sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7766: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (12): Uma madrinha de guerra

1. Mensagem José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 9 de Fevereiro de 2011:

Caros Camaradas
Gostaria de prestar a minha homenagem a todas as Madrinhas de Guerra.
Sem elas, a guerra teria sido diferente e, seguramente, mais desastrosa. Elas foram o conforto e a esperança, o carinho e o amor que nos acompanhou, nas horas mais difíceis das nossas vidas. Por isso, devemos-lhes uma gratidão desmedida.
A história que hoje junto, parece estranha mas foi verídica. Esta madrinha teria hoje cerca de 110 anos! Todavia, por razões óbvias e por respeito aos seus familiares, substitui-lhe parcialmente  o nome.

A todas as Madrinhas de Guerra, um abraço com toda a gratidão do
Silva da Cart 1689


Memórias boas da minha guerra (12)

Uma Madrinha de guerra

Aproximava-se o fatídico dia 26 de Abril de 1967.

O destino estava traçado e o medo parecia aumentar à medida que essa data estava mais próxima. Constava que a guerra na província da Guiné estava cada vez pior.

Vivíamos sob a ditadura de Salazar. A comunicação social era controlada e só éramos informados sobre aquilo que o regime permitia. Ora isso era muito pouco, as cartas eram censuradas, os militares que regressavam temiam a PIDE e receavam falar sobre as experiências vividas. Por outro lado, notava-se uma certa preocupação em abafar e amenizar o assunto, para bem das famílias. É que se tinha já chegado ao ponto de as vilas e aldeias terem visto chegar as caixas de pinho com os seus “soldadinhos”, como lembrado nas baladas do Zeca Afonso. A agravar isto, havia cada vez mais feridos nos hospitais e aumentavam os deficientes mutilados. Claro que os meninos ricos, em dinheiro ou em poder, safavam-se devido a influências ou à fuga para o estrangeiro. (Muitos foram, mais tarde, anti-fascistas).

Os mobilizados viviam já num ambiente totalmente diferente do habitual: por um lado, era evidente o desenvolvimento das paixões, do carinho e da simpatia de toda a gente que lhes era próxima, mas, por outro, viam-se afastados pelas jovens que não se queriam comprometer com um possível “condenado”.

É assim que se acentua o relacionamento baseado em correspondência entre os militares e as madrinhas de guerra. Esta prática foi muito incentivada pelas associações religiosas (católicas) e pelo MNF- Movimento Nacional Feminino.

Penso que ninguém é capaz de descrever com realismo a importância de que se revestia o facto de recebermos cartas da Metrópole. O correio era o elo que mantinha o sentido racional e moralizador de todos os militares. Assisti a situações dramáticas relacionadas com as notícias recebidas ou a ausência delas.

Havia uma excepção que muito me admirava. Era o caso do Feliciano de Santa Maria da Feira que raramente recebia correspondência e que várias vezes, talvez por sermos do mesmo concelho, me perguntava se eu conhecia alguma vizinha que quisesse ser sua madrinha de guerra.

Castelo de Santa Maria da Feira

Curiosamente, eu conhecia uma vizinha que gostaria imenso de ter um afilhado. Ela também me havia pedido isso.

Inicialmente não dei grande importância a este pedido mas, depois de notar a necessidade do Feliciano, vi uma oportunidade de se satisfazerem os dois desejos. Todavia, devo confessar que não sentia vontade alguma em “oferecer” a Idalina Crista a um dos meus camaradas militares. E porquê?

Penso que o facto de a Idalina ter apenso o apelido de Crista, se devia mais à sua atitude de permanente crispação e arrogância do que a um prémio à sua religiosidade, apesar de, pelo apelido, parecer concluir-se da existência de parentesco com o Salvador do Mundo, o que muito a envaidecia. Não saía da igreja. Era uma beata assumida, que aproveitava todos os momentos para defender a Igreja Católica e combater ostensivamente quem não acreditasse nos seus princípios e dogmas. Era solteira e, seguramente, ainda virgem. O seu aspecto não cativava ninguém. Teria mais de 65 anos, pernas muito arqueadas e escondidas com meias escuras e saia comprida. Esticava os cabelos lisos e grisalhos, arranjados em carrapito. que segurava na nuca e que cobria com um lenço também escuro. Não cortava os pelos do bigode (tipo chinês) nem os da verruga, perto do queixo. Faltavam-lhe já muitos dentes, mas mantinha bem visíveis dois incisivos em cima e dois em baixo, que se encaixavam perfeitamente. Não se lhe notavam seios nem curvas no corpo. Parecia uma tábua lisa. Usava sempre sapatos fechados, tipo homem. De altura teria, incluindo o carrapito do cabelo, cerca de um metro e meio. Sobrancelhas tipo Álvaro Cunhal, encimadas nos óculos de fundo de garrafa bem assentes numa penca avançada.

No dizer do vizinho Néquita era, realmente, uma carcaça de primeira. Segundo a minha sobrinha Margarida, só lhe faltava o chapéu e a vassoura para ser a bruxa má!…

Ela não tinha culpa de a beleza não lhe ter sido atribuída. E, possivelmente, também não a teve quando não foi aceite para fazer os seus votos de castidade numa irmandade de freirinhas descalças (?).

Tinha imensas razões para viver triste e complexada. Porém, ela não o mostrava e, contrariamente, vivia exuberantemente a sua devoção, a sua vaidade e o seu orgulho através das suas actividades religiosas. Digamos mesmo que ela merecia alguma compensação do Deus a quem tanto se dedicava.

O Feliciano era bom moço, muito alto e desengonçado, um tanto gago, ingénuo e pouco atraente. Claro que merecia melhor mas para o fim em questão, nada o iria prejudicar. Tive ainda o cuidado de lhe dizer que ela já não era jovem. E ele, perguntou:

– Tem mais de trinta? Acenei-lhe afirmativamente, ao que ele acrescentou que não tinha problema. E, como sempre acreditei que a Idalina Crista não lhe enviaria fotografias, resolvi dar-lhe o endereço.

Dois meses depois, era notório que o rapaz andava muito mais animado. E fazia-me várias perguntas sobre a Idalina Crista. – Que tal é a Idalina? Que relacionamento tínhamos? Se era boa rapariga? Etc., etc. Sem procurar entusiasmá-lo, lá lhe fui dizendo meias verdades para não prejudicar esse saudável e santo relacionamento.

O tempo ia passando e eu via o Feliciano cada vez mais ligado à Idalina. Ele ainda não tinha recebido qualquer fotografia dela mas trazia no bolso as santas imagens que ela lhe mandava, desde a Senhora de Fátima à Sta. Teresinha do Menino Jesus. Parecia uma criança a coleccionar os cromos da bola. O curioso é que ele, conhecendo a minha posição pouco entusiasta sobre essas causas religiosas, passou a evitar-me parcialmente. Eu não me preocupava, porque o que queria era que ele se sentisse bem.

Já faltavam poucos meses para regressarmos e eu começava a preocupar-me com o desfecho daquela paixoneta, que eu, afinal, causara.

Quando o Feliciano me perguntou como se ia para casa dela, senti um calafrio. Estávamos a um mês do regresso e eu ainda não sabia como havia de desatar esse nó. Mas tinha que começar a “desmontar” a relação. Mostrei interesse em saber como estavam as coisas e perguntei-lhe se ela lhe tinha mandado alguma foto. Ele disse que não e que até não estava muito contente com ela porque lhe tinha pedido fotografias e ela lhe mandava santinhos. Já tinha mais de 5 gravuras da Senhora de Fátima com os três pastorinhos. E que quando lhe pediu uma foto na praia ela lhe mandou uma da irmã Lúcia, vestida de freira. Mostrei-me surpreendido e aproveitei, então, para lhe dar razão e dizer que ela não precisava de se portar assim. Prometi-lhe que iria saber o que se passava.

Pouco mais de uma semana depois procurei-o para lhe dizer umas novidades. Apercebi-me de que a correspondência entre eles havia refreado um pouco, devido à não satisfação do pedido da foto.

- Oh Feliciano, tenho muita pena mas, por aquilo que me dizem, a Idalina anda embeiçada com um sobrinho de um tal Padre Inácio, que está a viver com ele na residência paroquial. E continuei: – Não sei se tem notado alguma coisa, mas ela agora deve estar a aproveitar esse relacionamento mais próximo. No entanto, ela não o quer magoar a si e vai mantendo a correspondência ou, então, está a aproveitar para fazer ciúmes a alguém.

Ele ouviu atentamente e disse:

– Pensei sempre que ela era uma rapariga séria e até acreditei no namoro mas, à medida que íamos avançando, ela não deu “chances”. Já há uns tempos que ando a matutar que ainda não é aquela que vai ser a minha mulher.

Já faltavam poucos dias para o regresso e o Feliciano disse-me:

- Oh Silva, se calhar não vou ver a Idalina porque afinal, as mulheres são todas iguais e as que andam pela igreja, às vezes, são as piores.

Logo que cheguei da Guiné dei, de repente, com a Sra. Idalina, que me veio perguntar pelo Feliciano. Fiquei de boca aberta quando a vi toda recauchutada, que nem parecia a mesma. Tinha o cabelo armado, barba feita a rigor, verruga disfarçada como se fosse um sinal e uma dentadura nova tipo actriz de cinema. Com as sobrancelhas aparadas, uma blusa ligeiramente aberta, uma saia pelos joelhos, pernas descobertas e rapadas e usava sapatos altos. Parecia uma boneca.

- Então, onde está o meu afilhado? Quando é que ele me vem ver? E acrescentou - Tenho muito que falar àquele maroto. Respondi-lhe, então:

- Olhe, Dona Idalina, ele não é o que eu pensava. Acabei por saber que ele já andava a namorar com uma sobrinha dum tal Padre Inácio, que agora vive com ele na residência paroquial. Pelo menos, foi isso que eu me apercebi, devido à fotografia que vi de uma rapariga em “maillot” tirada na praia de Cortegaça. Sabe, é muito tempo para um homem novo, viver afastado de uma mulher. Ela, matreira e orgulhosa, respondeu:

- Ó Zeca não te preocupes com o assunto, porque quando ele me começou a pedir fotografias obscenas, cheguei logo à conclusão de que os homens são todos iguais, o que eles querem bem o sei e os que andam pela igreja, às vezes, são os piores.

Então, gritou: - Oh meu Deus, será verdade que não há ninguém que se aproveite neste mundo?

Benzeu-se, deitou os olhos ao céu, puxou o crucifixo para o centro do peito e exclamou: - Já vi, meu Senhor, que me queres pura e honrada, junto de ti!

Silva da CART 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7710: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (11): Chico d'Alcântara, um homem de exceção

Guiné 63/74 - P7765: Recortes de imprensa (39) "Não queria morrer sem voltar à Guiné... E já voltei" (J. Casimiro de Caravlho, JN - Jornal de Notícias, 6/2/2010)




Recorte do JN - Jornal de Notícias, de 6 de Fevereiro de 2011, com o depoimento do nosso camarigo José Casimiro Carvalho no âmbito da reportagem Orfãos de Pátria. O Carvalho, que mora na Maia, foi Fur Mil Inf Op Esp, da CCAV 8350 (Piratas de Guileje) e da CCAÇ 11 (Lacraus de Paunca) (Guileje, Gadamael, Guileje, Nhacra, Paúnca, 1972/74). É membro da nossa Tabanca Grande bem como da Tabanca de Matosinhos (cujo blogue  reproduz o vídeo de mais de 15', produzido pela equipa do JN, com 4 entrevistas a antigos combatentes, incluindo as do José Manuel Lopes (*) e do J. Casimiro Carvalho >  Domingo, 6 de Fevereiro de 2011 > P528 - Orfãos de Pátria).

Reportagem: Helena Teixeira da Silva e Luís Pedro Carvalho. Vídeo: Luís Pedro Carvalho.


"Não morreram, não têm sequer feridas visíveis. Mas as que não se vêem, as que não têm nome nem cura, também existem. Quatro ex-combatentes relatam uma guerra que não escolheram. E tentam viver à procura do lado bom da história. Os homens também choram".

Reproduzido com a devida vénia...


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Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 10 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7759: Recortes de imprensa (38): "Para a guerra foram só os pobres" (José Manuel Lopes), JN - Jornal de Notícias, 6/2/2011

Guiné 63/74 - P7764: Obrigado pelas mensagens amistosas que recebi (José Brás)

1. Como já vai sendo habitual, os aniversariantes enviam-nos os seus agradecimentos pelas manifestações de carinho recebidas, quantas vezes em contrapartida com alguns piropos menos agradáveis no resto do ano. Não será o caso do nosso camarada José Brás que nos mandou esta mensagem datada de hoje, dia 11 de Fevereiro de 2011:

Carlos
Como é já dia onze de Fevereiro e depois da bebedeira de mensagens tão amistosas e, de uma ou duas inamistosas que vocês tiveram a gentileza de não publicar, peço-te que publiques, com o texto que junto, o meu agradecimento e o meu abraço a todos, todos, os que se importaram com o meu dia.


Um abraço para ti
José Brás



AGRADECIMENTOS E ABRAÇOS

Vocês sabem que sob este aspecto de rural saloio-riba-alentejano, por baixo deste chão cru que aparento, correm alguns rios de "água-quase-tudo-e-cloreto-de-sódio".

Sabem, porque foram temperados por este mesmo Sol, este mesmo cheiro de pinhais, de mosto doce, de lusitano "mare nostrum"; pela mesma memória de gente brava no arroteio da terra madrasta, no varapau, no foeiro-pau-cajado, na forquilha, na espada ou lança; pelo mesmo sal, o mesmo cabo das tormentas, a mesma esperança de outros cabos, o mesmo odor de enxofre e de capim.

Sabem, porque também vocês se encheram desses rios que às vezes despejam às claras ou na sombra, se um gesto de humanidade; uma mão que se estende solidária, as festas e as tristezas dos amigos, vos apanham de feição.

Portanto, falo com a minha gente e nisso não me encolho.

E as vossas palavras neste dia que já festejei mais vezes do que gostaria, trazem-me tais rios por sob as pálpebras, contidos apenas nos alquevas que ergo contra eles.

Obrigado camaradas por me forçarem a corrente desses rios na amizade que testemunham sem que eu tenha a certeza que poderei honrar no futuro, porque o futuro é hoje o mar bravo que nos ameaça as praias de oiro.

Obrigado a todos vós.
Abraços

...mas esperem lá! Aguentem ainda mais dois minutos enquanto falo de uma outra bebedeira. Não minha porque seria ousadia narcisista continuar a falar de mim e nem fui eu que a tomei mas o Filipe Bento que vocês conhecem, ou o Arnaldo que conhecem menos.

Nasceu o bicho ao lado da adega do avô e cedo se habituou ao cheirinho do carrascão. Um dia, aí p'ros quatro anos, cinco. O avô havia vendido o tinto e o branco, o armazenista comprador tratava de carregá-lo no camião, corria o vinho dos tonéis para o celhão e deste trasfegado por uma daquelas bombas manuais de roda grande e manivela para os pipos da viatura.

Os homens iam trabalhando e conversando enquanto o Filipe ou o Arnaldo, que p'ro caso tanto faz, de mão em concha, enchia e bebia, enchia e bebia.

A certa altura dá em atirar-se ao chão. Levantava-se, caía, levantava e caía até que o pessoal deu por isso, ai Jesus o que é que tem o rapazeco, está doente, chama o Dr. Possolo que diagnostica, o rapaz está é bêbado!

Bem, agora é que vai o abraço amplo, não pela amizade que é coisa que não se agradece, mas pela disponibilidade de a mostrarem no dia de ontem, e talvez, outros ainda, distraídos, no próximo quinze.

José Brás
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7752: Parabéns a você (215): José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Mejo, 1966/68 (Tertúlia / Editores)

Guiné 63/74 - P7763: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (61): Na Kontra Ka Kontra: 25.º episódio




1. Vigésimo quinto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 10 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


25º EPISÓDIO

Não se sabe se houve mais dizeres em fula naquela noite. Cansados acabaram por adormecer.

Ao acordar pressentem que há alguém junto da entrada da morança. A ex-bajuda continuou deitada e o agora o seu homem prepara-se para ir tomar um banho à fonte. Pega na toalha e no sabão, abre a porta e sai. Acto contínuo três ou quatro “mulheres-grandes”, das que estavam à porta, precipitam-se para dentro da morança. O Alferes que já se afastava em direcção à fonte pára a fim de presenciar o que se estava a passar.

Não demorou muito que as mulheres saíssem da morança do Alferes e da agora sua mulher, Asmau. Uma delas trazia na mão um pano muito branco que foi agitando de modo a que todos vissem. Claro, o Alferes não percebeu de imediato o que se estava a passar. Como se seguiu uma algazarra por parte do pessoal que se ia apercebendo do pano branco que a mulher ia agitando, teve que perguntar o porquê de tudo daquilo.

O Alferes não percebeu logo o alcance da primeira explicação: As mulheres tinham ido passar o pano “pela Asmau” e como vinha com manchas vermelhas podia concluir-se que efectivamente ela tinha ido para o casamento com o “cabaço”.

Só mais tarde, em conversas com o João é que ficou a saber tudo. Primeiro era uma questão de honra para os pais da Asmau terem-na entregue para o casamento ainda virgem, depois era sabido que naqueles confins ainda se fazia questão disso. O nosso Alferes, apesar de saber pelo seu amigo Ibraim de Bafatá que aí as bajudas nem sempre se casavam com cabaço, aqui, como já tinha ouvido ao João, o pessoal queria assim.

Também ficou a saber que era importante para os pais da bajuda, constatarem a consumação do casamento, pois no caso de um hipotético divórcio isso era muito importante: Num divórcio sem consumação, ou se a bajuda já não levar cabaço, o noivo pode devolver a mulher aos pais recebendo o dote de volta. Num divórcio com consumação o homem entrega a mulher aos pais sendo o dote devolvido, metade para o homem e a outra metade para a mulher.

O Alferes compreendeu todas as explicações sobre o assunto. Não deixou de considerar um tanto degradante para a mulher a cena do pano branco, embora se saiba que em muitos locais do chamado mundo ocidental foi prática não muito distante, exporem-se os lençóis da noite de núpcias, com os mesmos fins. Não deixou porém de pensar no que é o acto mais aviltante para as mulheres africanas, praticado em bajudinhas de dez, doze anos: O fanado. Uma mulher grande calcando com os joelhos os braços da bajudinha, outras segurando-lhe cada perna mantendo-as afastadas e uma outra com um qualquer objecto cortante faz-lhe a ablação de tudo o que mais tarde poderia proporcionar prazer sexual à bajuda. Teve sorte a bajuda Asmau e também o nosso Alferes.

Logo no primeiro dia após o casamento, os dois pombinhos passam a comer na sua morança. Ainda tinham restos de carne pelo que a Asmau se limitou a fazer um pote de arroz. O aspecto do arroz fumegante era óptimo. O nosso Alferes conseguiu sem grande dificuldade que a sua mulher passasse a comer o arroz com uma colher e não à mão, como era costume com todo o pessoal da tabanca. Comerem do mesmo tacho, como também era habitual, não afligia o Alferes, pois se tratava da sua mulher com quem agora tinha todas as intimidades.

Antes o nosso Alferes ainda vai à mesa onde já estavam os seus homens à espera que o “legionário”, o cozinheiro, lhes servisse o almoço. O Dionildo, com um c… f… pelo meio, não deixou de lhe perguntar se tinha dormido bem. Os outros, já meios desinibidos, não deixaram também de “brincar” com o seu Alferes. Este quando já não estava a achar graça à brincadeira, pega em duas cervejas que estavam embrulhadas com um pano molhado para as arrefecer e dirige-se para o pé da sua amada.

Ambos sentados numa esteira à porta da morança iniciam a sua primeira refeição. Com a primeira colherada de arroz que o Alferes mete à boca faz uma careta, sorri para a Asmau, engole-o, levanta-se, vai ter com o “legionário” e pouco depois está novamente sentado para continuar a refeição.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7755: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (60): Na Kontra Ka Kontra: 24.º episódio

Guiné 63/74 - P7762: Em busca de... (153): Pedido de qualquer informação sobre o militar das fotos (Alsaine Djaló)


1. De um nosso visitante que apenas nos transmitiu o nome - Alsaine Djaló -, recebemos em 7 de Fevereiro de 2011, o seguinte pedido:

Procuro informação sobre este senhor

Boas tardes Senhor Luís Graça.

Queira mais uma vez receber o meu pedido para, através do seu blogue, tentar conseguir algumas informações do senhor Carlos Alberto Guerreiro Baptista, que foi tropa na Guiné e também desempenhou funções de Chefe de Posto no Leste da Guiné, concretamente nos Sectores de Contuboel e Pirada, nos anos de 1972 e 1973.

As imagens que lhe envio são fotos dele.

O meu e-mail é: beti.bajocunda@hotmail.com

Abraços,
Alsaine Djaló
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

24 de Dezembro de 2010 >

Guiné 63/74 - P7494: Em busca de... (152): Resposta a um pedido de Procura (Nelson Herbert)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7761: Memória dos lugares (135): Bedanda, do tempo da malta da CCAÇ 6 - 1972/73 (2) (Vasco Santos)


1. O nosso Camarada Vasco Santos (ex-1º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6 – Bedanda -, (1972/73), enviou, em 4 de Fevereiro de 2011, a seguinte mensagem:

Pelotão de Artilharia de Bedanda

Caro Luís Graça,

Conforme tinha indicado num poste anterior, fiquei de falar com um conterrâneo meu acerca do Pelotão de Artilharia de Bedanda, mais concretamente com o Fur Mil Art Humberto Naia, mas o mesmo informou-me que, devido a ter seguido para Bedanda, oriundo de Cufar, em rendição individual, não se recorda qual era o número do pelotão. No entanto, confirmou-me que havia um Pelotão de Artilharia, um Pelotão de Morteiros e outro de Canhões. Tinha como superior um Alferes Miliciano.

Para que ele possa identificar o Alferes, pois eu penso que era o Alf Mil Silva (o amigo Teixeira diz que era o Bastos), enviei uma foto com os dois alferes a fim de que ele os possa identificar. Quando tiver a confirmação envio-te.

Quando o ex-Fur Mil José Vermelho fazia um reparo e dizia que o furriel de artilharia era o Ferreira, tinha a sua razão, pois na tropa, normalmente somos conhecidos pelo último nome e este meu conterrâneo Jaime Humberto Naia Ferreira é o mesmo que eu indico como Fur Mil Naia. Vou transmitir esta mesma informação ao meu amigo Vermelho.

Mário Bravo/Pinto Carvalho – Fur Mil Naia/Ferreira (é o 2º no 1º plano)

Alf Mil Silva (Artilharia) atrás do Dr. Mário Bravo

Um abraço amigo,
Vasco Santos
1º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

6 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7732: Memória dos lugares (134): Algumas fotos da minha breve passagem pelo Pelundo (António Teixeira)

Guiné 63/74 - P7760: Memórias de Mansabá (13): A bajuda e as colunas para Manhau (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67, com data de 8 de Fevereiro de 2011:

MEMÓRIAS DE MANSABÁ (13) 

A NOSSA "BAJUDA"

Falar de colunas, é falar de ir a Cutia, passando por Mamboncó, a Mansoa, a Manhau, a Banjara e a Farim, tendo a particularidade que fomos nós que reabrimos os itinerários Mansabá a Farim e Mansabá a Banjara.


Na estrada nós tínhamos uma viatura com o nome de Bajuda deixada pelos Águias Negras, que eu suponho que não tenha chegado até vocês, era uma longa vida para aquele clima.

Era uma GMC com uma casa feita em madeira, pranchas grossíssimas, blindadas com chapa de ferro, não consigo lembrar-me se tinha tecto e se se disparava pelas viseiras, mas sei que tinha sacos de terra por tudo quanto era sitio, e assente na caixa da camioneta também cheia de terra, protegida pela blindagem tipo Mansabá, tinha uma metralhadora pesada, com um poder de fogo impressionante, impunha respeito.

Picar a estrada era uma coisa fora do normal, não falando do andar a pé em África o tempo que se levava, andávamos muitos a pé à frente ainda dos picadores, praticando o desporto, possível naqueles sítios, tiro ao alvo, a tudo o que mexia, macacos, mas do que a malta gostava menos era dos abutres. Esses tiros, algumas vezes, detectaram emboscadas, com a nossa bajuda e as armas pesadas, não causavam muitos embaraços mas há excepções.

Uma delas foi no regresso de uma coluna para Mansabá que foi emboscada, em Mamboncó, com uma violência tremenda, saindo os que tinham ficado em Mansabá em socorro, e logo na subida começaram a levar a sério, tendo sido dada ordem à Artilharia para disparar. Aí calaram-se, mas como estavam muito próximo da estrada não foi logo, logo, mas a retirada deve-lhe ter sido muito difícil.

Tinha sido uma fase nova, os primeiros dias foram de alguma expectativa, voltando ao normal, tendo-nos lixado com mais duas minas anticarro, a primeira no mesmo sitio, onde já tínhamos apanhado com uma, junto à velha serração, e outra mesmo quase a entrar em Cutia.

A segunda junto à velha serração, foi rebentada por uma auto metralhadora, o rapaz ia para Mansoa para ser rendido e afastou-se o mais que pode para a direita da árvore para não passar minimamente na zona dos rodados, ela estava fora, se calhar até já há muito tempo. E acrescento, é de enlouquecer, já tinha tido a visão de uma queimada na estrada de Bissorã, mas ali ver aquela malvada estrutura a arder, e como é blindada não podermos fazer nada, nasce dentro de nós um ódio sem limites, uma vontade de vingança de destruir, as batidas do coração sobem para as 200.


