, os gurus, os estrategas, os generais e os seus ajudantes de campo, os burocratas da secretaria, os recrutadores, a junta médica, os psicotécnicos, os instrutores e até os historiadores que escrevem direito  por linhas tortas.   Ou a corte que fugiu para o Brasil para que o Napoleão não pudesse apanhar a rainha louca e o seu filho primogénito, João.

“Guinea-Bissau, far from the Vietnam”, alguém escreveu no poilão de Brá ou na estrada de Bandim, a caminho do aeroporto, tanto faz, "Tuga, estás a 4 mil quilómetros de casa”. 

Ou então foi imaginação tua, pesadelo teu, deves ter sonhado com essa placa toponímica, algures, numa noite de delírio palúdico, deves tê-la visto a sul do deserto do Sará no avião da TAP de regresso a casa. Um pesadelo climatizado. Carregaste no botão errado. Ou então foi um erro de casting. Ou um sonho de menino esse de ires para os rangers, os páraa, oa comandos ou os fuzos.

Alguém sabia lá onde ficava a Guiné, longe do Vietname, alguém se importava lá com o teu prémio da lotaria da história, mesmo que em campanha te tenhas coberto de honra e glória!

Acabaram por te meter num avião “low cost” ou num barco de lata, ferrujento, deram-te um pontapé no cu ou cravaram-te a tampa do caixão de chumbo. "Bye, bye, my friend. Fuck you, man”. Nem sequer te desejaram "Oxalá, inshallah, enxalé, que a terra te seja leve!"

“País de merda!"... Tinha razão o polícia, racista, que te quis barrar a entrada no aeroporto de Saigão (ou era Lisboa ? ou era Amsterdão?). 

Quem disse que os polícias de todo o mundo são estúpidos ? Até o polícia racista entende o sofisma do país de merda: “Pensando bem, soletrando melhor, país de merda, país de merda, só pode ser o meu”.  Por que todos os outros fazem parte da rede turística do paraíso. 

Os gajos estavam fartos de ti, meu irmão, meu camarada, meu amigo. Os gajos pagavam-te, se preciso fosse, para se verem livres de ti, vivo ou morto, devolvido à procedência, usado e abusado.

“I want you, alive or dead”, porque na contabilidade nacional tudo tem de bater certo, diz o cabo RM, readmitido. Todo o que entra, sai, é o deve e o haver do escriturário, encartado, mesmo que seja merda: “Garbage in, garbage out”, se entra merda, sai merda, diz o gajo dos serviços mecanográficos do exército.

Procuraram-te por toda a parte, os fotocines, do Minho ao Algarve, do Cacheu ao Cacine, só te queriam fotogénico, bem comportado, escanhoado, ataviado, de botas engraxadas, se possível herói de capa e espada, medalhado, condecorado, de cruz de guerra ao peito, mesmo que viesses amortalhado, as persianas dos olhos fechadas,  as mãos sobre o peito em derradeira oração, o enorme buraco atrás das costas, feito por um bálizio de 12.7, cozido e recozido pelo cangalheiro da tropa.

E tu ? Sabias lá tu o que era a pátria, onde ficava a tabanca da pátria, onde começava e acabava o chão da pátria ?!...

 Muito menos sabias a geografia da guerra, as nossas geografias emocionais,  Aljubarrota, Alcácer Quibir, Vimeiro, Waterloo, Nambuangongo, lha do Como, Gandembel,  Guidaje, Guileje, Gadamael,  Madina do Boé, Ponta do Inglês, Madina/Belel, Morés, Caboiana, Fiofioli... Ah!, e La Lyz!... Ah, e  o desembarque da Normandia!... Ah!, e Dien-Bien-Phu onde combateste pela Legião Estrangeira!...

Conhecias lá tu, da pátria,  a anatomia e a fisiologia , o intestino grosso e delgado, o que é que a pátria comia, o que é que a pátria defecava, ou até mesmo o que é que a pátria sentia e pensava, se é que a pátria deveras sentia e pensava.

Queriam-te sedado, anestesiado, amnésico, de preferência, sobretudo amnésico, alienado, aculturado, desformatado, paisano, só assim eles te queriam de volta ao teu anódino quotidiano, à tua origem obscura, à tua Sintchã qualquer-coisa, ao teu Montijo, â tua Ventosa do Mar...

Meu irmão, meu pobre camarada, fizeste por eles o trabalho sujo que compete a qualquer bom soldado em qualquer guerra. Mas nem como soldado eles te trataram, nem sequer como mercenário te pagaram, em espécie ou em géneros.

Afinal a guerra acabou, como todas as guerras acabam, até mesmo a guerra dos cem anos teve um fim com o seu rol de mortos, feridos e desaparecidos, a sua nave de loucos, a sua vala comum dos esquecidos...

 “Para quê mexer agora na merda, ó nosso cabo ?!”, interpela o sorja da companhia. “Boa pergunta, meu primeiro, mas há muito já que eu não cheiro, a guerra embotou-me os sentidos”.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, 18/7/2015.

Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21/8/1808).

Revisto em 1/9/2023, 84 anos depois do início da II Guerra Mundial.
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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de setembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24626: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (9): Requiem para um paisano

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23903: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (14): "Cobarde num dia, herói no outro" (João Seabra, ex-alf mil, CCav 8350, 1972/74)


João Seabra, hoje advogado;  foi alf mil, CCAV 8350 (1972/74). Tem apenas 15 referências no nosso blogue, para o qual entrou em 3/2/2009.


1. Carta ao Director do Público, enviada pelo João Seabra, advogado com escritório em Lisboa, ex-alf mil, CCAV 8350 (Guileje, 1972/73); não sabemos se chegou a ser publicada naquele jornal, nem quando. 

Ele facultou-nos uma cópia, que publicámos em 27/1/2009, sob o poste P3801 (*). Por ocasião da morte do cor art ref Coutinho e Lima (Viana do Castelo, 1935 - Lisboa, 2022), justifica-se plenamente voltar a dar a conhecer, sobretudo para os mais novos, alguns dos acontecimentos de maio / junho de 1973, relatados na primeira pessoa do singular por aqueles que os viveram. No próximo ano comemoraremos os cinquenta anos da chamada batalha dos 3G (Guidaje, Guileje e Gadamael) (**).

Escusado será lembrar as regras do nosso blogue: as opiniões aqui expressas, sob a forma de postes ou de comentários, assinados, são da única e exclusiva responsabilidade dos seus autores, não podendo vincular o proprietário e editores do blogue e demais colaboradores permanentes. Mantemos o subtítulo original: "Cobarde num dia, herói no outro"... E quem o ler percebe que é um documento para a história, desassombrado,  frontal e corajoso.. 

Senhor Director,

Tendo lido as peças de Eduardo Dâmaso “A nave dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos” e “Ninguém entregou a condecoração ao coronel”, publicadas no “Público de 26/6/2005”, achei conveniente pôr à sua disposição as tardias considerações que se seguem, às quais dará o destino que bem entender.

Fui alferes miliciano na CCav 8350, retirada de Guileje, em 22/5/73, por sensata decisão do comandante do então COP5, sr. major (coronel) Coutinho e Lima.

Nunca estive a bordo da “fragata Orion” (não seria uma LFG – lancha de fiscalização grande?), pela simples razão de que nunca me ausentei de Gadamael na sequência dos ataques dos dias 1/6/73 (uma quinta-feira) e seguintes.

Escreve-se numa das peças em causa: “os três ou quatro soldados que sobraram da tropa comandada pelo recém-chegado capitão Ferreira da Silva, ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem posto de rádio ...”.

Não foi assim. Para além de mim próprio, permaneceram no interior do destacamento, o alferes Luís Pinto dos Santos, comandante do pelotão de artilharia do Guileje e o alferes Rocha, comandante de um pelotão de canhões sem recuo 57 mm (e já vão três oficiais), e ainda, pelo menos, um furriel, e algumas (poucas) praças desta mesma unidade e da CCaç 4743 (a companhia originariamente de guarnição a Gadamael).

Além disso, encontravam-se em patrulha próxima do aquartedamento um pelotão da CCaç 4743 (com o seu alferes) e outro da CCav 8350 (alferes Reis).

Sou portanto uma das raras pessoas, que reúne em si a dupla qualidade de “cobarde” que, sob as ordens do major (coronel) Coutinho e Lima, retirou do Guileje,  e de pretenso “herói” de Gadamael. Nesta última condição fui louvado por despacho do General Comandante-Chefe de 28/8/73.

E não saímos de Gadamael por razões de decência básica (havia mortos e feridos que não podiam ser abandonados) e de elementar sensatez (uma retirada, devidamente comandada, é uma manobra militar, mas não consigo imaginar nada de tão perigoso como uma debandada).

Acontece que, na situação que se gerou em 1/6/73, só por comodidade de expressão se poderá falar em “tropa comandada pelo recém-chegado capitão Ferreira da Silva”.

Para o perceber, há que retroceder às peripécias que determinaram a retirada de Guileje, e às que se lhe seguiram.

Ao contrário de Guileje, Gadamael era uma posição sustentável, com poços de água potável muito próximos do perímetro exterior do aquartelamento, dotada de um cais acostável, acessível por via fluvial através de LDM, que na praia-mar navegavam sem dificuldades no braço do rio Cacine em cuja margem se situava.

Já Guileje era um destacamento absurdo, necessitando de organização de colunas escoltadas para reabastecimento de água a 3,4 Km, dependente, para o seu aprovisionamento, de complicadas colunas rodoviárias múltiplas, de e para Gadamael, com uma pontualidade que poderia servir de exemplo à CP, e que ficava completamente isolado na época das chuvas.

O inimigo (termo convencional pelo qual designarei a entidade que nos pretendia matar, estropiar ou capturar, e a quem, se tivéssemos oportunidade, faríamos outro tanto) conseguiu conjugar duas vastas operações, praticamente simultâneas, ao norte sobre Guidage e ao sul sobre Guileje.

A primeira dessas operações, quase esgotou a chamada reserva do Comando-Chefe, em tropas especiais.

Os meios utilizados pelo inimigo, tanto em artilharia como em infantaria, eram quantitativa e qualitativamente muito superiores aos das nossas guarnições de quadrícula.

A este propósito, tem interesse a leitura do artigo, publicado no Público, de 26/7/2004, pelo comandante Osvaldo Lopes da Silva do PAIGC, se bem que a desenvoltura com que este oficial transita da astronomia para a geografia e da geografia para a topografia, me sugira não ter sido ele o autor do plano de fogos na operação sobre Guileje.

Seja como for, dada a prioridade à defesa de Guidaje, Guileje foi isolado mediante a interdição dos seus acessos rodoviários a Gadamael e à água potável, através de emboscadas permanentes, por unidades de infantaria do inimigo, numerosas e dotadas de superior poder de fogo, minagem em profundidade dos itinerários, e sujeito a contínuo bombardeamento por todas as armas pesadas de que o inimigo dispunha.

Retirada a guarnição, e população, de Guileje, através de um itinerário ainda não reconhecido pelo inimigo, foi recebida em Gadamael, pelo então coronel (agora brigadeiro na reserva) Rafael Durão 
 [Comandante do CAOP 1, e não 3 (lapso do autor) ], com sede em Cufar). Esclarecido oficial, cuja primeira medida consistiu em promover uma formatura da CCav 8350, para ademoestar os respectivos oficiais, sargentos e praças, em bom vernáculo militar. O major Coutinho e Lima foi enviado para Bissau, onde permaneceu detido, pelo menos até ao 25/4/74.

Ainda hoje estou para perceber por que razão, confirmada a sua evacuação, o aquartelamento de Guileje não foi imediata e intensivamente bombardeado pela Força Aérea. Provavelmente havia quem acalentasse a fantasia de uma reocupação imediata. Certo é que o inimigo continuou a flagelar a posição após a nossa retirada, e só nela entrou dois a três dias depois (como diria Alves a C.ª: “ que coisa prudente é a prudência!”).

Dir-se-ia que, naquela conjuntura, se afigurava, pelo menos, bastante provável que o inimigo procurasse balancear, sobre Gadamael, os abundantes e sofisticados meios que tinha reunido para a operação de Guileje.

Nessa eventualidade – e sem prejuízo do indispensável patrulhamento em profundidade – eram necessárias providências urgentes.

Antes de mais – porque em Gadamael não havia obras ou abrigos adequados a uma guarnição entretanto duplicada – impunha-se a necessária actividade de organização do terreno, fortificando o destacamento, reforçando os espaldões de armas pesadas, abrindo trincheiras eficientes, enquadrando as subunidades, dotando-as de postos de combate defensivos bem determinados e interligados entre si e com o comando.

Em vez disso, o pessoal da CCav 8350 foi caoticamente disperso, em alojamentos de ocasião, pelos cerca de 40.000 m2 do aquartelamento, sem contacto com os seus oficiais e com o comando. Não se iniciaram quaisquer obras defensivas.

Por iniciativa de alguém que não consigo identificar, nas semanas anteriores operou-se uma radical alteração do material à disposição dos pelotões de artilharia de Guileje e Gadamael: as peças 114 mm (Guileje) e 105 mm (Gadamael), foram substituídas por obuses de 140 mm.

Ora, tanto as peças de artilharia de campanha como as próprias armas pesadas de infantaria, quando instaladas numa dada posição, necessitam de regulação do tiro, mediante a observação dos respectivos pontos de impacto, geralmente através de observação aérea, que já se sabia ser impraticável a partir do momento em que o inimigo passou a dispor de misseis solo-ar Strela-SA7.

As causas da desregulação são variadas, tendo a ver, designadamente, com choques sofridos pelas armas durante o serviço, com as condições meteorológicas, com insuficiências de cartografia, etc..

Os nossos obuses 140 mm (modelo 1943), tinham portanto a interessante função de fazer barulho e, nos casos em que abriam fogo de noite, de fornecer indicações de ajustamento do tiro do inimigo.

Nesta prometedora situação, o coronel Durão – certamente a benefício do brio e da disciplina – pôs de parte qualquer trabalho de organização defensiva, determinando um patrulhamento que se pretendia agressivo e que envolvia, em permanência, dois a quatro pelotões de entre as duas companhias.

De tal actividade resultaram dois contactos com pequenos grupos de reconhecimento do inimigo (os quais, por definição, evitam empenhar-se em combate), a quem foram capturadas três espingardas automáticas Kalashnikov.

No dia 31 de Maio de 1973 (uma quarta-feira), de manhã, o coronel Rafael Durão, retirou-se para Cufar, tendo chegado à lúcida conclusão que o inimigo, em consequência dos nossos “sucessos”, tinha retraído o seu dispositivo, sendo improvável um esforço sério da sua parte sobre Gadamael. Tratou-se evidentemente de uma bazófia só comparável com a sua idílica ignorância das intenções e do sistema de forças do inimigo.

Em sua substituição deixou o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva. Nesse mesmo dia, à tarde, iniciou o inimigo uma forte flagelação sobre Gadamael, utilizando, sobretudo, morteiros 120 mm, mas também foguetões Katyusha de 122 mm e peças de 130 mm, com uma qualidade de tiro surpreendente.

No dia 1 de Junho, o fogo da artilharia do inimigo intensificou-se qualitativa e quantitativamente e, entre as 10 e as 13 horas, uma área de 20.000 a 30.000 m2 do destacamento de Gadamael encaixou, seguramente, entre 350 e 400 impactos de morteiro 120 mm, provocando consideráveis baixas na guarnição.

Os dois capitães (comandantes, respectivamente, da CCaç 4743 e da CCav 8350), foram evacuados entre as 10,30 e as 11,00 horas, e não “ao princípio da tarde”.

Apercebendo-me de que se estava a gerar uma debandada, tentei impedi-la, pelas razões acima expostas, com resultados muito limitados.

O pessoal estava completamente entregue a si próprio e a falta de condições de comando era total: só conseguíamos transmitir ordens a quem nos passasse ao alcance da voz.

Dois dos três espaldões das peças de artilharia receberam granadas de morteiro 120 mm, que feriram, mataram ou dispersaram a totalidade das respectivas guarnições.

O pessoal que ia debandando dizia-me que o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva tinha dado ordens para se “sair do quartel”.

Dirigindo-me a uma das posições da artilharia, encontrei o alferes Luís Pinto dos Santos, que sobreviveu, com ferimentos ligeiros, e resolvemos ambos procurar o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva, para lhe perguntar se tinha ordenado a evacuação do aquartelamento. Respondeu-nos que tal não era a sua intenção, tendo apenas recomendado ao pessoal que se deslocasse temporariamente “para fora do arame”, isto é, para o exterior do perímetro do destacamento, uma vez que o seu interior estava a ser intensamente batido pela artilharia inimiga.

Fizemos-lhe saber que tal “deslocação temporária” tinha degenerado em debanda incontrolável.

O alferes Pinto dos Santos, com a minha ajuda, conseguiu improvisar um mínimo de serventes (entre os quais o furriel de transmissões da CCav 8350) para activar um dos três obuses 140 mm, à cadência de um tiro de quarto de hora em quarto de hora.

Tudo visto, recolheram-se os mortos, evacuaram-se os feridos por via fluvial, e garantiu-se, com fogo esporádico de obus 140 mm, de morteiro de 81 mm e de canhão sem recuo de 57 mm, uma aparência de capacidade de reacção que dissuadisse um eventual reconhecimento em força por parte do inimigo (que aliás não se mostrou muito afoito).

Enfim: o trivial. As munições para as armas pesadas eram transportadas do paiol em uma viatura Berliet temerariamente conduzida por um cabo escriturário (Raposo) da CCaç 4743, o qual, na volta, também transportava feridos para locais de embarque.

Nesse mesmo dia 1 de Junho à tarde:

Reentraram no quartel os dois pelotões que estavam em patrulha exterior; desembarcaram, de helicóptero, dois oficiais de confiança do Comando-Chefe (capitães Caetano e Manuel Soares Monge) e o coronel Rafael Durão (pessoa dotada de coragem física em proporção inversa à do respectivo discernimento).

No dia 3 de Junho (Sábado), desembarcou a companhia 122 de paraquedistas (capitão Terras Marques), e no dia seguinte a 123 (capitão Cordeiro).

Uns dias mais tarde chegou a companhia de paraquedistas nº 121 (comandatada pelo então tenente, e hoje tenente-general, Hugo Borges), o que significa que foi deslocado para Gadamael um batalhão completo de paraquedistas (BCP 12).

Entre sexta-feira, dia 2/6/73 e o domingo seguinte, a presença do major Pessoa, do BCP 12, pôs termo ao efémero comando do capitão (coronel /dr.) Ferreira da Silva) no, assim chamado, COP5.

Um verdadeiro e próprio comando das forças de Gadamael foi estabelecido no domingo (4/6/73) na pessoa do tenente-coronel Araújo e Sá (comandante do BCP 12).

Nesse mesmo dia – por razões que, para mim, permanecem obscuras – o major Pessoa (era o 2º comandante do BCP12) retirou-se de Gadamael.

Apesar de não figurarem habitualmente como “heróis de batalha de Gadamael”, as operações das diversas companhias paraquedistas, em cerca de duas semanas, desarticularam o dispositivo inimigo, sofrendo baixas moderadas (uns 25 a 40 feridos, na maior parte ligeiros, com estilhaços de RPG 7).

Nunca será demais sublinhar a qualidade destas tropas de elite. Recordando os contactos que mantive com os seus oficiais (designadamente os capitães Terras Marques e Cordeiro), anoto, como curiosidade, que se mostravam extremamente críticos (no limiar do humor negro) em relação aos fundamentos e à condução da guerra, sendo a sua considerável eficiência, fruto exclusivo de um extraordinário brio profissional.

O corpo de tropas pára-quedistas – das melhores que se poderiam encontrar, inclusivé a nível da NATO – foi destroçado, como unidade combatente, em 1975. Ao que me consta o brigadeiro Rafael Durão e o major Pessoa tiveram, nessa meritória obra, a sua função, cada um do seu lado, respectivamente, no “11 de Março” e no “25 de Novembro”.

Não sei se o tenente-coronel Fabião tinha condecorações para atribuir. Recordo que o alferes Pinto dos Santos e eu próprio fomos ouvidos como testemunhas num processo de averiguações para atribuição de condecoração militar ao capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva, pelo major (brigadeiro) Manuel Soares Monge, no quartel general do Comando-Chefe, em Bissau.

A nenhum de nós dois pareceu que fosse caso de condecorações a propósito do que se passou em Gadamael no dia 1 de Junho de 1973 (excepção feita ao cabo Raposo, atentos o seu posto e especialidade).

Recordo-me que, na altura, o então capitão Caetano me disse que tinha chegado a “fase dos baldes de plástico” (brinde comercial muito apreciado à época). Temíamos o aproveitamento de tal “fase” para transformar o capitão Ferreira da Silva numa espécie de contra-exemplo, em relação ao major Coutinho e Lima.

A serem atribuídas condecorações, deveriam elas ser, obviamente, atribuídas a oficiais, sargentos ou praças das tropas paraquedistas.

A partir da chegada do BCP 12, a CCav  8350 e a CCaç 4743 não tiveram qualquer actividade operacional de relevo.

Aliás nem poderiam ter, uma vez que não tinham treino, nem armamento, para se defrontar com a infantaria inimiga em reconhecimento avançado, do que foi feita a (desnecessária) demonstração no dia 4 de Junho, quando um pelotão da CCav 8350, reduzida a uma dúzia de elementos, caiu numa emboscada a menos de 1 km do aquartelamento, sofrendo quatro mortos (entre eles o respectivo alferes) e cinco feridos graves.

Será a este episódio que o dr. Ferreira da Silva, por equívoco, se quererá referir quando alude a “seis paraquedistas mortos no mesmo dia” (os cadáveres foram efectivamente recuperados por um pelotão de paraquedistas).

O objectivo desta pretensa patrulha era o de “descongestionar” o aquartelamento da sua, por assim dizer, densidade humana, face à eficiência do tiro da artilharia inimiga. Em suma: a CCav 8350 e a CCaç 4743 tinham passado a desempenhar a proverbial função de carne para canhão.

Note-se que a nossa tropa de quadrícula (companhias tipo caçadores), nem sequer estava dotada de uma metralhadora ligeira decente (a nossa inacreditável HK-21 encravava ao fim de cinco ou seis tiros).

As tropas especiais usavam as metralhadoras ligeiras MG 42 e, em considerável quantidade, equipamento capturado ao inimigo: metralhadoras ligeiras Degtyarev, lança granadas RPG 2 e RPG 7, espingardas automáticas Kalashnikov. Excelente material que, ainda hoje, está ao serviço, do Iraque ao Afeganistão, do Sudão à Libéria.

Tive a inspiração de selecionar, de entre os meus pertences, que carreguei de Guileje, um grande livro: Bouvard et Pécuchet, de Gustave Flaubert.

Quando saí de Gadamael, faz agora trinta e dois anos, tinha chegado a uma passagem célebre: “alors une faculté gênante se développa dans leur esprit, celle de percevoir la bêtise e de ne plus pouvoir la tol
érer.” [“então uma faculdade embaraçosa se desenvolveu em suas mentes, a de perceber a estupidez e não mais ser capaz de tolerá-la.” [tr. do editor LG ]

Dê a este enfadonho relato, Sr. Director, o destino que bem entender.

João Seabra

Antigo Alferes Miliciano da CCaV 8350 (1972/74)

P.S. - Porque, em certos aspectos factuais, confirma algo do acima relatado, junto segue extracto da minha folha de matrícula. 

[Revisão e fixação de texto / Negritos , para efeitos de publicação deste poste: LG]



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1969 > Álbum fotográfico do João Martins > Foto nº 135/199 > O temível obus 14... mais um elemento da guarnição africana do Pel Art ali destacado.

Foto (e legenda): © João José Alves Martins (2012).   Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

__________

Nota de L.G.:

 (*) Vs. poste de 
27 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

)**) Último poste da série > 21 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23633: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (13): Cumbamori, uma das mais violentas acções das NT em território estrangeiro e um dos maiores desaires do PAIGC... Mas falta-nos a versão do outro lado...

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23831: Historiografia da presença portuguesa em África (345): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Temos três versões documentais, René Pélissier consultou os arquivos franceses, o Capitão Velez Caroço elaborou relatórios sobre as suas idas e vindas acompanhando uma Comissão Franco-Portuguesa à cata de provas de que o avião francês aterrara em solo da colónia portuguesa, e temos as cartas do chefe do BNU de Bissau para a administração em Lisboa. O historiador francês sobrecarrega de pormenores as peripécias das missões vindas do Senegal à Guiné portuguesa e a brutalidade dos interrogatórios aos Felupes para apurar se efetivamente o avião desaparecido caíra em chão Felupe, esta etnia que dava sobejas provas de revolta, vendo tanta intimidação, desataram a fugir para os pântanos e para a colónia francesa; o Capitão Velez Caroço desmonta a argumentação de que o avião francês pudesse ter aterrado em solo da colónia portuguesa, e chegamos à tragicomédia de se percorrer os Bijagós para saber se os alemães tinham raptado os franceses...; o gerente do BNU revela sobretudo a preocupação de que era indispensável pôr cobro aos desmandos dos Felupes, declaradamente insubmissos, a verdade é que findo este período de revoltas dever-se-á ter chegado a um acordo tácito de que eles jamais provocariam as autoridades coloniais, ficando num discreto regime de uma quase auto-gestão, como se comprovou com o seu procedimento durante o período da luta armada.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3)

Mário Beja Santos

Aquele ano de 1933 em que ocorreu o desaparecimento do avião do piloto Gaté foi praticamente dominado pela chamada revolta dos Felupes. Na investigação a que procedi no então Arquivo Histórico do BNU, encontrei um telegrama datado de 10 de novembro desse ano, provém da administração em Lisboa, com o seguinte teor: “Este telegrama é absolutamente confidencial e só poderá ser decifrado pelo gerente devendo na sua ausência ser devolvido indecifrado ao expedidor – telegrafe-se se o gentio se revoltou – telegrafe-se se ordem restabelecida quem como foi sufocada a alteração. Telegrafe as notícias que puder pormenorizando. Este telegrama é absolutamente confidencial para toda e qualquer pessoa seja qual for a sua categoria”.
No dia 13, o gerente de Bissau envia carta detalhada ao administrador do BNU:
“Há cerca de 3 meses levantou voo de Dacar, com destino a Ziguinchor, um avião francês tripulado pelo aviador Gatti (na verdade, o seu nome era Gaté) acompanhado de um observador. Por qualquer razão desconhecida – diz-se que fugindo a um tornado, o avião desviou-se da sua rota e presume-se que por falta de gasolina tenha caído em território desta colónia, a uns 40 ou 50 quilómetros da fronteira Norte, na região dos Felupes, área do posto civil de Susana, circunscrição de Canchungo.
O governo francês, supondo que o avião tenha de facto caído nesta região, solicitou do nosso que mandasse proceder às necessárias pesquisas. Diz-se que essas pesquisas foram efetuadas sem resultado. Há 20 dias, pouco mais ou menos, apareceram na área do posto de Susana a mulher do aviador desaparecido e uma outra senhora francesa acompanhada de um sargento aviador francês e ainda de um outro indivíduo que se dizia comerciante de Dacar, para fazerem por sua vez, novas pesquisas.

O administrador da circunscrição não consentiu nessas diligências sem autorização superior, essa equipa francesa foi a Bolama conferenciar com o governador, regressando ao posto de Susana acompanhada pelo ajudante de campo deste.
Em breve começaram a circular boatos sobre o aparecimento de vestígios do avião e dois ou três dias depois seguia também para Susana o Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, capitão Velez Caroço. Afirma-se que este oficial, depois de iniciadas novas pesquisas, notando certo retraimento do gentio, receando qualquer agressão dos Felupes que desde sempre se têm mantido mais ou menos rebeldes, pagando o imposto positivamente quando e como quer, sem que lhes tenha sido aplicado o corretivo necessário por falta de recursos, cobardia ou desleixo, resolveu, de acordo com o governador, não continuar as suas diligências sem se fazer acompanhar de uma pequena força militar.

No dia seguinte ao da ida daqueles oficiais a Bolama, regressaram a Bissau com um pequeno contingente, e daqui partiram de novo para Susana, armados e municiados. Os Felupes receberam-nos hostilmente, travando-se um combate em que morreram dois soldados, ficando vários feridos. O facto foi comunicado ao governador, seguindo imediatamente para o local, com reforços, o Capitão Sinel de Cordes, Comandante da Polícia. Chegado este a Susana, e posto ocorrente do que se tinha passado, entendeu, e muitíssimo bem, que era preciso castigar energicamente os revoltosos, tanto mais que já no ano passado, na mesma região, tinham cortado a cabeça a cinco soldados”
.

O relatório do chefe da delegação em Bissau do BNU é bastante minucioso, convocam-se Fulas para coadjuvarem as tropas regulares, dirigem-se a Jufunco, a povoação revoltada, aguardam-se ainda centenas de Fulas vindos de Bambadinca. Os rumores eram os mais desencontrados: que aos aviadores desaparecidos tinham sido cortadas as cabeças, por exemplo. Iniciada a batida, os revoltosos refugiavam-se nos pântanos, o governador seguiu para o campo de operações, voltou dias depois a Bissau, o chefe da delegação falou com ele, ficou informado que o gentio se tinha posto em fuga e que o governador tinha dado por fim a operação, deixando apenas na região uma pequena força para policiamento.

O chefe da delegação mostra-se contrariado coma decisão do governador, a região dos Felupes era uma verdadeira dor de cabeça. “A ação das nossas tropas está longe, muito longe mesmo, segundo as informações que temos, de se poder considerar decisiva. Ainda nos últimos dias foi assaltada pelos rebeldes uma camioneta que conduzia auxiliares, escapando, por milagre, o condutor do carro; aos outros foi a todos cortada a cabeça e membros e os troncos decapitados deixados na estrada alinhados, numa demonstração de ameaça e requintada selvajaria. Não desejamos comentar a medida governamental, porque isso não está na nossa índole, nem temos fundamento bastante para considerar desastrosa a ordem de retirada. A saída das nossas tropas da região revoltada sem terem infligido um exemplar castigo aos revoltosos é desprestigiante e será mal interpretada pelos vizinhos franceses, que estabeleceram postos militares ao longo da nossa fronteira.
Sabe-se que em Ziguinchor um francês que acompanhou as duas senhoras a que atrás fizemos menção ao referir-se a nossa ação nas pesquisas do avião desaparecido nos alcunhou de cobardes. Talvez tenha sido por isso que o Capitão Sinel de Cordes, calmo e sereno, mas decidido, tivesse a intenção de acabar de vez com a lenda dos Felupes, lenda que tem custado a vida a soldados e auxiliares indígenas”
.

Mais tarde, o gerente de Bissau volta a escrever uma carta para Lisboa, informando que se encontra na região dos Felupes apenas um oficial, o Tenente Dores Santos à frente de um destacamento, não se tinham registado até então novos atos de insubordinação ativa. “Consta que os chefes revoltosos – Alfredo e Coelho – das tabancas de Jufunco e Egine, respetivamente, se refugiaram com parte da sua gente no território francês, sendo ambos presos pelas autoridades respetivas. Iniciaram-se diligências oficiosas junto daquelas autoridades para que, às nossas, esses chefes fossem entregues”.

E mais não sabemos, jamais se voltará a encontrar documentação sobre o desaparecimento do avião, fica-se com um quadro claro de que no início da década de 1930 a região Felupe dava provas evidentes de insubmissão, tudo aponta para declarações forjadas de que o avião francês viera aterrar em território da Guiné portuguesa, no decurso do envio de tropas terá havido interrogatórios cruéis e altamente intimidantes, no somatório de todas estas rebeliões os Felupes entenderam que não possuíam capacidade para ripostar contra a autoridade colonial, terá sido essa a razão do chamado ensimesmamento dos Felupes, para lhes ser reconhecida a sua autonomia nem com o PAIGC pactuaram, mantiveram-se à margem, salvo exceções no período da luta armada. Assim se põe termo a este episódio rocambolesco de um avião desaparecido em território insubmisso.

Imagem do BNU em Bolama, ao tempo do desaparecimento do avião do piloto Gaté
Avião Potez-Salmson
Dança do choro, Susana, década de 1960
Dacar, Senegal, anos 1930
Uma mais que colorida festa Felupe, imagem de Eta Oliveira (do Wattpad), com a devida vénia
____________

Nota do editor

Postes anteriores da série de:

16 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)
e
23 DE NOVEMBRO DE 2022 Guiné 61/74 - P23808: Historiografia da presença portuguesa em África (344): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23633: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (13): Cumbamori, uma das mais violentas acções das NT em território estrangeiro e um dos maiores desaires do PAIGC... Mas falta-nos a versão do outro lado...


 
Batalhão de Comandos da Guiné (1972/74): Guião



1. Guidaje, Guileje e Gadamael, os famosos 3 G... Daqui a menos de um  ano, em maio e junho de 2023, a "batalha dos 3 G" vai fazer meio centenário...

Será que já está tudo dito, escrito e lido sobre os 3 G ? De modo nenhum,  e sobretudo aqueles de nós que não viveram na pele as agruras daqueles longos, trágicos mas também heróicos dias de maio e  junho de 1973 (e que se prolongam até julho, no caso de Gadamael), continuamos a querer saber mais,,, 

Foram dos combates mais violentos que se travaram em toda a guerra, desde o início de 1963, a par da Op Tridente (1964) e da Op Mar Verde (1970)... A batalha dos 3 G  (há quem não goste da designação)  não se pode resumir à contabilidade (seca) das munições gastas ou das baixas de um lado e do outro (e foram muitas, as baixas, as perdas). E menos ainda aos "roncos" como a destruição de material fornecido pelos russos e outros ao PAIGC. No balanço dos ganhos e perdas, o PAIGC, apesar da destruição (parcial) da base de Cumbamori,  é capaz de ter marcado pontos ao nível político e diplomático, junto da OUA (Organização de Unidade Africana) e países do bloco soviético e até de alguns dos nossos amigos nórdicos, com o seu cerco a Guidaje (e depois Guileje e Gadamael). Deixemos esse balanço para os historiadores.

Passados 49 anos sobre a Op Amílcar Cabral, em que o PAIGC jogou forte (em termos de meios humanos e materiais mobilizados) contra as posições fronteiriças de Guidaje ou Guidage (no Norte) e Guileje e Gadamael (no Sul), parece-nos que continua a ser oportuno e importante, para os nossos leitores,  repescar alguns postes e comentários que andam por aí perdidos... E publicar novas histórias ou informação de sinopse dos acontecimentos  

Daí esta série "Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra?" (*).

É uma pena que os camaradas ainda vivos, que podem falar "de cátedra" sobre os 3 G, Guidaje, Guileje e Gadamael, não escrevam, ou já não escrevam ou ainda não tenham escrito tudo sobre o assunto.  Infelizmente, há outros que a morte já levou, sem que tenham sequer passado ao papel as suas memórias: é o caso, se não erramos, do próprio comandante da Op Ametista Real, o então major Almeida Bruno, 1º cmdt do Batalhão de Comandos da Guiné,  recentemente desaparecido...Enfim, ficou pelo menos o relatório da Op Ametista Real, que será da sua autoria (...) (**) 

Do lado do PAIGC,  já não temos grande esperança de ainda podermos conhecer a versão dos seus combatentes, "na primeira pessoa do singular". Do lado das NT, republicamos mais um resumo sobre a Op Ametista Real, em que foi invadido o território do Senegal para destruir ou neutralizar a base de Cumbamori (ou Kumbamory) e aliviar a pressão sobre o nosso aquartelamento fronteiriço de Guidaje.

Infelizmente, também está pouco ou nada documentada, em termos de imagens, esta operação em que os nossos bravos comandos pagaram uma "fatura elevada", em "sangue, suor e lágrimas". Como já aqui temos comentado, não sabemos por andaram os fotocines do exército durante a guerra do ultramar / guerra colonial. E o arquivo da RTP, sobre esta matéria, é de um pobreza franciscana...

Por outro lado, já chamámos a atenção para o facto de, em duas das maiores (e mais temerárias, do ponto de vista político e militar) operações terrestres em território estrangeiro, a Op Mar Verde (Guiné-Conacri, 22 novembro 70) e a Op Ametista Real (Senegal. 19-20 mai 73), Spínola não ter arriscado o envio de tropas metropolitanas (páras e comandos, por exemplo). Foram os comandos africanos  (1ª, 2ª e 3ª CCmds Africanos, do Batalhão de Comandos da Guiné) que deram o corpo ao manifesto (para além dos nossos pilotos da FAP: os bombardeamentos aéreos de Cumbamori foram decisivos, como é público e notório,  no desfecho da Op Ametistra Real). 

O risco era menor, de todos os pontos de vista... Mas os comandos africanos acabaram por ser "usados e abusados" (se nos é permitida a expressão)  e em Cumbamori enfrentaram não só os combatentes do PAIGC como inclusive tropas paraquedistas senegalesas... Vale a pena reflectir sobre isto... Em todo o caso, é bom lembrar que o  BCP 12 também participou nesta operação, mas do lado de cá da fronteira. Releia-se o precioso e dramático testemunho do nosso querido amigo e camarada Victor Tavares, no poste P1316, de 26/11/2006: 

(...) "A 17 de Maio de 1973, a Companhia de Caçadores Paraquedistas 121 recebe ordem para se integrar na operação acima referida [,a Op Ametista Real] , tendo-lhe sido atribuída a missão de garantir a segurança de um corredor entre Ujeque e Guidaje, através do qual se processaria a retirada dos Comandos Africanos. (...) (**)


17 de Maio de 1973: início da Op Amestista Real  (***)


Início da Operação Ametista Real, em que o Batalhão de Comandos da Guiné assalta a base de Cumbamori, do PAIGC, situada em território do Senegal

A operação destinava-se a aliviar o cerco do PAIGC a Guidage e a permitir o reabastecimento daquela guarnição.

Só a destruição da base de Cumbamori, a grande base do PAIGC no Senegal, na península de Casamança, permitiria pôr fim ao cerco a Guidage. A operação era difícil e de resultados imprevisíveis. O ataque ao Senegal foi atribuído ao Batalhão de Comandos Afruicanos  [ou melhor, da Guiné, constituído pela 1ª, 2ª e 3ª CComds Africanos]
, comandado pelo major Almeida Bruno – que tinha por hábito atribuir às acções militares o nome de pedras preciosas: esta ficou Operação Amestista Real.

Na tarde de 19 de Maio de 1973, uma sexta-feira , 450 homens do Batalhão de Comandos Africanos embarcavam, em lanchas da Marinha e subiram o rio Cacheu até Bigene onde chegaram ao pôr-do-sol. À meia noite a força de ataque seguiu dividida em três grupos de combate:
  • o Agrupamento Bombox, comandado pelo Capitão Matos Gomes;
  • o Agrupamento Centauro, sob o comando do Cap Raul Folques;
  •  e o Agrupamento Romeu, comandando pelo capitão paraquedista António Ramos.

O Comandante da operação, Almeida Bruno seguiu integrado no Agrupamento Romeu, que levava um grupo especial comandando por Marcelino da Mata. Avançaram, durante a madrugada e pisaram território senegalês, cerca das seis da manhã do dia 20, sábado.

Às oito horas, uma esquadrilha de aviões Fiat iniciou pesado bombardeamento da zona. Os pilotos atacaram um pouco às cegas, porque a axacta localização da base da guerrilha não era conhecida. Mas por sorte as bombas da avião acertaram, em cheio nos paióis. 

Mal cessou o ataque aéreo , que não terá demorado mais do que dez minutos, os grupos comandados por Matos Gomes e Raul Folques lançaram-se ao assalto, enquanto o Agrupamento Romeu, comandado por António Ramos, e onde seguia o comandante da operação, Almeida Bruno, tomava posição como força de reserva. Os três agrupamentos envolveram-se em duros combates: “Os soldados de ambos os lados estavam tão próximos uns dos outros que era impossível delimitar uma frente”.

O combate foi corpo a corpo e desenrolou-se até às 14h10, quando Almeida Bruno deu ordem para o Agrupamento Centauro apoiar uma ruptura de contacto entre as forças do Batalhão de Comandos e as do PAIGC. O Agrupamento Bombox estava praticamente sem munições e o Agrupamento Centauro substituiu-o no contacto. Entretanto, Raul Folques, o comandante do Agrupamento Centauro, apesar de gravemente ferido numa perna, conseguiu a ruptuta do combate. A marcha do Batalhão de Comandos em direcção a Guidage foi lenta e com várias emboscadas pelo meio.

Resultados

Pelas 16 horas cessaram os combates e às 18h20 os primeiros homens do Batalhão de Comandos começaram a chegar a Guidage. Tinham sido destruídos:

  • 22 depósitos de material de guerra;
  • duas metralhadoras antiaéreas;
  • 50 mil munições de armas ligeiras;
  • 300 espingardas Kalashikov;
  • 112 pistoals PPSH
  • 560 granadas de mão;
  • 400 minas antipessoal:
  • 100 morteiros 60;
  • 11 morteiros 82;
  • 138 RPG7:
  • 450 RPG2;
  • 21 rampas de foguetões 122.

O PAIG sofreu 67 mortos entre os quais uma médica e um cirurgião cubanos e quatro elementos mauritanos, enquanto os Comandos sofreram dez mortos, dos quais dois oficiais, 23 feridos graves (três oficiais e sete sargentos) e três desaparecidos.

Uma nova coluna de reabastecimento ficou retida em Farim, por ter sido atacada uma coluna entre Mansoa e Farim de que resultou a destruição de três viaturas que ficaram, no terreno, tendo as forças portuguesas sofrido quatro mortos e 16 feridos, dos quais nove graves.

Na luta por Guidage o PAIGC utililizou a sua infantaria apoiada por artilharia pesada e ligeira, além de um grupo especial de mísseis terra-ar. Em armamento utilizou foguetões de 122 mm, morteiro 120 e 82 mm, canhões sem recuo de 5,7 e 7,5 cm, RPG2 , RPG7, armamento ligeiro e mísseis Strela. (...)

Fonte: Excerto de Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso - Os anos da guerra colonial: volume 14: 1973: Perder a guerra e as ilusões. Matosinhos: Quidnovi, 2009, pp. 41-45. (Com a devida vénia..)

[Seleção / revisão / fixação de texto,  para efeitos de edição deste poste: LG. ]
_________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 18 de setembro de  2022 > Guné 61/74 - P23625: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (12): A Op Ametista Real: o batalhão de comandos em Cumbamori, no Senegal, 19 de maio de 1973 (Amadu Bailo Djaló, alf graduado 'comando', 1940-2015)


(***) Vd. informação mais detalhada no poste de 18 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23364: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (5): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte IV: Op Ametista Real, de 17 a 21 mai73, destruição da base de Cumbamori, no Senegal

Vd. também o testemunho, na primeira pessoa, de Amadu Djaló (1940-2015):

domingo, 18 de setembro de 2022

Guné 61/74 - P23625: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (12): A Op Ametista Real: o batalhão de comandos em Cumbamori, no Senegal, 19 de maio de 1973 (Amadu Bailo Djaló, alf graduado 'comando', 1940-2015)

Guiné > Brá > 1973 > Cerimónia das promoções dos comandos africanos (pág. 257 da edição em livro)

Guiné > Brá > 1973 > Foto nº 108 > O general Spínola a dirigir-se ao Batalhão de Comandos da Guiné, em Brá. À direita, os majores Almeida Bruno e Raul Folques e atrás, por baixo do emblema dos Comandos, o tenente graduado 'comando' Zacarias Saiegh, de camisa mais clara. Fotos retiradas, com a devida vénia, do livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, pág. 256)

Batalhão de Comandos da Guiné (Brá, 1972/74): guião
 

A Op Ametista Real,  19 de maio de 1973

por Amadu Bailo Djaló (2010, pp. 248-260) (*)

Em homenagem à  memória do nosso camarada Amadu Djaló (nascido em Bafatá, em 1940 e falecido em Lisboa, no Hospital Militar, em 2015, com 74 anos), e com a devida vénia aos seus herdeiros, à Associação de Comandos (que oportunamente, ainda em vida do autor, editou o livro, entretanto há muito esgotado), e com um especial agradecimento ao Virgínio Briote que, na qualidade de "copydesk" e grande amigo do autor, e coeditor jubilado do nosso blogue,  nos facultou o "manuscrito" (em formato pdf), vamos reproduzir aqui o excerto, sem a totalidade das respectivas fotos, relativo à Op Ametista Real, Cumbamori, Senegal, 19 de maio de 1973 (correspondente às pp. 248-260 da edição em livro).  

Este é um valioso (e raro) testemunho, escrito na primeira pessoa do singular sobre uma operação arriscada e temerária, realizada em solo estrangeiro, contra a base do PAIGC em Cumbamori, e que permitiu aliviar a pressão militar sobre Guidaje. Nove militares do Batalhão de Comandos da Guiné morreram na Op Ametista Real. O Amadu Djaló até então 2º sargento graduado 'comando', será depois promovido a alferes, e irá fromar, com o tenente graduado 'comando' Jamanca a CCAÇ 21.


(...) 51. O Batalhão de Comandos[1] em Cumbamori, Senegal

Embarcámos em Bissau, ao início da tarde de 18 de maio de 1973, numa lancha de desembarque, e navegámos durante a tarde e a noite toda até Ganturé[2].

Quando desembarcámos, já passava do meio da tarde, encontrámos soldados conhecidos. Estávamo-nos ainda a cumprimentar, ouvimos um companheiro gritar alto “atenção, ataque!”

Ouvimos as saídas de morteiros 120. Não falando nos estilhaços, só os rebentamentos desorientavam. Cada um procurou um local para se abrigar, mas a flagelação[3] não durou mais de cinco minutos. Para nós, foi um sinal do PAIGC. Acalmámo-nos e rimo-nos um bocado, enquanto comíamos da comida que nos trouxeram.

Mantivemo-nos em Bigene até aproximadamente às 22h00, que tinha sido a hora destinada para nos prepararmos para a saída. Mais ou menos, uma hora depois, começámos a andar rumo ao objectivo para cumprir a missão de atacar e destruir os locais que estavam a servir de base às flagelações a Guidaje[4] e a toda aquela zona, Bigene, Barro, Binta.

O agrupamento onde ia o comandante Almeida Bruno[5] seguia à frente, em direcção à zona de fronteira com o Senegal. Foi uma noite toda a andar, até atingirmos uma estrada alcatroada, paralela à fronteira, de Koldá a Ziguinchor, entre Tanafo e Samine, mais próximo deste. Portanto, bem dentro do Senegal[6].

