É muito difícil para mim falar da guerra da Guiné.
Porque eu não quis essa guerra nem as das outras colónias.
Um dia nos finais de 1971, o comandante da companhia mandou-me com o 4º pelotão da CART 2732, a Mansoa, esperar e trazer sob protecção uma coluna de reabastecimento com destino a Mansabá, K3 e Farim.
Mansoa, segundo a ideia que me vem à memória, era um quartel bastante grande com boas instalações quando comparadas com a maioria dos quartéis da Guiné. Não sei quantas companhias estariam lá aquarteladas, mas pelos alferes que eu encontrava no bar deveria lá morar um batalhão, não sei ao certo.
Porque havia sempre alguns tiques diferentes entre as diversas armas, ao tempo não sei se esses militares não seriam de cavalaria. Em todo o caso aqueles que contactei em Mansoa foram sempre afáveis e simpáticos.
Nesse dia mal entrei falaram-me numa mina que estaria na estrada entre Mansoa, Mansabá e o K3. Eles tinham recebido a informação no dia anterior, através dos serviços secretos. Agradeci a informação, que não tinha recebido em Mansabá e no regresso fomos com mais cuidado e atentos a possíveis minas, na estrada que era de alcatrão.
Até Mansabá nada encontrámos. Continuámos na direcção de K3 e chegados ao Bironque, num pedaço de estrada sem alcatrão, por causa do rebentamento duma mina, muitos meses antes, detetamos uma mina anticarro.
O meu pelotão não tinha especialistas de minas e armadilhas. O alferes Couto que tinha sido o primeiro a comandar o pelotão infelizmente morrera ao levantar uma.
Recordo-me de dois especialistas de minas e armadilhas que ou já estavam connosco ou vieram na altura do quartel que até era perto. Acho que teriam vindo com mais alguns soldados do quartel. Talvez porque o assunto era delicado eles pouco falaram, pois viriam concentrados a pensar na melhor forma de o resolver.
Decidiram que iriam tentar levantá-la. A decisão teria que ser deles, e eu só teria que a acatar mas fiquei apreensivo, porque cerca de um ano antes, na CCaç 2616, em Buba, tinha morrido o meu amigo Furriel Ferreira ao tentar levantar uma mina anti-carro, o alferes Couto, primeiro comandante do pelotão morrera também ao levantar uma e o alferes Queiroz que eu tinha rendido em Buba, também morrera ao pisar uma.
Seria muito mau que uma mina provocasse outra tragédia semelhante.
Hoje penso, recordando o porte e postura de um deles e de alguém que revi há cerca de 2 meses, que um dos especialistas de minas era o nosso amigo Carlos Vinhal. Só ele poderá confirmar se quiser.
Mandaram pôr o pelotão à distância regulamentar e fizeram o levantamento da mina duma forma eficiente e segura. Por mim confesso que respirei de alívio.
Depois fomos até ao K3 a verificar se poderia haver outras minas, que não encontrámos. O aquartelamento de K3 que ficava junto ao rio Geba, antes da travessia para Farim, ao contrário do de Mansoa era pobre, feito de troncos de árvores, que ladeavam um grande terreiro poeirento, onde talvez estivesse uma companhia.
Mais parecia um forte como o dos filmes americanos que víamos quando éramos novos. O pessoal não o recordo tanto como o de Mansoa, talvez por serem menos, talvez por eu ter ido menos vezes lá.
No regresso a Mansabá soube que a mensagem sobre as minas tinha sido recebida no dia anterior no aquartelamento mas não foi comunicada à CART 2732.
Foi uma falha humana, como infelizmente há muitas e havia muitas.
Felizmente não houve vítimas a lamentar.
2. Comentário de Carlos Vinhal, ex-Fur Mil da CART 2732
Não na qualidade de editor, mas como interveniente no acontecimento que o ex-Alf Mil Francisco Baptista aqui lembra, vou comentar e dar a mão à palmatória por em tempos ter sido impreciso, por lapso de memória.
Fica mais uma vez provado que há pormenores que nos vão escapando.
Passemos então ao comentário.
Em 9 de Julho de 2006 escrevi no Poste 948*:
Durante uma grande parte da comissão fui encarregue da gerência dos bares do aquartelamento. Por inerência do cargo ia quase todos os meses com o meu camarada Costa, Fur Mil Alimentação, a Bissau para acompanharmos no regresso os reabastecimentos da Cantina e Bares.