Nós tínhamos o destacamento em Manhau onde um Pelotão com um grupo de Milícia, passava 15 dias. O Pelotão que ia, tinha que levar tudo, incluindo a água. Havia uma camioneta com um depósito de 10.000 litros, e como aquilo era muito perto, fazia-se a rendição, uma parte que trazia o carro da água depois quando o carro da água chegasse, eram os últimos rendidos. O carro da água andava muito devagar e às vezes até ficava para trás em demasia. Não sei a data, só sei que era o dia do Portugal Coreia, em 1966, estavam todos com muita pressa para irem ouvir o relato, não sei se fui eu, lembro-me de falar nisso com alguém, alterar a ordem das viaturas, não sei se com o Comandante de Companhia se com um Alferes. Eu tinha um rádio novo e não queria parti-lo, andando a tratar das coisas com ele na mão, e eles todos a gozar comigo, mas lá fiz ou fez-se a alteração da ordem das viaturas, passando o carro da água para os carros da frente.

Com a criação das caveiras, na prática só tínhamos dois pelotões, havia férias e a esta distancia não me lembro quem era o comandante de pelotão. Um pouco chateados mas lá fomos, eu dentro da bajuda segurando o rádio, quando atingimos a descida para a bolanha de Manhau foi a loucura, vieram granadas de mão, não sei de onde, lá tive que deixar o rádio que não se partiu. Mas com a bajuda, os moços das armas pesadas aguentámo-nos bem, até que parece que eles queriam era o carro da água e quando o viram atacaram sem perceberem que ele não estava no sitio que era hábito, mas eram sempre e sempre mais violentos, o estrondo das G3 levava sempre mais tempo a se impor, aquilo à direita tinha uma zona com muitas árvores, levou o seu tempo até se impor o silencio.

Havia uns rapazes que quando estavam em Manhau iam às laranjas a Mantida e foram... e foram, claro que eles, o IN, pensaram em apanhá-los mais a viatura, só que Deus é grande, eles não foram com a frequência que iam e entretanto, vieram uma quantidade de auto metralhadoras para Bafatá, que ao passarem por Mantida, tinham uma emboscada, pelo que ficou no terreno fizeram estragos enormes, foi feita guerra da mais violenta.
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 12 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7602: Memórias de Mansabá (1): No coração do Óio, bem perto do Morés (Ernesto Duarte / Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P7759: Recortes de imprensa (38): "Para a guerra foram só os pobres" (José Manuel Lopes), JN - Jornal de Notícias, 6/2/2011



Recorte do JN - Jornal de Notícias, de 6 de Fevereiro de 2011, com o depoimento do nosso camarigo José Manuel Lopes no âmbito da reportagem Orfãos de Pátria. Outro dos nossos camaradas do blogue, entrevistado pelo JN, é o J. Casimiro Carvalho. Dele daremos também oportunamente notícia. O Zé Manel foi Fur Mil Inf Armas Pesadas, CART 6250 (Mampatá, 1972/74).


Reportagem: Helena Teixeira da Silva e Luís Pedro Carvalho. Vídeo: Luís Pedro Carvalho.

"Não morreram, não têm sequer feridas visíveis. Mas as que não se vêem, as que não têm nome nem cura, também existem. Quatro ex-combatentes relatam uma guerra que não escolheram. E tentam viver à procura do lado bom da história. Os homens também choram". 



Reproduzido com a devida vénia... 


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Nota de L.G.:


Último poste desta série > 

 14 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7436: Recortes de Imprensa (37): Heróis do mar, de Joaquim Magalhães de Castro em Fugas/Público (Joaquim Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P7758: Notas de leitura (201): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Este “balanço cultural” tem o seu significado, abarca as iniciativas culturais que foram tomadas pelas autoridades portuguesas e seus representantes em Bissau após a independência e até à época do conflito político-militar de 1998-1999.
Não conheço reflexão mais detalhada, quem possuir mais elementos neste domínio, por favor, dê-nos informação.

Um abraço do
Mário


Política cultural portuguesa em África:
O caso da Guiné-Bissau

Beja Santos

Mário Matos e Lemos foi jornalista, colaborador da televisão, conselheiro de imprensa e conselheiro cultural e director do Centro Cultural Português de Bissau entre 1985 e 1998. É autor de vários trabalhos sobre a Guiné, como “A Revolta de 1931 na Guiné”, “Os Portugueses na Guiné” e “O Primeiro Fotógrafo de Guerra Português – José Henriques de Mello”. Em “Política Cultural Portuguesa em África, o caso da Guiné-Bissau, 1985 – 1998”, edição de autor, 1999, procedeu a um balanço sobre esses anos de trabalho na Guiné-Bissau.

Começa por reflectir sobre a vida cultural existente em Bissau em 1985 e as suas estruturas de apoio: Centro Cultural Português, Centro Cultural Francês, Centro Cultural Líbio e Centro de Estudos Brasileiros ainda em construção; não havia televisão e havia a rádio oficial, o jornal “Nô Pintcha” era publicado episodicamente e com uma tiragem duvidosa. O cinema UDIB passava diariamente filmes de todas as nacionalidades imagináveis, preferentemente de guerra ou de pancadaria. Havia uma livraria do Estado onde se encontrava toda a espécie de obras publicadas pela editora progresso, de Moscovo, havia ali revistas soviéticas e revistas e livros cubanos. Livros portugueses encontravam-se os que tinham chegado às prateleiras, sobrantes da I Feira do Livro Português. Esta pobreza cultural não era fruto do acaso: em 1974, ao atingir a independência, a Guiné-Bissau contava apenas com 14 licenciados a trabalharem no seu território; doze anos depois, o INEP publicou estatísticas segundo as quais os quadros médios e superiores ascendiam a 1400 pessoas, com uma formação muito heterogénea. Recorde-se que nesses tempos ainda era frequente ser considerado antipatriota quem falasse bem português e o utilizasse fora de funções oficiais, o que contrariava a política sempre defendida por Amílcar Cabral. Os novos detentores do poder pretenderam transformar o crioulo em língua nacional. À época em que Mário Matos e Lemos chegou a Bissau já se discutia a liberalização que começou a concretizar-se a partir de 1987. Só a partir daqui é que o abastecimento do mercado conheceu alguma abundância foram aparecendo restaurantes e cafés, hotéis e residenciais. Faz ainda algumas observações sobre o acordo de arranjo monetário e a adesão da Guiné-Bissau à zona do Franco CFA (Franco da Comunidade Francófona Africana) que mereceu muita contestação devido à perda de fontes de receita já que as alfândegas constituíam a maior parte da fiscalidade.

Dado este pano de fundo, o autor lança-se sobre o quadro cultural: a questão da língua era gravíssima, falada incorrectamente pela maior parte dos professores, havia a ideia de utilizar o crioulo no ensino, isto quando o crioulo não é uma escrita definida e só lê crioulo quem conhece o português. Mário Matos e Lemos observa que na época existia uma fraca percentagem de guineenses que comunicavam entre si em crioulo e questiona se a língua de ensino podia ser o crioulo e quais os inimigos do uso do português (enuncia os franceses, os suecos e até algumas organizações portuguesas). O Centro Cultural Português procurou reagir enveredando por três áreas de actuação: intensificação dos cursos de português, desenvolvimento da biblioteca e organização de manifestações como espectáculos de cinema ou feiras de livros portugueses. Repertoria seguidamente a evolução da língua portuguesa no Centro Cultural que aparece calendarizada. Dá seguidamente ênfase à presença da língua portuguesa através da formação de professores guineenses. Ao Centro ocorriam muitas solicitações como, por exemplo, as autoridades da Guiné terem mostrado interesse em que Portugal recuperasse os retratos dos antigos governadores, muitos deles já em mau estado. Lisboa nunca deu qualquer resposta. Fez-se uma exposição de fotos dos retratos, era evidente o estado de deterioração de muitos. Valia a pena (este um à parte meu) saber o que restou desta galeria de retratos depois do conflito político-militar de 1998-1999. Destaca-se o acervo da biblioteca, as iniciativas em programa de rádio, os filmes, as conferências, os recitais de música, colóquios de historiadores, edições de livros de autores guineenses.

Outras iniciativas merecem destaque: o Projecto África, do ICALP, a cooperação com a Escola Superior de Educação de Setúbal, a criação da Faculdade de Direito, o projecto da criação da televisão, o restauro do Baluarte de Cacheu, o apoio à conservação dos arquivos guineenses e às novas instalações do Centro Cultural. À guisa de conclusão, escreve o autor: “Os Governos portugueses de depois do 25 de Abril, todos os Governos portugueses, herdaram o dilema de Marcelo Caetano: independentemente de ser Portugal o país doador internacional em todas as áreas – salvo no ensino, o que é significativo – ninguém sabe o que fazer com a Guiné-Bissau. No entanto, tal como Marcelo Caetano disse a Spínola, não se pode abandoná-la ostensivamente e é preferível sair derrotado. Todavia, a guerra travada depois da independência era, evidentemente, outra, era a batalha pela Língua Portuguesa, na qual o aliado era o próprio poder constituído e a maioria do povo guineense e o adversário era o mesmo que, no século XIX, perante a indiferença de Lisboa e o desespero de Honório Barreto, absorveu Casamansa”.

O autor termina o seu livro com uma explicação para a revolta militar de 1998-1999. Vamos referi-la em separado.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7751: Notas de leitura (200): Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7757: (Ex)citações (130): A saudade imprecisa de África ou... não sei se tenho saudades da Guiné, se da minha juventude (Nuno Dempster)

1. Comentário de Nuno Dempster [, também bloguista, A Esquerda da Vírgula,], com data de ontem, ao poste P7747 (*):
  
Luis Graça & Camaradas, antes de mais obrigado por existirem e por me ver junto de vós. Depois quero agradecer ao Luís Graça o belíssimo post que me apresentou a todos. Já vinha aqui desde o início de Março, quando comecei a avivar a memória para o poema [, K3,]  que iria escrever.


Penso publicar convosco alguns textos de memória em prosa, à medida que os for escrevendo. Pergunto-me muitas vezes se tenho saudades da Guiné, se da minha juventude. Creio que a juventude é inseparável do cenário real por onde andamos. Com a dúvida de me perguntar, chamo no poema a essa saudade a saudade imprecisa de África.


Tenho orgulho, não por mim, mas por nós todos em ter escrito esse poema. Era preciso que alguém falasse também desse modo, já que a pátria nunca tratou bem os soldados anónimos como nós que lutaram por ela, no séc. XX e nos séculos para trás. 


O livro é mais nosso do que de ninguém, e isso alegra-me e põe-me em paz comigo mesmo em relação a esse nosso passado. Quando o livro saiu, senti ter cumprido um velho dever que estava por pagar a quantos, antes e depois de mim, deram às armas o melhor da sua juventude.

[Fixação / revisão de texto / bold a cor / título: L.G.]
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Nota de L.G.:


(*) V d. poste de 

 9 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7747: Tabanca Grande (266): Nuno Dempster, autor do poema K3, agora publicado em livro, ex-Fur Mil SAM, CCAÇ 1792 (Saliquinhedim/K3, Mampatá, Colibuía e Aldeia Formosa, 1967/69)

Guiné 63/74 - P7756: (Ex)citações (129): Os nossos médicos Mário Bravo e Amaral Bernardo saúdam a entrada, na Tabanca Grande, do José Figueiral (... e o regresso à família de Bedanda)



Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 6 &gt > Carnaval, 1971 (?) > "Da esquerda para a direita, Alf Mil Figueiral, Médico Amaral Bernardo (que me coseu o nariz e também é de Viseu), Cap Ayala Botto, não me lembro do nome do seguinte, Alf Mil Rocha (Artilharia) e Alf Mil Silva"...


Foto (e legenda): © José Figueiral (2011). Todos os direitos reservados.







Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 6 > s/d > Regresso do Cap Ayala Botto, de férias: é o primeiro, sentado à direita; o Alf Mil Médico Amaral Bernardo está de de pé junto ao Seco, em traje tradicional; do lado esquerdo está o Alf Mil José Figueiral;  falta identificar o alferes que está no meio, sentado...


Foto: © Amaral Bernardo (2007). Todos os direitos reservados.








Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971/72> O Alf Mil Médico, Mário Bravo, à direita; e o Tenente Miliciano Capelão Mário Oliveira, CCS/BCAÇ 2930 (Catió, 1970-1972).

Foto: © Mário Bravo (2007). Todos os direitos reservados





1. Mensagem (8 de Fevereiro, 23h15) do Mário Bravo, ex-Alf Mil Médico, que passou por Bedanda, pela CCAÇ 6, entre Dezembro de 1971 e Março de 1972 (,ficando o resto da comissão no HM 241, em Bissau), em resposta a uma anterior mensagem do seu e nosso camarada José Figueiral (Amigo Mário Bravo, já me apresentei na Tabanca Grande,que podes consultar.Tenho mais fotos em que apareces,mas ficam para a próxima vez. Um abraço. Figueiral)


Meu Amigo Figueiral:

É sempre com muita emoção que recebo notícias daqueles que sofreram comigo as agruras da vida difícil dessas paragens de Bedanda.

Mas acho que temos obrigação de transmitir às próximas gerações o que nos inundava a alma.

Temos "boas recordações e laços de amizade " que perduram e faço votos que continuarão a durar.

Manda fotos. Já recebeste notícias do Amaral ? Boa noite e vou dormir.


Cumprimenta


Mário Bravo

2.  Comentário de Amaral Bernardo (ex-Alf Mil Med, CCS do BCAÇ 2930, Catió, 1970/72,  e  CCAÇ 6, Bendanda, 1971) ao poste  P7745


É com alegria e, porque não, com emoção que te contacto, Figueiral!... Afinal vivi integrado numa família a que ambos pertencíamos durante "muito tempo". Foram 11 meses... 


Embora frequentasse algumas "estâncias de turismo" da região (Gadamael, Guilege e,  no 1º mes da comissão, Cacine), foi a CCAÇ6 (AUT VINCERE AUT MORI, lembras-te?) (*),  em Bedanda, que foi a minha Companhia. 


Da fotografia, que também tenho, encontro-me com o PUM!PUM!BAlDÉ  que atirava supositórios de 50kg - o Rocha -, com o Mário Bravo que me substituiu e com o Mário de Oliveira (ex-padre) (**).


Essa foto é de um Carnaval que deu muito que falar nos mentideros  da ALTA SOCIEDADE local. E,de facto, ainda hoje acho que estávamos muito in


Por agora ...basta.


Aguardo contacto, por aqui ou...967070758 / 915676614 / 917745306(93)


Abraço rijo. Fico à espera para "partir mantanha".


Amaral Bernardo

PS - De 1997 até 2004 andei na Guiné a fazer pos-graduação a médicos locais (concurso do Banco Mundial ganho pelo ICBAS - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, do Porto).


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Notas de L.G.:


Último poste da série > 7 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7738: (Ex)citações (128): Coisas mais importantes da vida do que a questão do sexo dos anjos (José Brás)


(*) Vencer ou morrer (em latim)


(**) 29 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1471: O tenente miliciano capelão Mário Oliveira, Catió. BCAÇ 2930 (Amaral Bernardo)


(...) O Mário de Oliveira que está com o Mário Bravo  não tem nada a ver com o Padre Mário de Oliveira da Lixa. É o capelão da CCS do BCAÇ 2930, sediada em Catió, sede do batalhão, a que ambos pertencemos: (i) embarque no Carvalho de Araujo, que ardeu no caminho; (ii) chegada a Bissau em 4 de Dezembro de 1970; (iii) e regresso em 14 de Outubro de 1972.

O Mário de Oliveira é meu afilhado de casamento!... O Mário Bravo foi-me render a Bedanda (onde estive 13 meses com o capitão Ayala Botto, que cumprimento). Fiz também Guileje com o famosíssimo Cap Parracho que cumprimento também, e Gadamael com o Cap Silva, das Operações Especiais, a quem tive que passar a certidão de óbito por morte em combate, e que recordo com muita saudade (Gadamael era o pior buraco do sul; a companhia que então lá estava teve que ser evacuada para Bissau por minha recomendação). Só voltei a ver o Mário Bravo há dias, aqui no hospital onde trabalho e lhe dei um abraço e o endereço do blogue. (...)



Guiné 63/74 - P7755: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (60): Na Kontra Ka Kontra: 24.º episódio




1. Vigésimo quarto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 9 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


24º EPISÓDIO

O nosso Alferes, embora já esteja liberto do acordo com o Adramane, ainda não se sente muito à vontade com a, agora, sua mulher. De qualquer modo conversaram mais, chegam a abraçar-se, beijam-se.

Está a chegar a noite. Os dois vão comer mais alguma coisa e antes de se recolherem são avisados que precisam da sua presença no “bentem”. O Braima, músico da tabanca, queria dedicar e oferecer ao Alferes uma composição musical. Não faz da música e do canto a sua profissão, ou seja não se considerando “jideu” não ganha a vida à custa de loas dedicadas a “homens grandes” importantes, que vaidosamente lhes pagam. O momento é inesquecível para o nosso Alferes que, comovido às lágrimas, muito agradece. Não tarda que, finalmente, o Alferes leve a Asmau para a sua morança.

A morança do Alferes que praticamente só tinha a sua cama, encontra-se agora atulhada com todas as prendas recebidas, mais a cama da Asmau. Tudo isso iria ser necessário para a vida do casal.

O Alferes ligou o seu pequeno candeeiro a pilhas e os dois foram ordenando melhor tudo aquilo que o pessoal para lá tinha levado. Com todos os pertences no sítio, o Alferes diz à ainda sua bajuda, que era melhor deitarem-se, perguntando ao mesmo tempo se ela queria que ele apagasse a luz para se despirem. Ela disse que não era necessário e foram tirando a roupa que não era muita, com aquele clima. O Alferes tirando a sua “sabadora” ficou quase nu mas, para seu espanto, verifica que ela tem vários panos para tirar, um sempre mais curto que o anterior, e não apenas um como ele pensava. Afinal, por baixo do habitual pano comprido, as mulheres africanas usam outros. É um autêntico espectáculo extra para o Alferes Magalhães, contando que tem ali a mulher africana mais bonita que alguma vez tinha visto na Guiné.

