terça-feira, 12 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)



Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedú
1963/65



GUERRA DA GUINÉ

MEMÓRIAS DA COMPANHIA DE CAÇADORES 555

CABEDÚ – 1963-1965

4 - Cabedú


Dar um aspecto mínimo de conforto e segurança ao local, onde haveríamos de permanecer cerca de 2 anos, foi a primeira decisão, e em boa hora tomada, pelo comando da Companhia. Recordo o entusiasmo com que todos, desde o responsável máximo até ao elemento mais modesto, tomou em ombros essa tarefa, já que não havia tempo a perder: construção de abrigos com cobertura de palmeiras, à prova de morteiros e LGF, junto das casernas e quartos; colocação de chuveiros feitos de bidões em espaço aberto para todos; abertura de poços com água suficiente para as necessidades, que eram muitas; compra e instalação de um gerador de electricidade; postes de iluminação eléctrica em toda a extensão à volta do quartel que nos permitia ver até bem dentro da mata, que fora desbastada num perímetro considerável; um cais acostável e uma pista para aeronaves larga e com extensão suficiente; um forno de cozer pão e outras infra-estruturas melhoradas ou feitas de novo. Será de todo imperioso realçar o esforço hercúleo dispendido por todos os elementos da Companhia, sem as máquinas e as ferramentas eléctricas ou mecânicas que hoje existem, mas à força de braços e equipamento rudimentar, para que a nossa “fortaleza”, como lhe chamo, nos garantisse o mínimo de segurança e fosse um lugar, de certo modo, agradável para se viver.

Enfim, foram tomadas medidas que se provaram fundamentais para o êxito da missão. A frase “VISITE CABEDÚ”, pintada nos telhados das casernas, funcionou durante todo o tempo como chamariz demonstrativo da simpatia com que seriam recebidas todas as pessoas que nos visitassem. São estes pequenos pormenores que, por vezes, fazem a diferença, pelos efeitos positivos que se conseguem. Todos os pilotos achavam graça ao convite e era a Cabedú que sempre iam de bom grado.

Foto 3 > “Fortaleza” de Cabedú

i-Acções militares.

Os primeiros tempos envolvem normalmente um misto de curiosidade e algum receio da realidade existente, mas não conhecida em toda a sua extensão, mais a mais, num contexto de guerra de guerrilha, que começava a tornar-se complicada para as tropas portuguesas, em todo o território da então província da Guiné. E isso notava-se nas acções que voluntariamente empreendíamos ou a que éramos forçados a responder. Pertencíamos ao famoso grupo dos “maçaricos” (nome do conhecido pássaro, muito abundante na Guiné, de cor esverdeada, como o nosso fato camuflado, ainda novo e limpo). Denominação que, evidentemente, repudiávamos, por ser um insulto à nossa condição de militares “experimentados” e “corajosos”. Todavia, cumprindo as regras assumidas na gíria militar, ainda levaria algum tempo até que deixássemos de o ser.

Foto 4 > Visita do Comandante-Chefe a Cabedú: o General Schulz com o Cap Ritto

Pouco tempo após a nossa chegada começámos a ser “visitados” por grupos de guerrilheiros, como se estivessem ansiosos por nos darem as “boas vindas”. Fustigavam, durante horas, o quartel, já com armas de calibre apreciável, que incluíam o famoso morteiro 82 de fabrico russo, criando algum alvoroço nos primeiros tempos, mas que, passada a surpresa do primeiro choque, se transformou em rotina, apesar de nos obrigarem a uma resposta à altura das circunstâncias, que, normalmente, se saldava por alguns mortos deixados no campo de batalha, da parte do inimigo, acompanhados de muito material, igualmente abandonado. Apesar deste cenário se repetir ao longo do tempo em que permanecemos em Cabedú, as vítimas do nosso lado foram mínimas, não obstante numa dessas investidas, um soldado africano ter sido atingido mortalmente. Não me recordo de mais situações dignas de registo.

Num dos ataques ao nosso aquartelamento, tomou parte, como sabemos, o actual Presidente da Guiné- Bissau, Nino Vieira, na altura comandante, penso, da região sul, na estrutura da guerrilha. Foi ferido e veio um helicóptero da vizinha Guiné Conacri recuperá-lo num local bem perto das nossas posições. Foi visível a aeronave baixar e levantar de seguida, com toda a certeza levando a bordo o Nino, na altura já uma personalidade importante na hierarquia do seu partido. Comunicado o facto ao comando de Bissau, foi mandado, se não estou equivocado, um avião de combate em sua perseguição que, no entanto, não chegou a tempo de interceptar o hélio, escapando assim Nino Vieira de ter caído nas nossas mãos. Uma guerra faz-se de êxitos e fracassos, mas também de acontecimentos curiosos e este foi, sem dúvida, um deles.

Foto 5 > Grupo de Combate em acção de reconhecimento

As flagelações ao nosso quartel eram feitas sempre de noite e a altas horas. Querendo surpreender-nos a horas mortas, pensando que a vigilância seria menor da nossa parte, a verdade é que esses ataques, que eram feitos com muitos efectivos e com grande quantidade de material, nunca constituíram um grande problema para a nossa defesa. O sistema estava bem montado, mesmo antes de termos o pelotão de artilharia, que a determinada altura veio reforçar a estrutura militar de Cabedú. Eram sempre repelidos com perdas importantes de homens e de material, visíveis ao nascer do dia, quando se fazia o reconhecimento dos despojos da refrega, deixados no terreno. A partir do conhecimento de que o inimigo tinha morteiros, e aconteceu pouco tempo após a nossa chegada a Cabedú, a instabilidade emocional das nossas tropas cresceu um pouco, na medida em que eles podiam ter feito muito estragos, se a precisão de tiro fosse melhor, o que, felizmente, nunca aconteceu.

A zona de intervenção da nossa Companhia era, como todos sabemos, das mais activas, no que à guerrilha diz respeito, dado os dois grandes centros de concentração de efectivos do PAIGC, Ilha do Como e Cantanhês, (onde, alternadamente, tiveram sempre grande domínio), se encontrarem perto da nossa base. Foi um problema com que tivemos de conviver, durante todo o tempo da nossa permanência aí, com soluções à medida das necessidades.

Inúmeras operações militares foram desencadeadas pela nossa Companhia, quer individualmente (só a 555 ou alguns dos seus pelotões), quer em conjunto com os pára-quedistas, fuzileiros, marinha e força aérea. A operação Tornado, em plena mata do Cantanhês, foi disso um exemplo, na medida em que envolveu toda essa panóplia de efectivos, durante alguns dias. Recordo a Companhia de fuzileiros, comandada pelo já famoso (nem sempre pelos melhores motivos) 1º tenente Alpoim Calvão, militar que, mais tarde, no princípio da década de 70, já no tempo do General Spínola governador e comandante-chefe, se haveria de destacar ao comandar a força que invadiu a Guiné-Conacri e libertou os militares portugueses que estavam nas prisões de Sekou Touré, não conseguindo, no entanto, todos os objectivos a que se propusera.

Tenho presente ainda duas acções militares, de alguma envergadura, em que tomámos parte: a operação Remate que foi desencadeada pela nossa Companhia em conjunto com os Fuzileiros navais e que correu bem, pelo menos no que diz respeito aos nossos militares; igualmente me recordo da operação Tufão, aqui com a Força Aérea e a Marinha, não havendo, mais uma vez, danos físicos para a Companhia.

Chegados a Cabedú, demos conta de uma grande operação na Ilha do Como, de que ouvíamos apenas os rebentamentos e tiros constantes e as aeronaves a cruzarem o espaço aéreo do nosso aquartelamento de Cabedú. Soube tratar-se da importante operação Tridente, uma das maiores feitas na guerra da Guiné, em que tomaram parte forças do Exército, Marinha e Força Aérea. Como o teatro de operações não era muito distante da nossa zona, tivemos oportunidade de acompanhar, embora à distância, o desenrolar desses combates, servindo, inclusivamente, para ficarmos cientes, se é que ainda não estávamos, da zona perigosa em que a Companhia estava inserida na função de quadrícula. Porém, lá no fundo, pelo menos alguns de nós, estávamos a gostar e sentíamo-nos, de certo modo, vingados com o tratamento impiedoso que estavam a ter os guerrilheiros do PAIGC, que nos tinham atacado poucos dias antes, ao passarmos de barco em frente à Ilha. Aliás, foi a partir daí que o Como deixou de ser uma zona importante, como local de refúgio, e que os independentistas ocuparam grande parte do Cantanhês (vidè Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes), trazendo complicações para os aquartelamentos de Bedanda, Catió e Cabedú. (Tinha que sobrar para nós!.)

Foto 6 > Içar da bandeira portuguesa em Cabedú

Na minha modesta opinião, umas das razões - talvez a mais determinante - no relativo sucesso da Companhia ter regressado com um número mínimo de baixas, sem deixar de cumprir as missões que lhe foram atribuídas, foi o bom senso demonstrado pelo seu comandante, ao longo de toda a comissão, e que se traduziu em nunca nos ter arrastado levianamente para situações que poderiam ser complicadas, e até com desfechos dramáticos, como aconteceu, infelizmente, com companheiros de outras companhias, em vários pontos da Guiné. Cumprir com seriedade, sem falsos heroísmos, foi o lema, com o qual todos saímos beneficiados. É o que penso, admitindo que outra ou outras razões se sobreponham à que aqui expresso.

Em dois anos foram muitas, como acima refiro, as acções militares desencadeadas por nós, algumas delas não deixando sequer memória, por serem de pouco aparato ou envergadura, ou então por terem corrido bem, não deixando sequelas nos efectivos comandados por António Ritto. De qualquer modo, ponderando toda a missão, na área de intervenção do nosso grupo, os resultados são, sem dúvida, positivos. Nem tudo do que aconteceu nos podemos orgulhar (é assim em todas as guerras); todavia, dadas as circunstância em que decorria a nossa acção, o que a Companhia fez, seguindo as orientações de Lisboa através de Bissau, é de molde a deixar-nos minimamente com o sentimento do dever cumprido.

ii-Relações sociais

No aspecto social – relação dos militares com as populações das tabancas vizinhas – os contactos tiveram sempre um carácter amistoso. Havia a relação institucional do comando da Companhia, no âmbito da chamada acção psicossocial, com os “homens grandes” representantes das etnias que constituíam a sociedade indígena, que estava, como sabemos, muito dependente da tropa. Penso que essa relação funcionou sempre bem e até com frutos para o nosso lado. Porém, o que aqui merece ser realçado, digamos assim, é o relacionamento das populações com todos os elementos da Companhia. E esse, como se disse, funcionou sempre bem, tirando alguns, poucos, episódios desagradáveis, que foram sanados rapidamente (lembremos até alguns castigos bastantes duros aplicados a companheiros nossos, por assédio sexual sobre bajudas, usando a força da sua condição de militares).

