terça-feira, 19 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane


1. No dia 5 de Julho de 2008, o nosso camarada Manuel Traquina, ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, enviou-nos, para publicação, este relato do ataque à povoação de Contabane, ocorrido em 22 de Junho de 1968.



Companhia de Caçadores 2382 (1968/70) (*)




O Ataque a Contabane

Era o dia 22 de Junho daquele ano de 1968, a Companhia estava na Guiné havia pouco mais de um mês e, ao ser deslocada para a região de Aldeia Formosa, (Quebo) dois pelotões fixaram-se em Mampatá, os restantes bem como o Comando foram deslocados para a aldeia de Contabane. Ali parecia respirar-se a paz, a população era numerosa e bastante acolhedora, e como habitual faziam-se alguns patrulhamentos na região, que ficava a poucos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conákri.

Naquela aldeia os militares acomodavam-se nas próprias moranças cedidas pelo chefe da Tabanca, à volta da aldeia tinham sido abertos no terreno algumas valas e abrigos, além de duas fiadas de arame farpado. Tudo parecia correr dentro da normalidade, naquela tarde eu próprio com mais quatro militares saímos no Unimog a buscar água do poço que se localizava a curta distância.

Porém já próximo do anoitecer, um dos elementos nativos que connosco efectuavam um patrulhamento, pisou um engenho explosivo, que lhe deixou um pé seriamente afectado. Este foi o primeiro sinal de que toda aquela paz não era real, o grupo recolheu à aldeia/aquartelamento, era a hora de jantar e na improvisada enfermaria o Furriel Enfermeiro Chambel com grande dificuldade, tentava encontrar uma veia onde pudesse administrar algum soro ao militar milícia, que com um pé decepado tinha perdido muito sangue.

Entretanto o Sargento João Boiça apercebendo-se da situação, corria de uma ponta à outra da aldeia, não parava de alertar todos para que de imediato se deslocassem para os abrigos, talvez ao tomar esta medida tenha evitado algumas mortes.

Tinha anoitecido e, de repente algumas explosões deram inicio a um ataque que se ia prolongar por cerca de três horas, as balas incendiarias atravessavam a palha que servia de cobertura à tabanca onde o ferido começava a receber o soro. Disse ao Chambel e ao Coelho que tínhamos que sair daqui imediatamente com o ferido, porém ele, já mais endurecido pela guerra, reunindo as suas débeis forças arrastou-se até á porta e, no escuro sem que nos apercebesse-mos desapareceu rastejando, só na manhã seguinte o voltámos a ver, quando da chegada do helicóptero que o evacuou bem como a outros feridos.

Foram cerca de três horas de bombardeamentos em que a aldeia reduzida a cinzas mais parecia um inferno, no final foi uma forte trovoada que, transformou a cinza em lama, onde quase não havia onde nos abrigar. Não tenho dúvidas de que nós os militares que naquela tarde fomos à água, passamos muito perto do local onde o inimigo preparava o ataque e, só não fomos feitos prisioneiros porque o objectivo era o ataque. Apesar do grande aparato e grande potencial de fogo, sofremos apenas três feridos dois dos quais de maior gravidade. Porém, quase todo o património da companhia ali ficou reduzido a cinza, os rádios, os géneros alimentícios, o equipamento de enfermagem, tudo ali ficou carbonizado, grande parte dos militares ficaram apenas com a roupa que tinham vestida. Na manhã seguinte um helicóptero evacuou os feridos, alguns militares apressaram-se a escrever um ou outro aerograma meio queimado e enlameado que foi entregue ao piloto do helicóptero, era a parte psicológica a funcionar, pretendiam partilhar aquele momento de desânimo com alguém do coração.

Contabane foi totalmente evacuada de população e militares, saímos dali moralmente destroçados, alguns apenas de calções, sapatilhas e a sua G3, mas vivos para suportar muitos outros ataques e emboscadas durante os vinte e dois meses que se seguiram. Já no termo da comissão viemos encontrar na cidade de Bissau o milícia que ao pisar a armadilha foi amputado de um pé, e que naquela cidade tentava sobrevier como engraxador de sapatos.

Neste agora passado dia 22 de Junho ao completarem-se quarenta anos sobre este ataque, quero homenagear os dois camaradas mortos não neste ataque, mas noutros que se seguiram, Furriel Ramiro de Sousa Duarte e o Soldado Elidio Fidalgo Rodrigues, pertencentes a esta Companhia, quero também saudar todos os militares da 2382, estou convencido que todos os que viveram este acontecimento o recordam e jamais esquecerão aquelas horas difíceis ali vividas.

Manuel Batista Traquina
Ex-Fur Mil
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Notas de CV:

Vd. postes de:

2 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2399: Tabanca Grande (47): Manuel Traquina, ex-Fur Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1970/72)

2 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2500: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (1): CCAÇ 2382 - A hora da partida

13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2533: O cruzeiro das nossas vidas (10): Fui e vim no velho e saudoso Niassa (Manuel Traquina)

Guiné 63/74 - P3140: Os nossos regressos (14): O meu regresso e o 25 de Abril (Juvenal Amado)


1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1972/74) com data de 9 de Agosto de 2008

Caros camaradas Carlos, Virgilio, Luis Graça e toda a Tabanca Grande

Integrado em Os Nossos Regressos, cá vai a minha visão pessoal sobre o meu próprio regresso.

As fotos da despedida do Batalhão não são muito boas mas não tenho outras. Na verdade os meus apelos aos meus camaradas para me enviarem fotos originais não tem na maioria dos casos tido muitos bons resultados. Dizem que não sabem onde isso pára, ou safam-se dizendo que a mulher é que guardou isso. Mas eles não se livram de mim assim facilmente, pois agora peço às suas esposas.

Um abraço e bom fim de semana é o que eu desejo para toda a Tabanca.
Juvenal Amado

Foto 1 > Ainda no Xime

Foto 2 > De regresso a Bissau numa LDG, sob protecção aérea

Foto 3 > Regresso a Bissau, a bordo da LDG

Foto 4 > Ainda bordo da LDG

Foto 5 > Cumeré > Despedida do BCAÇ 3872

Foto 6 > Cumeré > Despedida

Foto 7 > Cumeré > despedida das tropas

Foto 8 > Ainda a cerimónia de despedida do BCAÇ 3872

Foto 9 > Ilha da Madeira à vista


2. O meu regresso
Ppor Juvenal Amado

Na euforia da partida, quase não me lembro de entrar no Niassa.

Lembro-me de descer para os porões, onde os beliches chegavam aos quatro andares e de tão chegados uns aos outros, deram-me uma sensação de claustrofobia. Escolhi um de cima, para não ter que ficar com o nariz quase enfiado, no colchão do beliche superior. Dormíamos vestidos e calçados. A humidade era extrema. Pegava-se a nós e tudo ficava pegajoso.

Triste tratamento para quem dias antes na parada do Cumeré, tinha recebido os mais rasgados elogios, pela a nossa entrega na defesa do famoso Portugal, indivisível do Minho a Timor. (Não esquecer a passagem pelo Pilão).

Da cerimónia da despedida, recordo-me do chamamento dos mortos da 3489, (Cancolim) 3490 (Saltinho) e da CCS, uma vez que a 3491 (Dulombi) não teve mortos a lamentar felizmente. Esse momento foi sentido por todos camaradas, pois os mortos embora sendo respeitante a cada Companhia, eram também do 3872 e diziam respeito a todos nós. (A leitura do nome dos nossos mortos, é repetida num momento de profunda emoção todos os anos, quando nos juntamos e confraternizamos).

A minha bagagem era pouca. A mala dei-a ao meu camarada Aljustrel. Assim para além dos sacos com a farda, que ia entregar em Lisboa, os meus pertences resumiam-se a um pequeno saco de viagem, com uma garrafa de whisky, uma manta e uma espada Fula que ainda hoje tenho.

O cruzeiro

Para quem teve a sorte de viajar no Niassa, sabe a que me refiro. As escadarias para os porões tinham vomitado que, praticamente, não havia onde pôr as botas. O cheiro era nauseabundo.

O nosso amigo Alfredo Chapinhas enjoou praticamente desde que pôs os pés no barco. Era acarretado todos os dias, por mim e pelo Ivo, até cá cima. Embrulhávamo-lo numa manta e comprávamos-lhe batatas fritas salgadas e sumos, pois diziam que fazia bem. Ele bem se esforçava por comer, mas era difícil.

Eu e o Ivo felizmente não enjoamos e bebíamos cerveja de manhã à noite. Ficávamos praticamente todo o dia aconchegados, no lado do convés protegido do vento.

O mar esteve sempre muito agitado. Nós apreciávamos o navio de guerra que nos fazia escolta a partir de certa altura da viagem. Este estava hermeticamente fechado e as vagas varriam-no da proa à popa. Furava as ondas na vez de as subir e descer, como acontecia com o nosso.

Poucos se arriscavam a ir tomar o pequeno almoço ao refeitório, na proa do Niassa. Um dia o Ivo eu e o Aljustrel teimamos. Vamos lá ver quanto tempo aguentamos. Ao descermos as escadas, para além de nos desviarmos do vomitado, tivemos também que nos desviar dos que vomitavam, nesse preciso momento. Os lavatórios das mãos estavam indescritíveis. Por fim chegamos à mesa, nem me arrisquei a sentar no banco corrido. Estar ali, era como subir e descer três andares constantemente, num elevador completamente doido.

Não sei quem é que fugiu primeiro, mas a verdade ninguém lá ficava muito tempo. A partir daí, ia um à vez buscar as sandes à entrada e fugia logo dali.

Entretanto chegamos à Madeira, onde saíram os homens das companhias independentes, que viajaram connosco. Uma das Companhias levava uma Nossa Senhora de Fátima num andor. Já tinha despertado a nossa atenção, quando embarcaram para a Guiné.

Os oficiais e sargentos desembarcaram para visitar a ilha, mas nós não. Servimos para a tal defesa da Pátria, mas uns mais que os outros. Fomos transportados como gado e também desrespeitados como indivíduos, sem qualquer direitos.

A viagem com mais vomitado, menos vomitado decorreu calma. Dois dias antes de chegarmos a Lisboa, as gaivotas apareceram de volta do Niassa e nunca mais nos largaram. Foi uma enorme alegria.

Dia 4 de Abril de 1974

O Niassa está parado, para nosso desgosto, à entrada da barra. O amanhecer limpo mostra a beleza dos arredores de Lisboa. Lá estava a ponte que dentro de bem pouco tempo mudaria de nome felizmente.

O sol, sobre a cidade branca, dá-nos as boas vindas. Enquanto a partida foi a preto e branco, a chegada é a cores, tal é a luz que se abate sobre nós.

O barco leva uma eternidade a atracar. À medida que os rebocadores o fazem chegar ao cais, vamos tentando freneticamente ver onde estão os nossos familiares.

Os meus lá estavam. Um enorme chapéu de praia multicolor era o sinal. Tinha uma tarja escrita Alcobaça. Já tinha sido esse o mesmo sinal para o desembarque do meu irmão uns anos antes, quando este regressou de Moçambique.

O Comandante manda desembarcar. Abraço os meus pais irmãos, sei lá já quem lá estava. Quase não conheço a minha irmã mais nova que estava uma mulher. A felicidade é tal que salto de uns para os outros. Ainda tenho tempo para os apresentar a alguns camaradas.

Dali é direito ao RALIS. Temos que entregar os fardamentos. Os nossos trastes eram cuidadosamente inspeccionados e eu ainda estava a ver que tinha que ir à Feira da Ladra, comprar algumas peças de fardamento que me faltavam. O assunto foi resolvido com cinco escudos dados ao 1.º sargento (também eram muito bons nisto). Os sacos desapareceram como por magia e o meu número mecanográfico riscado da lista.

A 4L verde escuro, só de três velocidades, é a mesma que 27 meses me tinha levado a Abrantes, naquela triste madrugada.

Vou ao lado do meu pai. Já não sou um civil fardado, mas por impossível que pareça, não estou confortável na minha nova roupa. Os meus olhos enchem-se de paisagem verde e fresca. Quem entra em Alcobaça, vindo de Lisboa pela n.º 1, passa a Benedita, Évora e a partir de Capuchos, têm uma vista panorâmica sobre a vila, (hoje cidade) onde sobressai o Mosteiro com a sua imponência.

Alcobaça está praticamente na mesma. Os sons e cheiros, vejo de passagem algumas pessoas que conheço. Mais tarde vou cumprimentar o resto dos familiares e pessoas amigas.

Nessa noite, vou ter dificuldade em adormecer e quando acordar, não saberei bem onde estou.

Na esplanada do café Trindade, local de encontro dos jovens, recebo a primeira certeza. Já não tinha ali amigos, mas sim conhecidos, os meus amigos, tinha-me despedido deles à saída do Niassa. Ainda hoje os mantenho.
- Olha o Juvenal já cá está. Não nos vais contar estórias da Guiné pois não?

Em resultado do meu silêncio ainda acrescentou:
- Ainda bem, estava a ver que tinha que gramar com mais um herói.

Quem falava assim, nem militar tinha sido ainda. O trabalho de desinformação tinha sido competente. Aquele jovem que não sabia o que era andar debaixo de calor atroz, que quando tinha sede abria a torneira e bebia, não tinha que afastar merda de macaco e beber através de um lenço, o paludismo era-lhe vagamente familiar, que não tinha sofrido ataques nem tinham morrido camaradas ao pé dele, dava-se ao luxo de duvidar da veracidade dos meus testemunhos.
Era mais um candidato a ir bater com os costados em África e estava completamente convencido que aquilo eram só tangas. Este episódio fez-me calar muitos anos. (Ainda hoje não vou a festas onde se lancem foguetes).

Tinha um mês de férias para gozar. A seguir o meu lugar na Fábrica de Vidros Crisal de Alcobaça esperava por mim. A pouco e pouco a vida foi retomando o seu caminho.

O meu irmão mais novo seria o próximo.

... e o sonho tornou-se realidade

Eram talvez sete horas da manhã e sou acordado pela minha mãe que tinha ido ao pão:
- Filho, há uma revolução em Lisboa, a rádio está transmitir apelos à calma e só dá música Militar.

O meu pai no corredor dava pulos de contentamento. Era o 25 de Abril. Depois do Adeus... Grândola Vila Morena.

Muito honra Alcobaça, ter tido pelo o menos três jovens soldados na coluna do Salgueiro Maia. Já no 16 de Março vários jovens desta bela cidade estiveram envolvidos no levantamento.

A partir daí foi a festa de uma vida.

Uma flor em cada arma. Fim da guerra já. Nem mais um soldado para as colónias.

Quem nada tinha, tudo passou a querer. Assistiu-se ao aparecimento de democratas de longa data por todos os lados. Os mais interessantes eram os da União Nacional. Diziam que tinha sido obrigados, muitos deles a denunciar os vizinhos, colegas de trabalho etc. Fraquezas que nós percebemos.

Formam-se partidos por todo o lado e de todas as formas. Há alguns que têm tantas siglas, como tem o nosso NIB bancário hoje. Aliás as siglas passam a fazer parte do nosso dia a dia, RGE (reunião geral de estudantes), RGT (reunião geral de trabalhadores), MRPP-PCPTML, OCMLDP, MDP-CDE, PCP, LCI, LUAR, PS, PPD, CDS, os Estanilistas, Maoistas e os da 4.ª Internacional, etc. Havia para todos os gostos e ocasiões, mas nenhum se assumia de direita, não fosse ser conotado com o anterior regime. Peço desculpa aos que não são mencionados e são muitos.

As rádios transmitiam os cantores, poetas e músicas que antes só ouvíamos às escondidas, muitas delas em estações de rádio clandestinas. Todos sentiam obrigação de se envolverem. Os plenários sucediam-se uns aos outros, marchas onde o Povo estava sempre ao lado do MFA.

Talvez pela primeira vez na minha vida de adulto, tive verdadeiro orgulho naquela farda que também eu tinha envergado quase 3 anos. Os novos heróis eram humildes capitães, (os generais apareceram depois). Todos formados nas agruras da guerra colonial. Na maioria ganharam a ânsia de liberdade nos duros combates nas matas da Guiné, onde os soldados portugueses se bateram com bravura.

Dois Povos a Mesma Luta. A nossa Bandeira já não era a da opressão, mas da festa e da liberdade.

A famosa aliança POVO-MFA. A libertação dos prisioneiros políticos. O regresso dos exilados.

Importou-se palavras de ordem do Chile de Salvador Allende e Victor Jara, O Povo Unido Jamais será Vencido.

O antigamente espreitava, mascarado de democrata. A Espanha Franquista arreganhava os dentes para a nossa democracia emergente. Cá dentro tinha os seus apoiantes. Que mau exemplo que nós éramos

O 28 de Setembro 1974, Maioria silenciosa

Nas primeiras eleições fui delegado de um partido à secção de voto numa aldeia chamada Vimeiro. Lá ia levando uma carga de pancada por ter denunciado que os indivíduos da mesa de voto estavam a favorecer uns certos partidos. Para além disso as pessoas levavam folhetos com os emblemas, em quem tinham sido instruídas para votar. Começava bem a democracia.

Nas eleições seguintes aconteceu-me o mesmo em Turquel, onde era mais uma vez delegado. Fugi deitado no fundo de um carro. Companheiros que estavam noutras secções de voto foram barbaramente espancados.

O 11 de Março 1975, as nacionalizações, Reforma Agrária e o Verão Quente ... Os governos sucediam-se, o espectro do sangrento golpe fascista no Chile em 11 de Setembro de 1973 pesava sobre a nossa nova democracia.

Também eu fui candidato, delegado sindical e membro de comissão de trabalhadores. Vivi 48 horas em cada 24, tal era a rapidez em que tudo mudava.

O 25 de Novembro de 1975. Disseram, que foi para pôr Portugal novamente nos carris. Como se vê não conseguiram, a não ser para alguns. A cauda da Europa continua a ser a nossa posição, ultrapassados que fomos até pelos países de Leste da finada URSS.

Primeiros lugares talvez em Festivais de Verão, custo de vida sempre a subir, desemprego, desaparecimento da classe média, etc.

A Festa durou até às tantas e foi bonita a festa pá.

Juvenal Amado
06.08.008

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3139: Estórias do Jorge Fontinha (1): O meu batismo de fogo e da CCAÇ 2791 (Jorge Fontinha)

1. Mensagem do dia 16 de Agosto de 2008, do nosso novo camarada Jorge Fontinha*, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72).

Conforme prometido, venho com a minha primeira contribuição, para o Blogue.
E como não poderia deixar de ser, vamos começar com o Baptismo de Fogo.

Junto o texto com duas fotografias tiradas antes e no decurso da Operação, a última já durante a manhã, no regresso.

Um grande abraço para a Tertúlia,
do Camarada:
Jorge Fontinha
CCAÇ 2791

2. O meu batismo de fogo e da CCAÇ 2791
Por Jorge Fontinha

O Capitão Comandante da CCAÇ chama-me ao seu gabinete:

- Meu caro, sabe que chegou hoje o Oficial que comandará o seu Pelotão. Como porém, esta noite teremos que sair para o mato e o nosso Alferes não conhece o pessoal e dando-se ainda a circunstância de você ser o Furriel mais antigo do Pelotão, encarrego-o de o conduzir, sem contudo se fazer notar, uma vez que o senhor oficial também vai. A missão é arriscada e o pessoal terá de ser conduzido com serenidade e pulso. Vamos para o Choquemone e partimos às 2 da manhã. A missão consta de...


Foto 1 > De saída para a Operação

Duas horas da manhã de 17 de Novembro de 1970. A noite é suave e corre uma agradável brisa. O luar, na parada do quartel de Bula, faz com que as sombras do pessoal nos dêem a impressão de fantasmas movediços.

A Companhia está formada e o Alferes Miliciano, Comandante interino da Companhia de Cavalaria que iria ser rendida pela nossa, depois de a ter apresentado ao Senhor Capitão, da Companhia que iria fazer a sua 1.ª operação militar no terreno, e que por motivos de saúde não pôde ir comandá-la, mandou-a avançar em bicha. Vão saindo os pelotões: em 1.º lugar o Segundo, comandado pelo respectivo Alferes; em 2.º o Primeiro, seguindo-se um grupo de Milícias Africanos no qual vai integrado uma Secção do Batalhão que viemos render e na qual se integra o Alferes Comandante da Operação. Depois segue o nosso 3.º pelotão e, por último, o 4.º no qual eu me integro, como Furriel Miliciano.

A coluna perde-se ao longo do alto capim, que devido ao cacimbo está molhado e nos encharca a todos. O pessoal vai atento e bem disposto, embora cuidadoso e bem consciente do perigo.

A minha Secção vai completa: na 1.ª equipa, o Celestino, o Azevedo e o Monteiro olham de vez em quando para trás na esperança de ver um sinal meu. Os restantes, que estão atrás de mim, o Romão, o Cavaco, o Matos, o Pinto e o Nunes seguem-me como uma sombra a uma considerável distância. Verifico com agrado que todos vão compenetrados do seu papel. Só um problema me atormentava: antes de partirmos, o Nunes havia-me pedido que o desenfiasse porque pressentia que lhe ia acontecer qualquer coisa. Fiz-lhe ver que isso não passava duma mania e agora seguia satisfeito. No meu lugar (o 5.º na progressão em relação ao GCOMB) ia pensando em tudo isso ao mesmo tempo que não desviava os olhos do denso capim que se via em redor.

Foto 2 > No decurso da Operação

Seriam umas 3 e meia da madrugada e eu seguia embebido nos meus pensamentos, um pouco distantes dali, talvez na Metrópole, talvez em Angola, (outros temas de Guerra…), pensando em muitas coisas. De súbito ouve-se um estrondo e uma chuva de estilhaços cai em redor dos que iam naquela zona. Depois silêncio total. Ao ouvir o estrondo, pensei logo que seria uma mina e, era aconselhável que ninguém se movesse sob pena de se fazer explodir mais alguma. Olhei para trás e vi todo o pessoal abrigado, à excepção de um soldado que, no caminho, gemia e se rebolava pelo chão. Corri para ele que de barriga para baixo e a mão esquerda tentado procurar na perna do mesmo lado o pé perdido, suplicava para mim:

- Meu Furriel, mate-me, acabe comigo! Meu furriel tenha dó de mim!...

Olhei para ele emocionado mas já o homem de transmissões e o enfermeiro corriam para o local. Virei as costas. Para que me não vissem chorar. Chorei, sim, de raiva, de impotência e de ódio. Senti-me incapaz de valer àquele homem, e ele era um homem da minha Companhia, um homem do meu Pelotão, um homem da minha Secção. O Nunes! E porquê ele, meu Deus? Não me tinha dito ele, antes de sairmos do quartel, que lhe iria acontecer qualquer coisa? Por que não o desenfiei eu? Tinha feito o meu dever, bem o sei, mas se não o tivesse trazido, não estaria agora naquele estado.

Não fora ataque, não fora uma mina, não fora um turra. O que seria? Como acontece bastantes vezes, apenas um acidente. O Nunes, que era o apontador da bazuca, deixou cair uma granada desta ao chão e, ao rebentar, ceifara-lhe um pé e parte da perna. Outros soldados e o Alferes Comandante, ficaram com ferimentos menos graves e tiveram de ser evacuados.

A coluna pôs-se novamente em marcha e caminhou para a conclusão da Operação que viria a culminar com grande sucesso, e na qual o nosso pessoal se bateu com galhardia. No fim, mais alguns soldados com ferimentos ligeiros.

O meu baptismo de fogo… com aquela baixa a lamentar: o Nunes que ficou sem o pé esquerdo.

Jorge Fontinha
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3129: Tabanca Grande (82): Jorge Fontinha, Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)

Guiné 63/74 - P3138: Em busca de... (35): Camaradas da 1.ª COMP/BCAÇ 4815 (Fernando Barata)

1. No dia 17 de Agosto de 2008, recebemos esta mensagem do nosso camarada Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72),

Assunto: Encontro simultâneo de todas as Companhias que passaram por Dulombi

Caro Luís

Um ex-Furriel da Companhia que nos foi render, em Dulombi, acedeu ao Blog da minha Companhia e como reside perto de Coimbra mostrou interesse em conhecer-me.

Encontro marcado para a Esplanada do Dolce Vitta e entre dois fininhos houve lugar para trocar vivências e também para me colocar um desafio ATERRADOR:

- Vamos lá organizar um Encontro simultâneo das Companhias que estiveram sediadas em Dulombi.

E é por esta razão que estou a pedir a tua ajuda no sentido conseguirmos um elo de ligação com qualquer elemento da 1.ª Companhia do BCAÇ 4815.

Pedia-te pois, que fizesses o favor de colocar um Post na Tabanca Grande de molde a conseguirmos localizar alguém da Companhia em questão a fim de tentarmos dar asas a este sonho.

Grato.
Aceita um abraço do
Fernando Barata

2. No dia 17 de Agosto foi enviada a seguinte mensagem à tertúlia

Caros Camaradas
Aqui está uma empresa verdadeiramente gigantesca.
Quem pode ajudar o nosso companheiro de tertúlia Fernando Barata?
Aqui deixo o seu apelo e o meu agradecimento pela ajuda que lhe puder ser prestada.
É fácil, é só conhecer alguém da 1.ª Companhia do BCAÇ 4815 e dizer ao Fernando Barata (fmbarata@gmail.com).

Um abraço e continuação de boas férias se for caso disso.
Carlos Vinhal

3. Agora um apelo a todos os nossos leitores. Quem conhecer alguém que tenha pertencido a 1.ª Companhia do BCAÇ 4815, faça o favor de dar notícia ao nosso camarada ou a nós (luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com).

Vai ser bonito se eles conseguirem juntar a malta toda que passou por Dulombi.

domingo, 17 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3137: Em busca de... (34): Camaradas da CAÇ 726 (Aurélia de Fátima)



1. Mensagem do dia 13 de Agosto de 2008, de uma nossa leitora de nome Aurélia de Fátima, filha de Henrique Duarte, ex-combatente da Guiné da CCAÇ 726 (1).

Olá Luis
Estou a precisar de ajuda, o meu pai é ex-combatente da Guiné e precisa de encontrar, amigos da sua Companhia.

Eu sou Aurélia de Fátima Repolho Duarte, filha de Henrique Almeida Duarte que partiu para a Guiné em 29 de Dezembro de 1964 e regressou a Portugal em 1966.

O meu pai era Atirador e pertencia à Companhia 726 de Infantaria. Saiu para a Guiné do Quartel de Évora e é residente em Casebres, concelho de Alcácer do Sal, distrito de Setúbal.

Sofre da doença de stress traumático.

Fugiu ao embarque uma vez e teve 16 dias preso na prisão de Caxias e foi libertado, depois de ter sido detectada a doença. Então partiu para a Guiné como eu já referi.

Está um pouco esquecido, mas lembra-se do Furriel Padilha que era de Vila Real, e de quatro colegas, mas não se lembra os nomes deles, apenas se lembra onde viviam. Eram dois colegas de Vendas Novas, um de Pias e um de Castro Verde.

Aguardo resposta se possível, e desde já muito obrigada pela atenção.
Sem mais assunto de momento, me despeço com ansiedade, aguardando uma resposta. Muito obrigada.

Até breve. Cumprimentos.
Aurélia Duarte

2. Em 14 de agosto de 2008 foi enviada esta resposta

Cara senhora
Obrigado pelo seu contacto.
Por motivos de férias, estou a responder em nome do nosso editor Luís Graça.

No nosso Blogue há algumas publicaçôes sobre a CCAÇ 726 a que pertenceu o seu pai.
Se quiser aceder a estas postagens, basta escrever na janela superior esquerda da nossa página (Pesquisar no Blogue) ccaç 726 e fazer enter.

Se o seu pai não está a tratar o grave problema do stress pós-traumático de guerra, de que sofre, pode fazer uma abordagem junto da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, em Lisboa, para pedir ajuda. Se quiser, para primeiro passo, envio-lhe o endereço do nosso camarada Luís Nabais, a fim de obter informações de a quem se deve dirigir junto daquela associação.

Com respeito a contactos com camaradas da CCAÇ 726, envio-lhe dois que para começo podem ser muito importantes. São eles:

Estevão Lopes e Tavares (*)

Estes contactos foram obtidos na página do nosso camarada Jorge Santos em http://www.guerracolonial.home.sapo.pt/

Se precisar de mais esclarecimentos, disponha.

Enregue ao seu pai um abraço de toda a tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Com os nossos cumprimentos
Pelos editores do Blogue
Carlos Vinhal

(*) - Números de telefones não apresentados na edição, mas que serão fornecidos a quem os solicitar.
________________

Nota de CV:

(1) - Sobre a CCAÇ 726 ver postes de:

17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2360: A CCAÇ 726, a primeira Companhia a ocupar Guileje (2): 10 mortos e mais de metade do pessoal ferido em combate (Virgínio Briote)

14 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3060: Convívios (74): CCAÇ 726 (Guileje, 1964/66), em 24 de Maio de 2008, Arados, Benavente (Nuno Rubim)

22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3082: Convívios (76): Ainda o 18º encontro dos bravos da CCAÇ 726 (Nuno Rubim)

Guiné 63/74 - P3136: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (15): À noite...

Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69), de 3 de Agosto de 2008, dirigida a Luís Graça

Caro Camarada
Tenho a informática avariada ou em férias. Mas vai um escrito. Se receberes diz-me por favor. Texto simples, de noite de ontem que se mantém hoje em abandono de sono. Vidas.
Roubo-te tempo e disso me penitencio.
Perdi todos os endereços que estavam no outlook. Sobram poucos no gmail.
O informático formatou e apagou... é obra... DIZ-ME ENTÃO.

Um abraço do
Torcato Mendonça

PENSAR EM VOZ ALTA – H (*)
Por Torcato Mendonça

1 - À noite, quando o silêncio melhor se instala, para não nos sentirmos tão sós, pomos a tocar, em fundo, música suave e, a partir daí instalamo-nos, pensamos, lemos, escrevemos ou, simplesmente, vamos trilhando caminhos num doce embalar, sonhando ou pensando – num por vezes; pensar em voz alta – permanecendo mais, ali ou além, num ou noutro ponto, esquecendo o tempo, o avançar da noite.

Aconteceu hoje, sentindo assim mais o que acabamos de ler. Tínhamo-lo feito no ecrã, ao correr do cursor. Preferimos imprimir e ler atentamente no papel. Já não se usa dizes-me tu Camarada. Talvez tenhas certa razão. Mas texto de importância, escritos que envias para quem gostas ou recebes, diz-me se não preferes o papel. Claro que sim.

Por isso li pausadamente, apreendendo e aprendendo, confirmando e questionando-me, anotando e, já numa das notas finais deste texto de vida dizem-me que: um Homem nasceu numa ilha de poetas, de flores e de mulheres bonitas. Diz-me tu se a beleza desta trilogia não te levava a querer ter nascido e a viver em semelhante lugar? Não sentes o peso forte e indissociável desta trilogia? Sentes. Eu sabia que sim. Olha eu parei e pelo silêncio da noite, pela suavidade da música, pelo teor tão diverso do texto anteriormente lido, ou, talvez, isso sim pelo somatório de tudo e porque sou assim, sonhei acordado, viajando não sei para onde, viajei e, mesmo neste primeiro dia de Agosto, quase que senti o frio de Inverno, o silêncio da neve ao cair, o caminhar na noite braço com braço, com uma mulher e sentia, ao andar, o calor dela vindo, atravessando pele de casacos, a voz, a voz dela a entrar doce neste caos de ideias, de sonhos, ia, íamos caminhando, contando confidências, alheios a tudo rumo ao desconhecido. Sim porque era um sonho de pessoas e lugares. Um sonho só de alguns. Só que a realidade é outra, quer a do texto lido quer o voltar lá sempre. Hoje, nesta data sofri, há muitos anos atrás, um ataque em Cansamba. Estava a trabalhar para a 2405 de Galomaro e para o COP7. Parou o sonho e veio, como sempre à memória. Não queria falar de guerra, nem pensar nessa brutalidade agora. Mas vem sempre, por ler textos assim, por pertencer ainda, em parte, a esse passado, àquela terra, as suas gentes e sinto e gosto mesmo sabendo não terem ainda direito a serem felizes.