Apagado o candeeiro deitam-se cada um em sua cama. O Alferes tem a Asmau à sua esquerda. Vão trocando algumas palavras. Havia uma coisa que atormentava o Alferes, saber se a Asmau tinha ido ou não ao fanado. O João achava que possivelmente não. Se ele queria ter prazer, muito prazer, com a sua linda bajuda, o mesmo queria que acontecesse com ela. Para acabar de vez com a terrível incerteza, no meio da conversa, faz-lhe a pergunta. Resposta negativa e total alívio para o Alferes. Poderia proporcionar à Asmau prazer idêntico ao que ele queria ter.

Vão conversando, cada um em sua cama. O Alferes com a sua mão esquerda vai afagando, primeiro um braço dela, depois o ventre. Sente o umbigo metido para dentro, contrariamente a muitas africanas que o têm saliente, por mau tratamento à nascença. Mais um degrau de satisfação por isso. Estende o braço e tenta agarrar o braço esquerdo dela. Ao fazê-lo não deixa de sentir os seu dois seios duros com os mamilos a resvalarem nos pelos do seu próprio braço. Faz-lhe festas na cara, desce para os ombros, os seios, seios duros. Aquela mão percorre todo o corpo da ainda bajuda. Embora já tivesse quase a certeza, não deixou de verificar que realmente ela não tinha ido ao fanado e aí, pela primeira vez ela mexeu-se. Algo se passava e o Alferes sabia muito bem o quê. Continuou. Rodando agora na sua cama, com a mão direita foi sentindo a pele macia dos seios sentindo os mamilos entumecidos. Ela sem nada dizer continuava a mexer-se, a contorcer-se. E quando “a palhota já estava quase a pegar fogo” ele enlaça-a, puxa-a para a sua cama. Não demora muito até que ela, até aí calada, solte uma qualquer expressão em fula, não compreendida, mas adivinhada por ele, e se deixe cair para o lado.

Não se sabe se houve mais dizeres em fula naquela noite. Cansados acabaram por adormecer.

Ao acordar pressentem que há alguém junto da entrada da morança. A ex-bajuda continuou deitada e o agora o seu homem prepara-se para ir tomar um banho à fonte. Pega na toalha e no sabão, abre a porta e sai. Acto contínuo três ou quatro “mulheres-grandes”, das que estavam à porta, precipitam-se para dentro da morança. O Alferes que já se afastava em direcção à fonte pára a fim de presenciar o que se estava a passar.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7748: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (59): Na Kontra Ka Kontra: 23.º episódio

Guiné 63/74 - P7754: Ser solidário (101): Espectáculo de Teatro e Música Popular. Campanha "Sementes e Água Potável para a Guiné-Bissau" (Zé Teixeira)


1. O nosso Camarada José Teixeira, (ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), publicou no Facebook desta Tabanca a seguinte mensagem:

A LOC/MTC - Liga Operária Católica / Movimento de Trabalhadores Cristãos, da Paróquia de Vilar do Paraíso, em Vila Nova de Gaia, está a mobilizar os diversos organismos da Paróquia para a organização de um Espectáculo de Teatro e Música Popular com objectivo de angariar fundos para a nossa Campanha "Sementes e Água Potável para a Guiné-Bissau".

O espectáculo está a ser dinamizado pela LOC/MTC, JOC - Juventude Operária Católica, Grupo Missionário, com o apoio da Paróquia e a colaboração da Associação Desportiva e Cultural de Santa Isabel de Canelas.

Espectáculo: Teatro e Variedades

Data: 26 de Fevereiro, pelas 21h30.

Local: Centro Maria de Nazaré

Rua da Boa Nova (Junto ao Seminário)

Valadares

A entrada é livre - A angariação de fundos é concretizada através de um sorteio.

É mais uma oportunidade de participares no projecto.

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7672: Ser solidário (100): Viagens Contra a Indiferença (Guiné-Bissau) (3) (Belarmino Sardinha / Fernando Nobre)

Guiné 63/74 - P7753: Convívios (291): 9º Encontro da Tabanca do Centro (Joaquim Mexia Alves)


1. O nosso Camarada Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp / RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, enviou-nos a seguinte mensagem:
9º Encontro da Tabanca do Centro

O 9º Encontro da Tabanca do Centro irá ter lugar no dia 23 de Fevereiro, pelas 13.30 horas, na Pensão Montanha, claro, em Monte Real.

Desta vez regressamos à ementa tradicional, ou seja, o Cozido á Portuguesa!

O local de reunião continuará a ser, como sempre, no Café Central de Monte Real, pelas 13h00.

As inscrições terão de ser feitas, aqui na caixa de comentários, ou em tabanca.centro@gmail.com ou no blogue http://tabancadocentro.blogspot.com/2011/01/8-encontro-da-tabanca-do-centro.html impreterivelmente até às 12.00 horas do dia 21 de Fevereiro.

Nota: Precisamos de ideias para aplicar os "dinheiros" já existentes.
Um abraço amigo do,
Joaquim Mexia Alves
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P7752: Parabéns a você (215): José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Mejo, 1966/68 (Tertúlia / Editores)



PARABÉNS A VOCÊ

10 DE FEVEREIRO DE 2011



1. No dia do seu aniversário, aqui estão os editores e a restante tertúlia a felicitar o nosso camarada e amigo José Brás. Miguel Pessoa associou-se também à data colaborando com o seu habitual e original postal.

São nossos votos que o nosso aniversariante tenha um longa vida, com qualidade, para continuar a enviar regularmente os seus textos ao Blogue, assim como a publicar os seus livros. Lembremos o seu último, Lugares de Passagem, que parece ser difícil encontrar nas livrarias, mas que o Zé, que tem alguns exemplares, enviará a quem lho pedir.

Aconselhamos os nossos eventuais leitores a lerem os textos do José Brás publicados no nosso blogue. Para aceder, clicar aqui.

Caro José, porque mereces, desejamos o melhor da vida para ti.

Em nome de todos os camaradas e amigos do nosso blogue, deixo-te um fraterno abraço.
Carlos Vinhal


2. Segue-se agora um texto enviado pelo José Brás a propósito do(s) dia(s) do seu aniversário. 
É ele quem faz anos, mas nós é que temos direito a prenda. Falando em prendas, diz-me o Luís Graça que já está aí nas bancas a 2.ª edição do livro de ficção Lugares de Passagem (Lisboa,  Editora Chiado, 2010,  192 pp.,   preço de capa, 15€)...  Duplos parabéns, Zé!...


Dez ou quinze de Fevereiro?


por José Brás

Dez de Fevereiro, no calendário dos santos católicos calha todos os anos a Santa Escolástica, mais conhecida como Santa Scholástica, virgem, nascida em 480 DC, irmã gémea de S. Benedito de Núsia, entre nós, nem sei porquê, também conhecido como S. Bento, fundador da Ordem dos Beneditinos.

Quinze de Fevereiro, continuando a busca na mesma relação de santos e santas, é festejado Santo Amaro ou Santo Maurus, com fama de ter andado sobre as águas para salvar Plácido, companheiro monge caído ao rio e arrastado na corrente quando se abastecia de água.

E vejam vocês como todas as coisas da vida se ligam em malha tão apertada e fora de explicações. Acontece que o irmão gémeo de Santa Escolástica, não foi nem mais nem menos que o educador de Santo Amaro, quer dizer, como o dia dez de Fevereiro se junta ao dia quinze pelos insondáveis caminhos da vida.

Dez ou quinze de Fevereiro de 1967.

Se querem que diga não sei. Sei apenas que foi num, ou no outro dia, de Santa Escolástica ou de Santo Amaro, que apanhei a maior cadela da minha vida e sorte tive eu que o PAIGC tivesse querido atacar Cumbijã nesse dia.

Eu explico, sou obrigado a destrançar isto, porque senão ninguém se entende e nem eu sou capaz de contar direito o que quero contar, isto é, marcar um princípio, um meio e um fim na história a fim de que eu próprio a entenda e, por tabela, talvez também, a entendam os meus amigos.

Se começasse pelo que me lembra melhor, contaria das tremuras bravas que me tomaram e com que comecei a tomar conta de mim, pouco a pouco retomando algum sinal da vida que o Furriel enfermeiro esteve quase a dar como acabada.

A enfermaria da Companhia, em Aldeia Formosa, que me recorde, era uma espécie de corredor, e digo assim por me parecer agora a esta distância dos factos a relatar, estreita e comprida.