A certa altura foi-nos ordenado um alto e ali nos mantivemos. Tínhamos sido avisados que a aviação vinha a caminho. Neste intervalo ia a passar uma viatura das obras que andava a carregar material para a estrada.

Como tínhamos recebido ordens para não deixarmos passar nenhuma viatura[7], o Alferes Tomás Camará mandou-a parar. O condutor não quis obedecer ao sinal de stop, mas como viu muitos militares armados parou mesmo. O Major Almeida Bruno abeirou-se dele e disse-lhe que “hoje não há trabalho. Vai avisar o PAIGC de que estamos aqui à espera deles”. Mas o condutor não deve ter ido ter com o PAIGC, arrancou a correr na direcção de Samine.

Nós continuávamos a aguardar a entrada da aviação, que não devia demorar. E poucos minutos depois começámos a ouvir os ruídos dos aviões e, nessa altura, levantámo-nos para nos prepararmos para os ataques aos objectivos, que eram diferentes para cada companhia.

Por volta das 07h00, mais ou menos, começámos a ouvir os rebentamentos das bombas dos aviões, uns atrás dos outros. A seguir, avançámos, formados em bigrupos e lançámo-nos ao ataque.

Lembro-me de ter entrado numa clareira e, depois mais nada, desmaiei. Soube mais tarde que tinha sido atacado na cabeça por um enxame de abelhas. Tiraram-me dali, não sei de onde nem para onde. Dei por mim deitado no chão, a ouvir uma voz, era o capitão Folques a dizer tratem o homem, e eu a pensar no que teria acontecido. Não me lembrava de nada do que se passou, nem me lembrava do local onde estava, nem o que estava ali a fazer. Sentia dores e não via nada, só ouvia as vozes. Minutos depois, recuperei a memória e já me lembrava do que me tinha acontecido na saída e do ataque de abelhas. E eu, a falar para mim, estou deitado no chão, devo estar a morrer.

Perguntei qualquer coisa mas ninguém deu resposta. Levantei-me a custo, comecei a ver, sentia dores na cabeça, na cara, nas mãos. Então, não estou a morrer! Mais animado, procurei a minha arma e as cartucheiras, era um soldado radiotelegrafista do meu grupo que tinha o meu material. Tinha trazido arma, levava a minha arma, assim estava mais tranquilo, tão tranquilo que me preparei para avançar.

Alguns homens de um dos nossos bigrupos, que caminhava na nossa retaguarda, quando nos viram, não estiveram com cerimónias, atiraram-se para o chão e abriram fogo sobre nós. Fizemos o mesmo, respondemos e durante cerca de um minuto o fogo intensificou-se. Não sei porquê, parámos o fogo, os dois lados ao mesmo tempo. Começámos a ouvir gritos “Comandos, Comandos”[8]. Restabelecido o contacto procurámos saber dos feridos. Eles não tinham nenhum e nós também não, por sorte.

Juntámo-nos e continuámos o avanço para o local onde se deveria encontrar o comandante Bruno. Quando chegámos, instalámo-nos e ficámos a aguardar ordens. Havia grupos que ainda não tinham regressado ao local.

Neste espaço de tempo, foi recebida uma mensagem de um grupo a pedir apoio. Tinha sofrido baixas e pedia auxílio para os tirar daquele local. Já íamos a sair e nova mensagem chegou a dizer que já não precisavam. Que o grupo do Marcelino estava a trazer os feridos e os mortos para o local onde estávamos. Entretanto, começámos a preparar as macas para facilitar o transporte. Sabíamos que a retirada ia ser feita na direcção de Guidaje. Não demoraram muito.

Um dos feridos estava a contar-me como tinha sido atingido quando chegou o 1º cabo José Có, que tinha sido meu instrutor na recruta em Bolama.

− Amadu, onde é que estamos?

− Aqui é o Senegal − respondi.

− Então, vou-me embora. Estive ali à frente, ouvi muitos barulhos, de gente a falar e a gritar alto, barulho de gente a cortar ramos das árvores para fazer macas, olha, era tanto barulho que parecia o mercado de Bandim.

Só voltei a ver o José Có em Guidaje. Saí do local onde estavam quatro ou cinco feridos e o corpo de um soldado, para verificar o andamento dos trabalhos das macas e, momentos depois começaram os rebentamentos.

Foi um inferno. Ao primeiro estouro ninguém pensou em mais nada senão em escapar dali. Eu corri para a frente, com sete ou oito soldados, armados de bazucas e RPG, para respondermos ao fogo. Todos dispararam uma vez, outros duas vezes, depois saíram dos locais, porque a posição deles estava denunciada quando fizeram fogo. Sabíamos isso da instrução.

Fiquei muito satisfeito com eles, porque foi com os disparos que fizeram que travámos a contra-ofensiva do PAIGC e dos páras senegaleses[9].

O tenente Jamanca estava à minha esquerda, sentado, com as pernas estendidas, encostado a uma pequena árvore, parecia exausto.

− Então, o que é que se está a passar? − perguntei.

− Amadu, anda cá! Mata-me, não deixes o PAIGC levar-me! Mata-me, Amadu, mata-me!

− Tu não ficas, levámos-te de qualquer forma. Não ficas aqui! Descansa um pouco, Jamanca!


Durante esta conversa vi o Alferes Melna, de pé, com dois soldados, um deitado, de frente para eles.

 −  Melna, de quem é esse corpo?

− É o Alferes, o Mama Samba Baldé!

Fui para a beira deles. O Melna apontou para uma árvore e perguntou-me se eu sabia de quem era o corpo que estava lá. Não, não sabia, respondi.

− É o corpo do José Vieira[10].

Ouvi o Jamanca chamar-me:

 − Vai chamar Demba[11].

Dirigi-me para um grupo de soldados e perguntei pelo Demba.

  −  Já retiraram todos, só estamos nós aqui −  respondeu alguém.

Quando transmiti ao Jamanca o que tinha ouvido, ele não queria acreditar. Depois, levantou-se e foi ver com os seus olhos. Não viu nenhum dos seus oficiais e abanou a cabeça.

No local estávamos 31 militares, três capitães europeus e vinte e oito comandos africanos: um tenente, um alferes, não sei quantos sargentos e praças. Os capitães eram o Folques, o Matos Gomes e o Ramos, que era paaquedista.

O grupo ainda ficou mais reduzido, pouco depois. Quando tentava recuperar o corpo do Alferes Mama Samba, o Melna[12] foi atingido gravemente nas pernas com estilhaços de uma roquetada e os ossos ficaram a ver-se.

O guarda-costas do alferes estava atrás do Melna, mas só o alferes e outro soldado apanharam com os estilhaços. Depois de atingido, o Melna tirou a carteira onde levava o mapa e a bússola do pescoço e pousou a Kalash. Quando estava a tentar ver o estado em que tinha as pernas, toda aquela zona foi varrida por uma série de rajadas.

Tentámos ir lá, arrancá-los, tirá-los dali, uma, duas, três vezes. Não conseguimos. Na terceira tentativa o capitão Folques foi também atingido numa perna, uma bala perfurou-a de um lado a outro. Demos tudo por tudo, mas não conseguimos chegar lá. A força deles era maior, naquele local.

De todo o pessoal que partiu, quatrocentos e noventa e tal militares com dois guias de Bigene, estávamos ali vinte e nove, porque um dos soldados do Melna também tinha sido atingido gravemente. Conseguimos abandonar o local, comigo em último lugar, a olhar para trás, de vez em quando, com a imagem do Melna, que ainda hoje está na minha cabeça. Ele olhava para nós e voltava a cara para o lado de onde faziam fogo contra nós. E ainda consegui ouvir um grito, pareceu-me de contentamento.

Estavam a apanhar o Melna, pensei. "Apanharam Melna", gritava eu alto. Uma dor cá dentro, no coração, é o que ainda hoje sinto quando me vem à memória a imagem dele, a olhar para nós e para o outro lado, o do inimigo.

Mas para trás ficaram mais três ou quatro feridos que o grupo do Marcelino tinha trazido para aquele local. Não sei quem era o comandante deles, só sei que também lá ficaram.

Continuámos a retirar em direcção à nossa fronteira. Não podíamos forçar muito, porque o Jamanca só podia andar com o apoio de alguém e o capitão Folques, com a perna ferida, também tinha muita dificuldade em andar e estávamos ainda longe de Guidage.

Pedimos apoio à aviação, mas recusaram. Disseram que estavam a voar muito alto, que era difícil localizarem-nos. Quando ouvi a resposta do ar, perguntei ao meu soldado, que transportava o morteiro, se ele tinha ainda alguma granada de fumos de morteiro, para a aviação ver onde nós estávamos. O capitão Folques transmitiu para os aviões que íamos lançar uma granada de fumos. Tomei conta do morteiro e fui eu que disparei, para sinalizar o local a partir do qual os aviões já podiam bombardear.

Uma grande bola de fumo, branca, já tinham visto dos aviões, ouvimo-los dizer. A partir deste momento, o Capitão Folques[13] disse "a sueste do fumo, a sul, a sudoeste e a oeste, arrasar tudo, tudo!" ‘

Vimos bem a potência do bombardeamento e sentimo-la também, enquanto continuávamos a retirar lentamente. Do ar, perguntaram se estávamos a ser seguidos, nós respondemos que não. Então, “Pentágono”[14] disse que estavam a ver uma grande coluna na estrada e que iam destruí-la. A partir desta comunicação, não ouvimos nem mais um tiro atrás de nós. E atrás de nós, já não havia mais ninguém nosso.