Foto 7 > Convívio entre jovens das duas comunidades

De entre todas aquelas pessoas havia duas figuras para mim incontornáveis, representantes de etnias muito significativas da localidade: o velho Mansoa, de etnia balanta, e Seco Aidara, líder influente dos Sossos. Outros líderes havia, mas importa falar um pouco sobre estas duas personalidades interessantes, que me marcaram bastante, embora de modos diferentes. Mansoa, com muitas “chuvas” contadas, com um rol impressionante de mulheres no activo, ao longo da sua vida (a poligamia era normalmente praticada), em que a mais nova do grupo que então pertencia ao seu “harém” era uma jovem que, à vontade, podia ser sua neta, bebia “cana” como nós bebemos água, o que lhe garantia a embriaguês permanente. Diziam os seus amigos ou vizinhos que o velho homem que um dia (que ele já não conseguia recordar) chegou a Cabedú, vindo da cidade de Mansoa – daí a sua alcunha – só tinha apanhado uma bebedeira, que ele conseguia manter com toda a boa disposição e eficácia, ao longo da sua já longa vida. Claro que Mansoa teria outras qualidades, que o tornariam útil no seio da sua comunidade, pois a sua importância não derivaria apenas das aqui referidas, mas que nós desconhecíamos.

Seco Aidara, de um comportamento social irrepreensível, era, provavelmente, a pessoa que o comandante mais ouvia e com quem mais contava para um bom relacionamento, que, ao fim e ao cabo, sempre se desenvolveu entre os militares e a comunidade indígena. Seguidor da região islamita (os balantas eram animistas), já tinha ido a Meca, o que lhe outorgava um estatuto que nem todos possuíam. Este homem, recordo, teve sempre a preocupação dum relacionamento próximo, quer com o comando da Companhia, quer mesmo com muitos outros militares. Sabendo da minha paixão pela caça, um dia foi ao quartel oferecer-me uma perdiz, que tinha caçado na sua plantação de mancarra. Fiquei-lhe eternamente grato, como devem calcular, pois merecer uma honraria destas não acontecia todos os dias.

Estes dois personagens despertaram-me sempre a atenção, por razões particulares e nem sempre coincidentes. Todavia, outros ”homens grandes”, como já referi, havia, e com importância no seu meio: Lamina Sissi, Braima Camará, Bacra e muitos outros, que exerciam autoridade nas suas comunidades.

As bajudas (jovens ainda virgens) e as mulheres mais velhas com os seus trajes coloridos e, por vezes, exóticos, davam um ar festivo ao quartel, durante as suas visitas para vender produtos e comprar panos e outros artigos necessários à sua vida, nas casas comerciais (Gouveia e Ultramarina) que se mantinham abertas no interior das nossas instalações. Jovens do sexo masculino ou mesmo homens novos escasseavam nas tabancas, o que teria a ver com o recrutamento (muitas vezes à força), que a guerrilha fazia, principalmente para tarefas de apoio logístico aos grupos de combate.

A este respeito, convém lembrar que a situação das populações civis que viviam no mato, perto das bases da guerrilha não era, nem de perto nem de longe, satisfatória. Se colaboravam connosco sofriam represálias, de certo modo violentas, dos independentistas; se a sua atitude era de apoio à causa nacionalista, tinham-nos “à perna”. Restava-lhes manter o equilíbrio, sem se comprometerem muito, mas dando a entender a um lado e ao outro que estavam com eles.

Foto 8 > Militares entre a comunidade indígena

De entre os produtos que nos eram vendidos, saliente-se animais criados nas suas tabancas, como porcos, carneiros, mas também camarão e outros mariscos recolhidos nas bolanhas, aquando da baixa-mar. Se se tratava de Balantas, o dinheiro (pesos) era, quase na sua totalidade, gasto na compra de “cana”, bebida no local e levada para casa, onde afogavam as mágoas que os atormentavam.

Todo este intercâmbio servia as duas comunidades, no que respeita à vida do dia-a-dia das pessoas envolvidas, mas também tinha outro efeito, para mim mais importante, que era o facto de estes contactos servirem para manterem a nossa sanidade mental em bom estado, em virtude de induzirem um ambiente de alguma normalidade, como contraponto ao isolamento a que estávamos sujeitos. É preciso não esquecer, e penso que já foi referido, que alguns de nós entraram em depressão: estou a lembrar-me do nosso companheiro “Toirão” (Eleutério dos Santos Marçal) que, atingindo um nível demencial relevante, fugiu para a margem dum rio, relativamente distante do quartel, e só foi localizado com a ajuda de um helicóptero. Foram momentos de muita preocupação para todos nós, que, embora tristes com a situação do nosso companheiro, terminaram em bem.

iii-Actividade lúdica

O divertimento é sempre muito importante, seja em que situação for que se encontrem as pessoas que dele podem usufruir. Em situações de guerra, então, é fundamental ter-se momentos de descontracção e lazer, que ajudem a suportar outros de enorme responsabilidade e preocupação. Estes momentos de disponibilidade eram sempre vividos com uma grande entrega, de modo a tirar deles o máximo de prazer e bem-estar. Numa comunidade de cerca de centena e meia de pessoas, com alguma diversidade no âmbito cultural e nos interesses sociais, dificilmente se consegue uma identidade total entre todos os seus elementos. De modo que se formavam sempre grupinhos, maiores ou menores que, pela maior identidade de pontos de vista, se sentiam mais próximos. Jogos de cartas pela noite fora, jogos de futebol, em que, muitas vezes, as equipas se faziam tendo como base a simpatia pelos grandes clubes portugueses; outras por pelotões, e até por especialidade!.. Tudo servia, o importante era jogar.

Não me esqueço das conversas (cá estão os tais grupinhos que referi) até tarde, em que se falava de tudo: de cinema, de música (ter em conta que os Beatles apareceram nessa altura), de política (pouco, que as paredes tinham ouvidos), de mulheres, claro. Passeios pela parada, em que se discutiam maneiras de salvar o planeta, de vivermos (todos os seres humanos) em paz e felicidade, de acabar com as injustiças no mundo. A juventude tem destas coisas: é sempre bem intencionada, solidária, mas infinitamente ingénua. O cepticismo, o calculismo e, sobretudo, o realismo chegam mais tarde.

Foto 9 > O descanso dos “guerreiros”

Ainda acerca dos momentos de ócio, tenho uma vaga ideia, correndo o risco de estar enganado, de que, pelos menos, uma vez fez-se um jogo com jovens das tabancas, os que o PAIGC ainda considerava muito novos para levar para a mata.

Tanto talento era exibido nessas “peladinhas” e quantos “fora de série” se perderam pelo caminho!..No que respeita aos jovens indígenas, observava-se claramente um jeito inato para o desporto. A etnia africana, no seu conjunto, foi sempre, e será, um alfobre de predestinados para o futebol. Todavia, e agora centrando-me nos nossos camaradas, havia muita gente com jeito para a bola. Não me lembro de todos os que, nas minhas observações (era para isso que eu tinha mais jeito), referenciei como tendo algumas qualidades para a prática do futebol, mas, pelo menos, o Nunes (condutor), o Júlio Fontes, o João de Matos (apesar de ter mais queda para o rugby), o José Oliveira, o “Mestiço” (João Manuel Moreira da Silva) e o “Porto” (António da Costa Baptista) não eram toscos de todo.

A caça, que desde os primórdios da humanidade sempre ocupou os homens, exerce um fascínio muito grande em muita gente que, desde a juventude, experimentou esse desporto, hoje cada vez menos interessante, dada a escassez de espécies cinegéticas. Por isso, alguns levaram de cá esse vício e, logo que foi possível, ei-los a demonstrar as suas aptidões na caça às gazelas, galinhas de mato, perdizes, patos e pombos verdes. O Joaquim Rézio, eu próprio, o “Bigodes” (Agostinho Félix), o Vidaúl Andrade e não sei se mais alguém, demos algum desbaste nessas espécies, para nosso gáudio mas, sobretudo, para satisfação de todos, em virtude do rancho melhorado em dias de caça grossa.

Foto 10 > Está visto que o almoço do domingo seguinte foi arroz de pato..

A alimentação do espírito também conta muito, particularmente para os crentes, sobretudo em situações de aperto, que o mesmo é dizer, de perigo iminente, a que estávamos expostos. O capelão do batalhão (padre Pinho, se não estou equivocado), sedeado em Catió, de quando em vez, lá estava em Cabedú a celebrar missa ao ar livre, em plena parada, para muitos militares que, normalmente, seguiam o sacerdote com uma certa atenção.

E quem não se lembra dos filmes que vimos em sessões, igualmente, ao ar livre, e com agrado geral? O Costa do Castelo, o Pátio das Cantigas, o Leão da Estrela, com actores que ainda hoje fazem as delícias de quem gosta de cinema: António Silva, Ribeirinho, Vasco Santana, Milú e tantos outros talentos portugueses, que fazem corar de vergonha alguns que hoje exercem essa profissão. Eram, sem sombra de dúvida, momentos de grande satisfação e divertimento para mais de uma centena de pessoas, entre as quais havia quem nunca tivesse visto um filme.

A chegada do barco com os mantimentos era sempre recebida com grande alvoroço e emoção. Pudera, era a sobrevivência garantida por mais um mês!...E o correio, com os “bate-estradas”, trazendo notícias da família, e as cartas, em papel de seda, da namorada ou da madrinha de guerra? Tenho presente a imagem da rapaziada à volta do Encarnação, que lia o nome ou número do militar a quem se dirigia a missiva: quantos saltos de alegria e quantas lágrimas teimosas a despontarem, quando a esperada notícia não chegava!...No dia da aterragem da avioneta, pilotada pelo Honório, pelo Melo ou outro qualquer piloto, que ia a Cabedú (dito por eles) sempre com muito agrado, olhava-se para o céu à hora prevista, procurando descortinar no horizonte qualquer pontinho que denunciasse a chegada iminente de algo que nos aquecesse a alma ou repusesse o ânimo perdido por dias de incerteza. Enfim, tentava-se “matar” o tempo o melhor possível, contando os dias, ou melhor, descontando-os no calendário, tendo na mente os momentos de fim de comissão.

Foto 11 > Chegada do correio: “assalto” da rapaziada, ávida de notícias, à avioneta

Fotos e legendas: © Norberto Costa (2008). Direitos reservados.