Encostada à parede do lado direito de quem entrava, estava sempre montada uma marquesa, e era precisamente sobre ela que eu tremia, acho que de frio e de calor, uma coisa de cada vez e não sei se não as duas ao mesmo tempo.

Mas com isto, estou agora a meio da história sem ter ainda, sequer, esboçado o seu início como é necessário que faça.

Que tremia já vocês sabem, ainda que não saibam de quê.

Também já sabem da bebedeira monumental porque logo a seguir à conversa sobre os santos falei de uma valente cadela. E assim, sabem já que tremuras e cadela são, quase de certeza, efeito e causa, respectivamente e ainda que postos em tempos invertidos.

Agora, será necessário é explicar porque é que aparecem aqui os canonizados personagens e as dúvidas se é a um ou a outro que devo recorrer para fixar o exacto dia da bebedeira e das tremuras.

Acabemos com as voltinhas, então.

Dizem que nasci no dia dez de Fevereiro de 1943, com ajuda da Mulher João Granja, bruxa nas noites das Sextas na mata do Conde, e parteira, enfermeira, curandeira, nos outros dias quando os aldeões precisavam.

Acontece que em Fevereiro, como sabem, caminhos de aldeia, naqueles tempos, eram um lamaçal pegado, difíceis de fazer se a distância à sede da Freguesia se media em quilómetros.

A maior parte dos registos de nascimento não cumpriam o prazo da Lei e havia que recorrer à pequena mentira, atrasando o dia do nascimento na papeleta da cédula.

Foi o que aconteceu comigo, também, nascido de facto a dez e oficialmente a quinze, festejando os aniversários, uns anos a dez e outros a quinze, conforme dava jeito.

E é por isso que estou agora nesta enrascada de querer contar-vos a história e encalhando logo na possível falta de rigor em relação ao tempo exacto dos acontecimentos e ao patrocínio da Santa ou do Santo.

Seja como for, o que interessa mesmo é que era a primeira vez que tinha data de aniversário na Guiné, mais precisamente em Aldeia Formosa, hoje Quebo, 24 primaveras no lombo, já, umas melhores que outras, como toda a gente.

No dia anterior estivera numa molhada que podia ter acabado mal. Gerente do bar e da messe, já com algumas faltas num e noutra e sabendo de carregamento no cais de Buba para receber, o capitão aproveitou a coluna que sairia de Nhala no mesmo propósito e entregou-me dois Unimog e uma Secção reforçada para nos juntarmos.

Em Buba, levámos mais tempo a carregar do que o Pelotão de Nhala que se pôs na alheta e nos deixou sozinhos para fazer de noite a estrada de retorno.

Apesar de ser tempo seco, havia passagens de zonas em que era necessário descarregar e carregar as viaturas porque as rodas acertavam mal nos troncos, utilizar guincho e puxar.

A determinada altura, ia eu com a ponta do cabo agarrada no ombro, rebentam vários tiros na frente, já perto primeira da viatura. A minha arma estava no banco do Unimog e corri para lhe pegar.

Ouvi gritos e percebi que era a nossa malta que, preocupada, saíra de Aldeia Formosa à nossa procura, atravessara Nhala e nos encontrara.

Dormi e, de manhã acordei em festa, ou a pedir festa, quem sabe se apenas a outra parte de mim que reagia porque tinha de ser.

E comecei a beber.

Bebi de manhã, bebi ao almoço, bebi durante a tarde, bebi ao jantar, bebi com a minha Secção, bebi no bar, bebi na messe de sargentos e na de oficiais, bebi, cerveja e vinho e whisky, e conhaque e... o que vinha à boca.

Depois da tagarelice do pós jantar, peguei uma garrafa de Long John e levei p'rá cama.

E foi aí, noite dentro, que a grande contradição do desejo do PAIGC de atacar Colibuia, apareceu como bênção dos céus, vejam bem.

Mensagem urgente de Bissau, codificada, cabo cripto de férias em Santiago do Cacém e a necessidade de acordarem o Furriel de Transmissões para descodificar.

Não havia Furriel na sua cama, mas um corpo, apenas, disseram-me depois, ainda com a garrafa vazia deitada a seu lado como amante dedicada e paciente.

E foi esse corpo vazio de alma, quase, que levaram de charola para a enfermaria e que na enfermaria o Furriel Enfermeiro recuperou para a tremura violenta mas de bom sinal.

Ou era onze ou era dezasseis de Fevereiro, quando o enfermeiro decidiu que estava capaz de recolher ao meu mosquiteiro.

Foi uma semanada de ressaca, o corpo reagindo aos poucos, recuperando incapaz de cheirar álcool e em dificuldades com o prato.

Agora vejam vocês como o mundo é pequeno!

Santa Escolástica e Santo Amaro, gente que viveu de perto e conviveu na sombra dos mosteiros antigos e que se misturam na confusão das datas do meu aniversário.

A vontade do PAIGC de atacar Cumbijã, coisa que não aconteceu mas que originou a mensagem que provavelmente me salvou da morte quando festejava o nascimento.

E imaginem agora vocês que me dava na gana e punha o som dos tiros dos meus camaradas a saírem das armas do PAIGC, num ataque de apanhar gente à mão, coisa que não foi mas podia ter sido, e que se eu escrevesse que foi, os que não sabem que não foi, me admiravam a valentia, e os que sabem que não foi, me chamavam de mentiroso.

Logo no dia do meu aniversário!


Abraços a todos
José Brás
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Notas de CV:

(*) José Brás foi Fur Mil na CCAÇ 1622 que esteve em Aldeia Formosa e Mejo nos anos de 1966/68

Vd. último poste da série de 6 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7730: Parabéns a você (214): José Teixeira, ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381 (Tertúlia e Editores)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7751: Notas de leitura (200): Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Depois de se ler o “Nó Cego”, fica-se com a garganta seca. E manda a lucidez que nos resignemos a uma literatura muito mais banal, isto de obras-primas absolutas é, por definição, um achado raro, Vale Ferraz escreveu o livro da guerra, o que de essencial há a dizer brota nestas centenas de páginas.
Como muitos de nós andam a reivindicar dignidade no tratamento dos ex-combatentes, não me parece estapafúrdio que se devia pôr um exemplar do “Nó Cego” em todos os estabelecimentos do ensino obrigatório.

Um abraço do
Mário


A guerra é a vida em passo de corrida

Beja Santos

Há sérias razões para acreditar que o classicismo de “Nó Cego”, de Carlos Vale Ferraz venha a ser superado pela gente da nossa geração. Não se trata do uso da linguagem, do calão e do jargão; não se trata da reconstituição da vida de uma companhia de comandos no norte de Moçambique, como podia igualmente ter ocorrido noutros teatros de operações, sujeitos a níveis de confronto similares; não se trata da reconstituição da atmosfera dos quartéis e dos retratos sociais e psicológicos de alferes, furriéis e praças, e até mesmo o desfasamento entre a experiência e as motivações dos oficiais superiores e o comportamento das tropas em combate. O que verdadeiramente é insuperável é a gradual visão desencantada da guerra, pelo punho do capitão (autobiografia?) e o impressionante cortejo de figurantes plasmados num romance que não se confina a quartéis e picadas, através da Ilha, local onde os guerreiros fazem uma pausa antes de regressar às brutais lides bélicas, ficamos a conhecer o estado de espírito dos colonos de vários matizes, apoderou-se deles o medo que procuram vencer através da derrisão e de várias bacanais, outro olhar sobre a decomposição, no fim do Império.

Mas voltemos à trama do livro, na última operação morrera o Bento de quem o Cardozo guardou uma pequena harmónica. Aquela operação, perceptivelmente, mudara muita coisa, por exemplo o alferes Lino tomara o gosto pela guerra, na sua vertente da morte e do mando. Numa emboscada, tinham sido abatidos dois guerrilheiros e capturadas duas Simonov. Pierre anda furioso porque o capitão lhe proibira de cortar orelhas aos mortos. O novo tenente-coronel repreende o capitão, a missão não fora integralmente cumprida, grita encolerizado: “Não admito indisciplinas destas, as ordens são para cumprimento até ao fim, até ao minuto, os itinerários para serem seguidos. Vocês não estão habituados a serem comandados, mas eu habituo-os! Porque não falou pela rádio de duas em duas horas como foi determinado! Não admito repetições destas iniciativas, a guerra que vamos fazer é uma coisa séria, cada um tem o seu lugar e a sua missão, resta-lhe cumprir, para pensar e para planear existem os órgãos competentes. Percebeu?”. Aquele oficial nunca entenderá a vida de relação daquela companhia, o espanhol, o Cardoso, o Fernandes, o Lencastre, o Freixo, o Vergas, como todos eles já não podiam esconder o cansaço de tanta saída constante. Na operação seguinte, uma sortida acaba numa matança de que sobrevive uma criança. Vejamos o vigor e a secura da descrição:

“O grupo que fez a batida às imediações voltou trazendo uma criança de dois, três, quatro anos, vá-se lá saber, nu, a barriga inchada em balão, quase a rebentar pelo umbigo saliente, a pele acobreada denunciando misturas de raças, os grandes olhos a brilharam como os do leão, inteligentes, sem lágrimas.

– Que lhe fazemos? Levamo-lo? – perguntou o Fernandes com a criança à ilharga. –

Estava escondido perto da mãe morta.

O Lopes saiu do seu lugar e sem pedir licença pegou nele, escanchou-o em cima do pescoço e carregou-o para a viagem de regresso a M.

Passou a tratá-lo como filho e a companhia considerou-o sua mascote. Vestiram-no, fardaram-no de camuflado, deram-lhe um nome: Alfredo, ensinaram-no a fazer continência militar, averbaram-lhe um posto: alferes dos comandos. O capitão vai a Nampula, segue-se uma orgia numa casa de meninas, é uma descrição hilariante. O capitão regressa com boas notícias, volta às suas funções de “empresário de circo”. Sempre que necessário, Vale Ferraz usa a técnica do flashback tanto para o primeiro-sargento, como para o Casal Ventoso ou o Lencastre, é graças a este antiquíssimo expediente literário que vamos identificando as categorias sociais, as aspirações estatutárias, o que os comandos estão a fazer por autênticos náufragos de múltiplas emigrações e infortúnios.

E estamos chegados à Operação Nó Cego, o supra-sumo da vaidade do comandante-chefe que sonha juntar Moçambique às potências racistas da África austral. O importante agora é percorrer de lés a lés o planalto dos Macondes, devassar as suas bases, mostrá-las na televisão e gritar ao mundo que a Frelimo entrou no estertor. É um momento fulcral da obra, a partir de Mueda junta-se a companhia de comandos acabada de voltar de um mês de descanso, pára-quedistas, fuzileiros, milícias transformados em grupos especiais, soldados de cavalaria dos esquadrões de reconhecimento e a tropa macaca constituída por todos os indiferenciados. O capitão e o seu “circo” vão ser recebidos à metralha em bases temporariamente abandonadas, é uma espiral de horror, a brutalidade a espirrar para todos os lados. A fama daquela companhia não era muito boa, falava-se mesmo na sua dissolução. A todo o custo, o capitão quer chegar à base Gungunhana, há depois a base Alfa. Haverá corpos dilacerados, pessoas aparentemente serenas e equilibradas vão transformar-se em pequenos monstros, um medroso será equiparado a herói para efeitos da folha de serviços de um tenente-coronel, não vão faltar violações brutais onde até um antigo seminarista revela a sua bestialidade, todos os ingredientes desse mesmo circo vão aflorar na trepidação da Nó Cego: o medo puro, mais do que visceral, o soldado a rebolar com os intestinos à mostra misturados com terra, o recurso à “erva” numa tentativa de ver surgir um bom sonho, a captura do comissário Alberto Chinavane que indica o caminho da base e os avisa para a reacção que os espera. A base Alfa é o acampamento de que todos os combatentes guardam recordação: parecia-lhes irreal, um cenário de papelão, uma vala de mais de um metro servia de trincheira e de vedação, como se descreve:

“O capitão foi sentar-se na barraca que deveria ter sido do comandante e manteve-se a olhar os seus soldados, parecia muito mais velho e enrugado, mando que lhe trouxessem os papéis e os livros encontrados, passou os olhos por eles, demorou-os nas citações do livro vermelho do Mao. Depois, observou à sua volta, a base estava tacticamente bem instalada, no interior do vale, com bons itinerários de retirada, elevações para a vigilância e protecção, cercada de pequenos aldeamentos funcionando como campainhas de alarme; e passaram um curso inteiro na Academia Militar a estudar que se deviam procurar os pontos altos e isolados, as posições defensivas! Naquela guerra tudo era diferente… como haveria algum dia os generais e os Estados-Maiores perceber alguma coisa dela?”.

A base será tomada, o general exibirá a sua vaidade mostrando-a às televisões, na véspera à noite os guerrilheiros da Frelimo devastaram-na provocando mais baixas na companhia. Toda aquela noite será horrível, com revelações de homens famintos de ternura e outros que procurarão matar quem odeiam e praticar o suicídio.

“Nó Cego” é a grande metáfora da guerra colonial. Ou existe uma confissão escondida de tanto deslumbramento bestial e teremos então acesso a uma outra obra-prima ou este capitão de Moçambique, recorrendo modestamente à ilusão, deu-nos o retrato acabado do desfalecimento para onde nos levou a guerra colonial.

Na revista Colóquio/Letras, em Novembro de 1983, o escritor João de Melo terminava a sua recensão de “Nó Cego” da seguinte maneira: ”Nó Cego” é, de facto, um livro profundamente assumido. Um dos grandes romances de 1983, sem dúvida, mas à espera de ser redescoberto em toda a sua dimensão”. Hoje já se sabe que não precisa de ser descoberto, ganhou todas as credenciais do que é insuperável em literatura. Como antigos combatentes, podemos estar orgulhosos deste tesouro que Vale Ferraz legou à posteridade. Todos nós, os que combatemos no mato, estamos lá, na servidão e na grandeza, como deve ser.
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Notas de CV:

Carlos Vale Ferraz é o pseudónimo literário de Carlos Matos Gomes, hoje Coronel Cav COMANDO na situação reserva

Vd. poste de 5 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7724: Notas de leitura (199): Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7750: Homenagem à minha mãe na hora da despedida. Mãe, até amanhã! (José da Câmara)


1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 7 de Fevereiro de 2011:

Meus amigos,
No passado dia 25 de Janeiro, na Igreja da Imaculada Conceição em Easton, MA., por imposição da lei da vida, cumpri a missão mais difícil e mais nobre que até hoje me foi imposta. Homenagear a minha mãe na hora da última despedida.




Mãe, até amanhã!

Segundo os Livros Sagrados, aprendemos que há

tempo para nascer e tempo para morrer,
tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou,
tempo para chorar e tempo para rir,
tempo para calar e tempo para falar.

Foi assim que a minha mãe, a nossa mãe e a vossa amiga, percorreu o seu tempo dividido entre as ilhas das Flores e Faial e os Estados Unidos da América.

Foram muitas as experiências de vida que viveu, umas melhores que outras. Todas elas fizeram parte do seu sonho, dar aos seus e aos outros o melhor que tinha de si mesma: amor e fé!

Durante os seus anos de vivência semeou vidas, cultivou-as e fez todos os possíveis para que a sua hortinha familiar e social produzisse frutos, bons frutos, com a sábia certeza de que nenhum era mais importante ou mais saboroso que outro.

A sua devoção à Sagrada Família, fizeram dela uma esposa cúmplice, uma mãe extremosa, uma avó e bisavó compreensiva, uma amiga de todos aqueles que dela se aproximaram.

Foi uma mulher irrepreensível e inteligente, uma mulher do seu tempo. Com o seu exemplo ajudou a construir um mundo melhor à sua volta.

Em nós, nos seus filhos, incutiu o respeito pelas instituições e pelos outros. Ensinou-nos a lutar pela edificação de um mundo mais tolerante, mais compreensivo, mais igual, mais justo.

Ensinou-nos a ser fortes nos momentos de adversidade, e reconhecidos e modestos na hora do triunfo.

Viveu a sua vida sem se queixar. Derramou as suas lágrimas sozinha, nunca comprometeu os sonhos da sua vida e ajudou a construir os nossos.

Perto do fim, sem um lamento e sem um sinal de revolta, pediu-nos que a deixássemos caminhar em paz.

Neste mundo tinha cumprido a sua missão. Para ela, na Ressurreição, teria o grande Pai à sua espera e o resto da nossa família.

Morreu nas vésperas de completar as suas 84 primaveras.

Mãe, minha querida "melra preta", como muito carinhosamente lhe chamava, Deus bem sabe o quanto gostaríamos de continuar a ver-te esvoaçar entre nós. Preferistes, pela lei da vida, te libertares desta tua passagem pelo mundo, para ires ao encontro de um outro de Paz Eterna.

Que o teu último voo seja suave, firme e gracioso. Nunca olhes para trás.

Para nós, que continuaremos o teu sonho, fica a certeza de que hoje, mais do que nunca, compreendemos o significado da roda do tempo: nascer, viver, morrer!

Um amigo meu, que também foi militar na Guiné, ao perder alguém muito querido, escreveu:

O vazio que ficou,
A dor que nos atingiu,
Vão transformar-se em ausência
E mais tarde saudade.


É verdade! Já a sentimos.

Hoje, agora e aqui, vamos ser fortes na hora da despedida e humildes no reconhecimento à boa mãe que fostes e à amiga que nunca deixastes de ser de todos nós.

Mãe, descansa em Paz!