Dizes-me: - Mas que sabes tu daquele terra se nela só fizeste guerra?

Certo. Estás certo. Mas talvez por isso a sinta, os sinta mais fortemente. Talvez por isso, tudo com eles relacionado é, em intensidade, por mim vivido. Que queres Camarada?! Sou assim.

- Assim como? Bem, que queres que te responda? Que queres que te diga? Foi há tanto tempo o meu regresso, foi tanto o deambular perdido ou convencido por tanto lado. Mas aquele tempo, aquela guerra é que para mim conta. É como uma segunda terra, como uma gente que sinto de forma diferente. Sabes, sei que sabes, mas repito-me: tenho dificuldade de ser de algum lugar. Dizia-te: depois de regressar ia tendo conhecimento do que se passava, ia sentindo, ia apertando os dentes, anotando mas, incompreensivelmente, anotando e guardando no fundo da memória. Era tempo de outras vidas, de outras vivências e prioridades. Por isso quis ler atentamente aquele belo escrito de vida ou vidas. Sentimos algo misto de carinho e fraternidade. Sentimos também, por fraqueza nossa, certa revolta. Muito nós sabíamos. Não sentimos ódios pois não entram na nossa vida, no modo como a atravessamos. Sentimos, isso sim, revolta connosco, com outros, poucos por nem isso talvez mereçam. São pequenas peças de um sistema abjecto da vida real. Sim Camarada lá existe mas diz-me só lá? Calas-te. Certo. Não só e muitos sistemas bem piores até são tolerados e aplaudidos.

És português como eu e por isso respondes: que havemos de fazer? Paciência, é a vida!

2 - Não te quero roubar mais tempo, menos ainda inquietar em tempo de agostos, mês de paragem de trabalho em países de primeiro mundo, como é o nosso. Só que li uma notícia a invalidar talvez sermos do primeiro mundo. Cortamos na pensão anual dos antigos combatentes e poupamos milhões. Ou seja, passa-se a pensão de 150, para 100, ou 75 Euros, em corte a 290 mil e poupa-se 13 milhões. É obra. Não ficam, alguns, tão à vontade no pagamento da factura da farmácia ou em beberem mais um copo para terem melhor sono… mas poupa-se. Os tipos já estão a ir… calma camarada não apertes os dentes. Não pedimos nada mas exigimos respeito. Começa a aborrecer Camarada, começa a aborrecer. Que dirão certos homens de muitas estrelas e galões desta poupança de tostões? Ajuda alguma missão de auxílio a povo aflito, ou à prestação de um pandur, ou lá o que é, ou F16, submarino ou eteceteras… mas... olha não te chateies Camarada… vai-se resolver pois cada vez somos menos…

3 – Estás a pensar que estou a ficar desequilibrado ou a não ter paciência por não calar. Nada disso. Não te preocupes. Agradeço a tua preocupação pela minha sanidade mental.

Digo-te que ainda hoje tenho orgulho de ter pertencido ao Exército do meu País.

Agradou-me ouvir um Militar, a sério, dizer que pertencia a seu Exército ou pensar como eu que: - Em cada dia que passa e nada de novo aprendemos é um dia perdido.

Hoje apreendi e aprendi muito com aquele texto de um Homem e uma Mulher que me deram uma lição de vida. Espero que amanhã ou nos dias seguintes não sejam dias perdidos…

Não te aborreço mais.

Deixa-me voltar a sonhar com a neve a cair e sentir o calor e afecto de quem ao meu lado caminha…lentamente vai o sonho e entra, de mansinho, o sono…
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Nota de CV

(*) - Vd. último poste da série de 21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3080: Blogoterapia (58): Pensar em voz alta... Que vidas, que merda! (Torcato Mendonça)

sábado, 16 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3135: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (11): Partida de Có para Mansabá


1. Mensagem de 5 de Agosto de 2008 do nosso camarada Raul Albino, ex-Alf Mil, CCAÇ 2402/BCAÇ 2851 (, Mansabá e Olossato, 1968/70).

Caros amigos editores,
Faz cerca de um ano que vos enviei o último texto das memórias da CCaç 2402. Lembro-me bem porque os últimos relatos foram enviados no período morto das férias, um optimo periodo para voltar ao vosso convívio.

Se ainda estiverem recordados, informei-os que a razão desta ausência se relacionava com o esforço que estava a desenvolver para concluir o Volume II destas memórias, que neste momento já está editado. Não se trata de um volume de continuação de memórias como o do nosso amigo comum Beja Santos, mas sim o permitir registar em livro as memórias e opiniões de outros protagonistas da Companhia, entre elas as do nosso comandante Vargas Cardoso (Coronel na reforma) e do nosso vagomestre João Bonifácio (Ex-Fur Mil e pertencente ao nosso blogue), além de muitos outros. O meu contributo como narrador neste volume foi diminuto para dar a oportunidade a outros de se exprimirem. Na verdade, se eles tivessem participado a tempo e horas, o livro seria só um e não dois volumes. Tenho contribuido para o blogue com alguns excertos dos acontecimentos principais, mas os livros foram concebidos unicamente para os militares desta Companhia e seus familiares e é dessa maneira que os textos devem ser encarados em toda a sua organização e estrutura. Se eu tivesse de definir a obra, diria que se trata duma espécie de blogue/livro de sentido único onde todos puderam participar com os seus próprios pontos de vista. Sem a preciosa ferramenta informática que é a internete e a sua insubstituível interactividade, podem imaginar a carga de trabalho em que me meti, do qual não estou arrependido e muito prazer me proporcionou. Mas, convenhamos, é como tentar fazer uma omoleta sem ovos...

O último texto que enviei no ano passado foi também o útimo seleccionado da permanência da CCaç 2402 em Có. Hoje envio anexo um pequeno texto com fotos da nossa deslocação para Mansabá. Este foi um período curto em relação aos outros locais de permanência, mas bastante intenso em termos de acontecimentos militares.

Um abraço a todos e um pedido de desculpas por esta indesculpável ausência.
Raul Albino

2. Partida de Có para Mansabá
Por Raul Albino

A 19 de Março de 1969, a CCaç 2402 (-) a dois GCOMB (1.º e 4.º), iniciou o deslocamento para Mansabá, ficando em Có os restantes dois GCOMB (2.º e 3.º) a acompanhar a CCaç 2312 que assumiu o comando deste sub-sector, em termos de reforço operacional até à sua plena integração.

A 1 de Abril de 1969, os 2.º e 3.º GCOMB chegaram a Mansabá para se juntarem à restante Companhia.

As fotografias que se seguem, referem-se à deslocação para Mansabá da primeira metade da Companhia.


Foto 1 > Partida das viaturas de Có para Mansabá

Foto 2 > Passagem da coluna por João Landim

Foto 3 > Passagem da coluna por Safim-Mansoa

Fotos e legendas: © Raul Albino (2008). Direitos reservados.


3. Comentário de CV

Caro Raúl Albino
Já estávamos com saudades de receber os episódios da História da CCAÇ 2402. Ainda bem que voltas a ter disponibilidade para colaborar no Blogue.

Como julgo que sabes, Mansabá toca-me de muito perto, pois permaneci ali com a minha Companhia 22 meses.
Fomos render a CCAÇ 2403 em Fevereiro de 1970 e fomos rendidos pela CCAÇ 2753, do camarada Vitor Junqueira, em Fevereiro de 1972.

Fico à espera dos teus relatos e fotos referentes a Mansabá, embora julgue que a tua Companhia permanecesse lá pouco tempo.

Um abraço
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2085: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (10): Enfermeiro em apuros

Guiné 63/74 - P3134: Blogoterapia (60): Memórias da CCAÇ 555, Cabedu, 1963/65 (Norberto Costa)

1. Mensagem, com data de ontem, do Norberto Gomes da Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 555, Cabedu (1963/65) (*):


Meu caro Carlos Vinhal,

Começo por te cumprimentar pessoalmente, já que é a primeira vez que a ti me dirijo. Ao mesmo tempo que te agradeço a disponibilidade e o modo como lidaste com o meu texto, bastante extenso, dividindo-o em três partes (**), dando-lhe títulos sujestivos e muito a propósito, revelando, da tua parte, talento na edição de textos. Foi um excelente trabalho da equipa editorial, que, neste momento, parece ser da tua responsabilidade.

Aproveito ainda a oportunidade para agradecer a todos que se me dirigiram, comentando, de algum modo, o que foi escrito sobre Cabedú dos anos 1963, 64 e 65, em particular ao meu amigo Mendes Gomes, colega de Empresa e parceiro de trabalho durante alguns anos e que já não vejo há uns tempos (***).

Um abraço
para ele que é extensivo a todos os animadores do blogue.
Saudações,
Norberto Gomes da Costa

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Notas de L.G.(ainda em férias):

(*) 16 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3063: Notícias da CCAÇ 555 (Cabedu, Out 1963/ Out 1965) (Norberto Gomes da Costa)

(**) Vd. postes de:

11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)

12 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)

13 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3131: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - III Parte: Cabedú... até ao nosso regresso (Norberto Costa)

(***) Comentário de Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes:

Ó seu pirata Gomes da Costa! Foste um óptimo programador da CGD em Lisboa. Trabalhei contigo, lado a lado, durante anos. E foste meu antecessor na guerra do Como. E nunca disseste nada!...Agora apareces-me aqui com a toga de Historiador!...Fico à espera de mais...

Recebe um grande abraço
Joaquim Mendes Gomes ( o Gómes...como tu dizias)


Recorde-se que o nosso amigo e camarada Joaquim Mendes Gomes foi Alf Mil CCAÇ 728. Sobre a história desta unidade, vd. os seguintes posts:

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3133: Notas de leitura (11): A Guiné do século XVII ao século XIX (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado em 4 de Agosto de 2008

Carlos,
Aqui vai a capa e um curto comentário, o texto segue em separado, parece que és tu quem está no piquete.
Aproveito para te dizer que conto contigo em 11 de Novembro, no lançamento do segundo livro do meu diário da Guiné.