Além disso, tínhamos direito a trinta dias de férias, que, normalmente, se gozavam na Metrópole, com a família, ou em Bissau. Houve muitos (a esmagadora maioria) que nem sequer as aproveitou e acabou por não sair de Cabedú, em todo o tempo da comissão. Uma viagem até Lisboa de avião ficava bastante dispendiosa, e havia a circunstância de o regresso à guerra, após as férias, ser muito penoso, de modo que poucos utilizaram essa alternativa. Passá-las em Bissau também era agradável e não havia os inconvenientes apontados. Conseguia-se, se assim o desejássemos, alojamento gratuito nas muitas instalações militares que havia na capital da Província, ou então tínhamos hotel ou pensões, a preços não muito elevados. No que a mim diz respeito, as férias do primeiro ano foram passadas na Metrópole com a família; as segundas, em Bissau, que, se bem me recordo, foram óptimas, e guardo delas boas recordações.

Para isso, claro, tínhamos que sair de Cabedú. E como? Conseguia-se com certa facilidade transporte para Bissau na avioneta que ia levar o correio ou fazer outro serviço, marcando com antecedência, já que havia sempre muita concorrência nos quartéis do mato onde a aeronave fazia escala. Nesse aspecto, os pilotos eram normalmente atenciosos para o pessoal de Cabedú, e raramente negavam uma boleia a quem dela necessitasse. Era, por sinal, um passeio sempre muito agradável o que se fazia de avioneta, de onde se desfrutava uma deslumbrante vista sobre o território da Guiné, com a sua vegetação compacta e completamente verde, recortada pelos inúmeros canais e rios e salpicada de bolanhas e tabancas, que lhe davam um aspecto curioso, mas infinitamente belo.
Igualmente se podia viajar para a capital da Província de barco (batelão ou lancha da marinha), que, pelo menos uma vez por mês, tocava o nosso porto. Porém, pelo tempo que demorava e pela perigosidade que oferecia (lembremos o ataque em frente à Ilha do Como), não era aconselhável, e raramente se optava por este meio.

Mesmo em ambiente de guerra se podem fazer coisas que, em princípio, estão vocacionadas para tempos de paz e de estabilidade emocional dos protagonistas. À partida seria impensável que em plena zona de conflito, no interior da mata africana, se poderia improvisar uma escola, em que os professores e os alunos, nas horas de descanso dos seus afazeres militares, se dedicassem (uns a ensinar, outros a aprender) a essa nobre tarefa de tornar homens mais úteis à sociedade. Estimulados pelo comandante da Companhia, criou-se um pequeno corpo de professores, oriundos do quadro de graduados, pessoas que na sua maioria, para não dizer na sua totalidade, nunca tinham exercido essa função, estando, no entanto, à altura de ensinar as matérias exigidas.

Eu próprio, o Joaquim Moura Lopes, o Joaquim Rézio, o António Ferreira, de entre um conjunto de elementos que, francamente, não consigo identificar na totalidade, dava o melhor de si para, como disse, valorizar aqueles homens que, nas circunstâncias descritas, quiseram aproveitar denodadamente o que lhes era oferecido.

Então, apareceram soldados que pretendiam completar a instrução primária (4ª classe) e até cabos que se candidataram a fazer o primeiro ciclo (2º ano) dos liceus. É certo que uma parte desistiu ou não conseguiu passar no exame; porém, o resultado foi francamente positivo. A esta distância temporal é praticamente impossível contabilizar com exactidão o número dos que concluíram com êxito os seus estudos. Todavia, penso que posso afirmar, sem receio de faltar à verdade, que vários acabaram a instrução primária e, pelo menos, dois fizeram o 2º ano dos liceus: o Joaquim Flores Bispo e o José da Silva Correia.

Como é expectável, foi uma alegria muito grande para os principais interessados, aqueles que viram os seus esforços coroados de êxito, mas também para os que para isso contribuíram, quem ofereceu tempo do seu período de lazer para que isso fosse possível.

Os exames realizavam-se em Bissau, e para isso os nossos homens tinham que se deslocar à capital da Província, a fim de prestarem as respectivas provas.

Desconheço se mais alguma unidade sedeada no interior, em zona de guerra permanente, se mobilizou no sentido que acabo de descrever. Porém, se tal aconteceu, os casos afirmativos devem contar-se pelos dedos duma mão. Uma coisa era a tropa que estava em Bissau, essencialmente em funções administrativas, e que até podia frequentar aulas com professores diplomados, outra bem diferente era o que os nossos companheiros fizeram, em plena zona de guerrilha, nas situações físicas e psicológicas que todos conhecemos. Também nesse aspecto fomos diferentes: deve-se ao comandante, mas também, penso eu, ao bom grupo de militares que se conseguiu reunir.

Num dos capítulos deste trabalho farei referência a um dos elementos da pequena matilha (3 cães) sedeada no nosso quartel, concretamente ao sempre muito útil Galinheiro. Porém, de modo algum poderia deixar de falar desse carismático cão, verdadeiro líder dos seus pares, chamado Zorro. Era um bonito exemplar de cor branca, tamanho médio, meigo e companheiro de quem, no seu insondável critério canino, o merecesse. Nunca consegui compreender, confesso-o, por que este cão, já de uma idade avançada, só acompanhava com graduados. Como facilmente se entende, esta atitude garantia-lhe a hostilidade, mais ou menos velada, da esmagadora maioria da Companhia e o carinho dos poucos que faziam parte da sua selecção de amigos. Recordo com alguma saudade os passeios que com ele dei pelos terrenos adjacentes ao aquartelamento, mas, sobretudo, as noitadas de ronda às sentinelas que velavam pela nossa segurança, tendo como companhia o velho Zorro. Ele fazia questão de estar sempre por perto quando se iniciava essa importante tarefa, parecendo que conhecia a própria escala de serviço. Estes cães foram-nos legados pela anterior companhia e, do mesmo modo, os transmitimos a quem nos sucedeu em Cabedú.

(Continua)
_________________

Nota de CV

(1) - Vd. Primeiro poste da série de 10 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3129: Tabanca Grande (82): Jorge Fontinha, Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)



Jorge Fontinha
Fur Mil Inf
CCAÇ 2791
Bula e Teixeira Pinto
1970/72



1. Mensagem de Jorge Fontinha no dia 8 de Agosto de 2008, dirigida ao Editor Luís Graça

Por mero acaso, dei de caras com o teu Blog.
Trato-te por tu, por tua sugestão como camarada de guerra, embora te não conheça pessoalmente.
Todavia, somos mais ou menos do mesmo tempo e pelo que me parece partilhamos dos mesmos princípios e opiniões sobre a nossa e não só... Guerra do Ultramar.

Estive na Guiné, de finais de Setembro de 1970 a finais do mesmo mês, de 1972, como Furriel Miliciano de Infantaria.
Bula e Teixeira Pinto, foram base de apoio da minha Companhia, a CCAÇ 2791.

Tenho muitas histórias e relatos, mas abstenho-me agora de contar seja o que for, até porque a minha guerra começa em Angola, no dia 15 de Março de 1961, então com 12 anos de idade, numa fazenda no interior de Nambuangongo.

A minha intenção ao enviar este mail é tão só, pretender poder contribuir com alguma das memórias nunca esquecidas, das vivências dessas duas etapas da minha vida.

Moro em Peso da Régua e nasci em 28 de Outubro de 1948.
Reformado do BPSM/MILLENNIUMbcp, dedico-me a navegar na Internet e a fazer uns pequenos trabalhos para uma empresa de rotulagens.

Agradecia que me contactasses no sentido de me poder tornar em mais um colaborador do Blog e me poder tornar num dos Amigos dos Camaradas da Guiné.

Um grande abraço,
Jorge Fontinha

2. Mensagem de resposta para o nosso novo camarada, com data de 10 de Agosto de 2008

Caro Fontinha
É para nós reconfortante quando um novo camarada se nos dirige.
O Luís Graça assumiu a missão de reunir no seu Blogue tantos ex-combatentes da Guiné, quanto possível, para que todos tenham oportunidade de escrever o que retêm na memória, desses tempos tão difíceis.
Ao mesmo tempo que se contribui com a narração das nossas experiências para memória futura, podemos sem nos aperceber livrarmo-nos de velhos traumas, pois o acto de escrever também é libertador.

Na nossa Página do lado esquerdo tens à tua disposição para consulta, as nossas Dez Normas de Conduta e Aquilo que (não) Somos. Digamos que é a nossa Cartilha.
Envia-nos uma foto do teu tempo de tropa e outra actual, tipo passe de preferência.
Quando quiseres e puderes, começa a enviar as tuas estórias, que poderão ser acompanhadas de fotografias, devidamente legendadas.

Recebe um abraço de boas vindas em nome de toda Tertúlia.
O camarada
Carlos Vinhal
Co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

3. Hoje mesmo o nosso camarada Fontinha enviou-nos as fotos da praxe pelo que fazemos a sua apresentação formal à Tertúlia.

Guiné 63/74 - P3128: Antropologia (8): Exposição Bijagós no Museu Afro Brasil, São Paulo

Mensagem do dia 22 de Julho de 2008 da Casa da Guiné em Coimbra (1), recebida no nosso Blogue:

Exposição Bijagós - A arte dos povos da Guiné-Bissau, no Museu Afro Brasil
São Paulo, início 19 de Julho de 2008








Máscara Vaca-Bruto, madeira policromada, chifre, vidro e fibra vegetal



Bijagós: mestres da escultura

A Associação Museu Afro Brasil e a Secretaria de Estado da Cultura apresentam a exposição Bijagós – a arte dos povos de Guiné-Bissau, em cartaz no Museu Afro Brasil de 19 de Julho a Novembro de 2008. São exibidas 78 peças de uso ritualístico e em festividades, todas elas recém adquiridas pela instituição. Com curadoria de Emanoel Araújo, a mostra reúne máscaras, adornos de cabeça, de costas e de braço, estatuetas, lanças e espadas confeccionadas pelos povos Bijagós, habitantes das ilhas da costa de Guiné-Bissau, na região mais ocidental do continente africano. A exibição é acompanhada de catálogo, textos de parede e acções educativas.

As obras produzidas pelos Bijagós têm o reconhecimento crítico internacional pelas qualidades e particularidades escultóricas. A equipa do Museu Afro Brasil criou vitrinas especialmente para a exposição em uma das salas no primeiro pavimento da instituição.

A exposição, segundo Emanoel Araújo, centra-se mais nos aspectos artísticos do que em questões antropológicas. As peças, adquiridas em Portugal, proporcionam ao público uma visão abrangente do que os Bijagós realizam artisticamente e para efeitos de religião e festividades.

O encanto das obras atrai o espectador pela habilidade técnica, uso de materiais diversos e as representações às quais recorrem os povos Bijagós. As referências à natureza nas peças são abundantes. Muitas obras, feitas com madeira, fibras vegetais, tecidos e metais, remetem aos tubarões, peixes-serras, vacas, hipopótamos, pelicanos, etc. Chamam a atenção ainda o domínio das cores e a liberdade expressiva.

Para o professor da Universidade Nova Lisboa, membro da Academia de História e da Academia Nacional de Belas Artes de Portugal, Mário Varela Gomes, a actividade artística dos povos Bijagós não é uma profissão, mas uma vocação que responde ao carácter sócio-religioso. Em texto produzido para a exposição no Museu Afro Brasil, afirma que:

- Podemos concluir que a florescência artística dos Bijagós, documentada ao longo de mais de um século, onde a fantasia, a exuberância e a liberdade se fundem e tanto a caracteriza, se deve à presença do mar como elemento dominante da cultura.

Obras expostas

Lanças e espadas
São esculpidas em madeira e utilizadas em cerimónias tanto por rapazes como pelas jovens. A decoração é feita com cores ou escurecidas a fogo. Medem de 1,10 a 1,60m.

Máscaras
Muito frequentes nas festividades, a mais divulgada é a designada por Vaca Bruto, que representa uma cabeça de boi. Talhada em madeira, com chifres autênticos, olhos de fundos de garrafa. Há máscaras que representam ainda tubarões, porcos, hipopótamos e outros animais.

Adornos de cabeça para dança
Os adornos revelam bem a fantasia e a liberdade de temas escolhidos pelos Bijagós. São confeccionadas com madeira policromada, fibra vegetal, tecido, chifre, couro.

Adornos de costas para dança
São utilizados em festas e alguns medem mais de um metro de comprimento. A variedade na representação é grande: tubarão, pássaro, barco, vaca, hipopótamo. São realizados com madeira policromada, tecido, fibra vegetal e espuma.

Adornos de braço para dança
Discos de madeira com orifício central utilizados pelas moças e rapazes dos povos Bijagós. O material utilizado para a confecção das peças é a madeira policromada e entalhada.

Estatuetas
As peças pertencentes ao acervo do museu representam figuras femininas. As esculturas foram feitas com madeira e têm carácter religioso.







Adorno de Braço Egborá, madeira policromada




Os Bijagós somam mais de 27 mil pessoas e integram a República da Guiné-Bissau, situada na costa ocidental africana, banhada pelo Oceano Atlântico. Os povos encontram-se milenarmente em cerca de 88 ilhas e ilhotas próximos do estuário do Rio Geba, o qual banha a capital do país, Bissau. Guiné-Bissau, ex-colónia portuguesa declarou independência unilateralmente em 1973, após conflitos violentos.

Os Bijagós têm uma língua própria, apesar de o português ser considerado de domínio nacional. A palavra a qual dá nome à cultura significa o povo perfeito.

A Unesco reconheceu a região como Reserva Biosférica em 1996.





Máscara Égomore, madeira policromada e fibra vegetal



Mesmo com o esforço secular da islamização e da cristianização, a maioria dos povos Bijagós possui uma religião em que a divindade suprema é Nindo ou Iani, o que se traduz em o céu ou a claridade solar. O papel protagonista da mulher é fundamental para a compreensão da religião.

Há estudiosos que creditam aos Bijagós o termo de escultores dos espíritos pelo domínio técnico, artístico e religioso conferido aos objectos sacros ou receptáculos, conhecidos como irãs.

Entre os Bijagós há oito classes de idades que correspondem a períodos de evolução espiritual e social. Os objectos exibidos na exposição do Museu Afro Brasil podem servir de exemplo para a compreensão de suas particularidades e utilizações por faixa etária e de sexo em rituais específicos de passagem de uma faixa etária à outra, que varia segundo o gênero. Os Bijagós acreditam que depois da morte a alma vagueia na selva até assentar-se numa escultura, que também é chamada de espaço estável.
______________

Notas de CV

(1) - Vd. poste da tomada de posse do Doutor Julião Soares Sousa como Presidente da Casa da Guiné-Bissau em Coimbra, de 8 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3033: Convite (6): Tomada de posse dos Orgãos Sociais da Casa da Guiné-Bissau em Coimbra

(2) - Vd. último poste da série 23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)



Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedu
1963/65


1. Mensagem do nosso camarada Norberto Gomes da Costa, Mestre em História, enviada no dia 17 de Julho de 2008 e dirigida ao nosso Editor Luís Graça.

Meu caro Luís,

Vou enviar-te, então o texto de que te falei. É um trabalho despretensioso que tenta, na primeira pessoa, abordar a guerra pelo lado humano, relatando memórias soltas, sem qualquer preocupação cronológica, (neste caso, dum microcosmos constituido por uma companhia de cento e tal homens, inserida numa determinada região e que se relaciona com uma pequena, mas multi-étnica, comunidade indígena, referindo, ainda assim, pois era para isso que lá estávamos, algumas escaramuças mais complicadas. Aliás, tu como sociólogo e de reconhecidos méritos, também estás, estou certo, mais interessado nesse aspecto - e basta ver os blogs, ao aceitar testemunhos dos dois lados da barricada, para o comprovar - , do que na parte bélica (quem matou mais ou menos, quem ganhou ou perdeu).

O trabalho está dividido em capítulos que correspondem aos temas que decidi abordar, não tendo, apesar disso, esses capítulos, autonomia própria, pois fazem parte de um todo. Porém, o que tu e os nossos amigos que contigo colaboram na edição de textos decidirem está bem decidido. O texto já tem várias fotos integradas, umas estão relacionadas com os temas, outras nem por isso.

À parte, envio-te, como me pediste, duas fotografias minhas (uma desses tempos, outra de agora).

Para qualquer assunto que aches necessário entrar em contacto comigo, além do e-mail que conheces, o meu telefone e os meus telemóveis. (*)

Um abraço (já agora, um alfa bravo).
Norberto Costa



2. Memórias da CCAÇ 555 - Parte I



Guerra da Guiné > Memórias da CCAÇ 555 > Cabedú, 1963/65

por Norberto Gomes da Costa



Fotos e legendas: © Norberto Costa (2008). Direitos reservados.


ÍNDICE

1 - Nota

2 - Introdução

3 - Guiné (1963/65)

4 - Cabedú


i-Acções Militares
ii-Relações Sociais
iii-Actividade Lúdica
iv-Alimentação
v-Acontecimentos Marcantes
vi-Dificuldades/Contras
vii-A despedida

5 - Conclusão

6 - Glossário

7 - Mapa da Guiné


1 - Nota


Por sugestão do nosso amigo capitão António Ritto (**), aventurei-me nesta “viagem” por terras da Guiné e, concretamente, por uma pequena localidade chamada Cabedú, no sul da Província, considerando o período temporal que vai dos fins de 1963 a Setembro de 1965, aquando da nossa estada aí, em tempo de guerra.

É de todo justo referir que o fiz com grande prazer. Foram cerca de dois anos de memórias que tive que procurar neste “arquivo” mental que, quer queiramos quer não, cada vez é mais fragmentário e, pior que isso, menos fiável.

Como digo na Introdução, a visão plasmada é a minha, as memórias foram aquelas que eu vivi, o quadro exposto é o que resulta da síntese que construí, enquanto militar da CCAÇ 555, e ainda guardo ao cabo deste quase meio século passado.

Refiro nomes, poucos, de companheiros que, duma maneira ou de outra, entram nas histórias que conto, ressalvando sempre, como é obvio, a omissão de outros, porventura tão ou mais intervenientes que estes, mas que se esfumaram (apenas nos acontecimentos, é claro) na poeira dos tempos.

A todos os companheiros dessa aventura e meus amigos (porque são todos meus amigos, quer constem ou não do documento que agora apresento), as minhas desculpas pelas eventuais insuficiências do trabalho, que são da minha inteira responsabilidade, e o meu muito obrigado.

Lisboa, Janeiro de 2008

Norberto Gomes da Costa


2. Introdução

O Estado Novo tinha como ponto de honra do seu programa político a conservação de todas as parcelas africanas integradas no todo nacional. Quando Salazar, no seu famoso discurso de Abril de 1961, afirmava que para Angola dever-se-ia “andar rapidamente e em força”, assumia, de maneira inequívoca, a intenção de jamais dar a independência aos territórios africanos ligados à Pátria Portuguesa.

Porém, o problema residia no facto de Portugal se encontrar, nesse aspecto, isolado, mesmo no contexto dos países da Europa Ocidental. Todos já tinham descolonizado e, como Salazar dizia, Portugal encontrava-se “orgulhosamente só”. Era inevitável a autodeterminação daqueles espaços e, como se constatou, era uma questão de tempo.

Nesse contexto, os movimentos independentistas apoiados, principalmente, pela União Soviética, pela China e outros países comunistas, preparavam-se para dar início às hostilidades, com o objectivo de tomar o poder pela força em Angola, Guiné e Moçambique. Em Março de 1961 rebenta a insurreição armada em Angola; em Janeiro de 1963, na Guiné; em Setembro de 1964, em Moçambique. Estava traçado o destino daquelas províncias ultramarinas portuguesas, como à altura se denominavam.

Este meu trabalho não pretende, de modo algum, fazer a história da guerra de África, nem tão pouco a da Guiné, mas tão só recuperar memórias da CCAÇ 555, memórias essas do dia-a-dia da Companhia, dos seus momentos difíceis, dos tempos de ócio, da vivência que cimentou a amizade e a solidariedade entre aquele grupo de jovens que um dia o destino quis que partissem para as bolanhas da Guiné, para defender um território que a História e o poder político diziam ser seu.

É um período temporal que vai do final de 1963 (o primeiro grupo chega a Cabedú nos últimos dias de 1963; o segundo e último, nos primeiros de 1964) a Setembro de 1965, partida para Bissau, a aguardar embarque para Lisboa.

Esta reflexão tenta distanciar-se, quanto possível, da relação institucional que todos mantínhamos com a Companhia, que pertencia ao batalhão que estava sedeado em Catió e que, por sua vez, estava enquadrado no sector sul, em última análise dependente do comando de Bissau. A história da Companhia, em certa medida, já foi feita e existe um texto, da autoria do capitão António Ritto, que trata pormenorizadamente todas as acções militares da CCAÇ 555, as relações institucionais com as autoridades civis das populações indígenas, toda a acção psicossocial desenvolvida, enfim, uma síntese do que foram, para o comando, os dois anos passados em terras da Guiné.

Por isso, chamo Memórias da CCAÇ 555 ao trabalho que me proponho desenvolver, memórias escritas, essencialmente, na primeira pessoa, soltas e não seguindo uma metodologia rígida, não cuidando de relatar tudo o que aconteceu – o que seria impossível, dado o espaço temporal que nos afasta dos acontecimentos (mais de 40 anos) -, dando uma visão, a minha visão, do que se passou, nas mais variadas situações do dia-a-dia, diversa com toda a certeza, em alguns aspectos, da que terá outro qualquer companheiro meu.

Estas memórias, que procuram não seguir a documentação amavelmente disponibilizada pelo comandante da Companhia, já que, como disse, esse trabalho já foi feito e bem feito, são baseadas recorrendo, quase exclusivamente, ao “arquivo” mental, que tento preservar, mas que, em cada ano que passa, se torna menos preciso. Ainda assim, e tendo como máxima que em história, com documentos escritos ou sem documentos escritos, não há certezas absolutas no discurso que se produz, procurarei a maior aproximação possível à realidade.

Se o conseguir, dar-me-ei por satisfeito. Falharei aqui e ali nos pormenores, mas o essencial está garantido, visto que as situações descritas aconteceram na realidade.


3. Guiné (1963/65)

Em Janeiro de 1963, seguindo uma estratégia delineada pelos movimentos independentistas com os apoios atrás referidos, o PAIGC (Partido Africano Para a Independência da Guiné e Cabo Verde), liderado por Amílcar Cabral, um engenheiro agrónomo formado em Portugal, assalta o quartel de Tite, a sul de Bissau, e dá início às hostilidades contra a soberania portuguesa.

Foto 2 > 4 de Novembro de 1963 > Chegada a Bissau


Cedo se tornou óbvio que a guerra na Guiné viria a ser um “bico de obra” para o Estado português, que pretendia, como se disse, manter na sua posse todos os espaços do território africano, que a História, desde as descobertas do século XV, lhe conferia.

Pequeno território com uma grande fronteira terrestre aberta à entrada e saída de guerrilheiros sedeados no interior e fora da Província; terreno pantanoso, recortado de rios e canais, por onde o mar entra na preia-mar, ocupando cerca de dois terços do seu solo e tornando difícil a mobilidade das tropas portuguesas; clima quente e húmido e, portanto, insalubre e causador de muitas doenças, tornavam a Guiné um teatro de guerra extremamente perigoso e, por conseguinte, pouco apetecido para os militares lusos mobilizados para a guerra de África. Estas são algumas de entre muitas dificuldades que a minha memória guarda, a acrescentar a um inimigo razoavelmente bem equipado e treinado, em comparação com o que se passava noutras províncias do Ultramar.

É, portanto, neste ambiente e contexto difíceis que um grupo de jovens oriundos do Norte a Sul do País, passando pelas Ilhas atlânticas, comandado por um igualmente jovem capitão do exército, desembarca em Bissau no dia 4 de Novembro de 1963.

O governador da Província, se bem me lembro, era um homem da Marinha, o comandante Vasco Rodrigues. Como comandante-chefe estava o brigadeiro Louro de Sousa. Não muito depois, o general Arnaldo Schulz é empossado nos dois cargos, que ocupa, pelo menos, durante todo o tempo da nossa comissão.

O palco estava montado. Qual seria o nosso destino no teatro de operações? Como iriam decorrer os dois anos que se seguiriam? Eram as perguntas que todos fazíamos a nós mesmos, já que o principal objectivo a alcançar, em consciência, era regressarmos sãos e salvos para junto da nossa família e amigos. Se fosse possível cumprir, com alguma coragem e dignidade, os desígnios que superiormente nos eram impostos, tanto melhor.

A CCAÇ 555 chega assim à Guiné numa fase muito crítica do processo político-militar por que passavam as nossas colónias em África. A guerrilha estava presente em quase todo o território: tirando Bissau e uma área não muito extensa à sua volta, a Ilha de Bolama e o arquipélago de Bijagós, todo o resto sofria já ataques de alguma envergadura, pois, como se disse, o material que o inimigo possuía já era significativo.

Cerca de 2 meses em Bissau serviram para nos ambientarmos, para tomarmos consciência do que se passava no mato, enfim, para chegarmos à conclusão que não estávamos ali para passar umas férias numa qualquer estância de turismo. Mas, instalara-se o desânimo na Companhia? Nem pensar!..Tanto quanto me é permitido recordar, todos estávamos bem dispostos e minimamente preparados para o que “desse e viesse”. Claro que havia sempre os que, pelas circunstâncias de psicologicamente não serem tão fortes, se iam um pouco abaixo. Nada que os entertainers da Companhia (que os havia, sem dúvida!..), com umas brincadeiras à sua maneira, não resolvessem. A reserva moral do grupo, essa, estava no comandante da Companhia, como é evidente: o capitão Ritto esteve sempre à altura, na manutenção da coesão, na elevação da moral, sem violentar nenhuma consciência, nem tão pouco exercer autoritarismos, nas circunstâncias descabidos.

Um primeiro grupo rumou então a Cabedú, para fazer a transição da Companhia que íamos render, para a nossa. Terá sido nos últimos dias do ano de 1963, se, e mais uma vez, a memória não me falha. O restante, (dois pelotões?), de que fazia parte o signatário, embarca num batelão ou numa lancha da marinha (não posso precisar) no dia 31 de Dezembro do referido ano, fazendo uma viagem que havia de considerar-se perigosa, na medida em que os “turras” privilegiavam muito as margens dos rios e canais para fazerem os seus flagelamentos.

Então, junto da famosa ilha do Como, à altura considerada pelo PAIGC território libertado, fomos atacados com alguma violência, de que resultou um ferido grave, que estava (penso que a dormir) na coberta do barco e não recolhido, como a esmagadora maioria, no seu interior. Foi evacuado para Bissau e, posteriormente, para Lisboa. Foram momentos de certo pânico, mais pela descontracção que no momento reinava a bordo do que pela intensidade de fogo.

A uma distância temporal considerável, ainda hoje, tirando a infelicidade do nosso companheiro, considero ter sido um bom baptismo de fogo, que nos foi útil para o que se iria passar depois. Por coincidência, ou talvez não, o ataque dá-se precisamente no momento em que um grupo festejava a passagem de 63 para 64, saboreando uns belos paios e um bolo que me tinham sido enviados de Lisboa por familiares, acompanhados dumas boas cervejas.

Os “irresponsáveis” (deviam estar atentos às movimentações do inimigo, num lugar daqueles, e não a satisfazer as necessidades do estômago e da alma) na sua totalidade não os posso referir, mas há três de que tenho a certeza da sua presença: eu próprio, o Mário Ribeiro e o Alves. Não chegámos, como é óbvio, ao fim do repasto, ficando o resto das iguarias para mais tarde. A resposta foi boa e, passado algum tempo, tudo serenou e mais nada digno de realce aconteceria até ao nosso destino: o ainda desguarnecido aquartelamento de Cabedú, onde nos esperavam os nossos companheiros.

(Continua)

______________

Notas de CV:

(*) Números de telefones suprimidos na edição do texto, mas que se fornecem, particularmente, aos camaradas que nos contactarem para o efeito.

(**) Vd. poste de 16 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3063: Notícias da CCAÇ 555 (Cabedu, Out 1963/ Out 1965) (Norberto Gomes da Costa)

domingo, 10 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3126: Estórias do Juvenal Amado (14): Morteiro no meio da Parada de Cancolim



Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74



1. Mais uma estória do camarada Juvenal Amado (1) nos chegou. É também uma homenagem aos meninos de suas mães que deixaram a vida prematuramente.

Cancolim > Abrigo do Morteiro 81


O MORTEIRO NO MEIO DA PARADA

CANCOLIM


Nunca consegui compreender, o porquê da colocação do abrigo do morteiro 81 mm no meio da Parada.

Tal localização obrigava os apontadores e municiadores de Cancolim, a correrem debaixo do fogo inimigo, mais de trinta metros pela parada, sem qualquer protecção.

Esta Companhia não teve sorte em terras da Guiné.

Estava há talvez 15 dias em Cancolim, quando sofreu a primeira flagelação. Oito dias depois sofre outra. E precisamente oito dias depois, sofre um violento ataque de morteiros 82.

Tudo indica que as duas primeiras flagelações foram só para marcar o alvo e assim direccionar o tiro pesado desse dia.

Ia pernoitar em Cancolim como de costume, após coluna de reabastecimento.

Mal conhecia o destacamento, pois só lá tinha ido uma vez e ainda estávamos naquele período de adaptação operacional, enquadrados pelos velhinhos que íamos render.

Conhecia vagamente o Apontador de Morteiro Correia, amigo do meu irmão Ivo. Mas esse pequeno elo foi o suficiente para ser por ele adoptado sempre que ia em coluna, lá.

Estavam a construir umas instalações sanitárias junto à caserna do lado direito, para quem entrava no destacamento. Até aí, as nossas mais prementes necessidades fisiológicas tinham que ser feitas nuns buracos junto ao arame farpado e para tal, tínhamos que avisar a sentinela.

Tinha anoitecido há pouco, estava de conversa com alguns camaradas, junto das valas como era hábito. Naquele destacamento ninguém se recolhia antes das dez horas da noite.

De tempos a tempos ouviam-se tiros e rajadas dadas pelos sentinelas. Aquilo incomodava-me, pois era impensável que tal se fizesse em Galomaro.

Quando se pesca à cana, temos duvidas se o peixe morde se é o mar que faz estremecer a cana, mas quando é peixe mesmo não há duvida nenhuma. Assim é com um ataque. Ao primeiro som não temos duvidas.

O som das saídas de morteiro 82 do IN não deixam lugar para o talvez. Deixámo-nos cair para dentro das valas e abate-se sobre nós um dilúvio de ferro e fogo.

As explosões são seguidas, pois um apontador experiente pode pôr quatro ou cinco granadas no ar. Quando elas começam a cair, o efeito é devastador.

Penso que o nosso organismo tem meios de nos fazer ignorar parte do que se está a passar, pois ao ficarmos surdos, deixamos de ter a total percepção do inferno em que estamos.

Uns disparam as suas armas, outros choram e apelam para Nossa Senhora de Fátima (*), eu lá ia disparando a minha arma, estou aterrorizado.

O nosso morteiro responde ao fogo desde o primeiro momento, alguns camaradas atravessam a correr, em campo aberto, transportando cunhetes de granadas para municiar o morteiro.

Como invejei essa valentia.

Não sei quanto tempo durou, mas sei que foi demais.

Pouco a pouco, a violência do ataque abrandou.

O fumo, o pó e o cheiro, manteve-me muito tempo sem me mexer. Espreitava pelo bordo da vala para ver se descortinava o que se passava.

Havia mortos e feridos, foi a noticia que começou a correr pelas valas.

A madrugada com a sua luz redentora, mostrou-nos a destruição e os estilhaços espalhados por todos o lado.

Cancolim > Depois do ataque, não faltavam embalagens vazias de granadas espalhadas junto ao abrigo do morteiro 81

Estavam três camaradas mortos dentro de uma vala. Uma granada tinha rebentado dentro. Os seus corpos destroçados foram, como possível, depositados nos sanitários em construção.

Foi uma triste inauguração.

Essas obras ficaram muito tempo por concluir em memória dos nossos mortos. Havia feridos, falou-se num dos velhinhos ter ficado cego de um dos olhos e o próprio capitão novo (**), foi ferido ainda que ligeiramente no pescoço por um estilhaço.

Foram os nossos primeiros mortos em combate. A morte em combate nunca é limpa, ao contrário do que até ali tinha visto, nos filmes de cowboys e de guerra made in América.
Não os conhecia em vida e a imagem que guardo deles, é daqueles corpos desfeitos no chão das casas de banho por acabar.

Faz-me lembrar um poema sobre a Guerra, em que se fala no menino de sua mãe (***), também ali estavam estendidos os meninos de suas mães. Como a maioria nós nem barba tinham.

Tombaram assim no campo de batalha os nossos camaradas e é em memória deles esta estória.

José António Paulo - natural de Mirandela
João Amado - natural de Vieira de Leiria
Domingos de E. Santos Moreno - Natural de Macedo de Cavaleiros

(*) Também do lado dos guerrilheiros nos momentos de aflição se chamaria possivelmente por Fátima, neste caso a filha de Maomé.

(**) O capitão ferido veio a desertar logo de seguida, numa viagem que fez à Metrópole. Era um miliciano bastante querido pelos seus soldados e a imagem que tenho dele, é de um homem sensível que não foi talhado para guerreiro. Onde estiver desejo-lhe a melhor sorte.

Não foi culpado de maneira nenhuma pelo o que aconteceu e o que viu foi demais para ele.

Foi substituído mais tarde pelo Capitão Rosa também miliciano.

Este homem ficou famoso entre nós pela sua intervenção na reunião havida em Galomaro com o General Spinola.

O General, no seu discurso aos oficiais disse em dado momento que devíamos à Pátria o sacrifício, até das nossas vidas.

O então Capitão Rosa, dando voz ao que muitos pensavam, respondeu que a nossa Pátria é a que nos dá paz, bem estar e futuro e, aquela que o General referia, não era de modo algum essa.

Não posso jurar que tenham sido rigorosamente estas as palavras mas o fundamento foi o mesmo

(***) O MENINO DE SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De balas trespassado
Duas, de lado a lado
Jaz morto, e arrefece

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!
(Malhas que o Império tece)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe

(Fernando Pessoa)
_________________

Nota de CV:

(1) - Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3110: Estórias do Juvenal Amado (13): Pela calada da noite

Guiné 63/74 - P3125: História de vida (14): Norberto Tavares de Carvalho, O Cote: do PAIGC ao exílio (A. Marques Lopes)


O Cor DFA Ref A. Marques Lopes, nosso amigo e camarada, juntamente com o Norberto Tavares de Carvalho, O Cote, que nasceu no Xime, foi líder estudantil no tempo de Spínola, preso pela PIDE/DGS em Novembro de 1972, comndenado em 1973 a três anos de prisão com deportação para o campo de concentração da Ilha das Galinhas, e finalmente libertado em Maio de 1974... Vive exilado na Suíça, desde 1983, na sequência do golpe de 'Nino' Vieira, em 1980
Fotos: © A. Marques Lopes (2008). Direitos reservados.

1. Mensagem de A. Marques Lopes, com data de 5 de Agotso:

Caros camaradas

No início das minhas férias (que já acabaram, ai, ai...) encontrei-me com um amigo guineense que veio de visita a familiares que tem em Portugal. Chama-se Norberto Tavares de Carvalho, "O Cote" (*). Tem uma história interessante.

Entre 1970 e 1973 foi estudante da Escola Industrial e Comercial de Bissau, tendo também trabalhado, em 72 e 73, como acompanhante na Ponte Cais de Bissau (trabalho nocturno); em 2 de Novembro de 1972 foi preso pela PIDE, por ordem expressa do General Spínola, na sequência de uma greve dos estudantes; em 8 de Maio de 1973 foi novamente preso pela PIDE, tendo sido condenado, em Setembro desse ano, a 3 anos de prisão e deportação para a Ilha das Galinhas (campo de concentração na Guiné para presos políticos). Foi libertado a 3 de Maio de 1974, na sequência do 25 de Abril.

Após a independência, foi dirigente da Juventude Africana Amilcar Cabral, tendo também trabalhado como funcionário público nos Arquivos da Segurança do Estado, entre Novembro de 1974 e Setembro de 1978, e sendo Comandante do Departamento Central da Migração em 1978-1980; foi preso em Novembro de 1980, depois do golpe de Nino Vieira de 14 de Novembro desse ano, tendo sido deportado, em Dezembro de 1982, para trabalhos forçados na ilha de Carache (nos Bijagós). Foi libertado em 1 de Maio de 1983, tendo fugido para o Senegal em Julho desse ano.

É exilado político na Suíça desde Novembro de 1983.

A alcunha de "O Cote" foi-lhe dada pela PIDE, disse-me ele. Os seus pais eram empregados de um alemão, de nome Cote, que estava na Guiné, e começaram a chamar-lhe assim. E é o nome por que ficou conhecido entre os seus camaradas do PAIGC.

Está a preparar um trabalho sobre aspectos da história da Guiné-Bissau, dizendo-me que encontra questões de muito interesse no nosso blogue, de que é leitor assíduo. Perguntei-lhe, já depois do nosso encontro, se podia enviar as fotografias em que estamos juntos bem como a sua estória. Respondeu-me que não vê inconveniente nenhum, "antes pelo contrário, a honra é minha" e "Fique djamtum e que a Tabanca Grande continue a se expandir pelo blogue fora".

Penso que é de publicar o que vos conto.

Abraço

A. Marques Lopes


2. Nova mensagem do A. Marques Lopes, com data de 8 de Agosto:


O Norberto de Carvalho, "O Cote", enviou-me esta correcção:

Excelente, gostei do meu curriculum. Só um pequeno pormenor, pois devo ter-me explicado mal, ou pouco: os meus pais não trabalharam para um alemão, não. É que eles moravam em Xime e, nesse dia 6 de Junho de 1952, data do meu nascimento, resolveram ir para Bambadinca onde haviam parteiras que podiam melhor ajudar no parto. Só que, chegados na "Ponta do Sr. Côte", uma horta há alguns quilómetros de Xime, para quem vai para Bambadinca, o bébé já estava aí! Tiveram que fazer uma alta e a mulher, assistida pela esposa do dono da horta, teve o seu bébé aí mesmo.

O Sr. Côte, dono da horta, de origem alemã (e libanês), ouvindo finalmente o bébé chorar, foi bater à porta do quarto onde o parto se desenrolava e perguntou à sua mulher, (num crioulo sem falhas):
- É rapaz ou rapariga?

Como a resposta foi "rapaz!", o agricultor decidiu que se chamaria Côte, como ele. Não foi lá muito democrático para o recêm-nascido, mas enfim, o patrónimo foi respeitado até hoje. Mas olhe, Marques Lopes, isto é para si, quanto a mim pode deixar o texto tal como está para ser publicado no blogue. Este é um pequeno pormenor sem incidências quaiquer. Avise-me quando o Luís Graça passar o curriculum no blogue. A propósito, explique-me como localizar no blogue o seu trabalho sobre a guerra colonial na Guiné. Devo confessar que me perco um pouco nas minhas buscas no site. Vai um abraço amigo."


Tinha-me pedido, para o trabalho que está a fazer, uma cópia do livro do Alpoim Calvão, De Conakry ao MDLP. Enviei-lho hoje. Recomendação aos editores, especialmente ao Luís Graça, que ele refere: dêem atenção a este caso. É uma relação de interesse para a tertúlia, um guineense da luta que poderá participar.

A. Marques Lopes

____________

Nota de L.G.:

(*) O Norberto Tavares de Carvalho tem publicado, desde Maio de 2006, diversos textos na página de Fernando Casimiro (Didinho). Já aqui pubicámos um desses textos, com a devida autorização do Didinho: 22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2203: Artistas guineenses (2): José Carlos Schwartz (Didinho/V.Briote)

sábado, 9 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3124: O Nosso Livro de Visitas (23): Vasco Joaquim, 1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2912 (Juvenal Amado/Carlos Vinhal)

1. Mensagem de Juvenal Amado com data de 1 de Agosto de 2008:

Caros camaradas Carlos Luis Virgilio e restante Tabanca.
Recebi este e-mail deste camarada que me deixou muito feliz, como é de prever.

Ele pede-me contactos de malta do BCAÇ 2912, eu penso que nada melhor que o blogue para os encontrar.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


2. Mensagem de Vasco Joaquim de 31 Julho de 2008, dirigida a Juvenal Amado e reenviada por este nosso camarada ao Blogue:

Caro amigo Amado,
Permite que te trate por tú, pois fomos companheiros de armas, ou antes... tive o privilégio de ser substituído por alguém que preencheu uma vaga no mato, para que eu regressase à Metrópole. Pois bem, certamente que contactámos naquele espaço de tempo em que a CCS do 3872 rendeu a CCS do 2912 sita em Galomaro, já lá vão 36 anos.

Eu era na altura o 1.º Cabo Escriturário, Vasco de Jesus Joaquim com o NM 08190469, fazendo parte do BCAÇ 2912, formado em Abrantes (RI2), IAO em Santa Margarida e embarcado para a Guiné em 24 de Abril de 1970, no célebre "iate" CARVALHO ARAÚJO.

Ao analisar a tua corrida pelos locais que percorreste pelas terras da Guiné, dos quais a maioria conheço, agradeço o facto de me teres recordado através das fotos os locais por onde passei, tantas e tantas horas de solidão e saudade (pois na altura já era casado).
Reconheci o Restaurante Morte Lenta, os abrigos, a metralhadora destruída que infelizmente estava ao meu cuidado (embora fosse Amanuense), o morteiro 81 onde também tive instrução, o "Estádio", onde tantas caneladas apanhei, pois jogava pelos Sapadores.
A Cantina, onde tantas "81 e 60" emborcava... enfim o local que me servia de trabalho, pois era eu que fazia a Ordem de Serviço do Batalhão. Bons tempos.