As colunas de reabastecimento eram compostas por um número elevado de viaturas de carga civis e militares, carregadas com víveres destinados a Mansoa, Mansabá, K3 e Farim. As viaturas militares de mercadorias eram pertença da Companhia de Transportes Militares e eram comandadas normalmente por um Furriel Miliciano que coordenava também as viaturas civis, alugadas para reforço. A protecção da coluna era assegurada entre Bissau e Mansoa pelas forças de Mansoa. A minha Companhia, por sua vez, esperava ali a coluna de onde fazia protecção até Mansabá e daqui ao K3. As viaturas de carga destinadas a cada aquartelamento iam ficando sucessivamente a descarregar, sendo apanhadas, mais tarde, no regresso da coluna para Bissau.
No dia 3 de Dezembro de 1971, num desses reabastecimentos, chegou, ainda em Bissau, uma informação de que teria sido montada, pelo IN, uma mina anticarro no trajecto entre Mansoa e o K3. Deram-me conhecimento do facto por eu ser o único graduado com o curso Minas e Armadilhas na coluna. Dirigi-me ao comandante das viaturas de reabastecimento, por sinal um Furriel Miliciano recentemente chegado à Guiné, para o avisar de que os condutores das viaturas de carga deveriam conduzir com cuidado, porque a todo o momento poderiam surgir complicações. Julgando que eu estava a amedrontá-lo por ele ser periquito, não me levou muito a sério.
Foram precisos sete anos para se saber a verdade. Não foi em Bissau que eu soube da possível existência mina, mas, segundo o testemunho do camarada Francisco Baptista, foi em Mansoa.
Se pensarmos bem, até é mais lógico porque ali era sede de Batalhão e era ali que começava o perigo.
Em Mansabá, ao tempo, estava activado o COP 6, logo estou em crer que a mesma informação também lá estivesse. Pelos vistos estava, mas dela não foi dado conhecimento a quem de direito, ao CMDT da coluna, Alf Mil Francisco Baptista.
A detecção da mina deveu-se à informação recolhida em Bissau e ao bom hábito de picar a zona da cratera sempre que ali passávamos.
Aqui também devia ter dito que a detecção da mina deveu-se à informação recolhida em Mansoa e acrescentar: ao especial cuidado do Comandante da coluna que mandou picar aquela zona com especial atenção.
Analisada a situação, afastámos toda a gente para uma distância de segurança e metemos mãos à obra. Por sorte a mina, uma TM42, que possui uma asa própria para transporte, tinha-a acessível sem necessidade de lhe mexer muito. Foi só afastar um pouco de terra com cuidado não fosse estar armadilhada. Atámos-lhe uma corda estendendo esta de modo a, por de trás de uma árvore, puxar a mina até ela se soltar. À conta de alguma força, lá a conseguimos soltar. Para a tornar inofensiva, removi-lhe a espoleta e ei-la em condições de ser tocada e fotografada para a posteridade.
Cabe aqui um pedido de desculpas ao camarada Francisco Baptista pela angústia que lhe causamos, que felizmente não notei. Claro que eu também estava tenso, pelo menos até saber como íamos dar a volta ao caso. Cabe aqui também uma palavra de apreço ao meu camarada de Minas e Armadilhas, Fur Mil Sousa. Foi um trabalho de equipa.
Para relembrar, ficam as fotos então publicadas, com legendas de hoje:
Bironque, 03DEZ71 - A mina AC TM42 momentos antes de ser levantada e neutralizada
Parafraseando Francisco Baptista: "Mandaram pôr o pelotão à distância regulamentar e fizeram o levantamento da mina duma forma eficiente e segura".
Acabada a operação, e aproveitando a presença do fotógrafo, (quem seria?) fez-se a foto de família para a posteridade. O Sousa segura a menina com o prazer do dever cumprido. Agora reparo que saí para o mato com os galões de furriel nos ombros. Tal foi a pressa.
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 9 DE JULHO DE 2006 > Guiné 63/74 - P948: Memórias de Mansabá (3): A angústia do minas e armadilhas (Carlos Vinhal)
Último poste da série de 15 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11396: Memórias de Mansabá (27): Naquele Domingo de Páscoa de 1971, festejei os meus 34 anos (Jorge Picado)