Um abraço do
Mário


A Guiné do século XVII ao século XIX: O testemunho dos manuscritos, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vasquez Rocha, Prefácio, 2004. Trata-se de uma importante colectânea de ensaios sobre a História da Guiné, com a consulta de importantes manuscritos. Torna-se mais fácil perceber onde e porquê falhou a nossa aculturação/colonização, depois desta leitura. (BS)


A GUINÉ DOS GRUMETES, DOS ESCRAVOS E DOS PRESÍDIOS

Por Beja Santos

Ninguém ignora que se publica muito pouco sobre a História da Guiné, quer em Portugal quer em Bissau. Pela pouco importância que teve no período colonial, sobretudo até à pacificação de 1936, os relatos existentes, sempre invocados da a exiguidade de testemunhos, tem a ver com clássicos do tipo “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde”, de André Álvares de Almada, “Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné”, de Senna Barcellos, mas também relatórios de governadores, relatórios de comandantes de campanha, notas oficiais, etc. Em 1938, um facultativo, João Barreto, publica a “História da Guiné, 1418-1918”, que até à “A Guiné Portuguesa” de Avelino Teixeira da Mota, de 1954, foi a única obra de conjunto disponível para o público não iniciado. Deve-se igualmente a Teixeira da Mota, nos anos 40, o grande impulso para os estudos históricos com base científica, com a criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, era aqui que se publicava o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, obra incontornável para o conhecimento da Guiné nas suas múltiplas vertentes. Nos anos 80, René Pélissier escreve “História da Guiné – Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936”, a única obra que podemos agora adquirir (Editorial Estampa, 1989).

Felizmente que as melhores bibliotecas proporcionam acesso a alguns dos títulos indispensáveis, afortunadamente que a investigação contínua, lá e cá, e por isso se saúda “A Guiné, do século XVII ao século XIX, O testemunho dos manuscritos”, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vázquez Rocha (Prefácio, 2004). Os autores optaram por analisar as seguintes áreas de investigação: os grandes impérios subsaharianos que precederam a chegada dos portugueses no século XV; a Guiné vista por escritores no período em apreço e também à luz de muitos manuscritos compulsados no Arquivo Histórico Ultramarino; a problemática da crença religiosa e a tensão entre o Islão, as crenças tradicionais e o cristianismo; por último, os problemas da missionação na Guiné, antes e depois do liberalismo.

Qual o significado para estudar o período anterior à nossa chegada à Guiné? A presença portuguesa na região foi sempre muito diluída, sujeita à pressão de outras potências coloniais, por isso optou-se por uma fixação em duas feitorias-praças (Cachéu e Bissau) e depois presídios (caso de Fá), ao sabor dos meios financeiros e militares. A aculturação fez-se graças ao “grumete”, o negro periférico das praças e presídios, em muitas casos de apelido português. Fazia-se comércio na ampla Senegâmbia, mas no território que virá a ser hoje a Guiné-Bissau o colonizador encontrou resistências quer dos mandingas quer de outras etnias que se revelaram hostis à progressão do colonizador no território, isto sem falar no clima devastador. O quadro e o papel desempenhado por estes impérios subsaharianos é de grande utilidade para compreender como é que eles actuaram como contra-poder e qual foi a interlocução possível com o colonizador e como este aproveitou as frestas possíveis para aprofundar mais as cisões interétnicas.

De igual modo, é incompreensível a história da Guiné sem conhecer o mosaico humano que os portugueses encontraram, ouvir os testemunhos do viajante ou do cronista, perceber como é que se estabeleceram zonas de influência, como é que as lideranças nativas reconheciam, duradoira ou episodicamente o poder político dos portugueses, fazendo ouvir ao mesmo tempo os interesses económicos e a ligação de interesses entre o arquipélago de Cabo Verde e esta região. Convém observar que a fixação dos portugueses só passou a ser uma realidade nos finais do século XVII, sobretudo numa tentativa de salvaguardar os interesses nacionais face às intenções dos franceses. Os autores habilitam o leitor com a evolução do poder político e económico, citando documentos de incontestável importância como cartas de capitães-mores que dão conta da debilidade militar para suster a hostilidade das populações locais ou o importante significado das incursões de franceses, ingleses e espanhóis.

A questão religiosa é de análise indispensável para se perceber o grau de islamização estruturante e a incapacidade de aprofundar a cristianização, que teve sempre uma acção pouco ou nada eficaz, o que é surpreendente se se pensar no sucesso de Cabo Verde. Os autores descrevem as queixas sobre a presença missionária, os litígios nas praças da Guiné à volta da cristianização dos escravos, facto que não agradava aos contratadores. O acervo de manuscritos citados é de primordial importância para se perceber a natureza dos obstáculos postos é missionação, mesmos nos períodos áureos da acção missionária e o relativo sucesso da islamização que soube acolher e aculturar as sociedades negras tradicionais.

A Igreja no século XIX é também uma Igreja que falhou neste ponto de África e por diferentes razões: o período posterior à Guerra da Restauração (1640-1668) foi desgastante pelos conflitos dentro da própria Igreja e a partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas, assiste-se ao culminar da decadência já perceptível ao longo de todo o século XVIII; o despotismo esclarecido introduz um novo enfraquecimento com tensões permanentes dentro do poder político e a perseguição ao Clero, sendo a Companhia de Jesus o seu principal alvo. De novo os autores citam inúmera documentação que dão conta desta realidade, seja na Guiné de Cabo Verde seja no Distrito Autónomo da Guiné. Também aqui é incontornável a figura de Honório Pereira Barreto, procurando contrariar as sistemáticas tentativas de usurpação dos nossos territórios por estrangeiros, em particular pelos franceses, num tempo em que se desfez a autoridade e a presença cristã é praticamente nula. Como escrevem os autores nas conclusões: “A implantação do liberalismo, para além da grande instabilidade interna, provocou na relação Metrópole/Ultramar e, logo, na Guiné, todo um processo de vaivém de medidas, sobretudo quanto ao Clero e á própria Igreja, com as lógicas consequências da catolicidade no território”. A seguir, África irá ser sujeita a uma grande pressão internacional, acelera-se a ocupação, terminará o confinamento do colonizador às feitorias e presídios. Irá começar a época imperial até 1936, as lutas sangrentas pela ocupação do território, obrigando todos à obediência à bandeira portuguesa.

É neste sentido que esta obra se revela esclarecedora sobre as diferentes debilidades da colonização portuguesa na Guiné.
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Nota de CV:

(1) - Vd. último poste da série de 14 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)

1. Mensagem do Beja Santos, com data de 8 do corrente:

Carlos e Virgínio,
Fui aos saldos de livros e discos e encontrei duas obras de camaradas da Guiné. O primeiro relato segue agora, tenho a seguir que ler a história do tenente Lobato, um piloto da Força Aérea, capturado no Tombali, em 1965, resgatado na operação Mar Verde. Parece-me um relato pungente, nada sabia sobre este sofredor. A imagem de “A Minha Jornada em África” segue em email separado. Um abraço do Mário


A Minha Jornada em África
António Reis

Editora Ausência

FUI ENFERMEIRO NO HM 241

Por Beja Santos

António Ramalho da Silva Reis, nascido em Avintes, em 1944, embarcou em Março de 1966 no “Rita Maria” e foi colocado no HM 241. A sua experiência ao longo de dois anos na Guiné constitui o relato comovente “A Minha Jornada em África” (por António Reis, Editora Ausência, 1999).

Relato na primeira pessoa do singular, toca-nos pela simplicidade e ausência de pretensões:

“Vi talvez centenas de moços da minha idade morrerem ou chegarem mortos. Vi milhares de feridos entrarem por aquele hospital dentro. A tudo isto assisti, pois passei a minha comissão dividido entre o Posto de Socorros, a sala de observações e a Cirurgia 1, onde ficavam os casos mais graves. Os outros, de menos gravidade, eram distribuídos por outras enfermarias”.

Assentou praça no RI 7, em Leiria, confessa que procurou todos os pretextos para se safar, ser mobilizado para a guerra, já que tinha um braço arqueado, mas ninguém se apiedou:

“Filho de pobre só não ia para a tropa o cego, o coxo ou o maneta. Filho de rico ainda se safavam alguns, arranjando falsos exames médicos onde apareciam com cavernas nos pulmões ou úlceras no estômago”.

Embarcou num barco de carga, carga bruta e carga humana, a Ritinha “desencostou ao som da grafonola que tocava o hino nacional”. O António Reis fala das suas motivações para aquela guerra:

“Não sentia que ia defender nada que fosse meu. Nada me tinha motivado, ao longo dos meus vinte anos, para arriscar a vida. Para quem foi habituado a comer a sopa dos pobres na escola, para quem sempre teve, até aos doze anos, a sola dos pés como calçado, para quem foi posto a trabalhar com apenas doze anos de idade, após ter terminado a quarta classe, e tendo de percorrer vinte e quatro quilómetros sempre com as soletas enfiadas na cintura para que pudesse caminhar mais depressa e calçando-as, só após ter atravessado a ponte, para que a polícia não me multasse por andar descalço. A pé e sempre a pé porque eu ganhava de segunda a sábado, a moço de chapeiro na Avenida Camilo, apenas cinco escudos por dia e o transporte era seis escudos e sessenta centavos. Por quem tudo isto e muito mais tinha passado, como correr os quatro cantos de uma gaveta à procura de uma côdea e nada encontrar, nada devia à sociedade. A sociedade é que já me devia a mim”.

Desembarca em Bissau, assustou-se com os primeiros feridos que viu chegar ao hospital, foi com o 27 (condutor do carro fúnebre) levar umas urnas à capela de Bissau:

“Estes mortos não eram uns mortos quaisquer, eram moços com vinte anos, com direito à vida e não me canso de o repetir porque há coisas que devem ser ditas muitas vezes”.

Descreve a chegada dos feridos ao HM 241, o helicóptero a aterrar e a abordagem de um piquete constituído por quatro soldados e um cabo. Ao princípio o António ainda lhes perguntava o que é que tinha acontecido, depois limitava-se a fazer o seu trabalho. Havia dias especiais como o 5 de Outubro de 1967 em que chegaram quarenta corpos, todos a cheirar a carne humana queimada, todos transformados em múmias, quem estava vivo foi transferido para Lisboa. E confessa:

“Era duro trabalhar naquela enfermaria. Ainda recordo o cabo Silvino ter-me dito que tinha de arranjar formar de fugir daquela enfermaria se não morria ou ficava louco, mas muito mais duro era ficar destacado no mato e aparecer lá num estado como chegaram aqueles e outros desgraçados”.