Tristezas? Algumas.
Mortos em emboscada nas Duas Fontes (1) às 3 da madrugada, o Mecânico Auto Laranjina, o Sapador Barreto, o homem do rádio, Oliveira, e mais dois camaradas adidos, o Bolinhas e o Monteiro, bem como o meu amigo Milícia, Iderissa Candé.


Enfim... recordações que só são avaliadas por aqueles que palmilharam por aqueles locais.

Quanto aos castigos, eu também tive alguns (56 reforços à "benfica") e não sei quantas patrulhas nocturnas - e tudo por faltar às formaturas da refeição - e o capitão que era alentejano - que não me gramava, aplicava-me logo o "código ", só que quanto aos "reforços" fazia alguns porque o camarada Escriturário que fazia a Escala retirava alguns, pois dormiamos no mesmo abrigo.

Gostei de ver a foto do Filipe com a lavadeira, que também "era a minha", suponho que era fula ou balanta e que se chamava Binta?... não tenho a certeza... mas que me levava 50 pesos por mês lembro-me muito bem.

Quanto ao "Regala", conheci-o bem. Até lhe dediquei uns versos numa prosa que fiz do qual me recordo este:

Junto da nossa unidade
O Regala bem regalado
Pois não tem piedade
De tão caro vender ao soldado

A foto do Filipe com Esofe está boa. Gostei. Eu também tenho com ele, pois ele era funcionário do Regala e servia no bar/restaurante que eles tinham lá em baixo ao fundo.

Pois meu amigo, daqui a uns tempitos já cá não anda ninguém, daqueles que deram o coiro em terras desconhecidas para nós, mas que tivemos orgulho em cumprir a nossa missão.

Eu pelo meu lado, já estou reformado, traballhei na CP, como Chefe de Estação durante 32 anos, findos os quais me reformei aos 55 anos (já lá vão quase 5). Resido em Ovar onde trabalhei imensos anos, embora a minha naturalidade seja perto de Lamego.

Pronto meu amigo e camarada, obrigado por teres despertado em mim um pouco daquilo que eu já julgava ter esquecido, mas que num instante recordei com saudade, ao ponto de dizer aos meus filhos já casados:

-Olha por aqui andei eu.

Bem hajas e obrigado.
Um grande abraço e manda notícias.
PS. Se souberes de algum endereço da CCS do BCAÇ 2912, agradeço.



3. Mensagem enviada ao Vasco Joaquim em 8 de Agosto de 2008, com conhecimento a Juvenal Amado:

Caro Vasco Joaquim
O nosso camarada Juvenal Amado, elemento activo do nosso Blogue para o qual ficas desde já convidado a aderir, reenviou-nos a tua mensagem.

Sobre a CCS do BCAÇ 2912, à qual pertencias, não temos nada, mas temos alguns tertulianos das outras Companhias do teu Batalhão. Por exemplo o Fernando Barata da 2700, Tony Tavares e Manuel Melo da 2701.

No nosso Blogue podes encontrar muito sobre o teu Batalhão, basta escreveres na janela de pesquisa bcaç 2912 e aparecerá muita coisa para leres.

Entretanto fui à Página do nosso camarada Jorge Santos e no seu Ponto de Encontro encontrei camaradas teus a pedir contactos. São eles:

da CCAÇ 2699 - Adelino Fernandes (*)
da 2700 - Timóteo (*)
da 2701 - Manuel Melo, Tony Tavares e Lourenço (*)

Ficamos à espera de notícias tuas sobre os contactos que possas vir a concretizar.

Um abraço do camarada
Carlos Vinhal
Co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

(*) - Retirados, na edição, os números de telefone e endereços
_____________

Notas de CV:

(1) - Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2529: PAIGC: Emboscada a forças do BCAÇ 2912, na estrada Galomaro-Bangacia (Duas Fontes), em 1 de Outubro de 1970 (Luís Graça)

(2) - Vd. postes sobre BCAÇ 2912 de:

4 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1494: Tertúlia: Apresenta-se o ex-Alf Mil Fernando Barata, CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912

22 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1541: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (1): Introdução: a 'nossa Guiné'

26 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1550: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (2): A nossa gente

15 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1595: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (3): minas, tornados, emboscadas, flagelações e acção... psicossocial

11 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1651: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (4): Historietas

30 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1795: Convívios (12): 16.º Encontro da CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912 (Dulombi, 1970/72), Braga, 10 de Junho de 2007 (Fernando Barata)

Guiné 63/74 - P1796: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (5): A(s) alegria(s) do(s) reencontro(s)

12 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2260: Álbum das Glórias (33): Inauguração da exposição de fotografia do Américo Estanqueiro, hoje, na Fundação Mário Soares

10 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2743: Convívios (50): Convívio da CCAÇ 2700/BCAÇ 2912, em Fátima, no dia 26 de Abril de 2008 (Fernando Barata)

Guiné 63/74 - P3123: Ser solidário (17): ONG AD - Relatório de actividades de 2007 - Parte IV (Final): Parcerias e apoios




Cópia da capa de três publicaçõe recentes da AD, em colaboração com o Instituto Marquês Valle Flor e com o apoio da Comissão Europeia: (i) Estudo de Mercado sobre a Comercialização de Produtos Locais no Sector de S.Domingos; (ii) Observatório da Educação no Sector de S.Domingos; (iii) Estudo das Potencialidades e dos Constrangimentos do Ecoturismo na Região de Tombali. O Instituto Marquês Valle Flor é o principal parceiro português da AD.




Guiné-Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da Semana > 3 de Fevereiro de 2008 > O Professor, belga, Hubert Lelotte "continua, com a sua competência e entusiasmo, a formar os primeiros guias ecoturisticos de Cantanhez, após vários anos de colaboração na criação das Escolas de Verificação Ambiental no país"... Na foto, um grupo de jovens "guias prepara-se para identificar um itinerário turístico, recolhendo todas as informações de carácter ambiental, fluvial e logístico, que irão permitir aos nacionais e estrangeiros que demandam esta zona sul, poder escolher o que pretendem conhecer e visitar".

Fotos: Cortesia de: © AD- Acção para o Desenvolvimento (2008). Direitos reservados.


Quarta (e última) parte do relatório de actividades de 2007, da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, que temos vindo a reproduzir no nosso blogue. Com esta ONG guineense, que tem sede em Bissau, antemos desde finais de 2005 uma relação, franca, aberta, privilegiada, de cooperação, tendo como pretexto inicial o Projecto Guileje que deu origem, entre outras iniciativas que tiveram o nosso apoio, à realização do Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1 a 7 de Março de 2008), e que abriu portas a outras iniciativas mais recentes, como por exemplo a recolha de sementes.


AD -Acção para o Desenvolvimento: Relatório de actividades de 2007 > Parte IV

Revisão e fixação de texto: L.G. (Não se reproduzem, por razões técnicas e de economia de meios, as fotos do relatório original, divulgado em formato pdf, no sítio da AD).

D. PARCEIROS DA AD

Embora o ano de 2007 tenha registado um aumento do volume financeiro de apoio aos projectos da AD, interessa lançar para discussão alguns sinais de mudança que se poderão vir a reflectir com muita preocupação a médio prazo no relacionamento entre a nossa organização e alguns dos nossos parceiros.

A primeira e mais importante refere-se à mudança gradual de atitude de algumas ONG parceiras da AD desde a primeira hora e que parecem abandonar a antiga cumplicidade existente entre nós na defesa de políticas progressistas de luta das populações mais excluídas, no combate político por uma sociedade mais justa, progressiva e solidária, para se deslumbrarem e deixar seduzir pelos modelos de organização e prioridades administrativo-financeiras de tipo neo-liberal.

Se anteriormente o acompanhamento da execução dos projectos tinha obrigatoriamente por pano de fundo as opções políticas, os métodos de responsabilização das comunidades e a criação de dinâmicas inovadoras, agora, esta reflexão deu lugar a exigências mais ou menos explícitas para o funcionamento burocrático das nossas ONG serem feitas à imagem e semelhança das deles, sempre consideradas como modelos exemplares e de reprodução local necessária.

Tem-se a ideia de que certas ONG do norte se perderam no caminho, deixaram de crer nas suas vocações e docilizaram-se perante as suas fontes de financiamento, assumindo um mero papel de executores, bons e baratos, das suas políticas governamentais. Para digerir o purgante, algumas passam anos a reestruturam-se em termos de finalidades e formas organizativas,
alimentando o espírito com supostos desafios novos em que os seus funcionários não se revêem e até por vezes nem percebem.

Acabamos por ter a sensação que, para essas ONG, o que é preciso é que as nossas organizações funcionem administrativamente bem, produzam relatórios atempados que eles acabam por não ler (várias vezes o pudemos constatar), cumpram os preceitos internacionais da boa contabilidade, em vez de privilegiar as acções nas tabancas e a obtenção de resultados mobilizadores para outras comunidades. O voluntarismo e a entrega ao trabalho não devem ser confundidas com amadorismo, falta de rigor e irresponsabilidade.

Fica-se sem saber quem afinal está a ver o filme ao contrário. Eles ou nós?

Outra das preocupações a ter em conta e assinaladas em relatórios anteriores, é o do perigo de concentrar as nossas parcerias num só ou num número muito reduzido de organizações financiadoras. As múltiplas parcerias embora tenham o inconveniente de exigirem muito mais trabalho da AD (relatórios, notas verbais, respostas a questões) garantem uma autonomia de discussão e decisão em relação às nossas opções e escolhas.

Não é independente quem quer, mas sim quem pode. Por isso impõe-se que a AD procure noutros azimutes novas parcerias que a façam conservar a capacidade de execução dos programas que ela própria definiu e não as que outros julgam, pela lei do dinheiro, deverem ser as nossas.

Finalmente, interessa à AD empenhar-se mais na vida da PLACON-GB, a atravessar um dos períodos mais delicados da sua existência a necessitar de rever funções, formas de representatividade, procedimentos e compromissos políticos.

A PLACON-GB deve promover a cooperação e solidariedade entre as ONG e não comportar-se também ela como uma ONG, apoiando umas e penalizando outras. Deve ser o rosto das posições de luta pela unidade nacional e desenvolvimento, combatendo de forma firme e intransigente a corrupção, o narcotráfico e o tribalismo, pautando as suas posições pelos interesses exclusivos das comunidades locais e não das dos partidos políticos e promovendo a democracia, justiça social e desenvolvimento solidário, nunca se esquecendo que quem reclama a democracia aos outros deve praticá-la primeiramente em casa.