Essa granada de fumo ajudou-nos muito, talvez tenha sido a nossa salvação. Não me lembro do nome do soldado que acarretou o cunhete de granadas de fumo, mas lembro-me de ele me responder que eram granadas de morteiro de fumo, quando lhe perguntei "granada de quê?"

Esta conversa aconteceu, depois do grupo estar pronto para a saída. Leva uma ou duas, respondi sem muita certeza. Nunca tinha levado granadas dessas de morteiro, de fumo só usávamos granadas de mão, mas como era uma operação fora do território nacional, talvez viesse a ser útil. Quem adivinhava?

Chegámos junto do arame farpado do aquartelamento de Guidage, entre as 18 e as 19h00[15], mortos de sede e de fome. Em Guidaje não havia nada para comer. Nem medicamentos[16].

Fomos avisados de que partíamos no dia seguinte, às 07h00[17], a corta-mato na direcção da estrada Farim a Binta. O programa era sair de Guidaje, em marcha forçada, a corta-mato, pela estrada de Farim a Binta. Ia ser uma grande volta para quem quisesse ir, ninguém era transportado.

Quem cair, caiu. Seja quem for, fica no local. Se não vai aguentar, então é melhor não arriscar. Quem quiser ficar em Guidaje tem que saber que não há comida. E outra coisa mais, para quem quiser ficar aqui: não sabemos quando sairá de cá, nem em que meios o fará, porque a estrada está como um campo de milho, só que não tem milho, tem minas. Já muitas vidas ficaram nesta estrada, a picá-la. E de avião, também não sabemos quando vai haver, porque já foram abatidos 3 ou 4 nesta área! Então, quem quiser ficar, pode ficar, mas têm que ter muita paciência até quando houver possibilidade de os retirar. 

Foram estas as palavras que todos ouviram. O aviso correu depressa, à volta de todo o arame farpado e ficou a noite para cada um pensar na sua vida.

Logo de manhã, ainda antes das 06h00, começámos os preparativos. Viu-se logo quem queria arriscar, quem estava decidido. Agora, não era hora de falar, se ia ou não ia.

Chegada a hora, partimos, decididos, não me lembro de olhar para trás, na direcção da estrada entre Farim e Binta.

O objectivo da etapa era Binta. A certa altura o calor começou a apertar e ainda era de manhã. As baixas começaram a surgir, sem ataques armados, alguns afrouxaram a marcha, um ou outro caiu. Era para aí meio-dia quando o major Almeida Bruno mandou fazer um alto para o pessoal descansar um pouco. Trinta minutos, mais ou menos, depois, recomeçámos a marcha. Falar do calor que fazia, não adianta. Toda a gente da Guiné sabe como é. A marcha forçada estava a ser difícil para alguns colegas, até o guia se foi abaixo.

A partir de um dado momento, o comandante 
[Almeida] Bruno e eu fomos para a frente, eu a abrir a coluna, o nosso major em segundo, o segundo guia era o terceiro homem, sempre a andar sem parar, com a estrada ainda longe. Quando chegámos com o pôr-do-sol[18] ao local que queríamos atingir, ouvi o comandante pedir pelo rádio, na ponte, os cavalos[19] para nos virem buscar.

Quando chegou a primeira viatura, pensei que íamos embarcar. O major disse “Amadu, vamos andando”, chegou a segunda disse o mesmo. Nessa altura, eu disse para mim, “se eu sabia, ficava para trás”. Cada viatura que chegava, o nosso comandante mandava passar para trás de nós, sempre a dizer “Amadu, vamos andando”. Eu estava muito cansado, mesmo muito.

Quando voltou uma viatura sem ninguém ele disse que agora era a nossa vez, que já não havia ninguém para trás. Fomos dos últimos a entrar em Binta. Atrás de nós cerca de quarenta homens arrastavam-se ainda na estrada, foram chegando durante a noite. Alguns colegas nossos tinham voltado para trás para ajudar os atrasados. Aproximavam-se do portão e faziam sinal às sentinelas. Quando chegámos a Binta entrámos logo na LDG.

Na lancha soubemos o que tinha acontecido com dois soldados nossos, que tinham ficado em Bigene e não participaram na operação. Um, do grupo do Marcelino da Mata, não foi porque estava bêbado e o outro, dos Comandos, porque se queixava de fortes dores de cabeça.

O que aconteceu com eles? Quando a lancha se estava a deslocar de Ganturé para nos vir buscar a Binta, ninguém sabe como ou porquê, o soldado do Marcelino, o Abdul Raman disparou o lança-roquetes. O disparo atingiu-o e desapareceu na água[20]. O outro, o Malan Baldé, o das dores de cabeça, que ia ao lado, foi atingido por estilhaços nas duas vistas e ficou cego.

Com todo o pessoal embarcado, iniciámos a navegação de manhã[21]. Todos calados, pensando em nada. Quando chegámos ao Cacheu, horas depois, ainda estávamos em silêncio. Mandaram-nos saltar do barco e aproveitámos para nos abastecermos no mercado do Cacheu. Eu comprei um grande peixe. Depois, destino Bissau.

Chegámos à tarde. Com as viaturas ali, à nossa espera, foi um trabalho pequeno tomar os lugares e rolar para o quartel. Quando chegámos a Brá, fizemos o costume, entregámos as armas e os equipamentos. Disseram-nos para estarmos no quartel no dia seguinte, para conferirmos quem tinha ficado para trás, no território do Senegal, quem tinha sido ferido, quem tinha ficado no nosso território, no Ingoré, em Barro, em Binta, em Farim.

Os números dos desaparecidos não batiam certo[22], iam mudando. Depois do 25 de Abril ainda apareceu um soldado, Aba Coné, um balanta, que tinha sido ferido com o alferes Melna, com os estilhaços da mesma roquetada.

Três dias depois[23] de Cumbamori, o comandante deu-nos uma semana de descanso. No dia combinado, quando cheguei ao quartel a ordenança do comandante Bruno disse-me para eu estar no gabinete dele, às 10 horas.

 − Não sabes por que é que me mandou chamar?

Não sabia, mas disse que tinha mandado chamar mais oito homens e mostrou-me a lista. Eram todos meus amigos.

Chegada a hora, concentrámo-nos no gabinete do major Bruno, ansiosamente à espera, ninguém sabia de quê.

Era para nos comunicar que dois tenentes e seis alferes iam dirigir duas companhias. O tenente Jamanca ia ser o comandante de uma companhia de Fulas. E os alferes eram o Demba Chamo Seca, o Ali Sada Candé, o Braima Baldé[24] e eu, Amadu Bailo Djaló

Para a outra companhia iam três oficiais, o Tomás Camará, o Vicente Pedro da Silva e o João Uloma, o felupe. Dois furriéis, um dos quais o Hélder Pereira[25], da CCaç 18, com vários louvores, iam ser integrados na companhia do Tomás Camará.

Duas companhias comandadas por oficiais dos comandos africanos: a CCaç 20, comandada pelo Tenente Tomás Camará iria para Gadamael Porto. A CCaç 21, uma companhia quase só constituída por militares de etnia fula, comandada pelo Tenente Jamanca, iria ficar sediada em Bambadinca.

Três dias depois, embarcámos para Bolama e, passadas duas semanas, o General Spínola atribuiu aos quadros das duas companhias a Medalha de Lealdade e Mérito[26], em cobre. E poucos dias depois, fomos chamados a Bissau, para sermos graduados: o Tomás Camará em tenente e eu em alferes.

Depois de voltarmos a Bolama, esperava-me novo destino. Bambadinca [a CCAÇ 21]. (**)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ] 



Lisboa > 2009 > Da esquerda para a direita, o cor inf 'comando' ref Raul Folques e o ten general 'comando' ref Almeida Bruno (1935-2022)  (os dois primeiros comandantes do Batalhão de Comandos Africanos da Guiné, e ambos Torre e Espada) e o nooso saudoso grã-tabanqueiro Amadu Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015).

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do autor e do editor ("copydesk") Virgínio Briote:

[1] Nota do editor: designação oficial do que veio a ficar conhecido por Batalhão de Comandos Africanos. A unidade foi criada em 1 Abril 1973, tendo a sua organização sido aprovada pelo Ministro do Exército, em despacho de 21 Fevereiro 1973.

[2] Nota do editor: Ganturé, porto no rio Cacheu que servia Bigene onde se encontrava o comando do COP.

[3] Ataque de morteiros e foguetes, disparados do lado de lá da fronteira.

[4] Nota do editor: Guidaje estava praticamente isolada. A guarnição era composta por cerca de duas centenas de homens da CCaç19 e do PelArt24. Junto ao aquartelamento havia uma pequena tabanca. As entradas pelo sul estavam praticamente cortados, com as vias de acesso semeadas de minas.

A própria FAP estava limitada, uma vez que nos primeiros dias de Maio, um T-6 e dois Dornier 27 tinham sido abatidos por mísseis.

Calcula-se em cerca de seiscentos o número de homens que o PAIGC tinha na zona, comandados por Francisco Mendes “Chico Té” e Manuel dos Santos “Manecas”. O PAIGC abastecia-se a partir de uma base em Cumbamori, Senegal.