Há sofrimento inesquecível: o ferido que parecia nada haver a fazer para o salvar e que irá recuperar, tratado com desvelo por aquela malta toda; o camarada que esteve com ele na recruta em Leiria e que chegou num estado lastimável a perder todo o sangue das transfusões pelos orifícios que tinha nos pulmões. Depois a camaradagem, levara soldados à mortuária para os convencer que o camarada de pelotão não estava entre os mortos. E a rotina, sempre a rotina que nada tinha a ver com o sofrimento e as situações excepcionais vividas no HM 241:

“As refeições para os internados eram pedidas de um dia para o outro às 11 horas da manhã. De modo quem desse entrada após essa hora, só teria comida dois dias depois. Entretanto tinham sumos e leite, mas muito estavam ansiosos por uma refeição de quente porque fartos de ração de combate estavam eles. Pois, nenhum dos que me procuraram ficou sem uma refeição”.

As histórias que ele conta referem camaradas pícaros, bebedeiras, o tratamento de prisioneiros, a chegada da malta lá da terra internada no hospital, as recordações do Dr. Fernando Garcia, a sua referência profissional, as vicissitudes da única gorjeta que recebeu, as visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino. Há recordações dolorosas como a chegada daquele alferes que vinha paralisado que ele calçou com almofadas, friccionou com álcool e empoou com Lauroderme para que não ganhasse escaras. Prometeu visitá-lo quando viesse para Portugal, encontraram-se. Anos mais tarde, voltou a procurá-lo, o alferes não o reconheceu, talvez tivesse subido muito na vida e não quisesse ser visto com aquele homem com cara de jardineiro ou cantoneiro...

Regressou a metrópole em 1968, aqui está agora o seu relato que finda assim:

“Exteriorizei aquilo que me ia na alma, se alguém me quiser julgar que o faça, mas que esse juiz tenha vivido no mínimo aquilo que eu vivi”.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3131: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - III Parte: Cabedú... até ao nosso regresso (Norberto Costa)


Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedú
1963/65



GUERRA DA GUINÉ

MEMÓRIAS DA COMPANHIA DE CAÇADORES 555

CABEDÚ – 1963-1965

4 - Cabedú

(Continuação)

iv-Alimentação

A alimentação, embora, de algum modo, repetitiva, podia considerar-se, dadas as circunstâncias, razoável. Em situações de guerra não se espera comida de hotel, nem, tão pouco, uma confecção à base de produtos frescos, que a distância dos centros onde os havia tornava impossível. Ainda assim, consumindo, é certo, muitas conservas, tínhamos possibilidades de conseguir dietas de peixe fresco, de carne das mais variadas espécies, adquiridas aos indígenas, marisco da bolanha e até caça, como se sabe.

O peixe que era pescado junto à costa e nos canais (ou braços de mar) e rios que recortam o território guineense, e não no mar alto, não era, como é obvio, de grande qualidade, pois andava à volta da tainha (em grande parte) e, de quando em vez, de alguma corvina. Provinha de pescadores indígenas que, com as suas tarrafas (redes artesanais que em Portugal também se chamam chumbeiras) e em cima de frágeis canoas que construíam dos troncos de grandes árvores, não muito longe dos métodos usados pelo Homem do Neolítico, conseguiam grandes quantidades de pescado. Esses pescadores, a quem se comprava o produto da sua faina, eram credenciados pela Companhia.

Claro que às tantas já estávamos enjoados das conservas, mas também da tainha frita, que, é bom dizê-lo, não agradava por aí além. As restantes alternativas, por acontecerem de longe a longe, sabiam a pouco.

Foto 12 > Por um dia eram esquecidas as salsichas e as sardinhas de conserva

O modo como se faziam as compras dos animais para suprir as necessidades, que eram muitas, de carne fresca, envolve algumas curiosidades. As galinhas, que eram excelentes (penso que nunca mais comi aves daquela qualidade) e criadas ao ar livre em redor das tabancas, praticamente só iam à mesa dos graduados, que tinham, como sabem, uma messe à parte, dotada de verbas diferentes, ou seja, a importância que o Estado atribuía, por dia, para a alimentação, a uma praça, não era a mesma que cabia a um oficial ou mesmo a um sargento.

Como as galinhas eram sempre poucas, tornava-se impossível fazer-se com elas refeições para a messe geral. Mas como eram então compradas? Normalmente as populações das tabancas não queriam vendê-las, fosse por que preço fosse.

As “brigadas” de compra, chefiadas por um furriel (responsável pela messe, nesse mês), levavam consigo o famoso cão Galinheiro, que a Companhia anterior nos legou, treinado (não por nós, juro) para caçar galinhas sem as estragar. À ordem de: “agarra”, o cão investia e abocanhava a maior que descortinasse. O dono, vendo o galináceo na nossa mão, acedia imediatamente a fazer negócio, pagando nós a importância que ele exigisse. Recorrendo sucessivamente a este estratagema, voltávamos ao quartel com galinhas suficientes para o jantar de domingo.

Claro que o capitão Ritto não sabia nem sonhava como conseguíamos comer tantas vezes galinha de chabéu, pois, de contrário, acabava-se o petisco. A uma distância temporal destas, já nos podemos permitir confissões que, à altura, seriam incómodas.

Quanto aos carneiros, porcos e vacas, esses negócios eram assunto para o vagomestre, na pessoa do nosso amigo Teófilo Silveira, visto que se destinavam a ser consumidos no rancho geral. No entanto, lembro que as vacas provinham da ilha de Melo, onde viviam em liberdade, apesar de terem dono, e eram transportadas até à península de Cabedú em canoas, num trajecto considerável e arriscado.

De qualquer modo, garantia-se a compra a quem decidisse lá ir buscar um ou mais animais, independentemente de a quem pertencessem, para assim aumentarmos a manada que já tínhamos em carteira. Havia até uma pessoa encarregada de tratar dos bovinos, o nosso companheiro “vaqueiro”, de quem não recordo o nome.

E com esta diversificação conseguia-se uma alimentação, como disse, razoável e equilibrada, que não estava ao alcance da maior parte das companhias. Ainda assim, havia quem não se sentisse confortável com o que comia e, pelo contrário, os que nunca se tinham alimentado tão bem na vida.

Como a imagem abaixo testemunha, fabricava-se pão nas nossas instalações. Era um excelente produto resultante da mestria de três camaradas nossos que davam o melhor de si próprios, para que, todos os dias, o tivéssemos bem fresco às refeições.

Foto 13 > Os três padeiros em acção

Um episódio, no mínimo hilariante, aconteceu durante o almoço num dia de visita do comandante-chefe, brigadeiro Louro de Sousa, à nossa unidade em Cabedú. Estavam os soldados espalhados pela parada, com as suas marmitas entre as mãos, saboreando o repasto, que, naquele dia, constava de grão-de-bico, com não sei o quê. O brigadeiro, aproximando-se do nosso companheiro, que eu, francamente, não me recordo quem fosse, mas que tinha sempre resposta pronta para tudo, faz uma observação: “com que a então a saborear um belo dum gravanço. Está com um belíssimo aspecto”.O soldado, que não era da mesma opinião, quanto à qualidade do pitéu, não se calou: “Pois é, meu brigadeiro, é pena é o grão estar cru; está bom é para meter na G-3 e servir de balas”. Perante a risada geral, o comandante-chefe, com um sorriso amarelo, meteu a “viola no saco” e desandou. Não quer dizer que as palavras proferidas fossem, exactamente, estas, todavia, o sentido do diálogo corresponde inteiramente à verdade.

Como consta doutro capítulo, havia um grupo que ia muito à caça, que se traduzia quase sempre, dada a abundância de espécies, em belas caçadas, passe a redundância. Todavia, o entusiasmo levava-nos, por vezes, a pôr a nossa segurança em perigo, ao afastar-nos muito do perímetro considerado aceitável para um pequeno grupo (dois, três militares), se arriscar.

Recordo que um dia ultrapassei esse limite, acompanhado pelo nosso guia, Mamadú Canté, chegando até próximo da tabanca de Cacisse, onde havia uma bolanha, que quase sempre tinha gazelas a pastar. Um tiro certeiro fez tombar uma que, pelo seu elevado peso, não foi possível, a mim e ao meu acompanhante, transportá-la até à base. Assim, enquanto ele próprio foi à tabanca procurar alguém que nos auxiliasse nessa tarefa, eu esperei só, já de noite, junto do troféu. Dois habitantes de Cacisse, bem musculados, lá levaram a gazela até ao quartel, onde já tinham dado pela nossa falta e, com a noite a cair, havia até uma certa preocupação, enquanto o autor do leviano acto e o seu cúmplice respiravam de alívio. Confesso que nesse dia tive medo e jurei a mim mesmo que nunca mais cometeria semelhante loucura. Facilmente podíamos ter sido apanhados.

Fui, como não podia deixar de ter sido, censurado e bem pelo capitão Ritto, que, a partir daí, preocupado, começou a limitar-nos o campo de acção nas surtidas da caça. Por fim, quando já estava próxima a partida para Bissau, para embarcarmos, proibiu mesmo qualquer militar de sair para a caça, pois, pelo que nos disse, recebera a informação de que o IN se preparava para nos “caçar”. Episódios que acabaram bem, mas que podiam ter “dado para o torto”.

Ainda dentro da problemática da alimentação, às vezes, o azar aparente transforma-se em sorte para uns tantos. Tínhamos, como se sabe, uma boa reserva de galinhas que o Galinheiro e os seus mentores tinham criado e que estavam à espera de melhor ocasião para fazerem parte daquele chabéu, que um pequeno grupo costumava saborear ao domingo. Num dos vários ataques a que estivemos sujeitos, durante os quase dois anos em Cabedú, uma morteirada, talvez do famoso 82 mm, acertou em cheio na capoeira que ficava perto da secretaria. Resultado: todas as galinhas mortas, algumas despedaçadas. Mas, e esta é a parte agradável do acontecimento, estavam todas em condições de os cozinheiros fazerem com elas um excelente almoço para todos, ou seja, mesmo para aqueles que não estavam destinados a “meter-lhe o dente”, e que assim festejaram o tiroteio de véspera.

A hora das refeições, nomeadamente entre pessoas amigas ou conhecidas, comporta sempre um ritual que as retira do afã do dia-a-dia para as colocar num ambiente que envolve alguma serenidade, descontracção e, sobretudo, comunhão de sentimentos. Em plena guerra e nas matas da Guiné, com todas as diferenças que essas circunstâncias originavam, esse estado de espírito não era assim tão diferente. Porém, o clima de tensão que esse ambiente proporciona requer sempre, da parte de todos, uma actuação cuidadosa, em que o bom senso prevaleça, de modo a evitar conflitos ou a resolvê-los quando surgem.