Segundo os países, a situação das parcerias da AD em 2007 apresentaram-se da seguinte forma:

a) HOLANDA

A ICCO iniciou um processo de descentralização, devendo criar uma delegação na África Ocidental que ninguém sabe como funcionará na prática e que será ela no futuro a aprovar os projectos. Custa-nos a compreender como é que uma comissão constituída por 9 elementos provenientes de outros tantos países que dominam o francês e o inglês e só 1 o português, poderão avaliar a pertinência e interesse de projectos apresentados por ONG guineenses. Parece ser a fórmula mais inteligente de excluir a Guiné-Bissau de futuras parcerias, isto para quem já tanto tentou por outras formas sair do nosso país.

O projecto de 3 anos, no valor de 360.000 euros concluir-se-á no final de 2008 não se sabendo quais os mecanismos a accionar para a sua continuidade.

Com a NOVIB Iniciou-se em Abril deste ano um projecto que se prolongará até Dezembro de 2009, no valor de 277.000 euros. Trata-se de desenvolver o processo de implantação de rádios comunitárias em todo o país, a criação das primeiras televisões comunitárias e o funcionamento de uma Rede de órgãos de comunicação comunitária que promova a cooperação entre eles e a sua afirmação nacional.

b) PORTUGAL

Com o Instituto Marquês Valle Flor (IMVF) prosseguiu a parceria materializada nos seguintes projectos:

- o Projecto Kasumai no valor global de 775.000 euros, concluiu-se em Abril de 2007, depois de 4 anos de excelentes resultados, o que levou o Ministro dos Recursos Naturais a solicitar à Comissão Europeia, cofinanciadora desta iniciativa, a continuação do apoio a este tipo de actividades. Contou com a parceria da ACEP.

- o Projecto Uanam, financiado pela União Europeia por 4 anos, atingiu o seu meio-percurso no final deste ano. Orçado no valor de 748.618 euros, o seu final será em Dezembro de 2009. As acções centram-se à volta do ecoturismo e da infraestruturação de apoio a este programa que está a ter muito impacto nas comunidades locais e inclui iniciativas nas áreas da agricultura, comercialização, saúde e ensino ambiental.

- o Projecto Konkobai cofinanciado pela União Europeia no quadro dos programas de segurança alimentar, no valor de 496.918 euros, vai entrar no seu último ano de intervenção (Dezembro de 2008). O maior sucesso foi o da recuperação de bolanhas salgadas na zona de Barro, a distribuição de sementes e pequeno material agrícola, a introdução de carroças de burro, descascadoras de arroz, prensas de óleo e construção de poços.

- o Projecto Woncame cofinanciado pela União Europeia no quadro dos programas de segurança alimentar para Cubucaré e Quitafine, no valor de 547.439 euros, tem a duração de 3 anos e começou em Janeiro de 2007.

O reaproveitamento das bolanhas salgadas, o uso dos bas-fonds para a produção alimentar diversificada e a introdução de unidades de produção de farinha de mandioca foram os aspectos mais marcantes.

- a nossa ONG vai colaborar em 2008 com os projectos apoiados à COAJOQ em Cacheu e à capacitação de ONG nacionais, geridos pelo IMVF.

O Ministério do Trabalho e Segurança Social (MTSS) prosseguiu o apoio à Escola de Artes e Ofícios de Quelele, no domínio da criação de um Curso de Artes Domésticas e Hotelaria (63.000 euros), concluiu-se em 2007 o programa de formação de auxiliares de educadoras de infância (17.000 euros) e do observatório de emprego e apoio à inserção socioprofissional (12.500 euros). A Mutualidade de Crédito de Quelele foi apoiada com um financiamento de 9.876 euros desbloqueados em finais de 2007.

A Escola Superior de Educação de Leiria apoiou a realização de um curso de energia solar em S. Domingos, contribuiu para a reflexão sobre os objectivos e funcionamento do futuro Centro de Aprendizagem Rural de Guiledje e apoiou o site da AD e criação do site do Simpósio de Guiledje.

Com o CIATE (Centro Integral de Adestramento Tecno-Electrónico), prosseguiu o apoio conceptual e de formulação dos currículos dos cursos de electricidade e electrónica, em particular a reformulação do programa e das instalações das aulas práticas do curso de electricidade.

Com a Câmara Municipal do Montijo decorreu uma breve cooperação através de 4 jovens que estiveram na sede do PAN durante 6 meses colaborando com o Cenfor, a Ludoteca, o jornal comunitário e a animação cultural. Este tipo de colaboração, para ter sucesso, exige que sejam atempadamente definidas os termos de referência de cada voluntário, as regras e modalidades da sua integração nas estruturas da AD, a produção de relatórios e propostas de actividades e as responsabilidades hierárquicas a observar.

A parceria iniciada com a TESE através do projecto ambiental de “Promoção do acesso a fontes de energia moderna na Guiné-Bissau” que visava o uso do gás em substituição da lenha e carvão, aprovado pela Comissão Europeia no valor de 1.678.974 euros acabou por ser anulado pela AD pelas fundadas divergências com a GALP, um dos parceiros do projecto, associadas a uma falta de confiança profissional.

c) ESPANHA

O Ayuntamiento de Elx continuou pelo oitavo ano a sua colaboração a nível de S. Domingos, tendo em 2007 sido recebidos 6.200 euros para a realização de cursos no CENFOR, para o funcionamento da Ludoteca e para o inicio do programa de alfabetização.

Com o IEPALA concluiu-se em Fevereiro o projecto de 3 anos, no valor de 58.974 Euros, que se saldou por resultados muito positivos na diversificação agrícola no sector de S.Domingos. Iniciou-se com esta ONG a formulação de um projecto de criação de uma Rede das Escolas de Verificação Ambiental que poderá eventualmente ser aprovado ainda em 2008.

d) BÉLGICA

Com a Solidarité Socialiste, o projecto de Reforço do Movimento Associativo Rural do Norte, entrou no seu quinto e último ano (conclusão em Abril de 2008) com um financiamento para 2007 de 38.940 Euros. A fileira óleo de palma está lançada e a metodologia para a legalização da Rádio Kasumai poderá servir de referência para as outras Rádios Comunitárias.

Iniciou-se a reflexão para a elaboração de um novo projecto de 3 anos no sul do país de apoio às associações de base, em colaboração com 3 outras ONG guineenses (AIFA, ADIM e NIMBA) e integrada numa rede subregional de parcerias com outras ONG dos países vizinhos.

e) ITÁLIA

Com a ONG AIN (Associazione Interpreti Naturalistici) iniciou-se em 2007 a execução do projecto “ECO-GUINÉ”, no valor de 4.455 Euros, que tem uma componente de formação de guias de ecoturismo e gestores de unidades locais de prestação de serviços, assim como a identificação de percursos naturais. A zona de intervenção é Cantanhez e Dulombi, esta última com a ONG guineense APRODEL.

f) Organizações estrangeiras sedeadas em Bissau

A parceria com o Fundo Canadiano de Iniciativas Locais (FCIL) traduziu-se no financiamento da construção das novas instalações da Rádio Balafon em Ingoré, com uma contribuição de 20.837 euros.

g) Organizações Internacionais

A União Europeia é o maior parceiro da AD, cofinanciando grande parte dos nossos projectos e dispondo de há 2 anos a esta parte interlocutores que acompanham os projectos e que mostram uma grande disponibilidade na prestação de informações e serviços às ONG. Este ano a União Europeia cofinanciou cinco projectos: Kasumai, PISAC, Uanam, Konkobai e a Doação Global com o IEPALA.

A UICN tem continuado a desempenhar um papel notável nas pontes que proporciona com outras instituições nacionais e estrangeiras, governo, ONG, institutos, financiadores e agencias ambientais, o que facilita e desbloqueia grande número de casos que ocorrem nas nossas zonas de intervenção e propícia à AD uma melhor procura de financiamentos para projectos de desenvolvimento-ambiente.

O PAM foi um parceiro activo e pontual no apoio aos projectos de “comida contra trabalho” em especial no aproveitamento dos pequenos vales interiores do sector de Cubucaré para a produção de batata-doce, mandioca e feijão mancanha e na recuperação de bolanhas para a orizicultura.

h) Individualidades

Para a nossa ONG a colaboração voluntária de pessoas que o fazem a título individual, tem um profundo significado solidário que inculca em todos quantos trabalham na AD valores de referência e comportamento.

Este ano gostaríamos de destacar:

- o sociólogo Luís Graça, coordenador do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, que tem trazido para o seio da AD muitos camaradas que para além de se interessarem pela recuperação da memória histórica antes da independência, se propõem colaborar com as iniciativas de hoje. O seu envolvimento na promoção do Simpósio de Guiledje é decisivo para o seu êxito.

- O professor belga Hubert Lelotte, grande entusiasta do ensino ambiental e que está na origem das Escolas de Verificação Ambiental e das Reservas Educativas prosseguiu o seu apoio à AD numa segunda formação dos guias ecoturísticos de Cantanhez e produzindo o jornal mensal de ligação entre ele e os guias, intitulado “Partilha” e do qual foram publicados até Dezembro de 2007, 39 números.

- Os médicos cubanos sedeados em S. Domingos, Doutores Alexandro e José, deram uma contribuição notável no Centro Materno- Infantil de Djufunco, consultando para além das mulheres grávidas cerca de 350 doentes por mês, emprestando a sua competência e dedicação para a melhoria das condições de saúde numa zona do país que nunca tinha tido acesso a um médico.

- o realizador Adrezej Kowalski, pioneiro das televisões comunitárias na Guiné-Bissau (TVK e TVB), formou jovens do sul do país para dominarem as técnicas de filmagem e montagem dos programas da primeira televisão comunitária africana que começou a emitir através de ondas hertzianas em Novembro de 2007.

- o jornalista Assimo Baldé contribuiu igualmente para que a TV Massar de Iemberém fosse uma realidade, formando os jovens jornalistas nas técnicas de preparação de notícias, condução de entrevistas e direcção de debates.

- o historiador Leopoldo Amado colaborou de forma marcante na concepção temática do Simpósio Internacional de Guiledje, contribuindo para a sua qualidade e impacto académico.

- como sempre o professor Filipe Santos, da Escola Superior de Leiria, mantém uma colaboração no site da AD e na criação do site de Guiledje.

Para todos eles, a certeza que a AD os tem como referência moral e bebe no seu exemplo para encontrar a coragem e capacidade de ir em frente.

Bissau, Junho de 2008
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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

7 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3118: Ser solidário (14): ONG AD: Relatório de actividades de 2007 - Parte I: A segurança alimentar

8 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3121: Ser solidário (15): ONG AD - Relatório de actividades de 2007 - Parte II: Luta contra a fome, ecoturismo e TV comunitárias

8 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3122: Ser solidário (16): ONG AD - Parte III: Trabalho feito, com destaque para a realização do Simpósio Internacional de Guileje