Segundo o relatório, na tarde de 19 de Maio de 1973, cerca de 450 homens do Batalhão de Comandos da Guiné, divididos em três agrupamentos (efectivos de uma companhia), embarcaram em lanchas da marinha e subiram o Cacheu até Bigene, onde desembarcaram ao final do dia. À meia-noite começaram a deslocar-se para Norte e entraram no Senegal por volta das seis da manha do dia 20.

[5] Nota do editor: a ordem de progressão era o Agrupamento “Bombox”, comandado pelo capitão Matos Gomes, o agrupamento “Centauro” pelo capitão Raul Folques e o agrupamento “Romeu” pelo capitão António Ramos e onde seguia o Major Almeida Bruno. Informação de “Guerra Colonial”, de Aniceto Afonso e C. Matos Gomes.

[6] Nota do editor: na chamada “Grand Route” do Casamance, que estava em construção. As NT tinham os objectivos marcados nas fotografias aéreas referenciados a sul desta estrada em construção.

[7] Nota do editor: passaram autocarros e viaturas da construção civil de uma empresa francesa. Ao agrupamento “Bombox”, quando começou o bombardeamento da aviação, surgiu, num Peugeaut 404, um engenheiro francês, que, de olhos arregalados, se viu rodeado de negros. O Capitão Matos Gomes mandou-o desaparecer. Estava iminente o ataque à base.

[8] Nota do editor: o agrupamento do Capitão Folques tinha ficado a sul da base enquanto o “Bombox” atacou a norte. Por volta do meio-dia o Major Almeida Bruno deu ordem ao “Bombox” para sair do local e mandou avançar o agrupamento “Centauro”, do Capitão Folques, para se intrometer entre o “Bombox” e o PAIGC, numa manobra de ruptura do contacto. Seguiu-se o combate e a confusão. Dois agrupamentos de Comandos Africanos, mais o PAIGC e mais forças do Exército do Senegal, praticamente com fardamento e armas idênticas, todos pretos excepto quatro brancos, engalfinhados aos tiros e quase à bofetada. Daí o grito Comandos para se orientarem. E, como a confusão já era pouca, surgiu o grupo do Marcelino da Mata, que veio aos apitos e aos gritos e a pegar fogo ao capim, onde as NT tinham juntado os foguetões capturados na base de Cumbamori, que, aquecidos pelo incêndio, seguiram como torpedos pela bolanha.

[9] O Exército do Senegal trouxe guerrilheiros do PAIGC em viaturas e apoiou-os contra nós, com canhões sem recuo e auto-metralhadoras. O comandante daquele sector senegalês, um Major chamado Djawara, contactou com o Major Bruno no posto de comando, que o nosso comandante tinha montado numa pequena vila senegalesa, e pediu-lhe para irmos combater para trezentos metros a Sul, onde ele dizia que passava a fronteira, ninguém sabia se passava se não. Já depois de 1974 tive conhecimento que o Presidente do Senegal, Shenghor, disse ao General Spínola em Paris que o tal major tinha sido abatido no decorrer dos combates.

[10] Soldado da 1ª CCmds. Um mês depois de ter acabado a comissão, solicitou a prorrogação. Esta era a 1ª saída depois de reintegrado.

[11] Demba Chamo Seca.

[12] Nota do editor: os corpos do Alferes Melna e os de outros Comandos, foram recuperados pelas NT e trazidos para Guidage, onde se encontram enterrados.

[13] Tínhamos no ar o Capitão Baptista da Silva, numa Dornier a fazer PCV.

[14] Indicativo da patrulha aérea.

[15] Nota do editor: de 19 Maio 1973.

[16] Guidaje estava cercada, não era reabastecida há algum tempo. Os feridos acumulavam-se num abrigo, com as feridas a gangrenarem. Cheirava a carne podre, a sangue coalhado e o ar parecia de um jazigo. Foi nesse abrigo que o nosso Capitão Folques e os outros Comandos feridos ficaram a aguardar as evacuações. Nem ligaduras havia.

[17] Nós tínhamos que sair rapidamente de Guidaje. Com os efectivos do Batalhão de Comandos, o número de militares deveria andar perto de seiscentos homens dentro do aquartelamento. O que podia ser um desastre para nós se a povoação fosse atacada, que era o que esperávamos. Não havia tempo para recuperar. O comandante decidiu seguir a corta-mato na direcção de Binta. Soubemos mais tarde que ainda pensou seguirmos directamente ao Cufeu, para atacarmos uma base de lançamento de Strella, localizada pela aviação. Segundo ouvi dizer parece ter sido a primeira ideia que lhe veio à cabeça e terá mesmo dado ordem para nos dirigirmos para Cufeu, mas nós já não andávamos, arrastávamo-nos. Ainda chegámos às proximidades do local, mas nós não estávamos em condições para o assalto. Finalmente, o comandante mandou seguir para Binta, até à estrada Farim – Binta – Barro. E foi aí, que fomos recolhidos em viaturas e transportados para a LDG, comandada por um 1º Tenente chamado Bilreiro.

[18] Nota do editor: de 20Mai73.

[19] Viaturas.

[20] Nota do editor: não há registo do óbito deste militar, sequer “desaparecido em acção” ou “corpo não recuperado.

[21] De 21 Maio 1973. Esperámos algumas horas em Binta. O Major Bruno e os Capitães Matos Gomes e António Ramos viajaram para Bissau, de helicóptero, para se reunirem com o General Spínola. Em Binta não havia comida para nos darem, foi a própria população que nos matou a fome.

[22] Nota do editor: os números oficiais apontam para nove mortos em combate, onze feridos graves e vinte e três ligeiros.

[23] Nota do editor: 4 Junho 1973.

[24] Braima Baldé pertencia à família real do Corubal. Era uma pessoa muito reservada. Incorporado em 1960, pertenceu à B.A.C. e esteve destacado no esquadrão de Bafatá. Por feitos em combate recebeu o prémio Governador da Guiné. Em 1969 para além dos africanos ex-Comandos foram convidados outros que se tinham destacado em combate. Braima fez o curso de quadros, em Brá, sob a orientação do Capitão Barbosa Henriques. Terminado o curso, como furriel graduado, esteve em Fá Mandinga, na formação da 1ª CCmds Africanos, de que o Capitão graduado João Bacar Djaló foi o nosso comandante. Era 1º sargento quando participou na operação “Ametista Real”, em Cumbamori, Senegal. Ao Braima calhou-lhe ir no agrupamento onde ia o Major Almeida Bruno. Foi muito falada, na altura, a história de que Braima Baldé pode ter salvado a vida do nosso comandante quando o Major Bruno, ao avistar um grupo de militares, tê-los-á chamado, pensando que eram militares nossos. Eram páras senegaleses. O Braima apercebeu-se, gritou-lhe que se abaixasse, e, segundos depois, começaram a ser alvejados com rajadas. No regresso, já em Guidaje, o major tirou os galões de um alferes europeu e colocou-os nos ombros do Braima Baldé. Quando se deu o 25 de Abril, o PAIGC começou por lhe atribuir um cargo numa secretaria em Bambadinca. Depois executou-o, em 1975, em dia e local que ninguém disse.

[25] Hoje Tenente-Coronel.

[26] Nota do editor: em Ordem de Serviço nº 34, de 23 de Agosto 1973, do CTIG, o Brigadeiro Comandante Militar louvou o Alferes Graduado Comando Amadu Bailo Djaló, da 1ª CCmds Africanos: “porque em todas as operações e acções em que tomou parte, se revelou sempre um combatente exemplar, muito valente, corajoso, determinado e de elevado espírito de sacrifício e abnegação. Militar de elevado espírito de missão, responsável e muito generoso é de inteira justiça realçar o seu excepcional comportamento na operação “Ametista Real”, onde comandou o seu grupo de combate com competência, serenidade, muita coragem, agressividade e estoicismo. Por tudo quanto se nota, é digno de ser apontada a sua conduta como de verdadeiro Comando, sendo-lhe conferido o presente louvor como público testemunho das suas extraordinárias qualidades de chefe militar e de combatente.”

[27] O pai do Alferes Carolino Barbosa era comerciante no sul da Guiné e tinha sido morto pelo PAIGC.

[28] Nota do editor: de 11 Julho a 11 Agosto 1973 e de 21 Novembro a 16 Dezembro 1973.
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Militres  do Batalhão de Comandos da Guiné mortos em Cumbamori, Senegal, durante o assalto à base IN, Operação Ametista Real’, 19 Maio 1973.

  • Anso Baldé, Soldado, 1ª CCmds; 
  • José Vieira, Soldado, 1ª CCmds; 
  • Pedro Melna, Alferes Graduado, 2ª CCmds;
  • Mama Samba Baldé, Alferes Graduado, 3ª CCmds:
  • Saliu Sané, Soldado, 3ª CCmds;
  • Becute Tungué, Soldado, 3ª CCmds;
  • Carlos Intchama, Soldado, 3ª CCmds;
  • Armando Beta Santa, Soldado, 3ª CCmds:
  • Mama Samba Embaló, Soldado, 3ª CCmds;
 Fonte: Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp. ) 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4359: Tabanca Grande (143): Amadu Bailo Djaló, Alferes Comando Graduado, incorporado no Exército Português em 1962 (Virgínio Briote)

(**) Último poste da série > 14 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23525: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (11): "Se eu de ti me não lembrar, Jerusalém", poema de Luís Jales de Oliveira (ex-fur mil trms, CCAÇ 20, 1972/74)

Vd. também poste 18 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23364: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (5): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte IV: Op Ametista Real, de 17 a 21 mai73, destruição da base de Cumbamori, no Senegal