Guardo um desses momentos demonstrativos da hipersensibilidade a que estávamos sujeitos: estava-se a servir o almoço ao pessoal e eis senão quando, por alguma falta de cuidado do cozinheiro que distribuía pelas marmitas a refeição ou, eventualmente, por o nosso companheiro, que não consigo identificar, ter desviado a mão que a segurava, a verdade é que parte do almoço, que, como é compreensível, estava bem quente, caiu-lhe em cheio no braço. Porque o soldado estivesse, eventualmente, num dia mau, no que respeita a esse stress, que nos afectava a todos; porque tivesse achado que o cozinheiro teria feito aquilo de propósito; enfim, por qualquer sentimento que só o protagonista poderia explicar, criou-se ali um momento de alguma violência física, que envolveu não só os dois actores principais, mas muitos outros que acorreram, tentando sanar o conflito. Uma cena de uma certa altercação, que acabou por ensombrar o ambiente de acalmia e confraternização que o almoço sempre proporcionava. Terei presenciado este episódio (não posso precisar) por estar de sargento-dia, que assistia à distribuição do rancho, ou então por ter passado por ali, aquando da eclosão deste momento um pouco mais quente.

Precisamente por ter reflectido sobre o assunto, tenho uma explicação que vai um pouco mais além das que, normalmente, nos acorrem numa situação destas. Como sempre acontece numa companhia militar composta, como se sabe, por diversas especialidades e funções, que em situações de guerra estão sujeitas a diferentes graus de perigosidade, sentia-se uma tensão latente, embora controlada, entre os que saiam constantemente para operações militares (os atiradores e os conhecidos elementos de apoio) e aqueles que raramente, ou nunca, tomavam parte nessas acções, não se expondo assim ao mesmo perigo que os primeiros (os cozinheiros, por exemplo). Sem se poder atribuir a culpa a ninguém, já que as funções correspondiam à especialidade que se tinha, mesmo assim, todos os momentos eram bons para expressar esses sentimentos. De qualquer modo, este tipo de acontecimentos, dentro da tal tensão referida, foram muito poucos e sem expressão visível.



v-Acontecimentos marcantes

Durante dois anos numa guerra de desgaste permanente, quer físico, quer psicológico, há sempre momentos que marcam para o bem ou para o mal a vida e a memória de quem os viveu.

O primeiro momento, penso eu, difícil e marcante para o grupo que o sofreu, foi o ataque ao barco em que viajávamos para Cabedú, em frente da ilha do Como, já atrás referido, até pelas consequências que teve: um nosso companheiro atingido gravemente por uma bala, que o terá incapacitado, segundo julgo saber, para o resto da vida. Também por ser, digamos, o nosso baptismo de fogo, que acaba por gerar sempre momentos de grande emoção.

Um outro momento, e não sigo uma ordem cronológica, terá sido a grande operação do Cantanhês, com fuzileiros, pára-quedistas, força aérea e marinha, durante alguns dias, com um desgaste muito grande para todos, apesar de não ter resultado em grandes danos físicos para os grupos de combate.

Provavelmente, o primeiro ataque ao quartel, quer pela novidade que constituiu, embora o esperássemos mais dia menos dia, quer como teste à nossa capacidade de reacção, que acabou por ser boa, embora fosse uma incógnita, dada a ansiedade que percorre cada ser humano, nos momentos difíceis, melhor controlada por uns do que por outros, também resultou num marco importante na nossa vida de combatentes.

Uma ou outra operação mais complicada que, a esta distância no tempo não posso precisar, entraram igualmente como referências no conjunto de memórias que guardamos. Porém, recordo uma em que até a nossa companhia não entrou, mas em que a pista de aeronaves serviu não só de base para o eventual reforço de homens e material, mas também de evacuação de mortos e feridos. Guardo o sentimento de tristeza que senti ao assistir à transferência de vários jovens mortos ou muito feridos, que iam chegando no helicóptero para a avioneta estacionada, para seguirem para Bissau. Para quem, como nós, está numa situação em que corria um perigo semelhante ao daqueles infelizes companheiros, é deveras traumatizante assistir a um espectáculo desta natureza. A operação referida ter-se-á realizado numa área junto do rio Cacine, se bem me recordo.

A queda de uma avioneta ainda no perímetro do quartel, levando a bordo um tenente do exército, um sargento e um cabo da força aérea, ao levantar voo, depois de terem recolhido mensagens de Natal para serem passadas na rádio, e que resultou na morte horrível dos três militares, carbonizados dentro da aeronave, em virtude do incêndio que deflagrou, após o seu contacto com o solo, terá sido o momento mais dramático vivido em Cabedú. Tudo isto se deu à nossa vista, poucos minutos após os três militares, que pertenciam ao sector encarregado destas acções meritórias destinadas a porem os combatentes em contacto com os seus familiares, se despedirem com grande simpatia da Companhia 555. Assistir ao dramático acidente sem poder fazer absolutamente nada por eles, marcou-nos, posso afirmá-lo, durante bastante tempo. A exumação dos cadáveres foi feita em Cabedú, onde os corpos permaneceram até serem transportados para Bissau. A guarda de honra foi feita por secções, em sistema de roulement. Até as próprias refeições dos dias seguintes, pelo menos para alguns (os mais sugestionáveis), foram fortemente afectadas. Havia sempre quem tivesse brincadeiras de mau gosto, lembrando o que eles sabiam condicionar esses tais mais sensíveis. Enfim, a juventude a tudo se permite. Eu conto isto, porque pertencia ao tal grupo que suportou, com uma paciência infinita, as “bocas” desses inveterados brincalhões.


vi-Dificuldades / Contras

África foi sempre e continua a ser um continente muito susceptível de, no seu território, se desenvolverem muito tipos de febres, provavelmente devido às características do clima, à má qualidade das águas, à possibilidade de mordedura de muitos insectos, ou mesmo à falta de higiene na confecção dos alimentos. O paludismo é uma dessas febres e aquela a que os militares mais estavam sujeitos. Porém, dada a boa cobertura de vacinações, os medicamentos disponíveis no âmbito das Forças armadas, o cuidado que se tinha em nunca beber água sem a submeter a filtros, fervura ou desinfectantes, evitou que esses problemas de saúde assolassem a Companhia. Tirando um caso ou outro, não foi um problema sério que tivéssemos de enfrentar. Mesmo assim era um risco que esteve presente, e com ele tivemos que viver durante todo o tempo da comissão.

O clima quente e húmido e um tanto ao quanto insalubre, o terreno pantanoso que nos criava obstáculos muito sérios na movimentação de tropas, (veja-se o caso de todos conhecido e que poderia ser complicado se a intervenção não fosse rápida, em que o Joaquim Rézio ficou enterrado num lamaçal, ao atravessar um rio na maré baixa e já não conseguia, por si só, sair dali, sendo então puxado por cordas e libertado da situação embaraçosa em que se encontrava), a pluviosidade abundante na época das chuvas, alagando muitas zonas por onde teríamos que passar, algumas carências alimentares (pouca diversificação e falta de produtos frescos), um inimigo aguerrido e razoavelmente bem equipado, foram dificuldades já apontadas ao longo deste trabalho.

Ao elenco de contrariedades sentidas pelos militares em terras guineenses há a acrescentar, apesar de parecerem marginais e até caricato enunciá-las, a acção maléfica de certos insectos, que no mínimo nos faziam a “vida negra”: as melgas, as matacanhas, as formigas (térmitas) e as abelhas africanas. Provavelmente haveria outros que também incomodariam o suficiente para merecerem aqui referência, porém é a estes, e com graus de nocividade diverso, que pretendo dedicar algumas linhas.

As melgas, esse bichinho “simpático” que nos punha os nervos em franja, merecem, da minha parte, uma referência especial, dadas as noites terríveis que me fizeram passar, não muito diferentes daquelas que proporcionavam aos meus colegas. Quando se dormia no aquartelamento, o mosquiteiro colocado nas camas obstava a que o “massacre” se realizasse, mas nas operações em que se tinham passar uma ou várias noites fora e em plena mata, onde a concentração desses insectos era enorme, aí, sim, sentia-se, e de que maneira, a sua presença. No que a mim diz respeito, confesso, com risco de parecer demagógico, que temia mais uma noite passada no exterior, em que tinha a certeza que ia ser mordido em todos os centímetros quadrados do corpo, do que o próprio inimigo. Refira-se que elas conseguiam morder mesmo através do camuflado, não havendo, portanto, nada que conseguisse travar os seus maléficos intentos. Havia uma rede que se levava para colocar na cabeça e sobre as partes descobertas, mas que não evitava, como se disse, que fôssemos atingidos seriamente. A época das chuvas era a pior no que respeita a este flagelo, já que a humidade, aliada ao calor abafado que se fazia sentir, proporcionava o ambiente ideal para o seu desenvolvimento.

As formigas, se tínhamos necessidade de nos abrigarmos atrás duma termiteira, essas construções curiosas (conhecidas por montes baga-baga) que erguiam para suas moradas, para nos protegermos dum ataque inimigo ou para melhor tomar posição para fazer fogo contra esse mesmo inimigo, e de alguma forma intervir no seu afã constante de reforçar o seu stock alimentar, podiam seriamente causar danos a esses incautos ou vítimas involuntárias. Estas formigas são perigosas, se atacam em conjunto e em simultâneo, de tal modo que podem causar a morte a essas pessoas. Porque só acidentalmente se poderia ter contacto com estes xilófagos insectos, não eram de molde a constituir grande problema, se para tal houvesse a devida atenção.

Quanto às abelhas, e quase pela mesma razão, que se traduzia em que só muito acidentalmente e por algum descuido se podia assanhar o enxame que, normalmente, se localizava em árvores velhas e carcomidas, poucas vezes houve incidentes, que não foram, mas podiam ser muito desagradáveis. É conhecida a ferocidade destas abelhas que, tal como as formigas, podem levar à morte de quem, incautamente, interferir no trabalho da colónia.

As matacanhas privilegiavam os pés que estivessem em contacto com a terra, portanto, o chão. Ou seja, as vítimas eram quem andasse descalço. Constava duma larva que se alojava no interior da pele dos pés. Tornava-se incómodo, mas evitável se houvesse algum cuidado. Para a sua extracção recomendava-se uma pequena cirurgia, que o Dr. Matos Ferreira ou o nosso amigo Rafael Mendes (carinhosamente alcunhado por nós de “Pastilhas”, pelos LM’s que receitava para toda e qualquer doença que surgisse), com toda a mestria executavam.

Os rios também ofereciam alguns perigos que, se atravessados em certas zonas, podiam ser efectivos. Na Guiné os crocodilos infestam a maior parte dos cursos de água, portanto este sáurio é sempre uma ameaça para o ser humano. As piranhas, muito abundantes na ex-colónia portuguesa, podiam igualmente potenciar alguma preocupação, se utilizássemos regularmente os rios e canais para fazer atravessamentos, o que não era o caso: os nossos espaços de actuação eram, preferencialmente, a mata e a bolanha.

Quanto a animais selvagens e ferozes, nem vê-los: algumas cobras, e pequenas (lembro-me apenas de uma, de um porte razoável, que encontrámos e matámos), uma onça ou outra fugidia e mais nada que mereça referência e que a minha memória retenha.

E, quanto a perigos e dificuldades, não me recordo de mais nada que mereça ser referido. Normalmente, recordamos mais e mais facilmente aquilo que nos correu menos bem, todavia aqueles momentos sérios que, digamos, fizeram mossa, não foram assim tantos como isso. Consequência dum bom planeamento e duma boa actuação, como já foi amplamente dissecado? Provavelmente, sim.


vii-A despedida

O regresso a Bissau para aguardar embarque para a Metrópole (2º e último grupo), que se dá em finais de Setembro de 1965 foi, não só no que a mim diz respeito, mas também pelo que senti em relação a companheiros nossos, um misto de alegria, já que significava o início do regresso a casa, e de nostalgia, para não dizer tristeza, de deixar pessoas que confiavam em nós e que nos consideravam amigos. Vi gente a chorar (os Mamadús, por exemplo), parecendo já, de algum modo, antever o drama que se haveria de abater sobre eles, a partir de 1974. Como é sabido, a colaboração com os militares portugueses havia de custar-lhes muito caro, o que implicou, segundo julgo saber, na maior parte dos casos, a perda da própria vida. Foi um dos assuntos mal defendido ou, de todo, irresponsavelmente negligenciado pelo Estado português (potência colonizadora), aquando das negociações para a independência da ex-colónia.

Aquela comunidade identificou-se muito connosco, provavelmente pela política da Companhia, que foi sempre a de eleger a componente psicossocial como prioritária para resolver, ou ajudar a resolver, um conflito que tinha vindo para ficar e levou àquilo que todos conhecemos.

Quem acha que o teatro de guerra não permite relações sociais equilibradas, amizades profundas e humanidade no tratamento daqueles que, duma maneira ou de outra, se encontram no campo do inimigo, está redondamente enganado. Será, admito-o, uma característica tipicamente portuguesa, que nos distingue de outros povos e de outras culturas, e que é o darmo-nos e sentirmo-nos bem em qualquer ambiente e situação e conviver sem preconceitos com outras culturas, religiões e etnias muito diversa das nossas, mas também o de termos um comportamento humano para com os nossos inimigos.

Foto 14 > Cumprimentos de despedida: o comandante com alguns “homens-grandes”

Há a ideia generalizada e assumida, mas nunca é demais lembrá-la, de que as populações civis são sempre as maiores vítimas das guerras, sejam elas de que tipo forem, em que época e em que lugar se desencadeiem. Encontram-se entre os dois fogos, são olhadas com desconfiança pelos contendores e sofrem as represálias de um ou de outro lado, conforme optam por colaborar com qualquer parte do conflito. A guerra de África e, concretamente, a da Guiné foi, neste particular, exemplar no passar à prática esta teoria. Foi uma realidade, a nível da Província, nem sempre bem compreendida pelos militares portugueses, talvez pela situação vivida, pelo stress que a guerra origina em todos e em cada um de nós. Cabedú, também nesse aspecto, pelo menos enquanto estivemos lá, foi diferente e, quanto a mim, desenvolveu a melhor política.

Por vezes interrogo-me se os que nos substituíram seguiram os métodos desenvolvidos pela CCAÇ 555 ou se, pelo contrário, abandonou à sua sorte aquelas comunidades indefesas e à mercê de métodos pouco ortodoxos e desumanos que os independentistas utilizavam para as obrigar a ter do seu lado. Tenho na memória o que fizeram, num período já muito próximo da nossa partida, ao incendiar a tabanca Sosso, obrigando os seus habitantes a refugiarem-se junto ao quartel e a ficarem sob a nossa protecção e responsabilidade.

Assim sendo, o que me resta? Falar de sentimentos (meus e dos demais) da tal dualidade de sensações que refiro, da tristeza que vi estampada no rosto de muitos, da incerteza no amanhã que adivinhei nos semblantes daqueles que nos foram acompanhar ao cais onde embarcaríamos numa lancha da marinha com destino a Bissau.

Ao afastar-me do tarrafe que cobre as margens do riozinho, ou braço de mar, que permitia que os barcos entrassem e saíssem de Cabedú, dei comigo a interrogar-me qual o futuro que caberia àquela terra e àquelas gentes já martirizadas pela guerra, mas que ainda iria durar mais nove anos e, agora sabemo-lo, pelo que se iria seguir que, como constatámos e continuamos a constatar, não foi e continua a não ser risonho.

Ainda a propósito dessa despedida, não consigo esquecer a atitude do guia Mamadú Canté (e será também por isso que eu guardo o sentimento que aqui expressei) ao pedir-me que o trouxesse connosco para a Metrópole. Passava, se bem me lembro, ele próprio por uma fase de algum abatimento psicológico, o que tornava as coisas menos fáceis para quem partia e deixava um colaborador fiel em todas as circunstâncias, inclusivamente, nas já comentadas aventuras, que ambos vivemos nas caçadas às gazelas e às galinhas de mato. Todas aquelas pessoas que, ao fim e ao cabo, nos ajudaram a suportar os dois anos de guerra com a sua colaboração, com a sua companhia, com as sua histórias, que ouvíamos com muito interesse, e (porque não?) com a sua amizade, e nos viram partir, estou certo, com mágoa, deram-nos certeza que algo fizemos, ou ajudamos a fazer, de útil por elas, o que constitui um marco positivo e muito importante da nossa passagem por terras guineenses.

Gostaria muito de descrever esses momentos do adeus a Cabedú com pormenores, concretizando atitudes, discursos, acções, enfim, produzir um relato que nos transpusesse para aquele dia, vivendo-o com muita realidade. Todavia, isso é, de todo, impossível: aquilo que se passou já se apresenta aos meus olhos dum modo difuso, muito distante no espaço e no tempo.


5 - Conclusão

A mobilização para a guerra de África provocou nos militares reacções de receio, mas também de curiosidade. Os portugueses em geral ainda tinham de África, por altura dos princípios da década de 60, ideias povoadas de mitos e fantasias construídos acerca de populações estranhas, que habitavam lugares infestados de animais selvagens e, portanto, perigosos. Passou a acrescer a essa realidade, em certa medida virtual, a situação de insurreição armada lançada a partir de 1961, essa sim real, que obrigava os militares a enfrentarem um inimigo perigoso, até em certos momentos, sanguinário. Todo este caldo de cultura não ajudava em nada a moral de jovens camponeses e citadinos, que se prepararam o melhor possível, mas, porventura, não o suficiente, para viver e combater no teatro de guerra africano.

No que respeita à Guiné, e concretamente a nós, Companhia 555, pouco a pouco foram-se desconstruindo os clichés, as ideias criadas pelo desconhecimento e, não raras vezes, pela ignorância de quem as difunde e começa-se a ter contacto com uma realidade que não é bem aquela que nos tinham vendido, nem tão pouco a que pensávamos existir. Só o perigo se mantinha e, provavelmente, maior do que julgávamos ser possível. Mas até esse interiorizámos bem, tomando as medidas que se impunham para que os dois anos em contacto com essa realidade não interferissem negativamente no regresso, que se desejava feliz.

O dia-a-dia, o nosso dia-a-dia no quartel do mato passava-se, como ficou amplamente expresso, entre as tarefas da segurança, as operações militares e a rotina dos longos dias. Felizmente que a pressão da guerrilha não nos tirava duma normalidade que construímos e que cultivávamos em cada dia que passava (lembram-se do içar e do arrear da bandeira, com honras militares, como se estivéssemos num quartel normal na Metrópole?), como parecia não acontecer em certos pontos da Guiné.

Assim, os dias cumpriam-se no contacto com as populações, nas idas ao bar, na troca de correspondência com os familiares e a namorada, na prática de algum desporto e até na caça. Tudo isto intervalado de perigos iminentes, de descargas de fogo impiedosas, de morteiradas, de lançamentos de granadas foguete, dum lado e do outro, de tiros de canhão.

Os quartéis do mato e, concretamente, o de Cabedú, reproduziam um pouco, se estivermos atentos, a cultura e modo de ser e estar dos seus ocupantes, ou seja, de nós mesmos. Não se lembram das vacas que pastavam, ali mesmo, junto ao arame farpado? Das galinhas que haveriam de ter um fim triste? Da horta que se cultivava? Enfim, daqueles rituais transportados das nossas aldeias e também cidades para o interior da mata guineense.

Chegados a casa, interrogámo-nos se daquele tempo que passámos na guerra tirámos algo de útil para as nossas vidas futuras. Pondo de parte aquele princípio, que não se discute ou, pelo menos, não se discutia, e que era o termos a certeza do dever cumprido para com a Pátria, não haveria mais nada, além disso? Pessoalmente acho que sim, que beneficiámos com a passagem pela guerra. Senão vejamos: não teremos crescido como homens? Quanto valem as amizades que fizemos, que perduram até ao fim das nossas vidas? O próprio conhecimento de terras muito diferentes da nossa, de culturas estranhas e, por vezes, exóticas, mas dum valor enorme para a nossa própria formação? O contacto com uma flora e uma fauna riquíssimas?. Costumo dizer que ganharam todos os que conseguiram regressar vivos e com saúde; perderam os que tiveram a infelicidade de as coisas para eles não correrem da melhor maneira. Para esses e para aqueles que já não estão entre nós, resta-nos curvar-nos perante a sua memória.


6 - Glossário

Bajuda: rapariga indígena ainda virgem
Bate-estrada: aerograma
Bolanha: terreno plano e alagadiço para cultivar arroz
“Cana”: aguardente de cana-de-açúcar
Chabéu: molho de baga de palmeira para cozinhar frango
“Chuvas“: anos de vida
“Homens-grandes”: chefes de etnia ou de tabanca
“Maçarico”: militar com pouco tempo de guerra
Matacanha: larva africana que se infiltra na pele dos pés
Tabanca: aldeia guineense
Tarrafe: vegetação rasteira junto aos rios ou braços de mar


7 - Mapa da Guiné

Foto 15 > Mapa da Guiné

Norberto Gomes da Costa
Mestre em História
Ex-Fur Mil Inf
CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65

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Nota de CV:

Vd. Postes anteriores de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)

12 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)