1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), é jornalista profissional, conhecido no seu meio por “JERO”, e enviou-nos uma mensagem, com data de 30JUL2009, e o título:
O Fado do 49!
Camaradas,
Se as conversas são como as cerejas … as estórias da tropa são com as cerejeiras! Não sei se já alguém escreveu isto alguma vez mas julgamos que nos fazemos entender…
Lembrei-me do 49 quando há dias arrumava uns papéis velhos em casa.
Hesitei se devia ocultar o nome verdadeiro do protagonista desta estória real. Achei que não o devia fazer. O “49” era um homem a sério e nada do que vou contar é ofensivo da sua memória.
Num papel velho que encontrei um “apontamento” dizia respeito às punições da CCaç 675 no ano de 1964,na Guiné:
“Serafim Silva Santos, 1º Cabo Condutor Auto Rádio Telegrafista nº. 2949/64, punido com 5 (cinco) dias de detenção porque no dia 28DEZ64, quando conduzia uma viatura não ter tomado as devidas precauções e cuidados, provocando com o seu desleixo o queimar-se a junta da cabeça do motor, por falta de água no radiador. Não é mais severamente punido atendendo ao seu bom comportamento anterior. Infringiu os deveres 5º. e 9º. do Artº. 4º. do R.D.M.”.
Acabámos a comissão na Guiné em Maio de 1966 e, depois de fazer o espólio no Quartel em Évora, fomos para a vida civil. Os anos passaram e nas reuniões anuais dos ex-combatentes o Serafim nunca mais deu sinais da vida.
Em 1997 – 31 anos depois de termos regressado da Guiné - realizou-se mais um encontro dos antigos combatentes da Companhia de Caçadores 675. Desta vez o encontro foi na zona de Pombal para comodidade dos “velhotes” residentes no Norte do País.
Repetiram-se os abraços e velhas piadas dos anos anteriores e de repente aparece uma “cara nova”.
- Oh Moreira, quem é este senhor. Era da Companhia?
- Oh Oliveira, estás a ficar velho! Este gajo é o Serafim, o Radiotelegrafista!
- G’anda Serafim não te via há mais de 30 anos. Desculpa lá mas nem te conhecia. Então o que é tens feito? Tens que cantar o “fado dos cagatórios”.
Ainda me lembra de um bocado da letra: “Sentadinho a ganhar massa nos cagatórios da praça”!
Seguiu-se a confusão habitual na arrumação da “malta” para o almoço da praxe e o Serafim ficou numa mesa perto da minha.
Fiquei de frente para ele e não era capaz de o deixar de fixar.
Trinta anos é de facto muito tempo e ali estava ele: magro, envelhecido, de cabelo branco e bigode “à Prince”, desdentado e com o rosto sulcado de rugas.
Do rapaz que eu tinha conhecido na Guiné já quase nada restava. Talvez só os olhos – intranquilos - e o ar de “reguila”, que era a sua imagem de marca na Companhia nos longínquos anos de 1964-66.
O 49, como era tratado ao tempo, chegou à Companhia uns meses depois de estarmos instalados no Norte da Guiné. Era um rapaz metido consigo mas tinha uma “pinta” que não enganava. A vida já tinha passado por ele com dureza e deixara marcas que eram visíveis no “reguila” que se adivinhava em todos os seus gestos.
Jogava bem a bola, cantava o fado e fazia o que lhe competia sem margem para reparos. A excepção foi aquele azar na cabeça do motor…
Mas ele era “grande” era quando cantava o fado!
Quando a malta se juntava à noite e o 49 arrancava o seu fado, com sotaque do Porto, era sempre um êxito: “Sentadinho a ganhar massa nos cagatórios da praça”.
Que raio de letra! Passados aqueles anos todos nunca mais me esqueci do fado, do 49 e da sua maneira pungente de cantar aquela letra. Parecia que aquilo lhe vinha das entranhas. Da alma. Parecia quase pessoal e nos arquivos da minha memória aquele fado tinha ficado mesmo gravado.
E trinta anos depois ali estava ele: magro, envelhecido, de cabelo branco e bigode “à Prince”, desdentado e com o rosto sulcado de rugas.
O Moreira, um dos meus amigos dilectos da Companhia, estava por perto e perguntei-lhe:
- Eh pá, onde foste descobrir este tipo?
- O gajo mora em Gaia e trabalha numa fábrica de molduras. Ganha mal, coitado, e ainda trabalha aos fins-de-semana como pedreiro para ganhar mais algum. E nesta “fase do campeonato” mete-se um bocado nos copos…para esquecer as agruras da vida!
Mais malta cumprimentava o Serafim e incitava-o a cantar o fado dos cagatórios”! Afinal não era só eu que recordava o “tal fado “ da Guiné de 1964!
Na minha mesa estava o ex-Alferes Mendonça com quem eu ia trocando impressões de quem parecia bem e mal na vida, tendo em atenção o aspecto exterior.
Chegou a vez de falar no 49, o Serafim, que depois do regresso em 1966 tinha vindo pela primeira vez a um almoço da Companhia.
- Oh Mendonça, aquele rapaz tem mesmo cara de passar uma vida difícil!
- Oh Oliveira, você não sabe a vida daquele tipo?!
- Eh pá, não sei nada. Nunca mais o vi em trinta anos.
E o ex-Alferes Mendonça, que era Comandante de Companhia nas ausências do Capitão Tomé Pinto, contou-me que, por ter acesso à “papelada” de todos os elementos da Companhia, sabia alguma coisa da vida do Serafim. O 49 tinha passado a sua infância em casas de correcção e estava detido na prisão-escola de Leiria quando foi chamado para a inspecção.
- Oh Oliveira, ele praticamente veio da prisão para a Companhia. Está claro que, por recomendação do Capitão, este facto foi ocultado e, embora fosse alvo de discreta vigilância, nunca causou problemas. E sabe o que é que o pai dele fazia? Era guarda das “sentinas” de um dos mais velhos cafés da “Baixa” do Porto!
Parei de comer a minha sobremesa e recuando no tempo descobri finalmente “as raízes” do fado do 49: Sentadinho a ganhar massa nos cagatórios…Nessa tarde de confraternização estive várias vezes junto do 49 mas já não lhe voltei a pedir para cantar o seu fado…
No ano seguinte voltou a aparecer na festa da Companhia. Desta vez foi no Porto Alto, junto a Vila Franca de Xira.
Estava ainda mais magro e mais envelhecido Mas de bigode “à Prince”, e com o seu “ar reguila” de sempre. Já não se dava ao trabalho de esconder a sua dependência ”pelos copos”. Já poucas coisas o agarravam à vida.
Foi a última festa da Companhia a que o 49 veio. Morreu poucos meses depois.
Ao longo de uma existência complicada como teve o Serafim, os “5 dias de detenção “ por ter deixado queimar a junta da cabeça do motor em 1964” devem-lhe cá ter dado “um abalo ao pífaro” (1)!
A “malta” da minha Companhia da Guiné não mais esquecerá o Serafim e o seu fado: “Sentadinho a ganhar massa…”!
É verdade que é “um património em circuito fechado” mas tem “apenas”o valor da vida autêntica, que nos marca enquanto por cá andamos.
Felizmente que na vida a sério há “patrimónios” bem mais importantes dos que os dos “realities shows” da televisão dos nossos dias!
Digo eu!
Abraço,
JERO
Fur Mil da CCAÇ 675
Legenda:
(1) - Esta expressão era muito usada no calão militar e o seu significado é bem explícito…
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em: